A AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE AUTOR MEDIATO À LUZ … · DA TEORIA DE CLAUS ROXIN COMO FORMA DE...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO A AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE AUTOR MEDIATO À LUZ DA TEORIA DE CLAUS ROXIN COMO FORMA DE COMBATE À CRIMINALIDADE ORGANIZADA EDUARDO DE ARAÚJO CAVALCANTI DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM DIREITO PÚBLICO Recife 2005

Transcript of A AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE AUTOR MEDIATO À LUZ … · DA TEORIA DE CLAUS ROXIN COMO FORMA DE...

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE CINCIAS JURDICAS FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO

A AMPLIAO DO CONCEITO DE AUTOR MEDIATO LUZ

DA TEORIA DE CLAUS ROXIN COMO FORMA DE COMBATE

CRIMINALIDADE ORGANIZADA

EDUARDO DE ARAJO CAVALCANTI

DISSERTAO DE MESTRADO EM DIREITO PBLICO

Recife 2005

EDUARDO DE ARAJO CAVALCANTI

A AMPLIAO DO CONCEITO DE AUTOR MEDIATO LUZ

DA TEORIA DE CLAUS ROXIN COMO FORMA DE COMBATE

CRIMINALIDADE ORGANIZADA

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito da Faculdade de Direito do Recife / Centro de Cincias Jurdicas da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre. rea de Concentrao: Direito Pblico Orientador: Prof. Dr. Cludio Brando

Recife 2005

AGRADECIMENTOS

Ao PROFESSOR CLUDIO BRANDO, pelas crticas construtivas e orientao perspicaz.

A CARMINHA, EURICO e JOSI, pela pacincia com que sempre me atenderam.

Aos Coordenadores do Curso de Direito do Instituto de Educao Superior da Paraba - IESP, YANKO MARCIUS e JULIANA FIGUEIREDO, por compreenderem que minha ausncia no era sinnimo de descaso.

Aos meus amigos FREDI KESSELRING e SIDNEY CHIROL, que souberam, nos momentos mais difceis, dar o apoio necessrio para me fazer seguir adiante.

Aos meus PAIS, pelo incentivo constante e amor incondicional.

A LIANA, pelas observaes percucientes, companheirismo e sutileza de esprito, que me

foram fundamentais ao longo desta jornada. Enfim, por tudo.

A DEUS, por ter-me concedido a graa de concluir mais um rduo e gratificante trabalho.

RESUMO

CAVALCANTI, Eduardo de Arajo. A Ampliao do Conceito de Autor Mediato Luz da Teoria de Claus Roxin como Forma de Combate Criminalidade Organizada

Centro de

Cincias Jurdicas / Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

O presente trabalho tem como escopo demonstrar a viabilidade jurdica da ampliao do conceito de autoria mediata como forma de combater a criminalidade organizada. Para tanto, realizada uma ampla pesquisa bibliogrfica, mormente no que se refere a autores estrangeiros, bem como so analisados casos verdicos e suas respectivas implicaes jurisprudenciais. O estudo parte da tese do jurista alemo Claus Roxin que, em 1963, publicou na revista Goltdammers Archiv, um artigo intitulado Tterschaft und Tatherrschaft. Roxin desenvolveu a tese do domnio da vontade em virtude de aparatos organizados de poder, em que defende a idia de ser possvel ampliar o tradicional conceito de autor mediato, desde que presentes estejam os seguintes requisitos: fungibilidade dos executores das ordens; domnio da organizao por parte dos autores das ordens e atuao do aparato de poder margem do direito. O domnio da organizao, segundo Roxin, tambm pode ser aplicado nos casos da criminalidade organizada. Com base nesses argumentos, conclui-se que o tradicional conceito de autor mediato pode ser ampliado, desde que presentes os citados requisitos, mesmo nas hipteses em que o instrumento humano utilizado seja plenamente responsvel. Com isso, procura-se fornecer mais uma alternativa de combate criminalidade organizada, posto que ser mais fcil responsabilizar o homem de trs a ttulo de autor mediato quanto aos delitos praticados pela organizao criminosa que ele comanda.

Palavras-chave: Crime organizado. Autoria mediata. Domnio do fato.

ABSTRACT

CAVALCANTI, Eduardo de Arajo. A Ampliao do Conceito de Autor Mediato Luz da Teoria de Claus Roxin como Forma de Combate Criminalidade Organizada

Centro de

Cincias Jurdicas / Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

The present thesis has the purpose of demonstrating the judicial viability of the enlargement of the mediate authorship concept as a way to fight organized criminality. For this, a large bibliographic research was done, especially about foreign authors; true stories were analyzed as well as their jurisprudential implications. The study comes from the thesis of the German jurist Claus Roxin, who in 1963 published in the magazine Goltdammer s Archic an article entitled Tterschaft und tatherrschaft. Roxin developed the thesis of the will control due to organized power apparatus, in which he defended the idea of being possible to enlarge the traditional concept of the mediate author, since the following requirements were present: fungibility of those who follows orders; control of the organization through the authors of orders; and the use of the power apparatus without the action of law. The control of the organization, according to Roxin, could also be applied in cases of organized criminality. Supported by these arguments, we can conclude that the traditional concept of the mediate author could be broaden, since the mentioned requirements are present, even in hypothesis in which the used person be fully responsible. Therefore, we look for a way to provide one more alternative to fight organized criminality, in so far as it will be easier to hold the man behind responsible as a mediate author through the crimes practiced by the criminal organization he commands.

Key-words: Organized crime. Mediate authorship. Control of the fact.

SUMRIO

INTRODUO..............................................................................................................

9

A. Do objeto da pesquisa......................................................................................................

9 B. Da organizao do trabalho e dos caminhos da investigao.......................................... 12

1. O concurso de pessoas na teoria geral do delito...............................................................

15 1.1. Teorias sobre o concurso de pessoas: pluralstica, dualstica e monstica.....................

15 1.2. Requisitos necessrios para a configurao do concurso de pessoas............................

18 1.3. A autoria........................................................................................................................ 19 1.3.1. Conceito extensivo de autor....................................................................................... 20 1.3.2. Conceito restritivo de autor........................................................................................ 22

1.3.3. A teoria do domnio do fato........................................................................................

23 1.3.4. A autoria mediata........................................................................................................

26 1.3.5. A autoria intelectual....................................................................................................

29 1.3.6. Co-autoria alternativa e co-autoria aditiva..................................................................

30

1.3.7. A autoria colateral.......................................................................................................

32 1.3.8. A participao: espcies e fundamentos de punibilidade........................................... 33

2. O fenmeno da criminalidade organizada........................................................................ 38 2.1. Impreciso terminolgica, problemtica conceitual e caractersticas do crime organizado.............................................................................................................................

38 2.2. O surgimento da Lei 9.034/95 como forma de combater o crime organizado no Brasil: a controversa figura tpica organizao criminosa no direito ptrio.....................................................................................................................................

46

3. O jus puniendi em face da criminalidade organizada.......................................................

54 3.1. O sistema penal: a seletividade arbitrria, crise e combate ao crime organizado..........

54 3.2. Bem jurdico penal da organizao criminosa: necessidade de sua definio para justificar o jus puniendi estatal.............................................................................................

58 3.2.1.Conceito de bem jurdico.............................................................................................

58

3.2.2. Anlise da evoluo do estudo do bem jurdico......................................................... 61 3.3. O bem jurdico tutelado pela norma penal nos delitos praticados pelas organizaes criminosas.............................................................................................................................

69 3.4. Misso e limites do direito penal: a proteo dos bens jurdicos fundamentais como forma de combate criminalidade organizada..................................................................... 72

4. A teoria do domnio do fato atravs dos aparatos organizados de poder..........................

74 4.1. Consideraes preambulares..........................................................................................

74 4.2. Domnio da vontade em virtude de aparatos organizados de poder.............................. 75

4.3. Anlise do caso Eichmann.............................................................................................

79 4.4. Requisitos para a configurao da autoria mediata mediante aparatos organizados de

poder......................................................................................................................................

84

4.5. Recepo e rejeio da teoria de Claus Roxin...............................................................

87

4.5.1. A teoria de Roxin na jurisprudncia argentina e alem..............................................

87

4.5.2. A doutrina: aceitao e objees contra o domnio por organizao..........................

89

Concluso............................................................................................................................. 96

Referncias........................................................................................................................... 101

Anexo - A Lei 9.034/95........................................................................................................

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9

INTRODUO

A - DO OBJETO DA PESQUISA

Uma das grandes mazelas que o mundo globalizado enfrenta hodiernamente

a existncia da chamada criminalidade organizada.

Freqentemente, acompanha-se na imprensa, nacional e estrangeira, notcias

referentes a grupos que desenvolvem suas atividades delituosas nas mais diversas reas, tais

como o trfico ilcito de entorpecentes, o comrcio clandestino de animais silvestres, o

recrutamento e o transporte de mulheres destinadas prostituio, as aes de grupos

terroristas, dentre outras. Por ser um fenmeno que avana a passos largos, sem respeitar,

inclusive, os limites geogrficos que separam os pases, o crime organizado vem-se

constituindo em objeto de preocupao de juristas, parlamentares, governantes e da sociedade

em geral.

Muito se discute, polticas de combate ao fenmeno so implementadas pelos

Estados, leis so criadas, condutas so criminalizadas, mas, na verdade, todo esse empenho

parece no surtir efeito quando se constata que as aes delituosas desses grupos vm-se

alastrando sobremaneira e cada vez maior o campo de sua atuao.

Como ser visto ao longo deste trabalho, a prpria doutrina especializada no

encontra um consenso para definir o que se entende por crime organizado, pois se trata de um

fenmeno mutante em que as vtimas, na maioria das vezes, so difusas. A busca de uma

definio nica para explicar a criminalidade organizada algo que, at hoje, no se

conseguiu alcanar.

Apesar dessa problemtica conceitual, fato notrio que as condutas

desenvolvidas por grupos organizados de delinqentes, que se formam como se fosse uma

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verdadeira empresa de fins lcitos, cada vez mais so sentidas pela sociedade moderna e

tornam-se matria da ordem do dia dos Governos de vrios pases, como as aes do trfico

internacional de drogas, em que os grandes cartis funcionam da mesma forma que empresas

multinacionais legalmente constitudas: estrutura hierarquizada, fins lucrativos e

internacionalizao de suas atividades.

Contudo, importante ressaltar que nem todo agrupamento humano voltado

para a prtica de ilcitos penais pode ser taxado de criminalidade organizada: no obstante a

dificuldade de se definir o fenmeno, algumas de suas caractersticas sero demonstradas no

desenvolvimento desta dissertao com o escopo de diferenci-lo da criminalidade comum.

Diante desse cenrio tenebroso que atormenta o mundo contemporneo,

que cada vez mais se procuram formas de combate ao crime organizado, mormente no que diz

respeito captura daqueles que se encontram frente dessas organizaes, pois, muitas vezes,

apenas os executores imediatos das atividades delituosas so responsabilizados, no

conseguindo, o Estado, alcanar os grandes chefes e principais mentores.

O presente trabalho, dessa forma, visa a fornecer mais um caminho para

responsabilizar aqueles que se encontram no topo dessas estruturas organizadas de poder, que,

na maioria das vezes, por no praticar nenhum ato executrio, deixam de ser devidamente

punidos, escapando, em alguns casos, inclumes, devido dificuldade de delimitar seus atos

de acordo com a dogmtica penal.

A presente pesquisa consiste em demonstrar que possvel ampliar a figura

da autoria mediata alm dos casos aceitos pela doutrina tradicional, visando, com isso, a

atribuir a qualidade de autor queles que se encontram no topo das estruturas delituosas.

Com efeito, autor de um crime no s aquele que executa o fato por si

mesmo, mas tambm o que se vale de outrem para a prtica do ato, utilizando o autor

imediato como se fosse um instrumento. O executor direto, de acordo com a doutrina

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majoritria, nos casos de autoria mediata, age sem culpabilidade e, portanto, no pode ser

responsabilizado por seus atos, pois atua mediante erro ou coao moral irresistvel.1

No entanto, trabalha-se aqui com a idia de que possvel responsabilizar

como autor mediato aquele que utiliza como instrumento um executor direto plenamente

responsvel, que age com conscincia e compreenso do carter ilcito de seu ato, desde que o

homem de trs possua o domnio do fato e exera suas atividades atravs de aparatos

organizados.

A pesquisa fundamenta-se nas idias do jurista alemo Claus Roxin que, no

ano de 1963, publicou um estudo na revista Goltdammers Archiv em que defende a tese de

ser plenamente possvel ampliar os casos de autoria mediata quando se est diante do domnio

da vontade atravs dos aparatos organizados de poder.2 Para embasar suas concluses, Roxin

parte, principalmente, da anlise do julgamento do nazista Adolf Eichmann, que, sem praticar

nenhum ato executrio, foi responsvel pela morte de milhes de judeus nos campos de

concentrao durante a segunda guerra mundial. Eichmann foi um burocrata do nacional

socialismo que teve como atribuio fundamental a idealizao e a efetivao do envio dos

judeus aos campos da morte.

A partir desse caso verdico, Roxin entende que no se pode atribuir a

Eichmann a qualidade de indutor, instigador ou cmplice dos crimes perpetrados. De fato, por

se encontrar a servio de um aparato organizado de poder, que funciona quase como se tivesse

vida prpria, Eichmann foi um verdadeiro autor, autor mediato, mais precisamente, mesmo

tendo-se servido de instrumentos humanos plenamente responsveis para a prtica dos crimes.

Para configurar essa nova feio da autoria mediata, Roxin apresenta os

requisitos imprescindveis para sua caracterizao, a saber: fungibilidade dos executores das

1 Sobre autoria mediata, Sauer entende que es autor el que ejecuta el hecho por si mismo o por medio de outro, el cual por esta causa no es responsable (o no es totalmente responsable) (SAUER, 1956:301). autor o que executa o fato por si mesmo ou por meio de outro que por isso no responsvel (ou no totalmente responsvel) .

2 O artigo de Roxin intitulado Tterschaft und Tatherrschaft .

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ordens; domnio da organizao por parte dos autores das ordens; e atuao do aparato de

poder margem do direito. Tais pressupostos, como inclusive citado no artigo de Roxin,

podem aparecer tambm nos casos de criminalidade organizada.

Dessa forma, o objeto da pesquisa reside exatamente em demonstrar, atravs

dos estudos de Claus Roxin, que possvel atribuir a qualidade de autor mediato aos chefes

do crime organizado pelos crimes praticados pelas organizaes por eles lideradas, no sendo

necessrio um contato direto ou at mesmo uma ordem expressa ao executor do delito. um

modo de ampliar o tradicional conceito de autor mediato, visando, com isso, a fornecer mais

um instrumento de combate a esse tipo de criminalidade que assola o pas e o mundo.

B - DA ORGANIZAO DO TRABALHO E DOS CAMINHOS DA INVESTIGAO

O trabalho est divido em quatro captulos, conforme o ndice apresentado. O

primeiro versa sobre o concurso de pessoas na teoria geral do delito. Justifica-se tal captulo

pelo fato de que, para se falar de autoria mediata, faz-se necessrio tecer alguns comentrios

sobre o que se entende por autoria e participao, suas principais teorias e implicaes

doutrinrias.

Na segunda parte, apresenta-se um estudo a respeito da criminalidade

organizada, discorrendo-se sobre sua impreciso terminolgica, a problemtica conceitual e as

caractersticas do fenmeno. Comenta-se, tambm, de maneira crtica, a Lei Federal 9.034, de

3 de maio de 1995, instituda no Brasil para ser um instrumento eficaz de combate ao crime

organizado, mas que, aps uma dcada de sua entrada em vigor, no surtiu os efeitos

desejados, como ser demonstrado.

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O terceiro captulo trata do jus puniendi em face da criminalidade

organizada, onde so feitas consideraes pertinentes ao sistema penal e ao bem jurdico

tutelado pela norma penal nos delitos praticados pelas organizaes criminosas.

Finalmente, no quarto e ltimo captulo, apresenta-se a teoria do domnio do

fato em virtude dos aparatos organizados de poder, desenvolvida por Claus Roxin. Nessa

parte final, analisa-se o caso Eichmann, os requisitos necessrios para a configurao da

autoria mediata atravs de aparatos organizados de poder, a aceitao e rejeio da doutrina

de Roxin no direito estrangeiro, especificamente, no que pertine jurisprudncia da

Alemanha e da Argentina, bem como possibilidade de aplicao da teoria nos casos da

criminalidade organizada.

preciso ressaltar que o tema no encontra terreno frtil no direito ptrio. A

doutrina brasileira at o momento praticamente no tratou do assunto e, se o fez, foi de forma

superficial. Da a dificuldade de encontrar obras nacionais sobre o objeto desta pesquisa. A

jurisprudncia dos Tribunais nacionais tambm no atentou ainda para as idias que aqui so

desenvolvidas.

A investigao , principalmente, de base terica. Para isso, utiliza-se ampla

pesquisa bibliogrfica, mormente de autores de lngua espanhola, atravs de uma variedade de

tratados e artigos publicados nas mais respeitadas revistas cientficas estrangeiras e nacionais.

A anlise de casos verdicos e suas respectivas implicaes judiciais tambm

so realizadas para fundamentar as concluses, a exemplo do julgamento do nazista Adolf

Eichmann pela morte de judeus durante a segunda guerra mundial, bem como do caso dos

atiradores do Muro de Berlim.

Em anexo, apresenta-se, na ntegra, o texto da Lei de Combate ao Crime

Organizado no Brasil a Lei 9.034/95.

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Com o presente estudo, espera-se ter estabelecido um entendimento

convincente, devidamente fundamentado, a respeito da possibilidade de punir, a ttulo de

autor mediato, aquele que, mesmo utilizando um instrumento humano plenamente culpvel,

responsvel pelo cometimento das infraes perpetradas pelas organizaes criminosas que

atuam neste pas.

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CAPTULO 1

O CONCURSO DE PESSOAS NA TEORIA GERAL DO DELITO

1.1 TEORIAS SOBRE O CONCURSO DE PESSOAS: PLURALSTICA, DUALSTICA E

MONSTICA

fato notrio, comprovado por estatsticas oficiais, bem como por dados

extra-oficiais, que a criminalidade vem recrudescendo no s no Brasil, mas tambm em todo

o mundo.

Como aconteceu nos primrdios da humanidade, os homens

conscientizaram-se de que juntos so mais fortes que isolados, pois podem alcanar seus

objetivos mais facilmente com a unio de suas foras.

Se os homens se renem para concretizar fins lcitos, da mesma forma

podem-se agrupar para a prtica de delitos e contravenes penais, como ocorre, com muita

freqncia, nos casos dos crimes cometidos por organizaes criminosas.

A doutrina acerca do concurso de pessoas no algo recente na Cincia do

Direito: remonta ao Direito Romano (PIERANGELI, 1992:292), tendo sido desenvolvida

posteriormente pelos Prticos da Idade Mdia, que defendiam a idia de punio diferenciada

para os participantes da associao criminosa, tendo em vista o concreto envolvimento de

cada um.3

Quando duas ou mais pessoas, com liame subjetivo, praticam uma ou mais

infraes penais, estamos diante do concurso de pessoas ou de agentes.

3 Para T. Mommsen, no entanto, os romanos no elaboraram uma teoria sobre o concurso de pessoas, j que sua origem medieval, com os ps-glosadores (MOMMSEN:1991).

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O crime, por conseguinte, pode resultar de um fato coletivo, sendo possvel

que para a realizao do ilcito penal haja a reunio facultativa de duas ou mais pessoas, que,

unidas, somam foras para o melhor xito da empreitada delituosa. s vezes, o prprio tipo

legal, expressamente, exige essa concorrncia de atuaes (DOTTI, 2003:352).

Dessa forma, h duas espcies de concurso de pessoas: eventual, quando o

tipo legal no exige a presena de mais de uma pessoa para a realizao do crime; e

necessrio, quando o verbo expresso no tipo exige pelo menos duas pessoas. Exemplo do

primeiro caso o delito de homicdio, em que apenas uma pessoa, sozinha, pode pratic-lo,

mas que admite a reunio de mais de um agente para a sua realizao. Na segunda hiptese,

os crimes de bigamia, rixa etc, em que o tipo requer a presena de duas ou mais pessoas.

Os casos de concurso necessrio no se revestem de maiores dificuldades, j

que a prpria lei exige a unio de determinadas pessoas para a concretizao do tipo. no

concurso eventual, no entanto, que repousam as divergncias doutrinrias e os casos de maior

complexidade4.

Para solucionar a complexa problemtica da criminalidade coletiva,

mormente no que diz respeito a se a conduta praticada no concurso de pessoas constitui um

ou mais crimes, diversas teorias surgiram visando a diferenciar as pessoas que integram o

concursus, tais como a pluralstica, a dualstica e a monstica. Os argumentos principais de

cada uma dessas doutrinas so os seguintes:

4 Assim, a opinio de: Quando se est diante de aes tpicas individuais, no se tem dificuldade na identificao de quem pode ser autor, por isso que esse quem realiza por si mesmo o fato punvel, isto , o fato definido como crime (PACHECO, 1995:380).

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a) Teoria pluralstica

Trata-se de uma teoria subjetiva. Para cada participante do evento delituoso

tem-se um crime prprio, ou seja, a pluralidade de agentes gera tambm uma pluralidade de

crimes. Os defensores dessa teoria aduzem que a cada participante corresponde uma conduta

prpria, um elemento psicolgico prprio e um resultado igualmente particular

(BITENCOURT, 2003:379). Dessa forma, existiro tantos crimes quantas forem as pessoas

que tiverem participado da ao delituosa, pois cada um dos concorrentes pratica um crime

prprio, sendo eles, os delitos, autnomos e distintos (NORONHA, 1997:215).

b) Teoria dualstica

A teoria dualstica:

apregoa que os autores devero responder conjuntamente por um crime, enquanto os partcipes devero responder conjuntamente por outro. Assim, pode-se dizer que se biparte a ao criminosa em delito cometido pelos autores e delito cometido pelos partcipes (BRANDO, 2002b:231).

Observa-se, pois, que para essa teoria haver um crime para os autores e

outro para os partcipes, diferenciando-se, desta feita, da pluralidade delituosa apregoada pela

teoria acima citada.

c) Teoria monstica

J a teoria monstica, ou unitria, entende haver apenas um nico crime,

tanto para os autores quanto para os partcipes. A pluralidade de agentes no implica na

pluralidade de infraes penais. O Cdigo Penal brasileiro adotou essa teoria ao estabelecer,

no artigo 29, que quem, de qualquer modo, concorre para o crime, incide nas penas a este

cominadas, na medida de sua culpabilidade .

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No entanto, faz-se mister ressaltar que apesar do Cdigo Penal ter adotado a

teoria monista, existem situaes previstas no prprio Cdigo que nos levam a concluir que

tambm foi adotada, como exceo, a teoria dualstica, como, por exemplo, o pargrafo

segundo do artigo 29, ao estabelecer que se algum dos concorrentes quis participar de crime

menos grave, ser-lhe aplicada a pena deste (PRADO, 2002a:142).5

1.2. REQUISITOS NECESSRIOS PARA A CONFIGURAO DO CONCURSO DE

PESSOAS

Para que se configure o concurso de pessoas, necessria a presena de

requisitos inexorveis de natureza objetiva e subjetiva.

Requisito basilar do concurso de agente a concorrncia de mais de uma

pessoa na execuo do delito. Ora, o concurso eventual ocorre com a reunio de duas ou mais

pessoas para a prtica de um crime que poderia ser executado por apenas uma delas, mas, que

por qualquer sorte de razes, foi necessrio o encontro de vrios meliantes.

Por existir mais de um concorrente e, conseqentemente, por haver mais de

uma conduta por parte dos integrantes do concurso, faz-se necessrio que exista uma relao

de causalidade entre a conduta de cada agente e o resultado delituoso pretendido. a

relevncia causal de cada conduta, pois se a conduta de um dos agentes no for relevante para

o cometimento da infrao penal, conclui-se que essa pessoa no concorreu para o crime.

O requisito subjetivo do concurso de pessoas est presente no acordo de

vontades para a prtica da infrao, ou seja, deve existir entre os integrantes da societas

sceleris o vnculo subjetivo, o liame entre as condutas de todos os integrantes.

5 Prado concorda que o direito brasileiro adotou a teoria monista, mas aduz que o fez de forma temperada ou matizada pela teoria dualstica.

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Esse vnculo psicolgico que deve existir entre os agentes importantssimo

para verificar, no caso concreto, a existncia do concurso de pessoas, pois, no havendo o

liame subjetivo, cada participante responde isoladamente por sua conduta.

Presentes os requisitos acima elencados, pode-se afirmar que somente

existir concurso de pessoas quando dois os mais agentes, unidos pelo vnculo psicolgico,

praticarem condutas relevantes para o cometimento de determinada infrao penal.

1.3. A AUTORIA

Os integrantes do concurso de pessoas, de acordo com a atividade criminosa

que desempenham, podem ser classificados como autores ou partcipes. certo que a

atividade principal desenvolvida no evento delituoso cabe ao autor. Ao partcipe, compete

uma conduta secundria, uma funo meramente coadjuvante. A distino terica entre essas

duas figuras componentes do concursus delinquentium no pacfica na doutrina. No entanto,

inegvel que no concurso de pessoas h a presena daqueles que tm uma funo principal e

de outros que possuem uma atuao acessria. Os primeiros so chamados de autores e os

segundos de partcipes.

Autor aquele que realiza o verbo da figura tpica delitiva ou o que possui o

domnio finalstico do fato. Quando o autor realiza diretamente a conduta, temos a autoria

imediata, quando o faz de modo indireto, surge a autoria mediata.

Por outro lado, partcipe quem contribui culpavelmente para a realizao

de determinado delito, sem executar o tipo e sem ser punvel como o autor (BALESTRA,

2002:403). Sua atividade sempre acessria e dependente de outra principal.

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A presena de autores e partcipes encontrada com freqncia no fenmeno

da criminalidade organizada, uma vez que perfeitamente possvel detectar, nas aes desses

grupos, as figuras dos autores, partcipes, autores materiais e intelectuais, alm da

possibilidade de configurao da autoria mediata.

A respeito da conceituao de autor, trs teorias pretendem definir a atuao

da pea chave da atividade criminosa coletiva: a teoria extensiva, a teoria restritiva e a teoria

do domnio do fato.

1.3.1 Conceito extensivo de autor

Tambm denominada de teoria subjetivo-causal. O fundamento dogmtico

dessa corrente a teoria da equivalncia dos antecedentes causais ou conditio sine qua non.

Parte da idia de autor nico, ou seja, no se faz distino entre autores e cmplices, j que

todos os que colaboram na causao do resultado so considerados autores. O tipo penal ,

assim, imputado a todos os que contriburam para a produo do evento delituoso: a lei no

faz distino entre autores e cmplices.

O critrio para diferenciar autor e partcipe, segundo essa teoria, reveste-se

de pouca cientificidade: ser autor quem tiver nimo de autor e partcipe, aquele que possuir

nimo de partcipe. Em outras palavras, autor quem quer o fato como prprio e age com

animus auctoris, enquanto que partcipe aquele que quer o fato como alheio e atua com

animus socii (JESCHECK, 1993:591).

A dificuldade em distinguir entre autoria e participao reside justamente em

se determinar o que (e qual) o dolo de autor e o que (e qual ) a vontade do partcipe. Na

prtica, resta quase impossvel definir quem agiu com vontade de autor e quem o fez com

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nimo de partcipe. Enfatizando com certo exagero aspectos subjetivos, essa teoria termina

por violar o princpio da legalidade, postulado sagrado do direito penal moderno, na medida

que se baseia em caracteres puramente anmicos para aquilatar a participao de cada um.

Nas palavras de Jescheck, essa teoria combate o princpio estrutural do direito penal vigente,

que se manifesta em tipos descritos e delimitados preferentemente de modo objetivo

(JESCHECK, 1993:591).6

Outro grande equvoco dessa teoria o fato de que os conceitos de autoria e

participao no pertencem exclusivamente ao campo normativo, no so criados pelo Direito

Penal, pois pertencem realidade das coisas, vida cotidiana, ao ntico.7

Convm destacar que o Cdigo Penal de 1940 havia adotado a teoria

subjetivo-causal, conforme podemos constatar atravs do item 22 da Exposio de Motivos

do Min. Francisco Campos:

O Projeto aboliu a distino entre autores e cmplices; todos os que tomam parte no crime so autores. J no haver mais diferena entre participao principal e participao acessria, entre auxlio necessrio e auxlio secundrio, entre societas criminis e societas in crimine. Quem emprega qualquer atividade para a realizao do evento criminoso responsvel pela totalidade dele, no pressuposto de que tambm as outras foras concorrentes entraram no mbito da sua conscincia e vontade (PIERANGELI, 1992:294).

Justifica-se a adoo desse posicionamento pelo fato de que, ao acolher a teoria

dos equivalentes causais, ou mecanicista, o legislador de 1940, at por um critrio de

coerncia, tinha que trabalhar com a idia de autor nico, j todos aqueles que contribuam

para o evento delituoso tinham que ser considerados autores do fato. Os partcipes, desse

modo, so tambm autores e as normas a seu respeito so causas de diminuio de pena.

6 pugna con el princpio estrutural del Derecho penal vigente, que se manifesta en tipos descritos y delimitados preferentemente de modo objetivo . 7 Interessante o seguinte exemplo: Numa conduta de escrever um livro o conceito de autor no se distingue,

fundamentalmente, do conceito de autor na conduta de escrever uma carta injuriosa. Chamamos cmplice ao que coopera com o autor, ao que lhe presta ajuda, e o conceito de cmplice no direito penal no distinto do que usamos quando nos referimos aos colaboradores em um prlogo e lhes agradecemos a ajuda . (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2002:664).

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1.3.2 Conceito restritivo de autor

A teoria restritiva ou formal-objetiva fundamenta-se na teoria da tipicidade.

Somente ser considerado autor aquele que realizar, mesmo que em parte, uma conduta tpica,

ou seja, autor, objetivamente considerado, o que pratica o verbo constante do tipo penal.

V-se, pois, que necessrio se faz recorrer Parte Especial do Cdigo para uma compreenso

geral do conceito de autor, j que a que se encontram definidos os tipos objetivos.

A concepo restritiva do conceito de autor prescinde dos elementos

psicolgicos do delito, o que pode gerar srias dificuldades para punir os colaboradores de

determinada ao delituosa, na medida que esses podem ter participao no evento criminoso

sem que tenham praticado uma conduta propriamente tpica. A punio dos partcipes, desse

modo, ocorreria por uma extenso tpica, visando a ampliar o raio de punibilidade.8 Autor o

que se reveste dos caracteres tpicos, sendo a cumplicidade e a instigao formas de extenso

da punibilidade.

Dessa forma, autor o que mata, furta, constrange. Todo aquele que ajuda,

sem praticar o verbo, a matar, furtar ou constranger ser considerado partcipe. No entanto, a

teoria restritiva no explica aquelas situaes em que uma pessoa serve-se de um menor ou

doente mental para a prtica de um crime. Considerar como partcipe aquele que determinou

ao inimputvel o cometimento de um delito no parece a soluo mais aconselhvel.

8 Percuciente a constatao de Jescheck: Desde la perspectiva del concepto retrictivo de autor, el establecimiento de formas especiales de participacin, como la induccin y la complicidad, significa que la punibilidad se amplia a acciones situadas fuera del tipo, puesto que de acuerdo con el tipo mismo nicamente cabria castigar a quien personalmente ha matado, hurtado u ofrecido resistencia. Los otros intervinientes, que solo determinaron al autor a realizar el hecho o le ayudaron en ello, tendran que quedar impunes si no fuera por los especiales preceptos penales para la inducin y la complicidad (JESCHECK, 1993:591). (Traduo: A partir da perspectiva do conceito restritivo de autor, o estabelecimento de formas especiais de participao,

como a induo ou a cumplicidade, significa que a punibilidade amplia-se a aes situadas fora do tipo, posto que de acordo com o tipo mesmo s caberia castigar a quem pessoalmente tivesse matado, furtado ou oferecido resistencia. Os outros intervenientes, que s determinaram ao autor a realizar o fato ou lhe ajudaram para tanto, teriam que ficar impunes se no fosse os especiais preceitos penais para a induo e a cumplicidade .

23

A teoria formal-objetiva est calcada em duas vertentes: uma tradicional e

outra modificada. A verso tradicional entende a autoria como sendo a realizao de todos ou

de parte dos atos executivos constantes do tipo penal. Observa-se que tal entendimento no

explica a autoria mediata, quando o autor utiliza um terceiro (um inimputvel, por exemplo)

que servir como instrumento para a prtica da infrao. J para a verso modificada a autoria

deriva-se de cada um dos tipos existentes na parte especial do Cdigo Penal, sendo autor

aquele sujeito cuja atividade subsumvel em um tipo (RIEZU, 1995:287).9

1.3.3 A Teoria do domnio do fato

Tanto a teoria extensiva, como a restritiva mostram-se incapazes de

solucionar de maneira convincente a essncia da autoria, bem como no conseguem

diferenciar com segurana a separao conceitual entre autoria e participao.

Para contornar as deficincias das retrocitadas teorias, surge a doutrina do

domnio do fato, ocupando hodiernamente posio de destaque entre os estudiosos do direito

penal. Parte da doutrina afirma que as razes dessa teoria remontam a Pellegrino Rossi, em

sua obra Trait de Droit Penal (PIERANGELI, 1992:296), mas, apesar dos autores

divergirem quanto s suas origens10, certo que seu grande mentor foi Hans Welzel.

Segundo essa teoria, autor aquele que detm o domnio final do fato. o

que possui o poder de deciso sobre a realizao da conduta tpica. no s o que pratica o

9 (...) es subsumible sin ms en el tipo . 10 Jescheck aduz que ela foi criada por Lobe e impulsionada por Roxin. (JESCHECK, 1993:591); Bruera alega

que a teoria foi exposta pela primeira vez por Lange, mas foi desenvolvida por Welzel. (BRUERA, 2001); j Pacheco, por sua vez, informa que a teoria foi formulada por Welzel em 1939 e, posteriormente, exposta por maestria por Maurach (PACHECO, 1995:381); Donna tambm concorda que a teoria tem sua base em Welzel, mas informa que quem primeiro utilizou a expresso domnio do fato foi Hegler, em 1915, em sua monografia sobre Os elementos do delito , mas sem o significado que possui hoje em dia (DONNA, 2004:533).

24

verbo do tipo, mas tambm o que se serve de outrem, como instrumento, para a prtica do

crime. Em poucas palavras, autor quem possui a deciso final da atividade delituosa, seja

executando pessoalmente o verbo do tipo, seja comandando toda a situao.

Jakobs, citando Maurach e Gssel, aduz que no domnio do fato o agente

possui em suas mos, abarcado pelo dolo, o curso tpico dos acontecimentos, ressaltando que

esse domnio dever corresponder a qualquer um que possa, ao arbtrio de sua vontade,

deter, deixar continuar ou interromper a realizao do resultado global (JAKOBS, 2003:2).

Na verdade, a teoria do domnio do fato um misto das teorias subjetiva e

objetiva. No tem como fundamento critrios exclusivamente objetivos, nem subjetivos. Com

ela, procurou-se vencer os percalos de uma concepo extensiva de autor, bem como se

ampliou o aspecto restritivo do conceito de autor para melhor fundamentar a autoria mediata.

uma teoria que, para ser aplicada, necessita que seja feita uma anlise especfica do caso

concreto, para que se possa avaliar se a participao de determinado integrante do concurso

foi crucial ou de somenos importncia para a realizao do evento delituoso.

Apesar de se calcar tambm na finalidade, importante ressaltar que a teoria

do domnio do fato no deve ser confundida com a noo de dolo, j que os partcipes

tambm atuam com dolo, mas no possuem o controle da atividade criminosa, tendo apenas

uma atuao secundria. Ressalte-se, por oportuno, que sem dolo no se pode falar em

domnio do fato. A distino entre autor e partcipe, pois, s pode ser feita nos crimes

dolosos.

Com efeito, autor quem possui o domnio do fato, o senhor dos

acontecimentos. J os partcipes tm domnio unicamente sobre sua parcela de contribuio,

mas, jamais atuam com controle sobre todo o fato. Se o fizerem, passam de meros

coadjuvantes para protagonistas da senda criminosa.

25

Observa-se, assim, que, de acordo com a teoria do domnio do fato, o autor

mantm em suas mos, finalisticamente, o curso causal do fato tpico. Ele pode fazer cessar

ou avanar o fato at o seu resultado final.

A concepo de autor para a teoria do domnio do fato est fundada em um

critrio objetivo. Reconhece que o agente que realiza com suas prprias mos o fato tpico

deve receber a denominao de autor. No entanto, esse conceito formal-objetivo deve ser

complementado tambm com um critrio material: autor ser aquele que possuir o domnio

final do fato, mesmo que os partcipes no o possuam (DONNA, 2004:534). V-se, pois, que

o conceito restrito de autor no permite compreender a figura do autor mediato.

O acolhimento de um conceito restrito de autor como ponto de partida da

teoria do domnio do fato justifica-se por respeito ao princpio da legalidade. Ora, em

obedincia a esse princpio necessrio que as condutas delituosas estejam devidamente

descritas na lei e ser autor quem realizar tais condutas. No entanto, o conceito restrito, como

j dito, mostra-se insuficiente por no abranger a figura do autor mediato. Em concluso,

seguindo o pensamento de Donna, autor todo aquele que realiza a conduta tpica ou alguns

de seus elementos e, nos crimes dolosos, autor ser o que tem o domnio finalista do fato,

mesmo que no tenha realizado a conduta tpica (DONNA, 2004:535).

A nova Parte Geral do Cdigo Penal brasileiro adotou a teoria do domnio do

fato, apesar de algumas posies doutrinrias em sentido contrrio (COSTA JNIOR, t. 129).

Tal concluso obtm-se porque a reforma de 1984 foi realizada com forte influncia do

finalismo de Welzel e a teoria do domnio do fato , antes de tudo, uma teoria finalista.

na teoria do domnio do fato que se pode definir com preciso a figura do

co-autor. Esse tambm autor, mas possui o domnio funcional do fato na parcela que lhe

compete, ou seja, na diviso dos trabalhos referentes prtica delituosa, sua atuao de

tamanha importncia que, sem ela, o crime no ocorreria da forma como foi planejado. Na

26

verdade, a co-autoria a prpria autoria, sua particularidade consiste em que o domnio do

fato unitrio comum a vrias pessoas (WELZEL, 1970b:120).

A co-autoria est alicerada na teoria do domnio do fato, precisamente no

que toca diviso dos trabalhos, na medida que cada co-autor senhor das atividades que lhe

foi confiada, dominando as funes que lhe foram atribudas para a consecuo final e o

sucesso da atividade delituosa.

Para Nilo Batista:

a idia de diviso de trabalho, que alguns autores, como Antolisei, situam como reitora geral de qualquer forma de concurso de agentes, encontra na co-autoria sua adequao mxima. Aqui, com clareza, se percebe a fragmentao operacional de uma atividade comum, com vistas ao mais seguro e satisfatrio desempenho de tal atividade. Por isso os autores afirmam que a co-autoria se baseia no princpio da diviso de trabalho (BATISTA, 1979:76).

Conclui-se, pois, que a co-autoria est baseada no domnio do fato, porm,

uma vez que para sua execuo devem intervir vrias pessoas, esse domnio tem que ser

comum: cada co-autor tem total controle sobre a diviso de trabalho previamente

estabelecida.11

1.3.4 A Autoria mediata

Com o desenvolvimento doutrinrio da teoria do domnio do fato, a figura do

autor mediato passou a ser compreendida com mais rigor cientfico. Na verdade, a autoria

mediata constitui-se em um dos pontos mais polmicos referentes ao conceito de autor,

11 Jesheck acrescenta que a co-autoria, no aspecto subjetivo, requer que os intervenientes vinculem-se entre si mediante uma resoluo comum sobre o fato, assumindo, cada qual, dentro do plano conjunto, uma tarefa parcial, mas essencial, que o apresenta como co-titular da responsabilidade pela execuo de todo o acontecimento. (JESCHECK, 1993:614)

27

resultando em um estado intermedirio de interveno no crime, situado entre a autoria direta

e a participao (BRUERA, 2001:260).12

Autor mediato aquele que utiliza outrem como instrumento seu para a

prtica de determinado delito. Diferentemente do autor imediato, nas hipteses de autoria

mediata o agente no pratica o verbo do tipo penal, ou seja, no executa com suas mos a

ao tpica, mas o faz por intermdio de terceiro, que age por erro ou mediante coao.

Exemplo clssico na doutrina pode ser encontrado na hiptese da enfermeira que, por ordens

do mdico, ministra veneno no paciente pensando tratar-se de medicamento (MIRABETE,

2003:233).

A noo de autor mediato, como fruto da doutrina da teoria do domnio do

fato, vem complementar e suprir as deficincias da teoria restritiva, que s considera autor

quem realiza a ao tpica pessoalmente. Com efeito, no exemplo citado acima, pela teoria

restritiva, o mdico apenas mero partcipe, quando, de fato, agiu com todo o domnio

finalstico da situao.

O que caracteriza a autoria mediata a circunstncia do autor utilizar uma

pessoa como instrumento para a sua atividade delituosa. O domnio do fato requer, na autoria

mediata, que todo o acontecimento aparea como obra da vontade reitora do homem de

atrs e que este, mediante sua influncia, disponha do intermedirio do fato.(JESCHECK,

1993:591). esse homem de atrs , que domina a vontade do executor do delito, o

possuidor do domnio finalstico da situao. Fica evidente que todos os pressupostos

necessrios de punibilidade devem encontrar-se no homem de atrs , no autor mediato, e

no no executor, autor imediato (BITENCOURT, 2003:388).

12 Uno de los aspectos ms polmicos que se han generado en torno a la autoria, es la autoria mediata, que resulta un estado intermedio de intervencin en el delito, ubicado entre la autoria directa y la participacin .

28

Diversas so as situaes configuradoras da autoria mediata. Inicialmente,

podem-se citar os casos em que o instrumento humano age por erro. Com efeito, nas

hipteses de erro de tipo, o executor no pode perceber os fatos, nem tampouco opor

resistncia a eles, vez que o autor mediato quem maliciosamente maneja a sorte dos

acontecimentos. imprescindvel que o executor no atue de maneira dolosa, j que, em

sendo assim, no se pode falar em erro de tipo. O autor imediato , nessas situaes, uma

ferramenta cega do homem de trs. O exemplo do mdico e da enfermeira acima citado

retrata bem essa situao.

Outra hiptese de autoria mediata ocorre quando o instrumento atua por ser

vtima de coao do homem de trs. Nesses casos, o executor age tpica e ilicitamente, mas

lhe falta a culpabilidade por no ser possvel exigir-lhe uma conduta diversa da que teve. Fica

evidente o domnio da situao pelo coator: ele o controlador de todo o fato punvel, sua

vontade aniquila a vontade do dominado. Pode-se citar como exemplo o caso do gerente que

obrigado a retirar todo o dinheiro existente no cofre do banco e entreg-lo aos bandidos que

fizeram sua famlia de refm.

Tambm pode-se falar em autoria mediata quando o instrumento um

inimputvel. o caso daquele que manda um deficiente mental matar algum. O executor age

sem culpabilidade, mas o que determinou a prtica do fato considerado autor por possuir o

domnio finalstico da situao.

Aceita-se pacificamente na doutrina que a figura do autor mediato s existe

se o instrumento humano por ele utilizado atuar por erro, ou mediante coao, ou for um

inimputvel. Em todas as situaes, o ordenamento jurdico retira a responsabilidade penal do

agente por sua atuao, em virtude da situao criada pelo autor mediato.

O problema ocorre quando o terceiro, que age como instrumento, no atua

por erro ou coao, mas rene as condies necessrias para ser considerado autor, ou seja,

29

responsvel pelo seu ato. Nessa hiptese, inegvel que o terceiro ser autor do ilcito, por

ser culpvel, mas e o que determinou a prtica do crime? Ser autor mediato, partcipe ou co-

autor? Como ser visto adiante em captulo distinto, Claus Roxin apresentou mais uma forma

de autoria mediata, alm dos casos em que o instrumento age por erro ou coao: a

fungibilidade do executor.

1.3.5 A Autoria intelectual

Autor intelectual o mandante, o que planeja a ao delituosa. Na verdade,

a autoria intelectual caracteriza-se pelo fato de existir um autor que idealiza o crime e contrata

ou combina com os executores a prtica do delito. O autor intelectual em regra no pratica

atos executrios, apenas orienta os autores materiais a colocar em prtica o que foi objeto de

seu intelecto. Mas, nada impede que o idealizador do crime fique na incumbncia de alguma

funo executiva.

Brando considera a autoria intelectual como uma forma especial de autoria,

pois, para ele a melhor teoria para conceituar autor a restritiva, porque distingue a autoria

da participao com um critrio acertado: o da realizao do verbo-ncleo tpico

(BRANDO, 2002b:236).

O autor intelectual destaca-se dos demais integrantes do concurso de pessoas

por ser a fora inteligente do grupo, j que cabe a ele traar todos os detalhes da operao

delituosa. na teoria do domnio do fato que se percebe sua importncia para o sucesso do

plano criminoso.

30

Tamanha a importncia da figura do autor intelectual, que o Cdigo Penal

Brasileiro determina que a pena ser agravada em relao ao agente que promove, ou

organiza a cooperao no crime ou dirige a atividade dos demais agentes (art. 62, inciso I).

1.3.6 Co-autoria alternativa e co-autoria aditiva

Como visto, a co-autoria na verdade a prpria autoria: os atos executrios

so compartilhados entre os integrantes do concurso de agentes. Todos so autores, ou,

melhor dizendo, co-autores. Fundamenta-se a co-autoria na idia de diviso de tarefas, em

que os co-autores, unidos pelo vnculo psicolgico, atuam com conscincia de que

contribuem para um empreendimento comum.

As chamadas co-autoria alternativa e co-autoria aditiva vm sendo objeto de

estudo mais acurado por parte da doutrina alem (CONLLEDO, 1997:295) e constituem-se

em um mecanismo eficiente na rdua tarefa de diferenciar a autoria da participao.

Ocorre a co-autoria alternativa quando dois ou mais sujeitos, com vnculo

subjetivo, combinam de praticar um delito de modo que apenas um ou outro,

alternativamente, realizar a conduta tpica, gerando o resultado pretendido. Um exemplo

esclarecer melhor a hiptese: imagine-se que A e B resolvem matar um desafeto que,

em determinada hora, poder passar pela rua X ou pela avenida Y, na sada da cidade. Na

hora combinada, ambos postam-se de emboscada, a quilmetros de distncia um do outro. A

vtima, ento, no momento certo, cruza a via X, sendo alvejado por vrios tiros disparados

pelo algoz A .

No h dvidas que A autor do homicdio. Mas e a participao de B ?

Responder ele como autor ou partcipe no assassinato? Apesar de divergncia na doutrina

31

germnica (CONLLEDO, 1997:297), trata-se de um tpico caso de co-autoria, mediante a

aplicao da teoria do domnio do fato.

Com efeito, os intervenientes so responsveis em cinqenta por cento pelo

sucesso da empreitada criminosa, pois se um dos dois desistir do combinado, caem pela

metade as chances de sucesso. Ambos planejaram uma meta comum para matar uma pessoa,

ambos possuam o domnio funcional da situao. Atribuir a B a qualidade de partcipe

menosprezar a importncia que o mesmo teve para a realizao do evento. Dessa forma, no

caso hipottico apresentado, ambos devem responder como autores, face co-autoria

alternativa. Chega-se a essa concluso em virtude da aplicao da teoria do domnio do fato.

Para os que aceitam a teoria restritiva do autor, como B no executou qualquer atividade

tpica, responder na qualidade de partcipe.

J a co-autoria aditiva ocorre quando vrias pessoas combinam a prtica de

determinado delito da seguinte forma: as aes executrias so divididas entre os integrantes

do concurso, de modo que a atuao conjunta de todos visa a garantir que as possveis falhas

da atuao de um dos agentes sejam compensadas pelos acertos do outro ou outros e, assim,

seja completamente segura a produo do resultado pretendido. Pode-se citar o exemplo de

vrios terroristas que, com o prvio acordo de matar determinado poltico, postam-se cada um

em janelas distintas de um prdio prximo ao local por onde a vtima passar e, nesse exato

instante, atiram todos simultaneamente, sem se saber qual das balas foi a que ocasionou a

morte.

Na co-autoria aditiva, como no exemplo acima, percebe-se que presente est

uma ntida diviso de tarefas entre os agentes, ou seja, detm todos eles o domnio funcional

da situao: so co-autores de um plano nico, em que cada membro do concurso possui uma

contribuio relevante, o que vai gerar sucesso na obteno do resultado.

32

A atribuio da qualidade de autores (ou co-autores) nos casos de co-autoria

aditiva decorrncia da aplicao direta da teoria do domnio do fato, sob a variao do

domnio funcional, uma vez que se adotada a teoria restritiva, apenas aquele que praticou ato

executrio pode ser denominado de autor.

Todavia, ao analisar as hipteses de co-autoria aditiva e co-autoria

alternativa, Conlledo conclui que a idia de domnio funcional no me parece adequada para

caracterizar a co-autoria, porque amplia (ainda que de maneira mais tolervel que outras

concepes menos exigentes em matria de co-autoria) o conceito de autor alm da estrita

realizao do tipo, perdendo-se, com isso, em parte, as vantagens que tornam aconselhvel

optar por um conceito restritivo de autor (CONLLEDO, 1997:317).

1.3.7 Autoria colateral

Outro aspecto interessante ocorre nos casos da chamada autoria colateral,

tambm denominada de autoria acessria, que acontece quando dois ou mais agentes, sem

prvio acordo, praticam determinado fato punvel de modo que suas condutas convergem para

a produo do resultado, mas sem a presena do vnculo subjetivo. A realizao do evento

tpico ocorre independentemente da vontade dos autores colaterais. As condutas so

simultneas e, por inexistir o liame psicolgico, no se pode falar em co-autoria. Os agentes

so autores colaterais, no havendo concurso de pessoas.

A configurao da autoria colateral tem efeitos prticos importantssimos.

Veja-se o seguinte exemplo: A e B , sem vnculo subjetivo, disparam simultaneamente

contra C , que vem a falecer em decorrncia de um dos disparos. Se ficar caracterizada a co-

autoria, irrelevante o fato de saber quem fez o qu: cada co-autor responder pelo

33

homicdio. Na autoria colateral a soluo outra: se o exame pericial conseguir identificar

quem efetivamente matou C , ento o que matou responder por homicdio consumado e o

outro, por tentativa de homicdio. Se no for possvel essa identificao, ambos respondero

por tentativa de homicdio, sob pena de um deles ser responsabilizado por um crime que no

cometeu.13

A problemtica da autoria colateral no se restringe apenas a discusses

acadmicas. Recentemente, assim julgou o Superior Tribunal de Justia:

PENAL. CO-AUTORIA E AUTORIA COLATERAL. DISTINO. Policiais militares que, em perseguio a veculo que desobedecera ordem de parar, desferem vrios tiros em direo ao veculo perseguido, um deles atingindo o menor que estava na direo, matando-o. Pedido de condenao de todos os policiais, o autor do tiro fatal pela autoria, os demais em co-autoria, por homicdio consumado (art. 205, 1, do CPM), apesar de ter sido identificado o nico projtil causador da morte como tendo partido da arma do primeiro. Hiptese em que, por ser a perseguio aos fugitivos desobedientes fato normal na atividade de policiamento, no se pode tom-la como suficiente a caracterizar a necessria unidade do elemento subjetivo dirigido causao solidria do resultado. Assim, nessa hiptese, os disparos de arma de fogo devem ser examinados em relao a cada um dos responsveis por esses disparos, caracterizando-se, na espcie, a denominada autoria colateral. Como apenas um desses disparos, com autoria identificada, atingiu a vtima, matando-a, o autor do tiro fatal responde por homicdio consumado, os demais, ante a prova reconhecida pelo acrdo de que tambm visaram a vtima, sem atingi-la, respondem por tentativa de homicdio. Recurso especial conhecido e provido (Superior Tribunal de Justia. Recurso Especial n. 37.280. Relator Ministro Assis Toledo).

1.3.8 A Participao: espcies e fundamentos de punibilidade

Ao lado daquele que pratica condutas tpicas ou que exerce o domnio do

fato, pode existir uma cooperao acessria de determinada pessoa que participa do evento

criminoso, porm sem executar o tipo penal.

13 o exemplo de Fragoso: Tcio e Caio, ignorando cada um deles a atuao do outro, alvejam simultaneamente Mvio que vem a falecer. Cumpre ento distinguir: se a vtima morreu em conseqncia dos disparos efetuados por ambos, respondem os dois por homicdio consumado. Se a vtima morreu em conseqncia dos disparos de Tcio, s este responder por homicdio consumado, tendo Caio praticado tentativa de homicdio. Se houver dvida intransponvel sobre a autoria, a nica possvel soluo a de responderem ambos os autores dos disparos por tentativa de homicdio, excluda a responsabilidade pelo resultado morte, de autoria incerta . (FRAGOSO, 2003:315).

34

Essa atuao coadjuvante recebe a denominao de participao. Partcipe

aquele que auxilia o autor principal na prtica do delito. Sua atividade meramente acessria

e depende da atuao do autor. a cooperao dolosa em crimes dolosos, pois deve haver a

convergncia entre o dolo do partcipe e o dolo do autor para alcanar o resultado tpico

desejado.

A conduta do partcipe, analisada isoladamente, no tpica. Na verdade,

para aquilatar sua responsabilidade preciso que se faa uma operao de adequao tpica

mediata, combinando o dispositivo penal referente participao com o tipo previsto na parte

especial do Estatuto Punitivo. Um exemplo ilustrar melhor essa situao: se algum

empresta, dolosamente, uma faca para o agente matar determinada pessoa, estamos diante um

caso tpico de concurso de agentes, onde vislumbramos a presena de um autor (o que

praticou o verbo do tipo de homicdio e tinha o domnio do fato, incidindo nas penas previstas

no artigo 121 do Cdigo Penal Brasileiro) e de um partcipe (o que emprestou a arma). Ora, o

fato de emprestar uma faca a algum no possui tipicidade, mas como a inteno do partcipe

era tambm de matar a vtima, sua responsabilidade ser determinada atravs do processo de

adequao tpica mediata, combinando-se o artigo 121 com o artigo 29, que dispe: Quem,

de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua

culpabilidade .

Verifica-se, pois, que partcipes so aqueles que contribuem culpavelmente

para a produo de determinado resultado tpico, sem cumprir o processo executivo e sem

funcionar como autores (BALESTRA, 2002:403). Participao, portanto, no um conceito

autnomo, mas, sim, um conceito de referncia, j que depende do conceito de autor, o que

lhe confere a caracterstica da acessoriedade (PIERANGELI, 1992:301).

Pode-se falar em participao prpria e participao imprpria. A primeira

ocorre quando o partcipe atua anteriormente, ou no exato momento da execuo tpica

35

perpetrada pelo autor. J a participao imprpria acontece aps a atuao tpica do autor,

sabendo o partcipe que seu auxlio se d aps a prtica do crime. Nesse ltimo caso, o

partcipe no responde pelo delito praticado pelo autor, no se podendo falar em participao

propriamente dita, j que o partcipe atua aps a consumao do crime. So os casos de

favorecimento.14

A participao prpria pode ser moral ou material. Moral a participao

que ocorre nos casos de induzimento e instigao. Ela incide sobre o processo mental

consciente do autor. Induzir criar a idia delituosa na mente do autor, incutir, fazer nascer

a idia. J a instigao tem um carter de reforo, de estmulo idia criminosa que j existe

na cabea do autor. Instigar determinar a outrem a prtica de um fato doloso (BALESTRA,

2002:421). Tanto no induzimento, quanto na instigao, preciso que a atuao do partcipe

seja revestida da caracterstica da acessoriedade, pois se desempenhar ele uma atividade

principal, ser considerado autor, jamais partcipe.

Para Bitencourt:

em resumo, a instigao uma espcie de participao moral em que o partcipe age sobre a vontade do autor, quer provocando para que surja nele a vontade de cometer o crime (induzimento), quer estimulando a idia existente, que a instigao propriamente dita, mas, de qualquer modo, contribuindo moralmente para a prtica do crime (BITENCOURT, 2003:392).

Na participao material, tambm chamada de cumplicidade, o partcipe no

atua no psiquismo do agente, seu auxlio puramente material, ou seja, ele facilita

materialmente a prtica da infrao penal, fornecendo objetos, emprestando armas, dirigindo

o veculo para assegurar a fuga dos autores etc. uma contribuio fsica, um verdadeiro

auxlio. A cumplicidade, dessa forma, deve fomentar o fato principal, ou seja, o partcipe

deve prestar uma contribuio causal execuo do fato principal (WELZEL, 2003:182).

14 Para Pierangeli, o favorecimento consiste na interveno de uma pessoa aps a prtica de um delito que j se completou, e cuja cooperao do conhecimento do autor ou co-autores, a quem presta auxlio (PIERANGELI, 1992:292).

36

Por ter o partcipe uma atuao secundria, o fundamento de sua

punibilidade encontra-se na teoria da acessoriedade, uma vez que a atividade do partcipe

depende da do autor, ou seja, acessria de uma atividade principal.

Nosso ordenamento jurdico adotou a teoria da acessoriedade, positivada no

artigo 31 do Cdigo Penal: O ajuste, a determinao ou instigao e o auxlio, salvo

disposio expressa em contrrio, no so punveis, se o crime no chega, pelo menos a ser

tentado .

Asa apresenta quatro princpios gerais que devem revestir a atuao do

partcipe, para que o mesmo seja considerado como tal: identidade de tipo, comeo da

execuo pelo autor, limite do injusto e coincidncia de culpabilidade (ASA, 2002:503).

Por ser a acessoriedade o fundamento de punibilidade da participao,

algumas teorias existem que visam a limitar o alcance dessa atividade acessria, so elas: a) a

teoria da acessoriedade extremada; b) a teoria da acessoriedade limitada; e c) a teoria da

acessoriedade mnima ou restrita.

Para teoria da acessoriedade extremada, o comportamento principal, para

gerar a punio do partcipe, deveria ser tpico, ilcito e culpvel. Dessa forma, se o autor

fosse inimputvel, portanto, no-culpvel, o partcipe seria impunvel. Tal teoria leva em

considerao o conceito analtico de crime: para que o partcipe seja punido, preciso que o

autor pratique um injusto culpvel.

A teoria da acessoriedade limitada exige que a atividade do autor seja tpica

e antijurdica, para que possa haver a punio do partcipe. No necessrio que o autor seja

culpvel, at porque a culpabilidade individual. a teoria adotada pela a maioria dos

doutrinadores.

37

Por fim, a teoria da acessoriedade mnima o oposto da extremada: para se

punir o partcipe, basta que a atividade do autor seja tpica, sendo indiferente a ilicitude de sua

conduta. Assim, para essa teoria, aquele que induzir o autor a agir dentro limites exigidos pela

excludente da legtima defesa, responder pelo crime, enquanto o executor (autor principal)

ter sua ao justificada.

Dentre as trs teorias acima citadas, a que melhor fundamenta a punibilidade

do partcipe a da acessoriedade limitada, at porque apenas se culpvel da prpria

culpabilidade e a ningum aproveita a culpabilidade alheia (ASA, 2002:503).

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CAPTULO 2

O FENMENO DA CRIMINALIDADE ORGANIZADA

2.1 IMPRECISO TERMINOLGICA, PROBLEMTICA CONCEITUAL E

CARACTERSTICAS DO CRIME ORGANIZADO

A delinqncia organizada constitui, no mundo contemporneo, um dos

flagelos sociais mais nocivos que afetam a humanidade, cujas dimenses ainda no foram

completamente calculadas (MAYOR, 1999:216).

Discute-se, sob um ponto de vista temporal, se o crime organizado sempre

existiu, ou, pelo contrrio, se fenmeno recente, tpico da sociedade dos dias atuais.

Inicialmente, convm destacar que inegvel o fato de que a associao de

duas ou mais pessoas para a prtica de aes delituosas to antiga quanto a existncia do

prprio crime (MANHEIM, 1993:953). Da mesma forma que o homem, nos primrdios,

percebeu que se unindo a outros pares poderia empreender com mais sucesso suas atividades

lcitas, notou, tambm, que as condutas delituosas poderiam ser mais vantajosas com a unio

de vrias pessoas.

Desse modo, a associao para o crime sempre existiu. No entanto, ocorre

que o fenmeno da criminalidade organizada alcanou, nos tempos modernos, propores

nunca antes atingidas, ultrapassando, inclusive, as fronteiras que separam os pases. Se antes a

delinqncia organizada operava nos limites de um nico Estado, hoje existem diversas

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atividades criminosas ordenadas com ramificaes internacionais, como, por exemplo, o

trfico ilcito de entorpecentes e o comrcio clandestino de animais silvestres.15

Com efeito, os vestgios da criminalidade associativa se perdem no perpassar

da histria. Mas o que hoje se entende por crime organizado, com feies empresariais,

ramificaes no poder pblico e amplo aparato tecnolgico, fenmeno caracterstico tpico

da poca atual.

Constata-se, pois, que o fenmeno constitui, hoje em dia, objeto de

preocupao tanto da dogmtica penal, quanto das polticas criminais das naes modernas. E

no s isso, o crime organizado passou a ocupar posio de destaque nos noticirios

televisivos e impressos da mass media em todo o mundo.

comum a utilizao indistinta das expresses nova criminalidade,

criminalidade moderna, criminalidade contempornea e criminalidade organizada. Beck

chama ateno para o fato de que os trs primeiros termos tentam distinguir a criminalidade

que ora se analisa daquela denominada clssica ou tradicional. Enquanto o ltimo refere-se a

uma categoria ainda mais especfica de crime (BECK, 2004:58).

Neste trabalho opta-se pelas expresses criminalidade contempornea e

criminalidade organizada, que se encontram intrinsecamente ligadas, ressaltando que nem

toda criminalidade contempornea organizada, mas toda criminalidade organizada

contempornea.

Acontece que h consenso na doutrina, domstica e estrangeira, a respeito da

impossibilidade de se fornecer com segurana o conceito de criminalidade organizada ou

15 Observao percuciente feita por Beck: (...) a delinqncia organizada existiu sempre, da mesma forma que sempre existiu a atividade lcita organizada. Ambas em funo da tendncia do homem em planejar suas tarefas, sobretudo quando trabalha em grupo. O que ocorre que, nas sociedades contemporneas, a delinqncia organizada em sentido especfico, ou qualitativamente organizada (em oposio delinqncia de baixo grau de organizao, inerente, de alguma forma, a qualquer classe de delinqncia coletiva ou associativa delitiva), alcanou dimenses extremamente vastas (BECK, 2004:56).

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crime organizado16. Isto ocorre devido ao fato de que a criminalidade contempornea vem-se

desenvolvendo a passos geomtricos e amplia sobremaneira seus campos de atuao, como se

pode citar, a ttulo de exemplo, o comrcio internacional de armas, de tecidos humanos e de

material radioativo, alm do trfico internacional de entorpecente e animais silvestres, j

anteriormente referidos. Mas nem todas as atividades ilcitas a mencionadas, que diariamente

so alvos de notcia pela imprensa mundial, revestem-se das caractersticas do crime

organizado.

Os caracteres do fenmeno no so apresentados de modo uniforme pela

doutrina, como se ver adiante, posto que tal faceta da criminalidade contempornea no

possui, ainda, um conceito seguro, cientificamente elaborado, que permita delimitar com

preciso seu contedo. A dificuldade justifica-se porque preciso ter cuidado para no se

partir do pressuposto de que possvel encontrar-se uma definio nica para o fenmeno

(BECK, 2004:64).

O fenmeno alcana propores tais que nem sempre um conceito nico ir

referir-se ao mesmo acontecimento. Nas palavras de Beck:

disso se dessume que consenso na doutrina (e nem poderia ser diferente) a idia de que, pelo menos at o presente momento, no possvel o estabelecimento de um conceito definitivo (ou mesmo de algum conceito, como mostra Ral Zaffaroni) de crime organizado. Somente (e no mximo) aproximarmos o seu contedo (BECK, 2004:68).

Para Hassemer necessrio distinguir dois mbitos de incidncia da

criminalidade: o da criminalidade de massas, aquela que produz medo na sociedade e gera

meios de combate s investidas dos delinqentes, e o da criminalidade organizada, fenmeno

cambiante e sem vtimas imediatas ou com vtimas difusas, sendo que, nesta ltima hiptese

16 Para Damsio de Jesus, falar com preciso a respeito do crime organizado exige alcanar uma preciso terminolgica sobre seu significado, requisito mnimo para se construir consideraes slidas. De ver-se, contudo, que tanto a doutrina quanto a jurisprudncia da maioria dos pases reconhecessem ser quase impossvel formular um conceito unnime (JESUS, 2000:138).

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ainda no h consenso da doutrina sobre seu contedo e se ela realmente existe

(HASSEMER, 1994:293).

Castanheira faz a seguinte observao:

O certo que esse segundo fenmeno (criminalidade organizada) muito pouco preciso, o que equivale dizer que ainda no se sabe muito bem o que , como se manifesta e no que se distingue do crime de massa. Em sntese, crime organizado no crime de quadrilha, no tampouco qualquer associao criminosa. E, ainda, crime organizado constitui uma gama incerta de fenmenos delitivos distintos (CASTANHEIRA, 1998:104).

Seguindo essa mesma linha de raciocnio, Zaffaroni entende o crime

organizado como um fenmeno de mercado desorganizado ou no-disciplinado e, dessa

forma, frustradas sero todas as tentativas de conceituao, pois constituiro a pretenso de

prender em um conceito criminolgico a dinmica do mercado (ZAFFARONI, 1996:54).

Verifica-se, pois, que o nico consenso existente na doutrina sobre o crime

organizado repousa na impossibilidade de apresentar-se um conceito nico referente a tal

fenmeno.

Tal dificuldade conceitual, inclusive terminolgica, no se constitui em um

bice para que, atravs da anlise de casos concretos, chegue-se a apontar quais os caracteres

da criminalidade organizada.17

Duas caractersticas, segundo Zaffaroni, sobressaem-se no fenmeno da

criminalidade organizada: a estrutura empresarial e a atividade dirigida para os mercados

ilcitos (ZAFFARONI, 1996:46). Pode-se concluir, pois, na esteira do pensamento do

doutrinador argentino, que s se pode falar em crime organizado aps o advento do sistema

econmico capitalista.

17 Apesar de tambm no haver consenso doutrinrio, nada impede que sejam fornecidos os caracteres do crime organizado. Mais uma vez, segue o pensamento de Beck: Diferentemente do tocante elaborao de um conceito de crime organizado, a enunciao de suas caractersticas se apresenta deveras mais fcil. Aqui no existe o rigor da almejada univocidade de um conceito. Ao revs, os elementos que compem uma modalidade delitual podem ser utilizados em diferentes conjuntos, diferenciados por incluses, excluses e adaptaes . (BECK, 2004:74).

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Gomes e Cervini apontam um rol de requisitos que podem assim ser

apresentados: hierarquia estrutural; planejamento empresarial; uso de meios tecnolgicos

avanados; recrutamento de pessoas; diviso funcional das atividades; conexo estrutural ou

funcional com o poder pblico ou com o agente do poder pblico; oferta de prestaes

sociais; diviso territorial das atividades ilcitas; alto poder de intimidao; alta capacidade

para a prtica de fraude; conexo local, regional, nacional ou internacional com outra

organizao criminosa (GOMES; CERVINI, 1997:121).

Montalvo ressalta que diversas anlises esto sendo feitas na Unio Europia

com o objetivo de determinar a existncia do crime organizado, tendo os estudiosos chegado

s seguintes concluses a respeito das caractersticas do fenmeno: concorrncia de duas ou

mais pessoas; comisso de delitos graves; nimo de lucro; distribuio de tarefas;

permanncia; e atividade internacional (MONTALVO, 2001:104).

J Beck elenca as seguintes caractersticas do fenmeno, por consider-las

as mais importantes, mas fazendo a ressalva de que o rol pode ser muito bem acrescido de

novos atributos, j que se trata de fenmeno mutante (BECK, 2004:46): estrutura plrima

hierarquizada e permanente; finalidade de lucro ou poder; utilizao de meios tecnolgicos;

conexo com o poder pblico; internacionalizao; uso da violncia ou intimidao;

cometimento de delitos com graves conseqncias sociais; e emprego de lavagem de

dinheiro.

Para Reale Jnior so os seguintes os elementos que caracterizam a

delinqncia organizada: aspecto institucional da associao; planejamento estratgico e

hierarquia; forte disciplina de comando, inclusive com imposio de violncia para se obter

obedincia; corrupo de agentes oficiais (REALE JNIOR, 1996:184-185).

Observa-se, assim, que os doutrinadores apresentam caractersticas

diferentes a respeito do fenmeno da criminalidade organizada. No entanto, alguns atributos

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se repetem, mudando-se apenas o enfoque escolhido pelo autor. A seguir, com base na

pesquisa realizada, apresentam-se os principais caracteres relativos criminalidade

organizada:

a) prtica permanente de atividades delitivas;

A criminalidade organizada deve estar estruturada para exercer suas

atividades de modo permanente, contnuo. No se concebe falar no fenmeno se os

delinqentes uniram-se para o cometimento de um crime isolado, ou, at mesmo, de alguns

delitos previamente acordados. E mais, a organizao, face ao carter permanente de suas

condutas, deve estar ordenada de uma forma que consiga sobreviver, inclusive, sem a

presena do chefe, nas situaes em que ele estiver morto ou detido, por exemplo. Tal fato

mostra a continuidade delitiva da estrutura, como se a mesma tivesse vida prpria.

b) estrutura hierarquizada e fins lucrativos;

Caracterstica marcante do fenmeno a hierarquia. Existe, nas organizaes

criminosas, um verdadeiro centro polarizado de poder, de onde emanam as ordens e de onde

so disciplinadas as funes que cada integrante da associao dever desempenhar, desde as

atividades mais importantes, tais como funes de chefia e gerncia, at as atividades menos

qualificadas, como as dos que executam com as prprias mos os delitos previamente

determinados pelos chefes da organizao. Estrutura hierarquizada caracterstica marcante

do fenmeno.

Alm disso, a criminalidade organizada funciona em razo do lucro, at

porque o fenmeno reflexo, tpico da sociedade capitalista hodierna. Esse tipo de

organizao parece deter uma aparente vantagem sobre o sistema jurdico penal das

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sociedades modernas, devido ao fator de surpresa com que se costuma apresentar e, tambm,

pelos recursos econmicos que superam amplamente os dos pases em que atua (MAYOR,

1999:216).

c) prtica de crimes que atingem bens jurdicos fundamentais individuais e

coletivos;

As atividades desenvolvidas pela criminalidade organizada costumam atingir

no s bens jurdicos individuais, mas tambm alcanam os valores e interesses de toda uma

coletividade, principalmente, neste ltimo caso, quando os agentes do crime organizado

deixam de utilizar a violncia e passam a usar de fraudes e outras estratgias delituosas que

visam a objetivos especficos. o exemplo do trfico internacional de entorpecentes, citado

por Beck, em que comum a existncia de vtimas individuais, quais sejam, as que sofrem

leso corporal, ameaa etc., mas as aes desenvolvidas por essa atividade delituosa

transcendem, muitas vezes, para o social, ocasionando danos para a coletividade como um

todo (BECK, 2004:89).

d) interligao com o poder pblico atravs da corrupo;

comum a atividade do crime organizado estar infiltrada nas estruturas do

Estado atravs da corrupo dos agentes pblicos. Tal fato facilmente constatado em

praticamente todos os pases em que o fenmeno atua, conforme se pode comprovar pelos

noticirios da imprensa mundial que sempre veicula informaes sobre a priso de delegados,

juzes, parlamentares etc., demonstrando, assim, a periculosidade desse tipo de criminalidade

e a vulnerabilidade da sociedade e do prprio Estado, j que as instituies oficiais

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encarregadas de combater o crime organizado encontram-se contaminadas pelo prprio

fenmeno, comprometendo, dessa forma, todo o aparato estatal.

Tal conexo com poder pblico decorre da corrupo dos agentes estatais,

atravs de uma gama de investidas da delinqncia organizada nos setores pblicos

encarregados da aplicao da lei penal: propostas de propina e de participao nos lucros

oriundos da atividade criminosa, oferecimento de presentes e outras ddivas, trfico de

influncia etc.18

e) aparato tecnolgico e internacionalizao de suas atividades.

Por fim, pode-se apontar tambm como caractersticas da delinqncia

organizada dois aspectos importantes: aparato tecnolgico e prtica de atividades voltadas

para o mercado internacional.

A utilizao de meios tecnolgicos algo presente no crime organizado. Na

verdade, no so todas as modalidades desse tipo de delinqncia que utilizam mecanismos

de ponta, pois o uso de aparelhagem moderna tem a ver com os crimes que a organizao

pratica, posto que em alguns casos, como o terrorismo, por exemplo, essa caracterstica no

to marcante. Mas fato incontroverso que essa caracterstica detm especial importncia nas

aes perpetradas pela criminalidade organizada, ganhando destaque, principalmente, quando

as atividades so desencadeadas em pases em desenvolvimento.

Por sua vez, a internacionalizao do crime organizado uma das

caractersticas mais marcantes do fenmeno. Esse fato faz com que, inclusive, torne-se cada

18 Schilling, ao discorrer sobre a corrupo e o crime organizado, citando Boaventura de Souza Santos, chama a ateno para o fato de que a corrupo , conjuntamente com o crime organizado ligado sobretudo ao trfico da droga e ao branqueamento de dinheiro, a grande criminalidade desse terceiro perodo (crise do Estado-Providncia) e coloca os tribunais no centro de um complexo problema de controle social (SCHILLING, 2001:405).

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vez mais difcil o controle e a represso dessas atividades, por envolver diversos pases, como

o caso do trfico ilcito de entorpecentes, em que a atividade delituosa divide-se entre o pas

produtor e os que iro consumir ou distribuir a droga.

Apenas para citar um exemplo do carter transnacional dessa atividade

delituosa, recente julgado do Superior Tribunal de Justia confirma a existncia de:

(...) robusta organizao criminosa articuladamente montada e destinada prtica de inmeras atividades ilcitas, sendo que todas elas rodeiam a atividade principal, que consiste na extrao de diamantes de reserva indgena para destin-los ilegalmente ao comrcio exterior, sendo que cada integrante da quadrilha possui atribuio prpria (Superior Tribunal de Justia. Habeas corpus n. 3366-9-RO (2004/0017203-6), p. 238, Rel. Min. Jorge Scartezzini.).

Todavia, nada impede que o grupo resolva intensificar, ou at mesmo

concentrar as suas atividades em nico pas. Beck (2004:85) cita o exemplo da explorao da

prostituio ou a formao de grupos para a prtica de seqestros como atividades ilcitas que

podem muito bem ser desenvolvidas nos limites do territrio domstico.

Vale salientar, pois, que essas so as principais caractersticas do crime

organizado, o que no quer dizer que toda atividade desenvolvida por esse tipo de

delinqncia deva apresentar simultaneamente todos os atributos acima descritos, at porque,

face dificuldade de chegar a um conceito preciso sobre o tema em estudo, suas

caractersticas gerais terminam por representar um pouco dessa impreciso terminolgica.

2.2 O SURGIMENTO DA LEI 9.034/95 COMO FORMA DE COMBATER O CRIME

ORGANIZADO NO BRASIL: A CONTROVERSA FIGURA TPICA

ORGANIZAO CRIMINOSA NO DIREITO PTRIO

O cenrio da criminalidade organizada no pas deveras preocupante. A

imprensa relata, exausto, notcias dirias a respeito dos conflitos entre a polcia e os grupos

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envolvidos com o narcotrfico, alm de freqentes matrias sobre a indstria dos seqestros,

trfico de animais e conexes internacionais envolvendo lavagem de dinheiro.

Para agravar ainda mais a situao, tambm existe a fragilidade da polcia

brasileira, em face do poderio das organizaes criminosas, alm de problemas relativos

corrupo na atuao policial. O Ministrio Pblico, por sua vez, no dispe de meios

operacionais suficientes para enfrentar o fenmeno de maneira global e orgnica

(GRINOVER, 1997:61).

Esse panorama catico vem-se desenvolvendo com uma velocidade

inimaginvel desde a dcada de oitenta. Como conseqncia, o pas tenta intensificar, sem

muito sucesso, sua produo legiferante na tentativa de fazer brecar o crescimento do crime

organizado. Dessa intensa atividade legislativa, podem-se citar os seguintes diplomas

normativos, que j fazem parte do nosso ordenamento jurdico:

a) Conveno das Naes Unidas contra o trfico ilcito de substncias

entorpecentes, de 19 de dezembro de 1998 (j ratificada pelo Brasil desde 1991);

b) Conveno sobre os direitos da criana (Resoluo L44/XLIV da

Organizao das Naes Unidas, de 28 de novembro de 1989, ratificada pelo Brasil em 24 de

setembro de 1990);

c) Lei 8.072, de 25 de julho de 1990, que dispe sobre os crimes hediondos,

nos termos do art. 5 XLIII, da Constituio Federal, e determina outras providncias;

d) Lei 9.034, de 03 de maio de 1995, que dispe sobre a utilizao de meios

operacionais para a preveno e represso de aes praticadas por organizaes criminosas,

alterada posteriormente pela Lei 10.217, de 11 de abril de 2001;

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e) Lei 9.613, de 1 de maro de 1998, que dispe sobre os crimes de lavagem

ou ocultao de bens, direitos e valores; a preveno da utilizao do sistema financeiro para

os ilcitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras COAF

e d outras providncias.

Dentre os diplomas legais acima elencados, o nico que foi criado com o

escopo de enfrentar diretamente o problema do crime organizado foi a Lei 9.034/95, com sua

posterior alterao pela Lei 10.217/2001. No entanto, como ser visto adiante, com a recente

inovao legislativa, a Lei de 1995 perdeu grande parte de sua eficcia, segundo a opinio de

inmeros doutrinadores.

O grande problema reside no fato de que a Lei 9.034/95, criada para prevenir

e reprimir as aes praticadas por organizaes criminosas, com sua modificao ulterior, no

definiu o que se deve compreender por organizaes criminosas. Dessa forma, todos os

dispositivos da lei em que conste a expresso organizaes criminosas perderam sua eficcia,

pelo simples fato de no se saber, ainda, no ordenamento jurdico brasileiro, o que se entende

por tal fenmeno (GOMES, 1992:487).

Faz-se mister ressaltar que os tribunais brasileiros vinham dando ampla

efetividade Lei 9.034/95, mas, devido alterao implementada pela Lei 10.217/2001, o

panorama mudou. Veja-se, exempli gratia, corroborando a assertiva a respeito da aplicao da

lei de combate ao crime organizado, a seguinte jurisprudncia oriunda do Superior Tribunal

de Justia, que efetivava a Lei de 1995:

Habeas corpus substitutivo de recurso ordinrio. Organizao criminosa. Art. 7 da Lei 9.034/95. Liberdade provisria. Insuscetibilidade daqueles que tenham tido efetiva e intensa participao nas condutas delitivas. Garantia de aplicao da lei penal. Possibilidade real de fuga do paciente para o exterior. Concesso de fiana. Impossibilidade. Excesso de prazo na formao da culpa. No caracterizao. 1. A vedao liberdade provisria prevista no art. 7 da lei 9.034/95 constitui instrumental de que dispe o Estado para desarticular a organizao criminosa.

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Trata-se, pois, de mecanismo poltico-jurdico apto a combater a sofisticao e a ousadia do grupo, privando, ad cautelam ,a liberdade daqueles que nela tenham tido intensa e efetiva participao, preservando, por conseguinte, a ordem pblica. 2. Caracterizada a intensa e efetiva participao dos agentes na organizao criminosa

tendo-os como responsveis pelo transporte de mercadorias que ingressavam no

territrio nacional sem a devida fiscalizao da autoridade competente, valendo-se de informaes privilegiadas e, em contraprestao, oferecendo vantagem indevida a agentes pblicos -, h de se preserv-los sob custdia preventiva. 3. A real possibilidade de fuga para o exterior em face da existncia de vultoso fluxo financeiro dos agentes no Uruguai constitui bice concesso de liberdade provisria, tendo em vista a garantia da aplicao da lei penal. Nessa hipteses, presta-se confiabilidade ao juzo da causa, mxime porque, presidindo a ao penal, tem-se-no como rgo mais sensvel s vicissitudes do processo. 4. No ser concedida fiana quando presentes os motivos que autorizam a decretao da preventiva (art. 324, IV, do CPP). 5. No correm os prazos se h fora maior ou obstculo judicial oposto pela parte contrria (art. 798, 4, do CPP). 6. No constitui constrangimento ilegal o excesso de prazo na instruo, provocado pela defesa (Sm. STJ, Enunciado 64). 7. Ordem denegada (Superior Tribunal de Justia. Habeas corpus n. 15.305-RS (2000/0138747-2), p. 288, Rel. Min. Hamilton Carvalhido).

Observa-se, pois, que a citada lei, mesmo com suas imperfeies tcnicas,

vinha sendo aplicada no pas.

Em sua redao original, o art. 1 da Lei 9.034/95 preconizava: Esta Lei

define e regula meios de prova e procedimentos investigatrios que versem sobre crime

resultante de aes de quadrilha ou bando .

J o caput do art. 2, misturando os conceitos de quadrilha ou bando e

organizaes criminosas, dispunha: Em qualquer fase de persecuo criminal que verse

sobre aes praticadas por o