A ARQUITETURA EM MADEIRA FRENTE ÀS NOVAS … · do emprego da madeira na arquitetura do Brasil ......

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A ARQUITETURA EM MADEIRA FRENTE ÀS NOVAS CONSTRUÇÕES E A PERCEPÇÃO DO USUÁRIO NA CIDADE DE CURITIBA. MARCOS, MICHELINE HELEN COT (1); CAMARGO, ARILDO (2); MIRANDA, ANTÔNIO CLARET (3) 1. Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA).Departamento de Arquitetura e Urbanismo Rua Chile, 1678. Curitiba - Paraná [email protected] 2. Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA).Departamento de Arquitetura e Urbanismo Rua Chile, 1678. Curitiba - Paraná [email protected] 3. Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA).Departamento de Arquitetura e Urbanismo Rua Chile, 1678. Curitiba - Paraná [email protected] RESUMO Ao longo da história, a madeira se revelou um material nobre e sua utilização como matéria- prima na construção de habitações se fez constante na arquitetura. Os primeiros exemplares do emprego da madeira na arquitetura do Brasil observam-se nas habitações indígenas que, apesar de primitivas e rústicas, atendiam às necessidades de seus usuários e às exigências climáticas. As casas de madeira, na cidade de Curitiba, ainda sobrevivem na paisagem urbana sendo consideradas elementos importantes em um cenário dominado pela alvenaria e concreto, resistindo como símbolo do modo de viver e de construir típicos da terra. Em sua curta existência, esse sistema construtivo apresenta uma diversidade de soluções e demonstra que a flexibilidade construtiva, aliada à criatividade dos construtores, possibilitou uma arquitetura de boa qualidade. Essa pesquisa analisa as casas de madeira da cidade de Curitiba, herança da imigração alemã, polonesa e italiana, sendo que muitas dessas edificações encontram-se destruídas pelo tempo o u falta de manutenção, entretanto, outras se mostram conservadas, preservando as estruturas originais. Esse artigo pretende realizar uma análise dessas casas tradicionais de madeira, denominadas de “Casas de Imigração”, na cidade de Curitiba, frente às características da paisagem urbana e da percepção do usuário. Para essa análise foi realizado como metodologia, o estudo de caso sobre casas em madeira, localizadas em bairros onde predominam as construções contemporâneas e grandes edifícios. Foram obtidos levantamentos fotográficos e entrevistas. Como resultado tem-se uma relação entre a resistência dessas casas perante a evolução das técnicas arquitetônicas, a percepção do usuário e a influência das casas de madeira na imagem da paisagem urbana. Cabe ainda salientar que este texto se mostra como parte de uma pesquisa maior, em andamento, que busca mapear as edificações em madeira em vários bairros da cidade de Curitiba. Palavras-chave: paisagem urbana; patrimônio; arquitetura em madeira

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A ARQUITETURA EM MADEIRA FRENTE ÀS NOVAS

CONSTRUÇÕES E A PERCEPÇÃO DO USUÁRIO NA CIDADE

DE CURITIBA.

MARCOS, MICHELINE HELEN COT (1); CAMARGO, ARILDO (2); MIRANDA, ANTÔNIO CLARET (3)

1. Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA).Departamento de Arquitetura e Urbanismo

Rua Chile, 1678. Curitiba - Paraná [email protected]

2. Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA).Departamento de Arquitetura e Urbanismo Rua Chile, 1678. Curitiba - Paraná

[email protected]

3. Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA).Departamento de Arquitetura e Urbanismo Rua Chile, 1678. Curitiba - Paraná [email protected]

RESUMO

Ao longo da história, a madeira se revelou um material nobre e sua utilização como matéria-prima na construção de habitações se fez constante na arquitetura. Os primeiros exemplares do emprego da madeira na arquitetura do Brasil observam-se nas habitações indígenas que, apesar de primitivas e rústicas, atendiam às necessidades de seus usuários e às exigências climáticas. As casas de madeira, na cidade de Curitiba, ainda sobrevivem na paisagem urbana sendo consideradas elementos importantes em um cenário dominado pela alvenaria e concreto, resistindo como símbolo do modo de viver e de construir típicos da terra. Em sua curta existência, esse sistema construtivo apresenta uma diversidade de soluções e demonstra que a flexibilidade construtiva, aliada à criatividade dos construtores, possibilitou uma arquitetura de boa qualidade. Essa pesquisa analisa as casas de madeira da cidade de Curitiba, herança da imigração alemã, polonesa e italiana, sendo que muitas dessas edificações encontram-se destruídas pelo tempo o u falta de manutenção, entretanto, outras se mostram conservadas, preservando as estruturas originais. Esse artigo pretende realizar uma análise dessas casas tradicionais de madeira, denominadas de “Casas de Imigração”, na cidade de Curitiba, frente às características da paisagem urbana e da percepção do usuário. Para essa análise foi realizado como metodologia, o estudo de caso sobre casas em madeira, localizadas em bairros onde predominam as construções contemporâneas e grandes edifícios. Foram obtidos levantamentos fotográficos e entrevistas. Como resultado tem-se uma relação entre a resistência dessas casas perante a evolução das técnicas arquitetônicas, a percepção do usuário e a influência das casas de madeira na imagem da paisagem urbana. Cabe ainda salientar que este texto se mostra como parte de uma pesquisa maior, em andamento, que busca mapear as edificações em madeira em vários bairros da cidade de Curitiba.

Palavras-chave: paisagem urbana; patrimônio; arquitetura em madeira

4º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação Belo Horizonte, de 25 a 27 de novembro

1. MADEIRA E SEU USO NA ARQUITETURA: RELAÇÃO

ENTRE HISTÓRIA E ANÁLISE DA PAISAGEM.

As casas de madeira, na cidade de Curitiba, sobrevivem na paisagem urbana sendo

elementos importantes em um cenário dominado pela alvenaria e concreto, onde

sobrevivem como símbolo do modo de viver e de construir típicos da terra. Em sua

curta existência, as casas de madeira dessa região possuem uma diversidade de

soluções construtivas e demonstra que a flexibilidade técnica aliada à criatividade dos

construtores possibilitou uma arquitetura de boa qualidade (BATISTA, 2011).

De acordo com Lavalle (1981), no Paraná a existência de extensa floresta de

araucária angustifólia, permitiu que, a partir do século XIX, a exploração da madeira

fosse uma das atividades econômicas mais destacadas da região.

Ao longo da história humana, a madeira se revelou uma matéria-prima indispensável

na construção de habitações. Ao se focar especificamente no Brasil, nota-se que as

casas indígenas emergem como as primeiras edificações a empregarem a madeira

como método construtivo (Figura 1), e apesar de serem primitivas e rústicas, atendiam

às necessidades de seus usuários e às exigências climáticas da região.

Figura 1. Habitações indígenas no Brasil. Fonte:impressõesamazonicas.wordpress.com

Mendes, Veríssimo e Bittar (2011), ao discutirem a herança indígena sobre as

primeiras construções erigidas pelos colonizadores, apontam que “o processo mais

simples de assentar elementos verticais era o pau a pique, diretamente apreendido do

índio, que o utilizava em suas palhaçadas. Este consistia no fincamento de varas e

toras, muito próximas, cujas bases eram incineradas para evitar apodrecimento pela

umidade do terreno”.

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Sabe-se que a técnica do pau a pique e da taipa de pilão foram correntes na

construção brasileira até meados do século XIX, e que, em diversas regiões do país,

devido a total falta de recursos, tal método ainda se mostra como a única alternativa

possível.

A chegada dos colonizadores alterou o processo de utilização da madeira na

construção. Dessa forma, a divisão de espaços, assim como as técnicas construtivas,

passou a responder à tradições culturais diferenciadas. Na segunda metade do século

XIX, desenvolveu-se no Brasil uma política de colonização que visava incentivar a

vinda de imigrantes europeus facilitando a propriedade de terra aos estrangeiros para

ocupar os grandes vazios demográficos. Batista (2007), afirma que,

...”as transformações ocorridas no Brasil após a segunda metade do século XIX foram marcadas por um início de modernidade. O modelo urbano colonial foi sendo gradativamente substituído e a intensa imigração proveniente da Europa foi um fator determinante destas mudanças. O imigrante europeu introduziu no país novas tecnologias construtivas e o início da industrialização possibilitou a confecção de novos equipamentos e a produção de novos materiais. Surgem no cenário paranaense as construções em madeira, inicialmente executadas com pouco apuro tecnológico, construídas com troncos empilhados encaixados, sendo estas construções introduzidas pelos imigrantes poloneses. Com o surgimento das primeiras serrarias movidas por máquinas a vapor foi possível uma maior eficiência no desdobramento da madeira, surgindo, então, uma padronização de bitolas, que possibilitou uma maior eficiência construtiva.”

Assim, percebe-se que a necessidade de mão-de-obra para a agricultura - agravada

após a abolição da escravatura - aliada à semelhança climática com a terra de origem

atraiu grande contingente de imigrantes para o Paraná, em especial os alemães,

italianos e poloneses.

A diversidade cultural dessa nova população trouxe modificações nas soluções

arquitetônicas, evidenciadas pelo uso de diferentes técnicas e materiais de

construção.

Os imigrantes alemães construíram suas casas com enxaiméis (Figura 2, à esquerda)

- estrutura de madeira com peças diagonais de travamento cujos intervalos são

preenchidos por tijolos. Já os poloneses e italianos, de origem camponesa,

estabeleceram-se em colônias próximas às cidades. Porém, enquanto as casas dos

imigrantes italianos eram construídas em alvenaria de tijolos, as dos poloneses

empregavam troncos de árvores sobrepostos horizontalmente, com encaixes nos

cantos das paredes, como se pode notar na figura 2 à direita.

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Figura 2. Arquitetura Enxaimel à esquerda. Casas polonesas à direita. Fontes: www.casasenxaimel.com.br e Batista (2007).

Ao final do século XIX, a intensificação e mecanização da exploração madeireira e a

instalação de serrarias, principalmente no sul do país, onde a matéria-prima era

abundante, permitiu a padronização de elementos construtivos e a difusão da

arquitetura em madeira.

A casa de madeira tornou-se então tradicional nas paisagens paranaenses.

Construída sobre pequenos pilares para evitar a umidade, esse tipo de casa possuía

arcabouço formado por barrotes e vigas nos quais são pregadas tábuas verticais com

junções vedadas por ripas. A divisão interna original era simples, constando da sala,

quartos e uma cozinha. O sótão, visível nos exemplares da figura 3, geralmente

habitável, surgiu em função da forte inclinação dos telhados - tradição trazida dos

países europeus.

Figura 3. Casas em madeira estilo europeu em Curitiba. Fonte: Batista (2007)

Cabe ressaltar que foram três principais fatores que contribuíram para o surgimento,

desenvolvimento e reprodução das casas de madeira no Paraná. Primeiramente a

vasta reserva de araucária, madeira de qualidade, linear e com galhos. As matas de

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araucária cobriam uma boa parte do estado, sendo consideradas na época de sua

exploração como infindáveis e isto encorajou a exploração desmedida até quase sua

total extinção.

O segundo ponto importante corresponde à quantidade de mão-de-obra de qualidade

aliada a grande oferta de material. Este quadro possibilitou a aquisição destas

habitações para todas as camadas da população. Esta mão-de-obra era formada por

imigrantes provenientes de diversas localidades, com culturas construtivas distintas, o

que produziu uma arquitetura singular e própria do local. Esta simbiose construtiva

nomeada por Imaguire (1993) como “Casa de Araucária” é uma arquitetura

exclusivamente brasileira, comum ainda hoje nas paisagens urbanas e rurais do Sul

do Brasil.

Por último, o fator da industrialização da extração da madeira proveniente das

serrarias que possibilitou uma padronização construtiva, permitindo a formação de

mão de obra qualificada. O sistema construtivo era simples, porém não limitado. Há

exemplos de casas singelas com plantas simplificadas. No entanto, a técnica

construtiva, a padronização das peças e a qualidade da madeira eram as mesmas.

Além de residências com até 03 pavimentos e mais o porão em alvenaria, há muitas

variedades de edifícios, construídos com esta tecnologia, como igrejas, hospitais,

clubes, entre outros (BATISTA, 2007).

Em 1905, a prefeitura de Curitiba proibiu o uso da madeira nas construções das

principais ruas: XV de Novembro, Barão do Rio Branco e Praça Tiradentes. Um ano

depois essa lei é aplicada em todo o centro da cidade. Em 1919 os códigos de

posturas passaram a conter uma seção específica para as habitações de madeira,

como era relatado nos artigos 59 e 60:

‘’ Art. 59 – A Câmara Municipal dividirá a cidade em três zonas, podendo a

extensão das mesmas ser alterada anualmente, conforme as conveniências de ordem

geral.’’

‘’Art. 60 a – Na primeira zona, constituída pelas ruas e praças principais, só é

permitida a construção de casas cujas paredes externas sejam de alvenaria.’’

De acordo com Imaguire (1993), o uso da madeira como material construtivo possuía

um caráter discriminatório, inclusive nas posturas da prefeitura, uma vez que a

madeira se tornara barata e bastante acessível à população.

De certa forma, tais posturas passaram a impulsionar a construção de habitações em

madeira onde apenas a fachada era confeccionada em alvenaria. Assim, muitas casas

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desse tipo tiveram suas fachadas recobertas por chapas de ‘’Erkulit’’1, que é um dos

casos mais interessantes de intervenção nas casas de madeira, como mostram as

figuras 4.

Figura 4. Casa de madeira revestida com placa Erkulit: antes e depois. Fonte: Batista (2007)

Ao se comparar o antes e depois da interferência na fachada, percebem-se

nitidamente suas alterações estéticas e o sentido simbólico que assumem, onde a

casa de madeira é apontada como o elemento antigo, antiquado e interiorano,

portanto, de gosto duvidoso, enquanto a casa em Erkulit se impõe como o moderno, e

urbano, adaptável às novas edificações do entorno.

A empresa Erkulit, montada pelo austríaco Peter Petschek na década de sessenta,

apresentava seu produto com o seguinte ‘’slogan’’: “Mude sua casa sem mudar de

endereço. Com chapas Erkulit sua casa de madeira se transformará em uma linda

residência em material‘’.

Este texto traz em sua essência uma ideia depreciativa das casas de madeira: Se sua

casa foi feita em madeira, logo ela é feia! Mascare-a em alvenaria e terá uma casa

coerente com a estética contemporânea. “Linda”.

Nesse sentido, nota-se que o distanciamento das construções em madeira na cidade

de Curitiba, se deu, em partes, pelo próprio preconceito em relação ao uso desse

material. Preconceito este, incentivado pela prefeitura e propagado por empresas que

viram nesse discurso, a possibilidade de fazerem grandes negócios.

Além disso, preconceitos relacionados à construção em madeira ainda são recorrentes

na cidade de Curitiba, na medida em que contratos de compra e venda de terrenos em

condomínios fechados da cidade trazem em sua cláusula a proibição de tais

edificações.

1 ’Erkulit’’ é uma chapa composta por fibras de madeira mineralizada, que tem como função

revestir a casa para que esta fique com o aspecto de uma casa de alvenaria.

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Irã Dudeque (2001) chama a atenção para o fato de que, o próprio uso da madeira em

construções, bem como a apropriação de alguns ornatos, tem mais a ver com a

imposição do estado, do que com uma arquitetura originalmente paranaense.

...”o absoluto desconhecimento da história da legislação urbana de Curitiba fez com que, a partir da década de 60, alguns comentadores louvassem a casa de madeira como a “verdadeira” arquitetura paranaense; outros se deliciaram com a “poesia” dos lambrequins e inventariam genealogias polonesas para explica-los. mas, tanto as tipologias básicas das casas de madeira quanto os lambrequins foram impostos pela legislação. Ao louvar supostas origens culturais e étnicas, tais enganos impediram uma devastação ainda mais generalizada dessa arquitetura”.

Porém, independentemente das casas de madeira não representarem a verdadeira

arquitetura paranaense, o fato é que a falta de um debate coerente sobre sua

importância como forma de manutenção e preservação das identidades locais, só

aceleraram o processo do seu quase desaparecimento, tornando-as cada vez mais

raras na paisagem urbana curitibana. Entretanto, um olhar mais cuidadoso e curioso

sobre a cidade, pode apontar para a resistência de muitas construções tradicionais em

madeira, frente à vastidão das casas e edifícios construídos em alvenaria. Muitas

dessas casas, preservando o caráter de moradia enquanto outras são adaptadas para

funcionarem como estabelecimentos comerciais.

2. AS CASAS DE MADEIRA COMO INTERVENÇÃO NA

PAISAGEM URBANA

A partir dos anos sessenta, a ideia de espaços é ampliada com relevância, sendo que

a noção de lugar é adquirida na prática e na teoria. A interpretação e representação do

espaço ocupado na paisagem marca a transição entre a arquitetura tradicional e a

moderna.

De acordo com Montaner (2001), os conceitos de espaço e lugar podem-se definir

claramente sendo que o primeiro tem uma condição ideal, teórica, genética e

definitiva, e o segundo possui caráter concreto, empírico, existencial, articulado até os

detalhes.

Segundo a discussão de Montaner, podemos salientar a interpretação do espaço em

sua condição abstrata, lógica e científica e o espaço como lugar é definido e

condicionado pela existência concreta em função da paisagem que está inserido.

Atualmente, vários exemplares de casas de madeira exercem uma função diferente

daquela assumida originalmente, que era a de habitação unifamiliar, sendo adaptadas

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para funcionarem como estabelecimentos comerciais, tais como bares, restaurantes,

clinicas de beleza, estofarias, escritórios, entre outros, como se pode ver na figura 5.

Uma vez dotada de uma nova função, tais construções assumem também novas

configurações no espaço urbano e na paisagem local como um todo, ao mesmo tempo

em que, muitas vezes, são obrigados a se adaptarem física e estruturalmente, ao seu

novo uso, como fica claro na entrevista realizada com o arquiteto Vinícius Trevisan no

capítulo seguinte.

O arquiteto Aldo Rossi expõe uma nova proposta para se analisar a cidade. Segundo

ele, uma vez concebida uma produção arquitetônica contemporânea, que ela seja

pensada a partir do reconhecimento dos elementos urbanos do passado, identificando

estes fatos urbanos, elementos construtivos, e a preocupação com os envolvidos no

contexto da cidade, com o projeto do novo em continuidade com o espaço urbano

existente, para que haja o melhor entendimento da paisagem.

Fig. 5. Casa de madeira adaptadas para função comercial na cidade de Curitiba, sendo esta funcionando como um salão de beleza.

A história e a cultura da cidade estão diretamente ligadas à arquitetura deixada pelos

nossos antepassados, decorrentes da ocupação espacial e da evolução humana,

constituindo a cidade nos séculos passados. Algumas casas de madeira da cidade de

Curitiba, ainda resistem à especulação imobiliária por parte das grandes

incorporadoras e até mesmo do poder público, como é observado nas figuras 6.

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Fig. 6. Casas de madeira misturadas na paisagem urbana contemporânea. Bairro Alto da XV, Curitiba. Fonte: Os autores (2015)

Percebe-se que, em meio aos grandes edifícios e construções em alvenaria, algumas

casas de madeira ainda resistem ao tempo e a evolução das tecnologias construtivas.

Além disso, as casas em madeira pesquisadas para o desenvolvimento dessa

pesquisa permanecem tão conservadas quanto as demais construções em alvenarias

existentes em seu entorno.

Outro exemplo desse contraste arquitetônico são as casas localizadas em frente ao

estádio Arena da Baixada (reformado para sediar jogos da Copa de 2014), no bairro

Rebouças, em Curitiba. Apesar do entorno do estádio ter passado por mudanças

bruscas em sua paisagem, algumas casas tradicionais de madeira se mantiveram

intactas em seu lugar original, conforme figura 7.

Fig. 7. Casas de madeira misturadas na paisagem urbana contemporânea em Curitiba. Fonte: Os autores (2015)

Nesse caso, ainda que a casa perceptível do lado esquerdo da imagem assuma um

caráter comercial, não há qualquer indício de sofrer alterações estruturais ou em sua

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fachada. Já a casa do lado esquerdo da imagem ainda preserva a função de

residência.

Tais ocorrências mostram não apenas a valorização deste tipo de construção, mas

também sugere que casas de madeira tem uma interferência positiva na paisagem

urbana, permanecendo como legado dos imigrantes estrangeiros no Brasil e

principalmente no sul do país.

3. PERCEPÇÃO DO USUÁRIO E A IMAGEM POÉTICA DA

CASA DE MADEIRA.

Como já foi levantado, as casas de madeira da região de Curitiba possuem uma

arquitetura vinculada principalmente à imigração. De acordo com Batista (2007), não

há remanescentes ou documentos que comprovem a existência deste sistema

construtivo no Brasil Colonial e não há referências desta arquitetura nos países de

origem dos imigrantes. Conforme Imaguire (1993) é um sincretismo arquitetônico.

Weimer (2005) afirma que, embora muitos historiadores tenham valorizado as

construções em pedra, por manterem um vínculo com a Itália, as construções em

tábua são as mais significativas por expressarem a verdadeira dimensão da

criatividade e da capacidade de adaptação do imigrante no novo meio. Na região de

Curitiba, é muito comum vincular as construções de tábua e mata-juntas com presença

de lambrequins, aos poloneses.

O Arquiteto Abrão Assad define Lambrequim como: ‘’ Um gesto nostálgico de reviver

em nossos beirais a cristalização dos pingos de chuva de rigorosos invernos

europeus’’.

Existem exemplos de casas tradicionais em madeira que passaram por uma reforma

externa e interna para se adaptarem a novas funções de uso. Como pode ser

observado no estudo de caso realizado para essa pesquisa, junto ao arquiteto e

urbanista curitibano Vinicius Trevisan.

Trevisan concedeu a entrevista transcrita a seguir, bem como parte das imagens

apresentadas nas figuras 8 e 9. Em síntese, o arquiteto fez um retrofit de uma casa

em madeira erigida na década de 1960, para acomodar seu escritório de arquitetura, o

que gerou uma valorização desse imóvel assim como de sua carreira profissional, que

é voltada para sustentabilidade e construções em madeira.

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Fig. 8. Casa original utilizada como escritório do arquiteto Vinicius Trevisan. Rua São Pio X, 874. Bairro Ahú, Curitiba – PR.

Fig. 9. Retrofit de casa de madeira do arquiteto Vinicius Trevisan. Fonte: Os autores (2015). Acervo pessoal do arquiteto.

Em sua entrevista o arquiteto respondeu as seguintes perguntas:

a) O porquê da escolha da casa de madeira?

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‘’Foi, a princípio, por oportunidade, mas também as casas de madeira agregam

charme e história, como uma espécie de contadora de histórias – com carinho

e aconchego. ’’

b) Qual a percepção dos clientes em relação ao escritório e o retrofit executado

por você?

‘’A intervenção nesse imóvel fez com que a comunidade local percebesse o

imóvel com carinho, o que antes não era considerado. Ainda, o retrofit na casa

de madeira surpreendeu os clientes, que antes não valorizavam as edificações

com essa tipologia. Além de associar sustentabilidade à proposta.’’

c) O fato de você ter se apropriado de uma casa tradicional de madeira, trouxe

algum benefício para o seu escritório?

‘’Trouxe muitos benefícios. Passei a ser sondado como profissional que tem

como sustentabilidade o princípio de criação. Tanto que, a partir de então, fui

convidado a participar de mostras com essa proposta.’’

d) Há pontos negativos no uso de uma casa de madeira tradicional?

‘’Sim, se considerar os princípios de conforto ambiental, já que as paredes não

agregam inércia à temperatura interna. É fria no inverno e quente no verão,

além de não apresentar estrutura física para embutir equipamentos elétricos.’’

e) Quais as adaptações feitas no espaço para adequá-lo a um escritório de

arquitetura?

‘’Mudar o conceito de simplicidade e sofisticar sem descaracterizar. Ainda,

como as adaptações de lógica, telefonia, internet, TV e luminotécnica foi

intensa, precisei incorporar paredes em dry wall para garantir substrato de

embutimento. Quanto ao programa com relação ao espaço, foi muito coerente

com o que o espaço já oferecia. Os quartos se transformaram em salas e a

sala em recepção.’’

Ao analisar o discurso de Trevisan, sobre o espaço escolhido para instalar seu

escritório, fica claro entender o fascínio de muitos proprietários sobre suas edificações

em madeira.

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A imagem da casa, tais como os objetos, carregam consigo questões que vão muito

além da sua mera função. Casas são emocionais, trazem a tona lembranças, ativam

as semioses de seus usuários e admiradores.

Vinícius ilustra tudo aquilo que foi abordado nos capítulos anteriores: o uso da casa de

madeira como espaço comercial, a necessidade de adaptá-la para receber uma

clientela específica, além da opção de alterar sua fachada a fim de torná-la mais

atraente ao público externo, ainda que mantendo a configuração original da casa, sem

tentar esconder aquilo que a identifica e a torna singular, que é o fato de ser

construída em madeira.

A mudança da fachada em seu escritório, em nada tem a ver como o menosprezo pela

matéria-prima tradicional e sim com o objetivo de torná-la mais condizente com um

escritório de arquitetura.

Apesar de a fachada ser revestida em alvenaria, as laterais, assim como as paredes

internas e piso, salvo algumas alterações em dry wall, se mantiveram intactas. Além

disso, a nova fachada manteve a simplicidade típica da arquitetura original, coerente

com a proposta externa do escritório. Não há exageros!

Fig. 10. Vista lateral e detalhe interno da casa/escritório. Fonte: Os autores (2015). Acervo pessoal do arquiteto.

Entrar no escritório de Trevisan é um misto entre reviver o passado e desfrutar dos

confortos contemporâneos. Isso ocorre do ranger do piso em tábua corrida de madeira

audível na primeira pisada, às paredes em mata-juntas que insistem em se fazerem

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protagonistas. Assim, elementos da arquitetura original convivem em perfeita harmonia

com objetos e revestimentos atuais.

No dizer do profissional, a arquitetura de madeira agrega charme e história ao espaço,

mas se pode ir além, elas também possibilitam novas vivências estéticas, conforme

aponta Berriel:

A flexibilidade e facilidade construtiva soma-se a beleza gerada pelo ritmo das linhas verticais que se repetem nas superfícies, as mata-juntas que estão geralmente em primeiro plano recebem mais luz, provocando uma linha de sombra em constante transformação aso longo do dia sobre as tábuas que, associado ao ritmo dos pregos, transformam casas singelas em arranjos bem orquestrados, reproduzidas empiricamente e anonimamente por carpinteiros que já não existem. (BARRIEL, 2011, pg. 3).

As casas de madeira expostas a paisagem urbana, remetem os transeuntes aos

tempos em que a cidade era mais tranquila, mais amigável. Tempo onde a conversa

na calçada não demonstrava qualquer perigo, a não ser a inconveniência de um

vizinho chato.

Assim, tais construções encantam por sua beleza sim, mas também indicam

momentos onde a cidade era mais orgânica, tanto nas suas formas, quanto em seus

modos de usar o espaço. Um lado bucólico das “pequenas grandes cidades” difícil de

recuperar.

Avendaño (2008), ao discutir a necessidade de um olhar poético por parte dos

designers, no intuito de tornar-se um profissional mais criativo, avalia a importância de

um olhar atento sobre a cidade, sobre seus espaço e peculiaridades do entorno.

Tarefa que caberia a todos os usuários desses espaços como forma de respeitar os

elementos que constituem as identidades de cada região do país.

As casas de madeira, indiscutivelmente, traduzem parte da cultura paranaense de

forma concreta. Sua resistência, certamente não se faz por questões financeiras. Mais

que isso, elas servem como depósitos de lembranças, ainda que tentem resistir em

meio ao mar de pedras que as cidades têm se transformado.

Conforme ressalta Argan (1998), a cidade é fruto de uma história que se cristaliza e

manifesta, se caracterizando mais pelo antagonismo entre conservação e inovação, do

que propriamente por uma evolução. Certamente, aqui, não estamos tratando de um

centro histórico, mas de bairros que se unificaram ao centro, antes mesmo que as

estruturas necessárias para isso fossem instauradas.

Como as demais edificações utilizadas para ilustrar este texto, o escritório de Trevisan

está localizado em uma área próxima ao centro da cidade, para não dizer colada, local

onde ainda se vê preservado um misto de bairro e cidade grande. Indícios de que a

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arquitetura do passado pode conviver harmoniosamente com a produção arquitetônica

contemporânea.

Em seu texto Arquitetura e Cultura, Argan expõe que a cidade é o melhor aparato de

medição entre cultura de classe e a cultura de massa, sendo ela a única capaz de

garantir o caráter democrático daquilo que será a nova estrutura – de massa - da

sociedade e da cultura. Porém, deixa claro que essa missão pertence primordialmente

aos arquitetos, talvez os únicos capazes de organizar as cidades, levando em

consideração tanto a inovação necessária e indispensável, quanto seu aspecto

histórico e identitário.

REFERENCIAS

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Martins Fontes, 1998.

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Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design. AEND, 2008.

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BERRIEL, Andréa. Tectônica e poética das casas de madeira. Curitiba:

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