A Conquista Do EspaçO Profissional

13
Almeida, Helena (2003). A construção do espaço profissional, um desafio permanente para o Serviço Social. 1ª Mostra de Práticas Pré-profissionais de Serviço Social. Coimbra / ISBB, 3 Junho. A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO PROFISSIONAL UM DESAFIO PERMANENTE PARA O SERVIÇO SOCIAL Helena Neves Almeida * Tal como as pessoas e as instituições, também as profissões possuem uma trajectória irregular, condicionada por factores internos e externos, individuais e colectivos, configurando ciclos de vida cuja característica fundamental é a mudança e a transformação. A análise do desenvolvimento do serviço social, desde a sua institucionalização e luta pela sua legitimação (de 1897 a meados dos anos 30) até à actualidade revela movimentos constantes de afirmação de uma base teórica, onde se assinalam contributos, como os de Mary Richmond (1917, 1922), Grace Coyle, Hunt e Kogan (anos 40-50), Lilian Ripple, Murray Ross (anos 60), Ander-Egg, William Reid e Ann Shyne (anos 1970), Schon, Du Ranquet , Howe (anos 80), Malcom Payne, De Robertis (anos 90), e tantos outros, que são incontornáveis e alicerçam o saber fazer num conhecimento construído a partir de procedimentos submetidos á lógica da prova e da descoberta, sem desvalorizar as questões axiológicas, os valores que constituem referências transversais às práticas profissionais e de onde se realça o respeito pelos direitos do homem e do cidadão. Em Portugal consolida-se o reconhecimento da profissão a partir da aprovação do funcionamento das primeiras instituições de formação em Serviço Social em 1935 (Lisboa) e 1937 (Coimbra), e a partir dos anos 50 –60 é reforçado o seu estatuto regulador das relações sociais, ao ser-lhe associada a área de desenvolvimento comunitário e dos problemas decorrentes do processo de urbanização. O 25 de Abril ocorre num momento de questionamento e insatisfação dos profissionais em relação ao seu papel na sociedade e em * Professora Auxiliar do Instituto Superior Bissaya Barreto, Doutora em Letras / Trabalho Social.

description

 

Transcript of A Conquista Do EspaçO Profissional

Page 1: A Conquista Do EspaçO Profissional

Almeida, Helena (2003). A construção do espaço prof issional, um desafio permanente para o Serviço Social. 1ª Mostra de Práticas Pré-profissionais de Serviço Social. Coimbra / ISBB, 3 Junho.

A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO PROFISSIONAL

UM DESAFIO PERMANENTE PARA O SERVIÇO SOCIAL

Helena Neves Almeida*

Tal como as pessoas e as instituições, também as profissões possuem uma

trajectória irregular, condicionada por factores internos e externos, individuais e

colectivos, configurando ciclos de vida cuja característica fundamental é a

mudança e a transformação.

A análise do desenvolvimento do serviço social, desde a sua

institucionalização e luta pela sua legitimação (de 1897 a meados dos anos 30)

até à actualidade revela movimentos constantes de afirmação de uma base

teórica, onde se assinalam contributos, como os de Mary Richmond (1917,

1922), Grace Coyle, Hunt e Kogan (anos 40-50), Lilian Ripple, Murray Ross

(anos 60), Ander-Egg, William Reid e Ann Shyne (anos 1970), Schon, Du

Ranquet , Howe (anos 80), Malcom Payne, De Robertis (anos 90), e tantos

outros, que são incontornáveis e alicerçam o saber fazer num conhecimento

construído a partir de procedimentos submetidos á lógica da prova e da

descoberta, sem desvalorizar as questões axiológicas, os valores que

constituem referências transversais às práticas profissionais e de onde se realça

o respeito pelos direitos do homem e do cidadão.

Em Portugal consolida-se o reconhecimento da profissão a partir da

aprovação do funcionamento das primeiras instituições de formação em Serviço

Social em 1935 (Lisboa) e 1937 (Coimbra), e a partir dos anos 50 –60 é

reforçado o seu estatuto regulador das relações sociais, ao ser-lhe associada a

área de desenvolvimento comunitário e dos problemas decorrentes do processo

de urbanização. O 25 de Abril ocorre num momento de questionamento e

insatisfação dos profissionais em relação ao seu papel na sociedade e em

* Professora Auxiliar do Instituto Superior Bissaya Barreto, Doutora em Letras / Trabalho Social.

Page 2: A Conquista Do EspaçO Profissional

1ª MOSTRA DE PRÁTICAS PRÉ-PROFISSIONAIS DE SERVIÇO SOCIAL Helena Neves Almeida....ISBB...3 de Junho 2003

2

relação à sua prática quotidiana. Com a expansão do Estado-Providência e a

integração de Portugal na CEE (1986) criaram-se novos equipamentos e

abriram-se portas para uma intervenção de cariz colectivo, indutores da

reivindicação para os Assistentes Sociais de uma maior participação no

processo de produção das normas. O campo de intervenção expandiu-se para

além das tradicionais áreas da saúde, educação e assistência/segurança social,

ocupando hoje novos domínios como os da Deficiência, Justiça, Emprego, Poder

Local, Serviços Centrais e Regionais da Administração Pública, Empresas,

Organizações não Governamentais, e dentro deles diversos serviços.

O movimento pela afirmação de um papel mais activo não apenas no

domínio da prestação de serviços mas também na sua planificação e gestão, foi

acompanhado por um binómio aparentemente paradoxal: por um lado, o reforço

de uma formação multidisciplinar, alimentando a dependência teórica em relação

às diversas Ciências Sociais e Humanas, e por outro lado, a afirmação do

Serviço Social como um ramo das ciências sociais, assegurada pela criação de

mestrados e o estabelecimento de acordos com universidades estrangeiras para

cursos de doutoramento. De salientar que a partir de meados dos anos 90 se

tem assistido à proliferação de instituições de ensino superior que asseguram a

formação em Serviço Social, existindo hoje a nível nacional 10 instituições

universitárias das quais 8 são privadas e 2 são públicas. Tendo em

consideração os numerus clausus destas instituições de ensino prevê-se que a

partir do corrente ano lectivo sejam colocados no mercado de trabalho mais de

600 Assistentes Sociais por ano. Estamos inegavelmente numa fase

expansionista da profissão, e as novas dinâmicas sociais e locais revelam-se

potenciadoras da sua integração; porém, estas constituem igualmente

oportunidades para os psicólogos, sociólogos, e outros profissionais no campo

das Ciências Sociais e Humanas. Tal significa que, tendo em consideração a

recente afirmação do serviço social no ensino universitário, a atenção deverá ser

focalizada em dois polos de análise: a consolidação no plano teórico e prático, e

a conquista quotidiana do espaço profissional, dois aspectos intrinsecamente

relacionados.

No plano teórico, os institutos e as universidades têm que estabelecer e

desenvolver uma estratégia de relacionamento permanente com a sociedade,

seja na prestação de serviços seja no plano da investigação, reforçando as

Page 3: A Conquista Do EspaçO Profissional

1ª MOSTRA DE PRÁTICAS PRÉ-PROFISSIONAIS DE SERVIÇO SOCIAL Helena Neves Almeida....ISBB...3 de Junho 2003

3

iniciativas ainda pontuais no plano da formação pós-graduada e de mestrados, e

criando um curso de doutoramento em serviço social. No plano prático o grande

desafio que se coloca é o de consolidar experiências e conquistar novos

espaços de intervenção.

Neste contexto, o conceito de estratégia é fundamental, uma vez que

permite aos sujeitos dilatar a margem de liberdade que possuem nas relações

de poder, negociar a sua participação, contornar as regras do jogo. O conceito

de estratégia remete-nos sempre para o exercício de uma autonomia relativa no

decurso da vida, para a utilização de uma margem de manobra que os

indivíduos dispõem mesmo nas estruturas sociais menos personalizadas e mais

isoladas, que lhes permite perverter o sistema e defender os seus interesses. Os

objectivos e os projectos concretos vão-se edificando num percurso que vai do

ideal ao possível. Há contínuos reajustamentos. Os comportamentos constituem

um dos sinais de busca de oportunidades, numa relação com os outros e no

jogo de papéis e poderes existentes no relacionamento com outros parceiros.

Por isso, o uso de estratégias é importante na construção do espaço

profissional, isto é, tanto a nível da consolidação de experiências como da

conquista de novos domínios de intervenção.

Dado que as estratégias não abarcam apenas as condutas racionais, mas

também aquelas que se revelam como potencializadoras dos recursos e que

ponderam os riscos e as oportunidades, as atitudes constituem “orientações

estratégicas” (Tap, 1996, 223). Elas não são necessariamente deliberadas nem

conscientes e não se reduzem à optimização do aqui e agora; elas prolongam-se no

espaço e no tempo, enquadram-se e têm continuidade num projecto global de

acção. Não se limitam à gestão do momento, nem à ocasião; não lutam apenas

contra as circunstâncias e os acontecimentos, nem ignoram as contradições, pelo

que não podem ser consideradas meras tácticas (De Certeau, 1980). Apesar de as

atitudes poderem variar no quotidiano profissional, produto da interpretação da

situação e circunstâncias vividas pelo(s) sujeito(s) no momento, elas contrariam o

pressuposto do determinismo social e integram-se numa lógica global de

intervenção. Neste sentido, as atitudes não são mais do que patamares no

processo de instauração / renovação de laços sociais e de regulação dos conflitos.

As circunstâncias são referentes contextuais que resultam de alterações nos

Page 4: A Conquista Do EspaçO Profissional

1ª MOSTRA DE PRÁTICAS PRÉ-PROFISSIONAIS DE SERVIÇO SOCIAL Helena Neves Almeida....ISBB...3 de Junho 2003

4

processos de relação social do(s) utentes(s), o que torna imperativo uma

compreensão das mudanças ocorridas ou desejadas, do significado que lhes é

atribuído pelos sujeitos e do seu posicionamento face às situações de vida. Por

isso, as atitudes aparentemente circunstanciais projectam-se no futuro, enquadram

e legitimam uma plataforma global de intervenção, ultrapassam a dimensão de

imediaticidade, substituindo-a pela lógica da duração processual, conferem

coerência e racionalidade à acção.

O uso de estratégias é importante tanto a nível da conquista do espaço

profissional como na procura de alternativas à situação-problema, elas potenciam a

intervenção. Em termos profissionais, para além dos constrangimentos contextuais

ao desenvolvimento da acção, há a considerar a posição activa do profissional na

construção do seu quotidiano. Quer isto dizer, que a prática não se impõe ao

técnico, como se de um ritual pragmático se tratasse, mas que lhe compete

participar, criar ou inovar constantemente face à variedade de solicitações. Se é

verdade que é necessário que cada profissional perceba os seus limites, também é

verdade que a intervenção implica uma avaliação permanente da sua posição e o

desenvolvimento de uma acção estratégica com avanços e recuos, num processo

de conquista permanente. Ora a trajectória de afirmação dos Assistentes Sociais

tem passado pelo reconhecimento do valor da estratégia em brechas e momentos

oportunos. A relação de poder que se exerce no contexto institucional é diferente

em cada situação e cada momento, pelo que a estratégia assume relevo inclusive

na conquista de espaço profissional.

Por vezes é necessário negociar papéis, delimitando fronteiras e

complementaridades, (re)estabelecendo espaços de troca. O Serviço Social,

embora seja dependente de instâncias superiores a nível administrativo, possui

uma autonomia técnica que lhe confere alguma margem de manobra no processo

de intervenção. Quando existem litígios no plano das competências profissionais,

torna-se imperativo clarificar as funções e os papéis que lhe são reservados, definir

os momentos de intervenção e de articulação com outros profissionais, determinar

as responsabilidades de cada actor no processo. Por vezes verificam-se

resistências e representações da profissão que dificultam a acção. Retenho sobre o

assunto o testemunho de uma Assistente Social que, trabalhando na área da

saúde, face à acusação de incompetência do serviço social formulada por um

membro da equipa, por a sua intervenção se revelar ineficaz a nível da resolução

Page 5: A Conquista Do EspaçO Profissional

1ª MOSTRA DE PRÁTICAS PRÉ-PROFISSIONAIS DE SERVIÇO SOCIAL Helena Neves Almeida....ISBB...3 de Junho 2003

5

de problemas de emprego ou de habitação, que estavam subjacentes ao

protelamento de uma alta, respondeu o seguinte:

“A senhora trabalha numa área de mulheres com abortamentos

sucessivos. Consegue resolver todos os problemas dessas mulheres?

Certamente que não. E porquê? Porque a senhora não tem meios, nem

é dona de todo o saber e muitas vezes não é por culpa sua, uma vez

que não há meios técnicos para suprir todas as deficiências que essas

situações apresentam. E não é por causa disso que a senhora é

incompetente. Também os Assistentes Sociais não possuem uma

varinha mágica para resolver os problemas ” .

Quando as dificuldades são estruturais, a procura de alternativas não

depende nem da vontade nem do empenhamento individual do técnico ou do

sujeito. É necessário que isso seja esclarecido, porque isso permite ponderar os

limites e em função dessa avaliação unir esforços (em termos de equipa ou a nível

institucional) para prosseguir o trabalho, contornando ou enfrentando as barreiras

que intervêm no processo.

Na intervenção social não existem receitas e uma atitude com resultados

positivos num dado momento e situação poderá não ser eficaz num outro contexto.

Não é um ritual pragmático. Os referenciais teóricos orientam e potenciam as

práticas, não as substituem nem limitam. O profissional ao tomar conhecimento da

situação-problema intervém, integrando os quadros teóricos referenciais, os

objectivos institucionais, a representação que faz da prática profissional e do

potencial humano dos recursos que utiliza. Deste modo, quando se fala em

estratégias de intervenção faz-se apelo ao conjunto de atitudes que permitem ao

profissional fazer a gestão dos poderes que contextualizam a acção e proporcionar

a mudança não apenas na situação mas também nos sujeitos. Tal faz com que elas

sejam diversificadas e sinalizadoras de diferentes concepções de prática

profissional. O problema coloca-se quando o Assistente Social se prende a

concepções teóricas em detrimento do discernimento das oportunidades e do

potencial humano na resolução das situações, ou quando a sua prática quotidiana

se processa de forma rotineira. Surgem então discursos desculpabilizadores da

(in)acção, de vitimização, de dúvida e interrogação face às dificuldades, tais como: "

Page 6: A Conquista Do EspaçO Profissional

1ª MOSTRA DE PRÁTICAS PRÉ-PROFISSIONAIS DE SERVIÇO SOCIAL Helena Neves Almeida....ISBB...3 de Junho 2003

6

não existem respostas para os problemas", " o serviço social não dispõe de

modelos teóricos alternativos a outras ciências sociais", ou " foi para isto que tirei o

curso?". É obvio que este tipo de argumentos surge algumas vezes após tentativas

variadas de solução para o problema diagnosticado, mas também é verdade que

em algumas ocasiões subentende uma ausência de questionamento sobre o

percurso profissional : "o que é que eu fiz para ultrapassar a situação?". É preciso

recusar este fatalismo funcional.

Apesar de as estratégias poderem ser interdependentes e complementares

entre si durante o processo de intervenção, e abrangerem também o campo do

imprevisto, uma vez que embora racionais surgem no contexto da emergência do

novo, a prática do Serviço Social evidencia-as como um leque de opções

organizadas em torno do contexto (situação) e da representação que o técnico faz

do seu perfil profissional. O termo "bricolage " utilizado pelos autores francófonos

reflecte esta incessante atitude criativa no processo de descoberta de soluções

inovadoras, e cobre diversas vertentes :

1 - Corresponde ao acto de saber tecer e compor laços, avaliando as

possibilidades e limites,

2 – Permite encontrar soluções para os problemas colocados pelos utentes,

de forma pontual ou não, mas sempre construídas em função das oportunidades e

recursos disponíveis,

3 – Compreende a utilização de toda a informação disponível para descobrir

meios reduzidos,

4 – Recorre às redes relacionais, para obter concessões ou criar uma

alternativa.

Mas o principal instrumento de trabalho do Assistente Social é a palavra

(escrita ou oral), e esta permite estender o conceito “estratégia” para o domínio do

cliente. No processo de intervenção a estratégia consiste muitas vezes em fazer

adquirir por parte do cliente um pensamento estratégico de antecipação do curso

dos acontecimentos e em relação a essa previsão reorientar o seu comportamento.

Como refere Paulo Netto (2001), as acções humanas são sempre orientadas

para objectivos-metas e fins. Elas implicam sempre um projecto que é uma

antecipação ideal da finalidade que se pretende alcançar, com a inovação dos

Page 7: A Conquista Do EspaçO Profissional

1ª MOSTRA DE PRÁTICAS PRÉ-PROFISSIONAIS DE SERVIÇO SOCIAL Helena Neves Almeida....ISBB...3 de Junho 2003

7

valores que a legitimam e a escolha dos meios para a atingir. O Serviço Social está

alicerçado numa diversidade de origens e expectativas sociais, comportamentos e

preferências teóricas, ideológicas e societárias. Por isso, poderão emergir

projectos profissionais diferentes, embora se reconheçam valores básicos.

Quais são esses valores?

1 - A Liberdade:

Reconhece a liberdade como valor central, concebida historicamente como

possibilidade de escolha entre alternativas concretas. Deste modo, a liberdade

surge associada à autonomia, à emancipação e desenvolvimento dos sujeitos

entendidos como actores providos de vontade.

2 - A Defesa intransigente dos Direitos do Homem e do Cidadão:

A equidade e a justiça social, na perspectiva da universalização do acesso aos

bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, a ampliação e a

consolidação da cidadania constituem condição para a garantia dos direitos civis,

políticos e sociais.

3 - A democratização de procedimentos:

O projecto reclama-se radicalmente democrático, entendendo-se democratização

como a “socialização da participação política e socialização da riqueza socialmente

produzida”.

4 - Um compromisso com a competência:

A competência profissional implica uma formação académica qualificada que

viabilize a “análise concreta da realidade social” imprescindível ao desenvolvimento

de procedimentos adequados. A auto-formação permanente e o exercício de uma

postura investigativa revelam-se fundamentais.

É necessário romper com o voluntarismo e com o isolamento profissional.

5 - Um compromisso com a qualidade dos serviços pre stados:

O projecto profissional radica num compromisso com a qualidade dos serviços

prestados à população, o que implica uma maior participação dos utentes na

Page 8: A Conquista Do EspaçO Profissional

1ª MOSTRA DE PRÁTICAS PRÉ-PROFISSIONAIS DE SERVIÇO SOCIAL Helena Neves Almeida....ISBB...3 de Junho 2003

8

tomada de decisão. A defesa e a reprodução dos princípios e valores éticos que lhe

estão subjacentes exige sujeitos profissionais activos e autónomos.

O reconhecimento do valor da estratégia e dos fundamentos éticos do projecto

profissional, revelam-se pois como alicerces na construção do espaço profissional,

na medida em que permitem:

I - ADOPTAR UM POSICIONAMENTO DE RECUSA DO FATALISM O

FUNCIONAL , que está alicerçado no modelo de “deficit”. Para isso é necessário:

1 – Evitar o ritual pragmático:

Diariamente existe um conjunto de diligências rotineiras, adequadas ao normal

exercício das funções. Tal não significa que a intervenção possa ser entendido

como se de um ritual pragmático se tratasse. Há que criar condições para a

emergência do novo, através do domínio das atitudes comunicacionais, da

construção de propostas inovadoras que formatem novas ofertas sociais, da

integração no quotidiano de espaços propiciadores de reflexão sobre aquilo

que se faz, como se faz e porque se faz. É preciso enveredar pela criação de

novas representações a partir de novas práticas.

2 – Valorizar a intervenção reflexiva e a investiga ção-acção.

Confrontados diariamente com a urgência da resposta, os assistentes sociais

desenvolvem acções detentoras de um residual assistencialista que importa

incorporar como um patamar de intervenção não limitativo da sua imagem ou

da sua prática. Ponderar as oportunidades, os recursos, os meios, os limites

pessoais, profissionais, institucionais e sociais, exige por um lado uma ruptura

com procedimentos standartizados e por outro lado a previsão de momentos

de paragem para a escrita, a análise e a reflexão. O trabalho em equipa, a

actualização de conhecimentos, a participação em fóruns de discussão alarga

horizontes e favorece a inovação das práticas quotidianas. É importante

conceber a intervenção como uma mediação social, capaz de articular

diferentes níveis e perfis de intervenção. Neste contexto, é importante associar

a investigação (produção de conhecimentos) e a acção (intervenção), como

garante tanto da adequabilidade desta ao conhecimento objectivo da realidade

Page 9: A Conquista Do EspaçO Profissional

1ª MOSTRA DE PRÁTICAS PRÉ-PROFISSIONAIS DE SERVIÇO SOCIAL Helena Neves Almeida....ISBB...3 de Junho 2003

9

social, como da participação dos sujeitos e da formação de competências que

um processo de mudança exige.

3 – Reconhecer os poderes associados à intervenção.

Apesar de a intervenção dos Assistentes Sociais se processar à margem

do exercício de um poder coercivo, resultando por isso naquilo que se designa

por mediação desarmada, é inegável a sua contribuição no processo de

procura de alternativas à exclusão social e na resolução dos problemas

sociais. As fontes de legitimação da sua intervenção são diversas, com

referências a nível conceptual, contextual e técnico-metodológica. A primeira

decorre da perspectiva humanista e relacional que lhe está associada desde a

institucionalização dos serviços sociais e do trabalho social; a segunda deriva

do lugar intermediário do serviço social nas organizações, designadamente no

âmbito da regulação da procura e da oferta social; a terceira prende-se com os

saberes e competências associados à prática dos Assistentes Sociais,

fortemente influenciados por conhecimentos provenientes das ciências sociais.

Apesar de a sua intervenção se processar num clima de ausência de poder, é-

lhe atribuído um papel mediador no processo de resolução de problemas

sociais, tanto pelos clientes como pelas organizações. Ora, a noção de acção

está logicamente ligada à de poder1. A acção implica, por um lado, a utilização

de meios para alcançar resultados, através da intervenção directa de um actor

no decurso do fenómeno e, por outro lado, uma acção intencionada. O poder

representa a capacidade de um agente para mobilizar recursos que permitam

alterar o curso de um fenómeno, e é uma propriedade da interacção. Por isso,

poder-se-á falar de poder associado à intervenção como produto de factores

intrínsecos e extrínsecos ao saber fazer profissional, um poder com

características próprias:

1. Poder relacional : A mediação do assistente social processa-se

sempre no contexto de confluência de comunicações, reciprocidades e trocas.

Apesar de se reconhecer que estas são também condições subjacentes a

1 GIDDENS, Anthony , Novas regras do método sociológico. Trajectos. Lisboa: Gradiva, 1996, p.128.

Page 10: A Conquista Do EspaçO Profissional

1ª MOSTRA DE PRÁTICAS PRÉ-PROFISSIONAIS DE SERVIÇO SOCIAL Helena Neves Almeida....ISBB...3 de Junho 2003

10

práticas de persuasão, quando esta se sobrepõe à capacidade de escuta e de

diálogo deixamos de estar na presença de um processo de mediação. Este

exige tempo e desenvolve-se de forma catalítica, no quadro de uma “liberdade

relativa de escolha” e num processo crescente de autonomia dos sujeitos que

recorrem aos serviços.

2. Poder partilhado e micro : Quando a solução provem apenas de uma

fonte, ela resulta da autoridade que lhe é atribuída. Ora, o desempenho

profissional faz-se sentir a nível micro (utentes, familiares, contexto social) e

resulta da combinação de esforços de diversos intervenientes: a equipa, outros

profissionais, o utente, a família, organizações da comunidade, voluntários.

Raramente a sua acção resulta de uma decisão própria e unidireccional. Por

isso, o seu poder do assistente social é partilhado e micro.

3. Poder proponente : Resulta da capacidade de elaborar propostas e

projectos capazes de sinalizar problemas sociais, instituir salvaguardas

processuais no plano dos direitos e deveres do utente-cidadão, argumentar de

forma convincente, rigorosa e objectiva sobre as vantagens, as desvantagens,

os limites e as potencialidades dos clientes, apresentar novas propostas de

acção, defender os interesses do utente no quadro dos direitos que estão

consagrados na lei, e dentro dos princípios da equidade e da justiça social,

propor e elaborar projectos inovadores no campo social. O enquadramento

legal confere legitimidade ao fazer profissional e vem reforçar a sua

credibilidade.

4. Poder consultivo : Está aliado ao anterior, e resulta da proximidade

que o assistente social tem com o utente e com o meio, e da sua capacidade

para analisar a realidade social envolvente, a sua dinâmica, os seus limites e

potencialidades. O conhecimento do contexto territorial e pessoal das

situações atribui-lhe um poder consultivo por parte da administração ou gestão

dos serviços sempre que seja necessário. É no quadro deste poder que se

poderão inserir diligências de pesquisa-acção, como aproximações ao terreno,

levantamento de novos dados, estudo das variáveis consideradas úteis à

interpretação da situação na sua globalidade e particularidade. tais

Page 11: A Conquista Do EspaçO Profissional

1ª MOSTRA DE PRÁTICAS PRÉ-PROFISSIONAIS DE SERVIÇO SOCIAL Helena Neves Almeida....ISBB...3 de Junho 2003

11

procedimentos dão visibilidade a situações até aí não diagnosticadas e

viabilizam o desenvolvimento de novas formas de intervenção.

II – INTEGRAR UMA CULTURA DE INVESTIGAÇÃO E VALORIZ AR A

PRÁTICA COMO FONTE DE CONHECIMENTO.

A aplicação de conhecimentos à realidade social implica um esforço fundado

em três vertentes:

1 – o reconhecimento dos conteúdos teóricos que fundamentam as práticas

renovadas e o sentido que lhes é atribuído;

2 – a identificação da rede conceptual que alicerça as posturas inovadoras

no plano processual;

3 – a aceitação do papel activo do interventor no plano da construção do

conhecimento.

Estes elementos favorecem tanto o desenvolvimento de acções

coerentes, teoricamente fundamentadas, estratégicas, isto é, cognitivamente

orientadas por relações meios-fins, adaptadas à realidade social de intervenção,

como a produção de novos saberes. O campo da acção não é um depósito de

conhecimentos que se traduzam numa rotina. A acção é o resultado de opções

mesmo que não tenhamos consciência do facto. E, embora os seus

fundamentos nem sempre sejam muito claros, essas opções conduzem à

percepção de que as práticas são diversas. Para isso muito tem contribuído a

deficiente reflexão que é feita sobre o quotidiano profissional. Neste contexto, a

responsabilidade das instituições universitárias é acrescida. Torna-se necessário

desenvolver uma “cultura de investigação” que aproxime os discursos da teoria e

da prática. E isso só se consegue fazendo e ensinando a fazer investigação. A

relação com o campo da intervenção permite renovar conhecimentos, aproximar

estratégias e valorizar saberes.

Page 12: A Conquista Do EspaçO Profissional

1ª MOSTRA DE PRÁTICAS PRÉ-PROFISSIONAIS DE SERVIÇO SOCIAL Helena Neves Almeida....ISBB...3 de Junho 2003

12

III – APROVEITAR DINÂMICAS ACTUAIS, INVESTIR EM ÁRE AS ANTIGAS

E NOVOS PROBLEMAS, COM NOVOS INSTRUMENTOS E /OU

PROCEDIMENTOS RENOVADOS.

A articulação entre o económico e o social, constitui hoje uma referência

central de novas práticas, um vector de inovação para a profissão, que tem

subjacente uma visão renovada das competências que lhe são atribuídas e

comprovadas no seu quotidiano. Assiste-se à abertura de novos objectos de

intervenção associados à esfera económica ou da inserção, criando-se novas

dinâmicas através da entrada de novos actores profissionais e institucionais. A

promoção da igualdade de oportunidades e de integração social, bem como a

valorização da cidadania, exigem uma avaliação e acção preventivas reveladoras

de novas competências, designadamente nos domínios da gestão social e da

mediação de conflitos. Estes constituem novos desafios, novos campos de

intervenção, onde novos e acumulados conhecimentos são movimentados no

sentido da construção de respostas adequadas e inovadoras, capazes de assegurar

o restabelecimento de laços sociais, cuja ruptura está na origem dos novos

problemas sociais, designadamente e entre outros na área da família, dos menores,

dos idosos, das relações de proximidade. Advocacy, empowerment, partenariado,

trabalho de rede constituem-se como concepções passíveis de articulação num

mesmo processo de intervenção. O seu recurso implica uma interpretação da

situação, dos factores contextuais e pessoais intervenientes. Compete ao assistente

social posicionar-se no tabuleiro dinâmico dos referenciais teóricos e interpretar o

sentido da intervenção adequada.

Na construção do espaço profissional intervêm elementos de nível micro

(natureza do problema, características dos utentes), nível meso (representação

da profissão e conceptualização da intervenção) e nível macro (problemas e

políticas sociais). A diversidade de práticas existentes, é o produto desses

factores. A consolidação e conquista de espaço constituem um desafio a que

urge dar resposta com determinação e esperança.

Page 13: A Conquista Do EspaçO Profissional

1ª MOSTRA DE PRÁTICAS PRÉ-PROFISSIONAIS DE SERVIÇO SOCIAL Helena Neves Almeida....ISBB...3 de Junho 2003

13

CORTINA INVISÍVEL

Do lado de cá Busco a liberdade.

Jogo-me contra a vidraça Que me impede de correr

Em direcção ao longínquo horizonte. Faço-o

Num frenesim inquietante e infrutífero. Impotente

Detenho-me perante a cortina invisível Que me impede de correr.

Baixo os braços... Encosto a cabeça...

Talvez desista de me jogar contra a vidraça... Mas nada me impedirá

De a tatear insistentemente Pois um dia

Hei-de encontrar uma brecha!

Luisa Pimentel, 2002