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Aline Ribeiro e Hudson Corrêa A bala e sangue, a maior facção criminosa do Brasil ataca com u ÁREA DE DISPUTA A fronteira Brasil- Paraguai entre Ponta Porã e Pedro Juan Caballero. A chegada da facção paulista transformou o crime organizado na região OBSERVADOR DO CRIME 60 13/07/2017 14:56:10

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Aline Ribeiro e Hudson Corrêa (texto), Adriano Machado (fotos)

A bala e sangue, a maior facção criminosa do Brasil ataca com u m audacioso lance de expansão no tráfico internacional de drogas

área de disputa A fronteira Brasil-Paraguai entre Ponta Porã e Pedro Juan Caballero. A chegada da facção paulista transformou o crime organizado na região

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Em uma série de três reportagens, ÉPOCA mostra o avanço do

crime organizado brasileiro no país vizinho

Aline Ribeiro e Hudson Corrêa (texto), Adriano Machado (fotos)

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Semanas depois, em 15 de junho do ano passado, Rafaat foi assassinado com 16 tiros de uma metralhadora calibre .50, artefato de uso militar capaz de derrubar pequenas aeronaves. Sua morte, numa emboscada, destravou o caminho para o PCC se instalar no país vizinho e do-minar um negócio milionário de tráfico de armas e drogas que usa o Paraguai como entreposto e tem o Brasil como um dos destinos finais. Com mais de 26 mil integrantes, presente nos 27 estados, o PCC é a maior organização criminosa do Brasil. Movimenta cerca de R$ 240 milhões por ano, de acordo com estima-tiva de promotores do Ministério Públi-co do Estado de São Paulo, e mantém negócios ilegais em oito países da Amé-rica do Sul. Com mais de 20 anos de existência, controla os presídios de São Paulo e de vários outros estados. Há al-gum tempo isso passou a ser pouco, e a facção hoje comanda boa parte do trá-fico de drogas no Brasil e para o exterior.

Estabelecer-se como força dominan-te no Paraguai foi seu mais ousado lance de expansão em anos. O Paraguai é es-sencial ao esquema criminoso da facção. É um dos cinco mais importantes for-necedores de maconha do mundo, se-gundo o World drug report 2016, relató-rio produzido pelo braço da ONU para Drogas e Crime (UNODC). O clima e o solo do país são favoráveis ao cultivo. De

lvo de um atentado frustrado semanas antes, o tra-ficante Jorge Rafaat Toumani estava apreensivo quando chegou à loja de pneus, um de seus negócios de fachada em Pedro Juan Caballero, no Paraguai, numa tarde de maio do ano passado. Sabia que es-tava marcado para morrer. Contudo, tinha a vã es-perança de que uma atitude incomum – pedir ajuda à lei – salvasse sua vida. Numa conversa de menos

de dez minutos com um agente da Polícia Federal brasileira, o rico, temido e cruel chefe do crime organizado mostrava-se desesperado com a investida do PCC, o Primeiro Comando da Capital, para do-minar o narcotráfico na fronteira do Brasil com o Paraguai. “Os caras querem me matar, então vou me armar ainda mais. A guerra está declarada”, disse ao interlocutor. Num pedaço de papel, Rafaat anotou números de celular, rotas e nomes de fazendas usados pelo PCC. Entregou ao policial e pediu que monitorasse aqueles telefones a fim de conhecer, um a um, seus inimigos. Não adiantou.

cinco anos para cá, os produtores locais adotaram em larga escala o plantio da maconha transgênica: uma semente geneticamente modificada que reduziu o tempo de colheita, de 180 dias para 90 dias, e fez explodir a produtividade. A fiscalização pífia, a corrupção e a impu-nidade facilitam o resto.

Há mais. Por sua localização geográ-fica, o Paraguai funciona como base do tráfico da cocaína produzida na Bolívia, Peru e na Colômbia. Em solo paraguaio a droga é preparada e distribuída para o Brasil e países da África e da Europa. “Os traficantes brasileiros encontraram no Paraguai uma meca do narcotráfico”, afirma o senador Roberto Acevedo, pre-sidente do Parlamento paraguaio. “Não só pela fronteira seca, mas pela facilida-de de lavar dinheiro. Só Pedro Juan tem mais de 70 casas de câmbio, tudo a ser-viço do narcotráfico. Sem contar a polí-cia corrupta.” Segundo o setor de inteli-gência da Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) do Paraguai, desde a morte de Rafaat, há um ano, o PCC dobrou o trá-fico aéreo de cocaína trazida da Bolívia, de 2,5 para 5 toneladas por mês. A esti-mativa é que arrecade US$ 3,5 milhões por semana só com esse braço.

Obstáculo até o ano passado, Rafaat atuava como dono do poder paralelo na fronteira que une Pedro Juan Caballero, cidade de 140 mil habitantes, e Ponta

o inimigo O traficante Jorge Rafaat Toumani e a metralhadora antiaérea usada para matá-lo. Ele foi assassinado por brigar com os criminosos

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Porã, Mato Grosso do Sul, cuja popula-ção não chega a 88 mil. São cidades gê-meas, separadas por uma rua, onde a sinalização falha provoca nos visitantes uma constante confusão de estar ora num país, ora noutro. Sinal inequívoco, no entanto, é que no lado paraguaio ho-mens com armas de grosso calibre guar-dam a entrada do comércio. As ruas são tomadas pelo vaivém de enormes cami-nhonetes blindadas e motoqueiros sem capacete. Em lojas especializadas, armas são oferecidas com naturalidade. Um

o PCC gastou CerCa de

us$ 1 milhão e usou até uma

metralhadora antiaérea

Para matar rafa at, o dono

do tráfiCo na fronteira

forasteiro, ali, nunca passa despercebido – em especial pelos traficantes, que ofe-recem droga à luz do dia. Nesse ambien-te, Rafaat reinava. “Ele não era só um traficante, era o dono do pedaço. Nin-guém podia abrir ou fechar uma loja sem a autorização dele”, diz um delegado de polícia de Mato Grosso de Sul.

Rafaat dispunha de um complexo serviço de inteligência para controlar a fronteira. Contava com um sistema de câmeras em pontos estratégicos da cidade. Cultivava uma ampla rede de s

Fotos: reprodução

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informantes. Tinha uma maleta espiã capaz de fazer escutas telefônicas sem passar por operadoras – equipamento usado por unidades de elite dos Estados Unidos e da Europa. “O Rafaat não queria deixar o PCC chegar para não ter concorrência. Se ficava sabendo de uma casa cheia de PCC, mandava inva-dir. Fazia abertamente, sem esconder de ninguém”, diz outro delegado. “Ele perseguia, punha para correr e manda-va matar”, afirma. Segundo uma auto-ridade paraguaia, Rafaat não só enco-mendava a morte dos inimigos, como também mandava recados incisivos. Ordenava aos capangas que costuras-sem ou colocassem um cadeado na boca da vítima se essa, quando viva, tivesse falado demais.

de saColeiro a rei da fronteira

Rafaat era filho de uma paraguaia com um brasileiro de origem libanesa, uma família tradicional de comerciantes em Ponta Porã. Os pais vendiam bugi-gangas e eletroeletrônicos numa lojinha de meia-porta na cidade. Ele cursou Di-reito numa universidade particular em Dourados, a cerca de 120 quilômetros dali, na mesma turma do atual secretário de Justiça e Segurança Pública de Mato Grosso do Sul, José Carlos Barbosa, o Barbosinha. Com a falência dos negócios da família, Rafaat virou sacoleiro. Que-brou com o Plano Real, sumiu, voltou quatro anos mais tarde esbanjando di-nheiro. Adquiriu casas e fazendas, além de duas universidades de medicina, duas lojas de pneus, posto de combustível e uma empresa de segurança, tudo usado para lavar dinheiro. “Aqui em Pedro Juan não havia investigação contra Rafaat”, afirma o promotor Martin Areco, de Pe-dro Juan Caballero. “Nós o tínhamos como fazendeiro e comerciante.” Rafaat vivia como um cidadão comum da alta sociedade paraguaia. Ostentava relógios caros, carrões e aviões, andava escoltado por um comboio de pelo menos três veí-culos, com seguranças e armas de grosso calibre, inclusive fuzis AK-47. Para sus-tentar a imagem de filantropo, mantinha um abrigo para moradores de ruas.

Rafaat – ou Saddam, ou Turco, seus codinomes no crime – foi processado

por contrabando, resistência e corrupção ativa nos anos 1980. Entrou no radar das autoridades brasileiras por suspeita de tráfico pela primeira vez em 1999. Ao interceptar os telefones da loja e da casa de Rafaat, agentes da PF identificaram um padrão nas conversas: “Os bois che-garam? Quantos são?”, perguntava Rafaat, que não era pecuarista. Os policiais fo-ram até uma propriedade dele e encon-traram um jipe Willys cheio de itens usados no preparo de cocaína: fita-crepe, bacia, peneira, lanternas e papel celofane. “A gente sabia que os bois eram a droga, mas não tinha nada concreto contra ele. Não conseguimos pegá-lo”, diz um dos agentes presentes na ocasião. No ano

ameaças Carro-forte usado em tentativa de matar Rafaat e alguns de seus seguranças em treinamento. Ele sabia que estava jurado de morte pela facção brasileira e se protegeu. Não adiantou

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pequenos aviões. Os pilotos saíam da fronteira de madrugada, aterrissavam com a mercadoria no interior de São Paulo e, de lá, era feita a distribuição.

O império carioca durou até a prisão de Beira-Mar na selva colombiana, em 2001. Com sua queda, o caminho ficou livre. Em 2005, uma reunião na mansão de um advogado paraguaio no centro de Pedro Juan Caballero marcou a entrada do PCC no Paraguai. Na época tido como o homem forte da facção paulista, César Veron, o Cezinha, conduziu a con-versa. “Queremos trabalhar, não quere-mos zoada”, disse na ocasião. “Não que-remos chamar a atenção para a fronteira.” Ao encontro compareceram em torno de 15 pessoas, entre forasteiros e trafi-cantes locais. Rafaat era um dos presen-tes. Como é de praxe na conduta do PCC, a organização convocou a conver-sa para impor suas regras. Liberou os traficantes a continuar tocando seus negócios de forma independente, desde que silenciosamente. Informou que, para isso, todo “serviço sujo” seria feito pela facção e que os locais deveriam dispensar seus pistoleiros. A reunião s

rafa at Pediu ajuda de um agente da PolíCia federal Para tentar se livrar das ameaças da faCção brasileira

seguinte, a polícia deu mais sorte. Em 21 de junho de 2000, a Polícia Federal cum-priu um mandado de busca e apreensão na Fazenda São Rafael, da família de Rafaat. Os agentes reviraram a sede, mas não encontraram nada. Até que um dos delegados subiu uma escada e descobriu escondidos no forro 1.900 gramas de cloridrato de cocaína, 170 gramas de cocaína e 880 gramas de bicarbonato de sódio, usado na transformação da pasta- base em crack. Era pouco, mas o bastan-te para reforçar a ligação de Rafaat com o tráfico de drogas.

O episódio, entre outros tantos que acabaram resultando na condenação e na prisão de Rafaat durante três anos, está descrito numa sentença dada pelo juiz Odilon de Oliveira, um dos magis-trados mais rigorosos no combate ao narcotráfico no Brasil. O calhamaço de 744 páginas cita encontros de Rafaat com membros das Farc colombianas e da ’Ndrangheta, a máfia da Calábria. Descreve, com riqueza de documentos (fotografias, planos de voos e notas fis-cais), como Rafaat foi implicado no trá-fico de duas grandes cargas de cocaína: 488 e 492 quilos. Em 2014, Rafaat foi condenado pelo juiz Oliveira a 47 anos de prisão por tráfico de drogas, associa-ção para o tráfico e lavagem de dinheiro. Um habeas corpus do Tribunal Regional Federal da 3a Região, entretanto, lhe per-mitia responder em liberdade.

o tráfiCo brasileiro no Paraguai

A primeira facção criminosa brasilei-ra a entrar no Paraguai foi a carioca Co-mando Vermelho (CV), no final da dé-cada de 1990. Naquele tempo, o sotaque arrastado e a cor de pele mais escura que a dos locais despertaram curiosidade – e colocaram a polícia em alerta. Em 1997, o traficante Fernandinho Beira-Mar fu-giu de um presídio em Belo Horizonte para a região. A maconha até então do-minava o comércio ilegal e a cocaína era um produto de menor escala no país. Beira-Mar se associou a um importante produtor da região, a família Morel, e começou a mandar maconha e cocaína para o Rio de Janeiro e São Paulo. Pri-meiro por terra, escondendo a substân-cia em caminhões; depois por ar, usando

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durou pouco mais de uma hora. Cezinha foi preso tempos depois, mas a organi-zação já tinha se estabelecido.

o inimigo erradoRafaat e o PCC nunca foram aliados,

tampouco eram inimigos declarados; conviviam comercialmente no bruto, mas de equilíbrio delicado, mundo do crime organizado. O acordo entre eles azedou em agosto de 2014. Uma opera-ção conjunta da Senad paraguaia com a poderosa DEA, a agência antidrogas dos Estados Unidos, confiscou uma carga de 847 quilos de cocaína pura – a terceira maior apreensão da história do Para-guai. A droga estava escondida em sacos de arroz num contêiner, embalada em tabletes retangulares e identificados com um selo de escorpião, a marca de Rafaat. Segundo estimativas da Senad, depois de misturada, a cocaína valeria, na Áfri-ca, cerca de US$ 70 milhões.

Com suas rotas e estratégias expostas e as finanças desfalcadas, Rafaat ficou perto da falência. Decidiu ampliar os horizontes. Até então, ele comprava maconha e cocaína de produtores pa-raguaios, bolivianos e colombianos e vendia exclusivamente para Europa e África. Enquanto isso, PCC e CV ad-quiriam a mercadoria de um poderoso aliado na fronteira – o traficante Jarvis Chimenes Pavão – para abastecer o Bra-sil. Abalado pela perda milionária, Rafaat decidiu se arriscar em solo ini-migo: expandiu sua área de atuação para o mercado brasileiro. Não imagi-nava que seria esse seu maior erro.

A notícia não caiu bem nas facções, principalmente para o jovem paulista Elton Rumich da Silva, de 33 anos. Co-nhecido pelo apelido de Galã, ele é o atual número um do PCC na fronteira. É Galã quem negocia a droga e a despa-cha para o Brasil. Ele foi tirar satisfações com Rafaat. Criminoso experiente, Ra-faat se defendeu atacando: acusou Galã de usar fazendas paraguaias para receber a cocaína arremessada de seus aviões, sem pagar aos proprietários. Os dois dis-cutiram. Como bandidos não recorrem à Justiça para dirimir disputas comer-ciais, declararam guerra um ao outro. Em fevereiro do ano passado, Galã pro-curou o aliado Jarvis Pavão, veterano

criminoso conhecido na fronteira Brasil--Paraguai, para falar sobre o assunto. Pavão vive no Paraguai desde 2000, quando sua prisão foi decretada no Bra-sil. Foi preso lá apenas em 2009 e, até 2016, ficou hospedado no presídio de Tacumbu, em Assunção. “Não sou do PCC. Só por que falo ‘ermão’ dizem isso de mim? Nada a ver”, disse a ÉPOCA em setembro de 2011, sentado à vontade na cadeira do diretor da unidade.

Numa masmorra chamada de “cemi-tério dos vivos”, onde a maioria não tem cela nem comida, Pavão dormia em uma cela grande com mesa de reunião, gela-deira, forno micro-ondas, box no banhei-ro, closet, TV de LED, ar-condicionado, aparelhos de ginástica, cortina impeca-

velmente branca, livros e DVDs – entre eles uma série sobre o traficante colom-biano Pablo Escobar. Na ocasião, ÉPOCA entrou na prisão com o consentimento de Pavão, sem falar com nenhuma auto-ridade. Foi numa reunião nesse presídio- escritório que Galã, Pavão e um represen-tante do Comando Vermelho, ainda não identificado pela polícia, discutiram a questão Rafaat. “Ali foi sacramentado o plano de execução de Rafaat”, afirma um agente da Polícia Rodoviária Federal (PRF) com mais de 20 anos de experiên-cia no combate ao crime organizado.

Até então inabalável, a autoconfiança de Rafaat resvalou em temor no começo de março de 2016. Era perto do meio- dia, e ele almoçava em sua casa em Pedro

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desavisado foi atingido e morreu. Du-rante a fuga, os criminosos abandona-ram o furgão e se embrenharam numa mata. O veículo e um fuzil foram en-contrados mais tarde.

Rafaat começou, então, sua peregri-nação desatinada por proteção. Além da conversa com o policial federal em sua loja de pneus, contratou uma empresa polonesa de segurança, a European Se-curity Academy, para treinar seus ho-mens – em valores atuais, o curso esco-lhido custa e 1.400 por cabeça. Procurou o terceiro homem mais importante na linha sucessória do Paraguai, o senador Roberto Acevedo, presidente do Parla-mento, para pedir que interviesse a seu favor. Queria que Acevedo usasse seu poder político para trocar o chefe da Polícia Nacional do Paraguai, de quem desconfiava. Não foi atendido. A proxi-midade, entretanto, rendeu-lhe um es-paço na programação da rádio de Ace-vedo dias depois. Em 30 minutos de entrevista, Rafaat falou três vezes do preparo de seus seguranças. “Trouxe uma agência da Europa para dar treina-mento de inteligência, de como se de-fender e de como atacar, quando neces-sário atacar. Eles estão preparados para tudo”, afirmou. Foi uma de suas últimas demonstrações públicas de força.

Como a tentativa de assassinar Rafaat com o carro-forte falhou, PCC, Coman-do Vermelho e Pavão planejaram uma segunda investida. O vídeo de uma câme-ra de segurança marcava 18h44 quando um Toyota Hilux prata parou num cru-zamento de Pedro Juan Caballero, em 15 de junho do ano passado. O veículo es-perou ser alcançado, propositadamente, por um Hummer preto escoltado por três carros. Rafaat estava dentro do Hummer. De repente, a porta traseira do Hilux se abriu e disparou uma rajada de balas. A rua se iluminou com os tiros. A metra-lhadora .50 foi usada para perfurar a gros-sa blindagem do Hummer, em um pro-cedimento digno de ataques perpetrados em zonas de conflito armado como Ira-que e Afeganistão. Os capangas de Rafaat, armados com pistolas automáticas e fuzis, não tiveram nenhuma chance diante dos mais de 100 tiros disparados contra ele. A batalha durou dez minutos. Aos 56 anos, Rafaat morreu com 16 tiros, quase

todos na cabeça. Entre arsenal, logística e pistoleiros, a operação custou, segundo estimativas do serviço de inteligência da Senad, US$ 1 milhão. É um investimento inédito para o PCC no combate a inimi-gos – e uma demonstração clara de quan-to Rafaat atravancava seus negócios e quão promissores eles eram.

Cuidadosos no planejamento, os cri-minosos usaram o carro de um conheci-do de Rafaat na operação. O Hilux prata pertencia a um vereador de Pedro Juan Caballero, cooptado pelos bandidos. A ideia era que Rafaat não desconfiasse do veículo. O político não foi o único infiel. Rafaat foi traído por seu braço direito no crime, responsável por coordenar sua se-gurança, cuja identidade é mantida em sigilo pela polícia. Rafaat conheceu o fu-turo traidor por volta dos anos 2000, era seu aluno numa academia. À medida que ganhavam proximidade, o homem ex-pandia suas funções na organização: co-brava dívidas, cuidava da assessoria jurí-dica de integrantes do bando presos e emprestava contas a Rafaat para lavar dinheiro. De acordo com policiais, meses antes do assassinato, ele começou a s

Com o Paraguai, a organização Conquistou um merCado fundamental Para CresCer no tráfiCo de drogas na amériCa do sul

Juan Caballero quando seus seguranças notaram uma movimentação estranha na rua. Rafaat saiu e avistou um veículo azul, semelhante a um carro-forte – sa-beria, mais tarde, que se tratava de um furgão blindado com três criminosos fortemente armados dentro. Assim que seus homens se aproximaram, o furgão arrancou. Durante a perseguição, a Po-lícia Nacional do Paraguai se juntou aos seguranças do traficante e trocou tiros com os bandidos. O carro-forte, então, atravessou para o lado brasileiro, em di-reção ao aeroporto de Ponta Porã. Tanto a polícia quanto os companheiros de Rafaat hesitaram em cruzar a fronteira porque suas armas não eram registradas no país. Um motociclista que passava

aliado O traficante Jarvis

Pavão em Tacumbu. Ele só ia à cela, de luxo, para dormir.

Numa sala, planejou com o PCC e o CV

a morte do adversário Rafaat

Foto: rogério Cassimiro/ÉpoCa

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planejar a arapuca. Vendeu uma proprie-dade e mandou a família para Campo Grande, de modo a romper os vínculos com Ponta Porã. No dia do atentado, não estava no comboio que escoltava Rafaat. “Ele se aliou a Pavão e armou o bote para matar o Rafaat. Agora está bamburrado no dinheiro. Comprou um apartamento de R$ 3 milhões, dois terrenos numa área nobre, Hilux para a mulher. Está com se-gurança de dois policiais da PM de alta patente”, afirma um agente da PF. “O erro do Rafaat foi não se tocar de que o PCC, além de ser forte, tem o Pavão por trás.”

o silênCio que PredominaPassado um ano da morte de Rafaat,

seu nome ainda provoca desconforto, em especial às autoridades que tentam desvendar o assassinato. Uma delas bai-xava o tom de voz ao mencionar o tra-ficante. Outra o suprimia do meio de suas frases. Uma terceira fugiu do local da entrevista. A conversa com o chefe da Senad em Pedro Juan Caballero, Nel-son López, havia sido agendada com antecedência por ele mesmo. Às 16 ho-ras de uma quinta-feira de maio, chega-

Lima dos Santos. No dia 16, o MP para-guaio acusou formalmente Santos de homicídio doloso, infração à lei de armas e associação criminosa. De acordo com a Polícia Federal, Santos é ex-militar no Brasil e integrante do Comando Verme-lho. Na noite da execução, ele apareceu num hospital em Pedro Juan com um enorme rasgo no queixo. Negou a par-ticipação, mas não soube explicar o fe-rimento. Um policial brasileiro afirma que o machucado foi provocado pelo “coice” da metralhadora .50 no momen-to do fuzilamento de Rafaat. Segundo uma autoridade paraguaia, depois do atentado Santos foi levado ferido para a casa da filha do traficante Jarvis Pavão. Receosa de que Santos fosse preso, ela

a Conquista do Paraguai levou a uma guerra entre o PCC e o Comando vermelho que Produz reflexos nos Presídios brasileiros

mos ao prédio afastado a uns 20 minu-tos da cidade, uma fortaleza com cercas e muros altíssimos. Lacônica, uma es-pecialmente sisuda agente da Senad disse que López havia saído sem previ-são de retornar. Diante da insistência, ela entregou uma folha com estatísticas de apreensões de drogas, mostrou foto-grafias de laboratórios e alguns vídeos. Ao ser perguntada se há alguma inves-tigação sobre Rafaat, ela respondeu: “A Senad só investiga tráfico de drogas”. Mas o Rafaat não era traficante? “São vocês que estão dizendo...”

A investigação sobre a morte de Rafaat foi transferida para Assunção, capital do Paraguai. No país vizinho, o prazo-pa-drão para terminar uma averiguação é de seis meses, excepcionalmente prorro-gáveis por mais seis – caso de Rafaat. Ao longo de um ano, o trabalho pouco avan-çou no que diz respeito a interrogatórios, provas e testemunhas. O Hilux prata usado no crime foi encontrado horas depois do atentado numa casa em obras, com a metralhadora .50 dentro. Segundo moradores, a propriedade é de familiares do traficante Jarvis Pavão, o parceiro do PCC na empreitada. Os promotores fo-ram até lá para coletar evidências dessa ligação e encontraram sinais de que, an-tes da ação, um grupo havia se reunido ali. “Tinha caixas de pizza, refrigeran-tes... O local pode ter funcionado como ponto de encontro dos criminosos”, afirma o promotor Martin Areco, que cuidou da primeira etapa da investiga-ção, conduzida em Pedro Juan Caballero. O MP procurou um engenheiro da obra para tentar relacionar a propriedade a Pavão. Sem sucesso. Por falta de provas, nem Pavão nem Galã, do PCC, figuram no processo, segundo Areco. A advo-gada de Pavão, Laura Casuso, nega que ele tenha envolvimento na morte de Rafaat. Pavão “se negou a ajudar o Jor-ge nas últimas brigas dele e, finalmen-te, ocorreu o que ocorreu”, diz.

Oito seguranças que acompanhavam Rafaat no episódio de sua morte ficaram presos por cerca de seis meses. Recorre-ram à segunda instância da Justiça para-guaia e hoje respondem, em liberdade condicional, por posse de armas. O úni-co suspeito do crime que permanece preso em Assunção é o brasileiro Sérgio

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telefonou para um médico e solicitou atendimento domiciliar. Ofereceu US$ 150 mil pelo serviço. Como não deu cer-to, Santos precisou ser encaminhado para o hospital. Em setembro do ano passado, o Ministério Público comparou o DNA da mancha avermelhada deixada no banco do Hilux com o sangue de San-tos. O resultado ainda não foi revelado. “O processo ficou paralisado alguns me-ses. Agora que a acusação saiu, vou con-vocar uma audiência para resolver a si-tuação jurídica dos réus”, afirma o juiz do caso, Edgar Ramirez. A família de Rafaat não quis falar com ÉPOCA.

A operação milionária, vantajosa e barulhenta para matar Rafaat abriu um grande mercado, mas gerou uma nova

guerra para o PCC. A relação com o Co-mando Vermelho ficou estremecida. As facções costumavam ser parceiras nos negócios. Não só compravam do mesmo fornecedor, como também despachavam a droga da fronteira para seus respectivos estados num mesmo carregamento. O caminhão parava em São Paulo, descar-regava parte da mercadoria e depois se-guia para o Rio de Janeiro. Depois da morte, algum acerto não cumprido, ainda desconhecido, contribuiu para que as organizações rompessem. “Hoje cada uma tem sua lavoura e ambas estão em terras demarcadas: Capitán Bado é PCC, Paranhos é CV, Pedro Juan é PCC, Aral Moreira é CV”, afirma um agente da Po-lícia Rodoviária Federal. A cisão não fi-

cou restrita ao Paraguai – o sangue e a barbárie explodiram no Brasil. Desde o final do ano passado, “salves” que corre-ram presídios provocaram 11 rebeliões, resultando em pelo menos 150 mortes, com episódios repulsivos como homens sendo degolados como animais por per-tencerem à organização criminosa rival.

Nas ruas de Pedro Juan Caballero e Ponta Porã, a invasão do PCC criou um clima de pânico nos dias seguintes à morte de Rafaat. O asseclas do então rei da fronteira se arregimentaram para vin-gar a morte do chefe. No acerto de con-tas, pelo menos 30 criminosos dos dois lados da briga foram assassinados em diferentes episódios. Partes de um corpo esquartejado foram desovadas perto da pista do aeroporto da cidade brasileira. O irmão de Pavão foi assassinado bru-talmente quando saía da academia. “A gente costuma brincar que só morre de bala perdida aqui quem é muito azarado: com 14, 15 balas perdidas... Bala perdida aqui tem endereço”, afirma um delegado. A matança acabou banalizada.

Novos integrantes do PCC não param de chegar ao Paraguai. Em abril, a facção realizou um mega-assalto a uma empre-sa de transporte de valores de Ciudad del Este, que mobilizou 50 homens com armas e explosivos e rendeu US$ 11,7 milhões ao bando. Segundo um policial federal brasileiro, foi Galã quem plane-jou o crime. Há o temor de que ações assim se multipliquem e a fronteira se torne, no futuro, uma espécie de narco-estado que nem Brasil nem Paraguai consigam controlar. “Quando prende-mos dez, vêm 20. Quando prendemos 20, vêm outros 30”, diz o promotor pa-raguaio Samuel Valdez. Até mesmo nas cadeias regionais o PCC se revelou mais audacioso. O diretor de uma penitenci-ária de Mato Grosso do Sul resume o novo estado de espírito da facção: “Antes, a gente não conseguia identificar quem era PCC. Eles ficavam na miúda, tinham medo dos outros. Quando Rafaat mor-reu, estufaram o peito. Como quem dá um recado: a partir de agora, a cadeia é nossa”. No Brasil, começou assim. De força dominante nos presídios, o PCC evoluiu para as ruas. O assassinato do concorrente Rafaat mostra o tamanho de sua disposição no Paraguai. u

sem medo AIa destinada a

presos do PCC no presídio de Dourados,

Mato Grosso do Sul. Após o assassinato

de Rafaat, eles mudaram de

postura na cadeia

Foto: adriano machado/ÉpoCa

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A indústria das drogas na fronteira Brasil-Paraguai transforma índios e m viciados, escravos e até em traficantes filiados a uma facção criminosa

o b s e r va d o r d o c r I m e

sem futuro Crianças guaranis-caiovás brincam em aldeia na fronteira com o Paraguai. A etnia sofre com a escassez de terra, suicídio, alcoolismo e, mais recentemente, com a chegada dos traficantes

Hudson corrêa e aline ribeiro (texto), adriano machado (fotos)

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00 de janeiro de 2017 I época I 39

A indústria das drogas na fronteira Brasil-Paraguai transforma índios e m viciados, escravos e até em traficantes filiados a uma facção criminosa

Em uma série de três reportagens, ÉPOCA mostra o avanço do

crime organizado brasileiro no país vizinho

Hudson corrêa e aline ribeiro (texto), adriano machado (fotos)

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indígena C. assistia a um jogo da Copa do Mundo quando apareceu uma oferta de trabalho tão imprevisível quanto a partida, na qual iranianos apertavam argentinos naquela tarde de sábado de 2014. O “homem branco” que bateu a sua porta falava guarani – língua comum a índios e para-

guaios – e disse que lhe pagaria R$ 40 por dia pelo plantio de eucalip-to no Paraguai, cuja fronteira fica a 40 quilômetros dali, a aldeia Limão Verde, em Mato Grosso do Sul. Ele partiria imediatamente, era pegar ou largar. A área da Limão Verde é de 660 hectares para 1.600 guaranis--caiovás, o que dá o equivalente a apenas meio campo de futebol para cada um plantar e criar gado. Como C., a maioria sobrevivia do tra-balho fora da terra indígena, mas a mecanização do corte da cana pelas usinas deixou ao menos 200 desempregados. Aos 40 anos, com quatro filhos para sustentar, ele não pensou duas vezes.

Colocou algumas roupas na mochi-la, mal se despediu da família e subiu na carroceria do Saveiro branco, onde já estavam outros sete índios. O trans-porte ilegal na carroceria não encon-trou polícia na rodovia que leva a Co-ronel Sapucaia. Chegando lá, bastou atravessar uma rua para entrar em Ca-pitán Bado, cidade paraguaia que o juiz federal Odilon de Oliveira – expoente no combate ao narcotráfico – chama de a “capital mundial da maconha”, tama-nha a produção da droga. O Saveiro parou e os índios pularam para um Toyota Hilux, que se embrenhou Para-guai adentro. Por volta de 1 hora da manhã, os índios desembarcaram no

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meio do mato. Percorreram 1 quilôme-tro e meio por uma trilha rasgada no milharal. Pularam cerca, andaram mais um pouco, até que encontraram dois homens armados que vigiavam um grupo de índios brasileiros, a maioria adolescentes entre 12 e 14 anos. Não havia plantio algum de eucalipto. “Aqui é o serviço, a colheita de maconha”, disse o patrão paraguaio.

Logo no primeiro dia, C. percebeu que a lida era trabalho escravo. A jorna-da começava às 5h30 e acabava às 21 horas. Cozinhavam o almoço numa mesma panela, que primeiro recebia fei-jão, depois arroz, macarrão e por fim banha de vaca – e nem sempre a goro-

roba indigesta era suficiente para todas as 120 pessoas, grande parte índios bra-sileiros dos municípios de Amambai, Coronel Sapucaia, Antônio João e Caa-rapó, na região de fronteira. Como ban-deirantes do século XVII, dez homens armados com rifles e pistolas vigiavam o cativeiro onde índios no século XXI trabalhavam sob o regime abolido (com enorme atraso) no século XIX. Os tra-balhadores dormiam ao pé das árvores na falta de espaço no barracão armado no meio da mata. Durante o dia, era ali que C. e outros índios manipulavam as flores de maconha, esmigalhadas depois sobre uma mesa. O material triturado ia então para a prensa ganhar o formato de table-tes. Só numa noite, os índios carregaram uma caminhonete com 3.500 quilos.

C., seus companheiros de infortúnio e centenas de outros índios que passam por isso participam do processo que faz do Paraguai um dos cinco mais impor-tantes fornecedores de maconha para o mercado internacional, de acordo com dados da ONU. A área onde C. esteve faz parte do território hoje dominado pelo PCC, o Primeiro Comando da Ca-pital, a maior organização criminosa do Brasil, que avança no Paraguai desde que eliminou o traficante Jorge Rafaat Toumani, em 2016, como ÉPOCA mos-trou na semana passada. Lá são produ-zidas algumas das toneladas de maco-nha que a facção envia para o Brasil e outros países, num negócio que movi-menta mais de R$ 240 milhões. Na cul-tura da planta que se transforma em um produto ilegal, o trabalho – por óbvio – não é legalizado, não segue regras. Os índios – até mesmo crianças – ficam à mercê de criminosos profissionais.

Sem notícias após oito dias, as mu-lheres de C. e de seus colegas índios procuraram o capitão da aldeia, como é chamado o líder dos guaranis-caiovás. Nelson Castelão tinha experiência em detectar malvadezas contra seu povo. Ligou para o número de celular que o contratante deixara de contato. O ho-mem disse em guarani que estava tudo bem, que em breve enviaria para as mu-lheres o adiantamento semanal dos maridos. Mais alguns dias sem notícias, e Castelão comunicou o desapareci-mento à Funai, Fundação Nacional do

Índio, que alertou a Polícia Federal. Já circulavam informações sobre o alicia-mento de índios nas aldeias Amambai, próxima à Limão Verde, e Taquaperi, em Coronel Sapucaia, a 40 quilômetros dali, para trabalhar na colheita de ma-conha. A Polícia Federal conseguiu con-tatar um índio que fugira do cativeiro. Ele contou que os trabalhadores eram forçados a fumar maconha, além de trabalhar na colheita, e deu indicações de onde ficava a fazenda. A partir das informações da PF, a polícia paraguaia fez uma operação em Capitán Bado e resgatou oito índios da aldeia Amam-bai. Mas nem sinal de C. e seus compa-nheiros da Limão Verde. Poucos dias depois, Castelão recebeu uma ligação. “Você aguarde, espere que nós vamos aparecer aí na sua casa, viu?”, disse um homem. “Mandou polícia atrás de nós, né?” O aliciador registrara o número do capitão no celular.

A polícia paraguaia chegou por volta das 4 horas da manhã ao acampamento onde C. e os outros guaranis-caiovás es-tavam havia 15 dias. Assustados com o tiroteio, eles se esconderam na mata, s

reservas indígenas na fronteira do brasil com o paraguai se tornaram territórios livres para a atuação de traficantes

escravo O índio C. em sua aldeia, na fronteira Brasil-Paraguai. Chamado para trabalhar no plantio de eucalipto, ele trabalhou como escravo no cultivo da maconha no Paraguai

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de onde avistavam a fumaça negra que exalava da plantação incendiada pelos policiais. Por volta das 10 horas, criaram coragem para voltar ao acampamento. C. encontrou suas roupas queimadas. Os seguranças armados transferiram os ín-dios para outra área de plantio. “Obriga-ram a gente a correr igual cavalo por cada brejo, que nossa! A água ficava por cima da cintura. Perdemos roupas e sapatos no caminho”, diz C., que chegou descal-ço à nova lavoura. Um dos homens lhe deu uma pistola para vigiar o grupo, mas sua intenção era fugir assim que clareas-se. Chamou os outros índios da Limão Verde para acompanhá-lo. Mais velho, João Ferreira disse que não conseguiria segui-los e ficou no cativeiro. Os fugitivos chegaram à estrada no meio da tarde. Um camponês arrumou chinelos para C. Mais adiante, um guarda do cativeiro se aproximou de moto e pediu a pistola de volta. C. sacou a arma da cintura, retirou as balas e a devolveu. Na tarde seguinte, quando chegaram à sede da fazenda onde havia plantação de maconha, passava o jogo do Brasil com a Alemanha pela Copa, o inesquecível 7 a 1.

Por cinco dias, os índios ficaram em um quartinho e sem acesso a banheiro. Cansados de esperar por transporte de volta, eles caminharam dois dias enfren-tando chuva e fome. Já próximos da fronteira, o motorista de uma caminho-nete acenou para que subissem. Foi as-sim, novamente de carona em uma carroceria de caminhonete, que volta-ram a Coronel Sapucaia, após 24 dias no Paraguai. Contaram a policiais fede-rais sobre o trabalho na lavoura. C. foi festejado pela família, que o julgava morto. João Ferreira, que ficou para trás, ficou 60 dias na plantação até “o patrão” deixá-lo na linha de fronteira. Cobrou que voltasse na próxima safra. Ferreira mentiu que regressaria. Ganhou apenas R$ 1.000. Três anos depois, o capitão Nelson Castelão ainda teme que os tra-ficantes apareçam para se vingar. Afinal, eles estão sempre por ali.

terra indígena do pcc Um investigador conhecedor do sub-

mundo da região afirma que “a área indígena é território livre” para o PCC hoje. Pobres, desempregados e sem ter-

ra para plantar, os indígenas da região são mão de obra fácil – e abundante e promissora – para incrementar os ne-gócios criminosos. Presentes dos dois lados da fronteira, índios das etnias guarani-caiová participam de todos os ciclos da droga na área onde o crime organizado brasileiro se expande. Índios são trabalhadores escravos, são consu-midores, são traficantes, são presidiá-rios. Alguns deles, para surpresa de po-liciais, já estão até formalmente filiados à facção criminosa, como os bandidos das cidades. A tatuagem de caveira no estilo hip-hop no braço esquerdo com-binaria melhor com alguém maior que Estéfano Ortiz Benitez, um guarani-

caiová de apenas 1,58 metro de altura e cerca de 60 quilos. Indinho, como é cha-mado – por motivos óbvios –, tem pelo menos dez anos de militância na bandi-dagem, sempre no tráfico de drogas. Em 2011, ele se “batizou” no PCC, com o aval de três padrinhos, ganhou o número 8.875 e passou a exercer a função de “dis-ciplina”, o encarregado de julgar inte-grantes que cometem pequenos desvios de conduta. Passou depois a membro do jet, o conselho que cuida do pavilhão de um presídio, analisa e julga informações repassadas pelo “disciplina”.

Indinho foi preso pela primeira vez em 2006 e de novo em 2010, quando foi condenado a 12 anos por tráfico. Mesmo

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preso, começou a mexer com cocaína, chamada de “100%” na linguagem da facção, uma droga mais rentável que a maconha. Indinho também organizava o cadastro de membros da organização para a festa de Natal e participava das rifas, que visam arrecadar dinheiro para o PCC com o sorteio de carros e motos entre presidiários de todo o Brasil. Con-tribuiu com R$ 35, em dezembro de 2015, na disputa por cinco motos, mas ninguém de Dourados ganhou. Os prê-mios saíram para cadeias no Paraná, Mato Grosso do Sul (cidade de Três La-goas), Minas Gerais e “Bolívia”, segundo anotações em um caderno da facção. No final do ano passado, Indinho passou ao

regime semiaberto para trabalhar com serviços gerais numa empresa de enge-nharia. Fugiu três dias depois.

A explosão de criminalidade nas al-deias fez surgir uma expressiva massa carcerária de índios condenados pela Justiça – eles podem ser presos como qualquer cidadão, desde que compreen-dam a ilegalidade de seus atos. Com as mãos para trás e o rosto virado para a parede na penitenciária de Dourados, F., de 25 anos, conta que fez a triste tran-sição de alguns de seus conterrâneos. Em 2012, num final de tarde, a polícia descobriu por acaso a “boca” na casa onde ele, um índio da etnia terena, mo-rava na aldeia Jaguapiru e vendia dro-gas. Detido, condenado a cinco anos por tráfico, F. continuou em liberdade. Em 2014, policiais o prenderam de novo, desta vez dirigindo um Astra sem habilitação e com 14 gramas de pasta- base de cocaína. Recebeu pena de seis anos de prisão. Continuou mais algum tempo em liberdade até a polícia en-contrar quase 70 gramas de pasta-base de cocaína em sua casa. Aí não houve jeito. Há um ano F. está preso. Lembra que começou a fumar maconha aos 12 anos e aos 20 viciou-se em crack, con-sumido livremente numa “balada” na saída da aldeia. “Vendi minha casa por R$ 8 mil e fui morar de aluguel. A bem dizer, eu fumei tudo, fumei quase uma casa”, diz. A pedra de crack custa R$ 10 e a caixa com 10 gramas sai por R$ 150 na aldeia, segundo F. A única visita que ele recebe é da mãe, aos domingos. Pre-sa duas vezes com ele, mas sem conde-nação, sua mulher o abandonou e ca-sou-se de novo. F. nunca mais viu os filhos de 5, 3 e 2 anos.

Já são tantos os índios presos que o governo de Mato Grosso do Sul criou uma ala só para abrigá-los na penitenciária de Dourados, a principal cidade daquela parte da fronteira. Em 2011, a ala abriga-va 55 índios. Em maio passado eram 120 – encarcerados por homicídio (40 pre-sos), estupro (38), roubo (22), tráfico (14), lesão corporal (4), associação cri-minosa (1) e furto (1). A ala tem um líder que leva reivindicações para a direção da cadeia, pede assistência à Funai, como kits de higiene, e evita brigas. A., de 41 anos, um sujeito tímido, de falar baixo e

gestos contidos, está condenado a 43 anos de prisão por quatro tentativas de homicídio e um assassinato a tiros, du-rante brigas na aldeia Bororó. “Sempre falo para os que saem para não voltar mais para cá”, diz ele, que cursa no pre-sídio o 3o ano do ensino médio. “Hoje quem mata na aldeia são guris de 13 e 14 anos. Matam até para roubar uma bici-cleta, um tênis bom, porque não têm de onde tirar o que precisam.” A. nunca quis virar liderança na aldeia, mas dentro do presídio assumiu esse papel.

As dez celas dos índios ficam num setor que abriga detentos menos peri-gosos, idosos, homossexuais e internos que trabalham na cadeia. O pátio do pavilhão se resume a uma quadra de futebol onde os presos convivem bem. Recentemente, três índios preferiram migrar dessa parte mais calma para a ala destinada aos detentos batizados no PCC, temidos pelos demais. Os presi-diários da facção agem de forma dife-rente e são tratados com mais cuidado pelos carcereiros nos procedimentos rotineiros. Quando estão no pátio, os presos comuns entram nas celas assim s

crianças indígenas desapareceram, aliciadas para trabalhar no cultivo de maconha e no tráfico de drogas

encarcerado O índio F. na penitenciária de Dourados, Mato Grosso do Sul. Ele se viciou em crack e passou a traficar na aldeia. “Vendi uma casa e fumei ela quase inteira”, diz. Nunca mais viu os três filhos

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que soa um sinal do final do horário do banho de sol; em seguida, os carcereiros entram no pátio e trancam as portas. A turma do PCC permanece acintosa-mente fora das celas mesmo ao ouvir o toque de recolher; só se mexe para en-trar depois de ouvir um segundo toque de recolher. Suas celas têm uma parti-cularidade: um sistema de tranca acio-nado por fora, no qual uma longa bar-ra de ferro trava as portas. Só depois disso carcereiros entram no pátio e passam um cadeado em cada porta.

De cinco anos para cá, cresceu o con-sumo de drogas entre os guaranis-caio-vás, diz a pesquisadora Rosely Pacheco, que há 15 anos estuda os conflitos nas aldeias. “Os guaranis-caiovás são pacífi-cos, mas há o efeito da droga”, diz Ro-sely. Há mais índios presos por tráfico e viciados, na mais recente desventura desses povos. Ao longo da história, o embate com fazendeiros dizimou aldeias inteiras, como no ciclo da erva-mate do século XIX que confinou as tribos em pequenas ilhas no meio do latifúndio. Surgiram as reservas indígenas que jun-taram à força etnias e costumes diferen-tes. Muito antes das drogas, comercian-tes passaram a vender cachaça aos índios, o que disparou casos de alcoolismo. Na década de 1990, ao menos 270 índios cometeram suicídio, entre eles crianças. Entre 2005 e 2007, a desnutrição matou pelo menos 49 crianças em um estado que é grande produtor de alimentos.

Os guaranis-caiovás são cerca de 46 mil a viver em aldeias demarcadas de apenas 60.000 hectares no sul de Mato Grosso do Sul, boa parte em áreas na fronteira com o Paraguai. Como mostra o caso de C., faltam espaço e condições para plantar e sobreviver. As aldeias Jaguapiru e Bororó, vizinhas de Dou-rados, são áreas superpovoadas onde 12 mil habitantes dividem 3.500 hectares. Alguns poucos índios, porém, detêm a posse de grandes áreas. Demarcada em 1917, a reserva mais parece uma favela cercada pelos bairros que cresceram em volta. Sempre foi uma área problemá-tica pelas chagas históricas de miséria, alcoolismo, suicídio e mistura de etnias. O tráfico de drogas se encarregou de piorar tudo com a disseminação do cri-me e do vício entre os indígenas.

as crianças que somem A névoa se desmancha no céu azul da

manhã de domingo, 7 de maio. Alguns índios caminham às margens do asfalto da rodovia que corta a aldeia Taquaperi, em Coronel Sapucaia. As duas meninas de cabelos aloirados pelo sol, o homem a cavalo, a mulher a pé atrás dele e o índio vestido de branco estranham forasteiros. O bucolismo da cena dura só até surgir a lembrança que a rodovia é rota do trá-fico de drogas. Traficantes invadem sem cerimônia a terra indígena, onde a polícia não entra, para despistar a lei. Como as outras aldeias guaranis, Taquaperi não tem as ocas cobertas de sapê como anti-gamente. As casas de alvenaria escura, de madeira ou barracos de lona preta se espalharam entre o que sobrou da flores-ta e a praga do capinzal que cobre o Tekoha, como os índios chamam suas terras. Pequenas estradas tomadas por atoleiros e mato levam às moradias.

Diante de uma dessas casas, vestido de calça jeans, sapato e camisa branca

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de manga longa, o capitão Oswaldo Rodrigues coloca o cocar de penas ver-melhas e azuis para falar. “Já foram seis crianças mortas. Não vou falar que são mortas, mas há dois anos, três anos, estão desaparecidas. Elas foram levadas ao Paraguai para trabalhar na planta-ção de maconha”, diz. “No Brasil, criança não pode trabalhar, mas no Paraguai não tem essa lei. Por isso, le-varam daqui.” As crianças aliciadas estavam na faixa dos 12 anos e estuda-vam na escola local. O capitão Rodri-gues comunicou o desaparecimento a procuradores da República que estive-ram na aldeia no início do ano. Os pro-curadores determinaram a abertura de um inquérito criminal e de outro cível para apurar o caso. Pediram uma lista de possíveis desaparecidos à Funai, que mantém um cadastro nas aldeias por meio de agentes de saúde. As duas in-vestigações correm em segredo de Jus-tiça, mas a procuradoria adianta que o relato dos índios é bastante consisten-te. Segundo um delegado, a Polícia Federal ainda não chegou a nenhum dos aliciadores porque os índios têm

dificuldades em descrever os suspeitos. Outro entrave é que muitos guaranis- caiovás não têm documentos: só em Taquaperi há 250 adultos e ao menos 39 crianças sem registro de nascimen-to. Assim, é mais difícil encontrá-los.

O capitão diz que os traficantes tam-bém recrutam adolescentes de 14 a 17 anos. Acredita que cerca de 300 indíge-nas de Taquaperi, a maioria nessa faixa etária, estejam nas lavouras paraguaias atualmente. “Eles não têm como reali-zar seus sonhos dentro da aldeia”, diz. Querem roupas novas, um celular e, quando mais velhos, almejam uma moto para vencer a distância da aldeia até a cidade, localizada a alguns quilô-metros de distância. Os pais têm poucas condições financeiras para satisfazer os filhos. Professor de ensino fundamental da aldeia, Amaro de Souza Rocha diz que os próprios garotos indígenas aju-dam no aliciamento dos colegas. Segun-do a Polícia Federal, um adolescente de 14 anos, que passou a viver no Paraguai, recruta gente na aldeia para o plantio da maconha. “Os índios na fronteira têm de ser mais protegidos. Estamos em perigo por causa dos traficantes arma-dos”, afirma o capitão Rodrigues. Ele quer do governo ao menos uma cami-nhonete para servir de “viatura” à equi-pe de segurança da aldeia, formada por índios armados com facões.

Em 2013, o capitão Nelson Castelão flagrou um menino de 9 anos de idade com 12 quilos de maconha para distri-buir na aldeia Limão Verde, principal-mente a estudantes da escola local. Flagrado novamente, agora com 500 gramas, acabou despachado para uma área mais distante da fronteira. As crian-ças de até 9 anos de idade representam quase 31% da população de guaranis- caiovás. Como característica mais mar-cante, os indiozinhos têm grandes olhos negros que expressam meiguice. Eles surgem às dezenas do meio do capinzal seco, curiosos para ver os visitantes que chegam à aldeia. Estão sempre de roupas puídas, sujas de poeira. Enfrentam o al-coolismo dos pais, a desnutrição, toda sorte de privações na aridez da terra e agora a ameaça do tráfico de drogas. Só lhes resta acreditar que Nhanderu, o deus guarani, possa protegê-los. u

aldeia com grades Ala exclusiva para presos indígenas na penitenciária de Dourados, Mato Grosso do Sul (ao lado), e ala de presos do PCC (acima). Recentemente, três índios se filiaram ao PCC e escolheram mudar-se para o espaço destinado à facção criminosa

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As infinitas dificuldades das autoridades para combater os esquem as dos ousados, ricos e violentos traficantes de drogas da fronteira

o b s e r va d o r d o c r i m e

em ação Policiais do Departamento de Operações de Fronteira, numa patrulha na estrada na madrugada. Os traficantes têm múltiplas estratégias para burlar a vigilância

aline ribeiro e Hudson corrêa (texto), adriano machado (fotos)

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As infinitas dificuldades das autoridades para combater os esquem as dos ousados, ricos e violentos traficantes de drogas da fronteira

Em uma série de três reportagens, ÉPOCA mostra o avanço do

crime organizado brasileiro no país vizinho

aline ribeiro e Hudson corrêa (texto), adriano machado (fotos)

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Todos os dias, policiais e bandidos protagonizam um jogo de perseguição e fuga em estradas na fronteira do Bra-sil com o Paraguai, o maior corredor de distribuição de drogas e armas da Amé-rica do Sul, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). No ano passado, a polícia apreendeu 2.000 toneladas de drogas em solo brasileiro – um quarto só nas estradas de Mato Grosso do Sul. Quase toda a droga que irriga o mercado nacional vem do Paraguai, recentemen-te tomado pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), a maior facção criminosa do Brasil, como ÉPOCA mostrou na pri-meira reportagem desta série. “O PCC tomou o Paraguai para negociar dire-tamente com o produtor de maconha e se aproximar do produtor de cocaína na Bolívia, eliminando aos poucos o atra-vessador”, afirma o delegado da Polícia Federal Antonio Celso dos Santos, ex--adido policial no Paraguai. “A intenção era baratear o custo do produto, mono-polizar a distribuição e controlar o trans-porte.” O Paraguai é um dos cinco mais importantes fornecedores de maconha para mercados internacionais e ainda serve de entreposto da cocaína produ-zida na Bolívia, no Peru e na Colômbia, a ser distribuída para Brasil e países da África e da Europa.

Segundo a Inteligência da Secretaria

inda faltam duas horas para amanhecer e um espesso nevoeiro encurta a visibilidade numa estrada de terra em Mato Grosso do Sul. À frente, um camburão do Departamento de Operações de Fronteira (DOF) segue vagaroso em uma missão de rotina para capturar nar-cotraficantes na linha internacional que divide o Brasil e o Paraguai. Está sempre em movimento – montar uma blitz ali, uma rota tão conhecida pela bandidagem, não

daria resultado. Milharais a perder de vista, esconderijos perfeitos, margeiam boa parte do trajeto. Antes de as buscas começarem, o capitão R. recomenda: “Se houver troca de tiros, joga o carro na plan-tação, sempre à esquerda, o lado brasileiro”. “No direito (o paraguaio), existe o risco de encontrar algum criminoso camuflado, com fuzil, metralhadora... Ele pode confundir vocês com polícia. Aqui, nós so-mos alvo.” Depois de meia hora de viagem, duas luzes brancas se aproximam devagar no sentido contrário. Os quatro policiais descem ligeiros com armas em punho. O veículo encosta, o motorista mostra os documentos e é liberado.

Nacional Antidrogas (Senad) paraguaia, só no último ano o PCC exportou cerca de 200 bandidos para lá. Eles circulam livremente pelas cidades da fronteira e comandam seus negócios ilícitos sem ser notados. Em maio passado, o governo paraguaio contava 105 presos brasileiros em Pedro Juan Caballero, a cidade gê-mea da sul-mato-grossense Ponta Porã. A lista ainda não incluía cinco bandidos capturados dias antes com três fuzis, munições, quatro automóveis e itens usados no preparo da droga, como fita adesiva e balança de precisão. “Existem evidências de que são todos do PCC. Na casa, havia um caderno com outras pessoas para serem batizadas”, diz o pro-motor de justiça paraguaio Samuel Val-dez. “Quando prendemos dez, vêm 20. Quando prendemos 20, vêm outros 30.” Eles moravam numa residência de alto padrão, alugada por R$ 5 mil mensais.

Como o produtor no Paraguai nunca leva a droga e o consumidor no Brasil nunca vai buscar, os criminosos que se arriscam pela rota do narcotráfico são essenciais para o negócio. De ônibus, carro ou caminhão, com poucos gra-mas ou toneladas, as “mulas” ligam uma ponta à outra; são também a parte mais exposta e frágil da cadeia da droga e, por isso mesmo, a mais bem remunerada. Poucos produtos no mundo são tão

só grades Júlio César (acima) e G. na prisão de Ponta Porã, Mato Grosso do Sul, divisa com o Paraguai. O lucro expressivo os levou ao tráfico, à cadeia e à perda da família

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rentáveis quanto a droga. Um quilo de cocaína é vendido na fronteira com o Paraguai por US$ 5 mil. Em São Paulo, é negociado a US$ 9 mil. Ao chegar à Eu-ropa vale pelo menos US$ 50 mil. Com a maconha não é diferente. O quilo co-mercializado na divisa por R$ 120 custa R$ 1.000 nos grandes centros brasileiros – 730% mais. É o mesmo produto, mas com o risco incorporado.

Atraído pela rentabilidade, Júlio Cé-sar Rosa, de 37 anos, ex-estudante de Direito, investiu no tráfico quando sua empresa de transporte entrou em di-ficuldades com os cortes de gastos do programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal. Sem dinheiro para quitar as prestações de apartamento, caminhonete e oito carretas, acumulou uma dívida de R$ 3,5 milhões. “Pensei que era o jeito de salvar minha vida”, diz. Como sempre viajava para perto da fronteira, já havia recebido a oferta de transportar veneno e cigarro. “Quando você está procurando um carro impor-tado, vai numa concessionária de carro importado. Se está querendo fazer coi-sa errada, procura quem imagina que faz coisa errada.” Simples. Júlio vendeu uma das carretas e investiu em maco-nha. Tornou-se uma espécie diferente de mula, o empreendedor do tráfico.

Só comprava e transportava “natural”, nunca cocaína. Seus contatos na frontei-ra providenciavam tudo, da aquisição da droga ao preparo do caminhão. “Nunca soube de onde vem, como colocam”, diz. Limitava-se a escolher o local em que a droga seria dissimulada. Na primei-ra carga, pediu que a mercadoria fosse acomodada no assoalho. Por volta das 5 horas da manhã, foi ao local combinado e encontrou o caminhão recheado. Viajou com a carroceria vazia, algo incomum no meio. Para despistar a polícia, as mulas enchem as carretas com grãos, como soja e milho, e camuflam os tabletes de maco-nha. Foi até o Rio de Janeiro. Ganhou R$ 820 mil líquidos. Em dinheiro. “É um prê-mio da loteria. Por que é tão bem pago? Por causa do risco”, afirma. Júlio fez a se-gunda viagem, para Belo Horizonte, e a terceira, para Fernandópolis, no interior de São Paulo. Na quarta, foi parado pela polícia. Tinha 440 quilos de maconha nos pneus e no tanque em junho do ano

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o b s e r va d o r d o c r i m e

passado. “Acabei atolando o que faltava atolar.” Júlio está numa sala do presídio de Ponta Porã. Veste uniforme laranja. Foi condenado a sete anos de prisão – três em regime fechado.

Dia Da caçaNão houve perseguição nem troca

de tiros durante as mais de dez horas em que o camburão do DOF percor-reu a linha internacional e os arredores naquela madrugada de maio. Em 110 quilômetros de percurso, a maior parte em estradas de terra esburacadas, os po-liciais abordaram 17 veículos, a maioria (11) motos. A fiscalização dessas vicinais é uma ponta importante no combate terrestre ao narcotráfico. “Depois que o veículo com a droga pega o fluxo (estra-das movimentadas), fica difícil barrar”, afirma o coronel Kleber Haddad. Só nos cinco primeiros meses deste ano, o DOF já apreendeu quase a mesma quantidade de maconha do ano passado inteiro no estado: 54 toneladas ante 60. O confis-co aumentou tanto que uma delegacia da região comprou um contêiner para armazenar a droga.

Uma das motos interceptadas pelo DOF chamou a atenção dos agentes. O condutor era suspeito de ser um “bate-dor”, como a polícia chama os veículos que vão cerca de 20 quilômetros à frente do carregamento de droga informando se a estrada está “limpa”, livre de fisca-lização. Mula e batedor costumam se comunicar por um rádio chamado de papagaio, eficiente mesmo onde celular não funciona. A antena fica em cima do veículo, como a de um rádio comum de carro. O homem da moto tinha conver-sas duvidosas no WhatsApp. Contudo, nada que sustentasse sua detenção.

O sol já estava forte na chegada a Co-ronel Sapucaia, divisa com a paraguaia Capitán Bado, que o juiz federal Odilon de Oliveira – expoente no combate ao narcotráfico – chama de capital da maco-nha. Assim como Ponta Porã e Pedro Juan Caballero, as cidades são separadas só por uma rua. São necessários poucos minu-tos para percorrê-las de carro de ponta a ponta. Como todo lugarejo de interior, os moradores ficam na praça, nas ruas e na portas das casas batendo papo. “É muito fácil arregimentar gente para trabalhar

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para os traficantes. Eles têm olheiros por toda a parte”, diz um delegado da Polícia Civil da região. “A economia da cidade gira em torno da maconha. Quando a gente pega muito pesado na apreensão, o número de assaltos sobe, principalmente roubo de carro e caminhonete.”

O preso brasileiro A. conta que, sem-pre que chegava a Capitán Bado para comprar maconha para revender no Brasil, ia direto à delegacia fazer o acer-to. “Vim buscar uma mercadoria e não quero ser incomodado”, dizia ao comis-sário, o delegado da polícia paraguaia. Segundo A., mediante um pagamento de 1 milhão de guaranis (cerca de R$ 600), o delegado deslocava uma viatura para acompanhá-lo até a fazenda pro-dutora. A. diz ter feito esse trajeto oito vezes até ser descoberto no Brasil, em dezembro de 2015.

Em julho do ano passado, criminosos se posicionaram numa rua de Capitán Bado para alvejar a delegacia da Polícia Civil de Coronel Sapucaia, construída de frente para o país vizinho. Descarre-garam uma espingarda calibre 12 contra a fachada para intimidar os agentes que dormiam na madrugada. “Os traficantes ficam vigiando a gente”, afirma o delega-do. “Quando há operação, não podemos nem fazer reunião de planejamento na delegacia.” Entre civis e federais, outras três delegacias da região são visíveis do Paraguai: a de Sete Quedas, de Paranhos e de Ponta Porã. Certa vez, um preso tentou fugir algemado para o lado de lá a fim de escapar da Justiça brasileira.

Ainda com buracos de tiros na pa-rede, a delegacia de Coronel Sapucaia tinha cadeado na porta e o número do celular do plantonista para caso de emergência no dia da ronda do DOF. O delegado mora em outra cidade, a 45 quilômetros. Assim que surgimos na divisa, uma caminhonete preta passa a nos seguir. Permanece sempre do lado paraguaio. Sob o olhar impotente dos policiais que não podem agir em terri-tório estrangeiro, um Saveiro prata que vinha no sentido oposto foge para o país vizinho assim que avista o camburão do DOF.

Ligação inoportunaUm desarranjo com o batedor numa

manhã de setembro de 2014 mudou o destino de G. (um preso que não quer se identificar)de forma irreversível. Era por volta das 6 horas da manhã quando ele pegou em Ponta Porã um caminhão carregado de soja – além de 550 quilos de maconha escondidos nos pneus. Ga-nharia R$ 30 mil. Pelo combinado, um batedor o guiaria até Dourados. De lá, G. cairia no “fluxo” para então seguir sozinho até Piracicaba, interior de São Paulo. Depois de rodar 81 quilômetros em cinco horas, o motor da carreta supe-raqueceu. G. encostou o veículo, abriu o capô e chamou um mecânico. Esperava ser resgatado, mas foi a polícia quem apareceu. O policial pegou o celular de G. para verificar as mensagens e ligações. Ex-presidiário, 48 anos, G. conhecia o que o esperava se fosse pego. “Tentei conquistar o policial na conversa, mas aí aconteceu: meu telefone tocou...”, diz. Como é de praxe entre as mulas, G. e o batedor haviam combinado um código para atender ligações. Deveriam dizer “bom dia”, para só então a conversa pros-seguir. “Alô, alô, alôôô”, disse o policial. O batedor, contudo, não cumpriu o combi-

terra e ar Policiais

rodoviários apreendem

caminhonete de cavalo doido com

drogas na BR-463 (ao lado). Abaixo,

um policial em helicóptero. Apesar

dos esforços da polícia, o tráfico

do Paraguai para o Brasil cresce

em 2016, a poLícia apreenDeu 2.000 toneLaDas De Drogas no brasiL – um quarto só nas estraDas De mato grosso Do suL

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afronta A delegacia de Coronel Sapucaia alvejada (acima) e o inspetor Waldir Brasil, vítima de atentado. Do lado paraguaio, traficantes afrontam e ameaçam

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nado. “A porteira está aberta”, respondeu. O policial perguntou que porteira era aquela. G. tentou emplacar uma história furada com fazendas e gado.

G. começou a vida carregando madei-ra derrubada ilegalmente da floresta na região da fronteira. Em meados de 2005, como motorista de ônibus, soube por um colega do esquema para transportar pe-quenas quantidades de maconha. Com-prou 50 quilos e colocou na mala ao lado do banco. Tinha ouvido que a polícia só revistava o bagageiro com os pertences dos passageiros. Na primeira viagem, lu-crou cerca de R$ 4.500. “O medo é cons-tante, a gente treme do começo até o fim porque nunca sabe o que vai acontecer no próximo quilômetro”, diz. “Mesmo assim, depois que você vai uma, duas vezes, o olho cresce.” Repetiu o feito na semana se-guinte. Na terceira viagem, com 70 quilos na bagagem, ia de Amambai para Cam-po Grande quando foi parado. O policial quis revistar sua mala. “Foi o cobrador quem me caguetou”, diz. Na primeira passagem pela cadeia, G. ficou dois anos. Naquela época, o crack era consumido livremente nos presídios. “No tempo da

pedra, isto era um lugar frio e sombrio. Para onde você olhava era tudo escuro, sujo...”, diz. “Não havia discussão, as brigas eram resolvidas na ponta da faca. Sem faca, não sobrevivia.” G. passou por uma rebelião com três mortes. Os R$ 9 mil que lucrou com as duas viagens “sumiu como se o vento tivesse soprado”.

Ao sair, G. viciou-se em crack e voltou ao tráfico, desta vez com grandes quanti-dades escondidas em caminhões. Alto e bastante forte, ele tentou escapar quan-do foi detido naquela manhã de 2014, denunciado pela chamada telefônica. A caminho da delegacia, no banco do pas-sageiro do caminhão, puxou o freio de mão, abriu a porta e pulou. O policial ao volante disparou quatro tiros enquanto o veículo descia a pirambeira. G. correu para uma aldeia próxima e foi apanhado por índios. Diz ter pago R$ 1.000 para ser solto. Correu mais 30 metros e se es-condeu num arbusto de meio metro de altura. Não sabia que debaixo dele havia um formigueiro de lava-pés. Suportou as picadas por alguns minutos. Quando levantou, 30 índios estavam a sua volta. Entregaram G. para a polícia.

G. está preso há dois anos e sete meses. Parou de usar crack, devido à proibição de consumo dentro das cadeias, baixada pelo PCC. Dorme numa cela com quatro camas, ou jegas, hoje ocupada por 22 presos. Oito dormem nas jegas, em po-sição de “valete” (os pés de um de frente para a cabeça do outro). O restante, em redes penduradas e no chão. Pela manhã, sentam-se enfileirados, com uma toalha na boca para disfarçar o hálito, à espe-ra da vez de escovar os dentes e tomar banho. Sua pena é de oito anos. Como recorreu e teve remissão de pena, está perto de sair. Sem trabalho e com dois filhos pequenos, sua mulher há sete me-ses não paga a conta de energia. Vivem os três numa casa à luz de velas, à base de doações. G. chora ao lembrar que os filhos, quando o visitam na prisão, ra-ramente se animam com sua presença. Só brilham os olhos porque, na cadeia, conseguem assistir à TV.

só para os fracosJ., de 16 anos, voltava do trabalho

numa quinta-feira de maio quando foi abordado por uma rodinha de conheci-

traficantes esconDem maconha, cocaína e armas nas carretas De contrabanDo De cigarro para burLar a fiscaLização

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dos num bairro pobre de Chapecó, em Santa Catarina. Pensou que fosse para “fumar um baseadinho”, mas descobriu que se tratava de uma “proposta me-lhor”. “Os piás me ofereceram R$ 3 mil mais dez quilos”, diz J., com um forte sotaque do interior catarinense. “Fala-ram: ‘Homem, vai lá, vai ser de boa. Na rodovia, na B-ÉRE, é só você e Deus no carro”. J. fez cálculos mentais. Com dez quilos de maconha, poderia lucrar R$ 10 mil – uma oportunidade para trocar sua moto por um carro e passar o inver-no mais confortável com a namorada. Em dois dias, ganharia R$ 13 mil, bem mais que os R$ 700 mensais que ganha-va como mecânico. Não titubeou.

No dia seguinte, J. foi até Florianó-polis e, na rodoviária, uma passagem já comprada o esperava no guichê de uma empresa. A mesma mulher que entregou o bilhete de ônibus lhe deu um celular novo. “Mandaram te entregar”, disse. No meio do trajeto para Ponta Porã, o telefo-ne tocou e o interlocutor passou orienta-ções. Um Palio cinza estaria parado num posto de gasolina próximo ao shopping China, já no lado paraguaio da fronteira, em Pedro Juan Caballero, com a chave em cima do pneu. Ordenou que J. jogas-se fora aquele celular, pois haveria outro no carro. J. encontrou o carro com 240 quilos de maconha escondidos no banco de trás, com uma lona. A suspensão do veículo havia sido erguida, para disfarçar o rebaixamento provocado pelo peso da droga. J. enrolou um baseado, verificou o novo celular, comprou umas porcarias para comer e partiu. Antes de completar 80 quilômetros, foi parado numa barrei-ra policial. Não cogitou fugir. “Vai que ainda fico aleijado... Se era para aconte-cer.... Estava tudo escrito”, pensou. Baixou o vidro, tomou um gole de água e saiu do carro sem resistir.

J. tem a pele e o cabelo claros, olhos esverdeados e uma tatuagem de uma rosa (o nome da mãe) ao lado de uma coroa (em referência à idade dela). É um pouco mais jovem que a média de mulas da fronteira. “A maioria tem entre 20 e 30 anos”, diz o delegado Mikail Faria. “Às vezes quer ostentar, mas às vezes é peba também. Mula não tem cor. Classe social tem: é de média para baixo.” Sentado na delegacia em Amambai horas depois do

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flagrante, J. está com o rosto vermelho de chorar. “Queria comprar qualquer carro, um Golzinho quadrado. Não tem igual para sair com a namoradinha, dar uma bandinha. Tá (sic) certo que a gente é de menor (sic), mas a gente pode ter as coisas também. Só precisa ter cabeça”.

J. já foi pego pela polícia, segundo suas contas, cerca de 15 vezes antes. Sua vida no crime inclui pequenos furtos na rua, assaltos com faca e até com revólver. “Aquilo para mim era uma brincadeira. Nem era por dinheiro, eu ia pelo frio na bariga (sic)”, diz. Filho de uma dona de casa com um soldador, J. sempre teve de tudo. No dia em que foi preso com o carro cheio de maconha, parecia ves-tido para a balada: perfumadíssimo, de pulseira no braço, calça jeans, camiseta Oceano e um Nike vermelho e preto de quase R$ 1.000. Pouco antes havia man-dado uma mensagem para um amigo: “Comprar tênis em 10 X é pros fracos”.

É consenso entre agentes da Seguran-ça Pública que os narcotraficantes estão mais abusados e inventivos – em especial depois do assassinato do traficante Jor-ge Rafaat Toumani, em junho de 2016, considerado o rei da fronteira Brasil-Pa-raguai e que impedia a expansão do PCC no território vizinho. Uma das novidades é a maconha a vácuo. O pacote sem ar, além de ocupar menos espaço, tem mais chance de passar despercebido pelos cães farejadores. Outra tendência é o “cavalo doido”, um tipo de mula que enche o car-ro com tabletes de maconha ou cocaína. Quando abordado numa barreira, joga o veículo contra os policiais, foge em alta velocidade ou abandona tudo.

Na tarde de 8 de maio, ÉPOCA acom-panhou a prisão de um cavalo doido em Dourados. Marcelo Gonçalves, de 32 anos, carregava 2 toneladas de ma-conha e seu derivado, o skank, numa caminhonete Amarok com placas de Ri-beirão Preto. Tentou fugir, mas acabou encontrado por um helicóptero numa vicinal. Algemado e de cabeça baixa, dis-se que não conhecia o dono da droga e que aceitou levá-la até Campo Grande porque tinha uma dívida de R$ 5 mil. Os veículos usados por cavalos doidos já re-presentam 30% dos 230 carros apreen-didos com drogas no pátio da delegacia de combate ao narcotráfico, a Defron.

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em guerraNuma madrugada de abril, o inspe-

tor da Polícia Rodoviária Federal Waldir Brasil acordou com tiros. Foram preci-samente 22 disparos contra sua casa em Dourados, a maior cidade da região de fronteira. Assustados, ele e a mulher ras-tejaram pelo quarto até o barulho ces-sar. Souberam que os quatro atiradores estavam dentro de um carro e usavam pistolas de uso restrito. “Acredito que foi represália”, diz Brasil. Uma semana antes, ele havia apreendido dez carretas que contrabandeavam cigarro – um preju-ízo estimado de R$ 20 milhões para a quadrilha. O contrabando de cigarro é um negócio milionário, lucrativo e in-timamente ligado ao narcotráfico. Pelo menos 45% dos cigarros consumidos no Brasil são contrabandeados do Paraguai. Vendido a R$ 5 nas cidades brasileiras, um maço ilegal tem custo de produção de R$ 1,50 no país vizinho. Num acordo com contrabandistas, os traficantes in-filtram toneladas de drogas nas carretas que transportam o cigarro. Muitos poli-ciais recusam suborno para liberar dro-gas, mas aceitam para afrouxar o cerco ao contrabando, delito tido como menos grave. “O contrabando limpa a pista para outros crimes”, afirma o coronel do DOF, Kleber Haddad. “Deixa a fronteira poro-sa.” O policial Brasil não é o único sob ameaça de criminosos na fronteira. No ano passado, um policial de Paranhos foi morto com 14 tiros na academia. Duran-te o velório, traficantes desfilaram nas caçambas de caminhonetes pela linha internacional dando tiros de fuzil para cima para provocar policiais que foram à cidade homenagear o colega.

A guerra do tráfico transformou as ci-dades da fronteira em alguns dos lugares mais perigosos do Brasil. Proporcional-mente, mata-se mais ali que nos grandes centros, segundo dados da Secretaria de Segurança de Mato Grosso do Sul. Em Ponta Porã são 48 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes. Em Coronel Sapucaia, o índice chega a 55 assassinatos por 100 mil habitantes – médias muito superiores às do Rio de Janeiro (21) e de São Paulo (12). A explosão da droga trou-xe outro efeito, a superlotação das cadeias de Mato Grosso do Sul. Mais de 40% da população carcerária do estado é de tra-

ficantes de drogas e armas que atuam na fronteira com o Paraguai e com a Bolívia.

Patrulhar o maior corredor do nar-cotráfico é importante, mas é pouco. A cada apreensão de droga, a polícia dá pequenos golpes numa parte essen-cial da cadeia do tráfico. Entretanto, não atinge o centro das organizações criminosas. No último dia 1o, uma operação da Polícia Federal em Lon-drina, no Paraná, prendeu o traficante mais procurado da América do Sul: o brasileiro Luiz Carlos da Rocha, vulgo Cabeça Branca (leia na página 52). Re-juvenescido por cirurgias plásticas, ele estava irreconhecível. Atuava havia 30 anos nas sombras, trazendo droga da fronteira para o Brasil. Exportava para os Estados Unidos e Europa, e era for-necedor do PCC e da organização ca-rioca Comando Vermelho. “A prisão do Cabeça Branca é mais uma prova de que a melhor e mais econômica alternativa para combater o narcotráfico é investir pesadamente em inteligência policial”, afirma o ex-adido Antonio Celso dos Santos. “Só assim o Brasil pode vencer essa guerra.” u

abundância Contêiner com

drogas em Amambai (ao lado) e estrada

na fronteira (abaixo). O aumento nas

apreensões exige novos depósitos. A

maior parte da droga entra no Brasil por múltiplas estradas

de terra

o tráfico espaLha a vioLência nas pequenas ciDaDes Da fronteira. mata-se mais aLi que nos granDes centros

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