A CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA NA ALFABETIZAÇÃO E...
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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA
LUCIMAR FERREIRA DA SILVA OLIVEIRA
A CONSCINCIA FONOLGICA NA ALFABETIZAO E PREPARAO DO
PROFESSOR - ESTUDO DE CASO
Tubaro
2009
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LUCIMAR FERREIRA DA SILVA OLIVEIRA
A CONSCINCIA FONOLGICA NA ALFABETIZAO E A PREPARAO DO
PROFESSOR - ESTUDO DE CASO
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado em Cincias da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Linguagem.
Orientadora: Profa. Dra. Marilia Silva dos Reis
Tubaro
2009
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LUCIMAR FERREIRA DA SILVA OLIVEIRA
A CONSCINCIA FONOLGICA NA ALFABETIZAO E A PREPARAO DO
PROFESSOR - ESTUDO DE CASO
Esta dissertao foi julgada adequada obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Linguagem e aprovada em sua forma final pelo Curso de Mestrado em Cincias da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina.
Tubaro, 31 de julho de 2009.
______________________________________________________ Professora e orientadora Dra. Marilia Silva dos Reis
Universidade do Sul de Santa Catarina
______________________________________________________ Professora emrita Leonor Scliar-Cabral Universidade Federal de Santa Catarina
______________________________________________________
Professora Dra. Eliane Santana Dias Debus Universidade do Sul de Santa Catarina
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Dedico este trabalho a Deus, pela sua
proteo durante todo este mestrado. A meu
esposo Ricardo, companheiro, incentivador e
participante de mais essa etapa da minha vida.
A meu querido filho Marwim, pelo auxlio e
compreenso nos momentos de ausncia.
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AGRADECIMENTOS
Agradeo a Deus por iluminar e guiar meus caminhos. A meu esposo Ricardo
pelo amor, incentivo e compreenso nos momentos de ausncia e, sobretudo, por partilhar
deste sonho comigo. Em especial, professora emrita Leonor Scliar Cabral, pela
implantao do projeto Ler & ser, prevenindo o analfabetismo funcional, atravs do qual foi
fortalecida a discusso (na academia) sobre a importncia da alfabetizao para o letramento
para prevenir o analfabetismo funcional e por nos ceder a traduo da obra de Dehaene
(2007). professora Dra. Marilia Silva dos Reis, minha orientadora, por ter acreditado em
mim, pelo carinho, amizade e relevante contribuio na minha formao. Ao coordenador do
curso, prof. Dr. Fbio Rauen, pelo acolhimento e amizade. Agradeo professora Dra. Maria
Marta Furlanetto, coordenadora do GADIPE, grupo de pesquisa a que estou filiada, pela
leitura criteriosa da proposta desta dissertao, na sua qualificao enquanto projeto.
professora e amiga Dra. Eliane Debus, pela acolhida, compreenso e colaborao nas aulas de
Estgio de Docncia. Muito obrigada!! s alunas participantes desta pesquisa, minha especial
gratido, por terem contribudo para realizao desse trabalho. A meus pais que, com a
humildade e simplicidade, me ensinaram desde cedo a importncia de APRENDER A LER e
de estudar. Aos queridos colegas de curso pelos momentos inesquecveis de convivncia,
alegria e constante aprendizado. minha cunhada Susana e amiga Rosane, por terem
despertado em mim a esperana de um sonho realizvel: tornar-me mestre. Aos amigos Alba e
Mazinho, por me reanimarem constantemente sempre que as dificuldades apareciam.
Carssimos, obrigada.
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Lemos para compreender. O propsito da leitura a compreenso. Mas ler no o mesmo que compreender. Podemos ler sem compreender. Podemos compreender sem ler. Ler diferente de aprender a ler (BRASIL, 2003, p. 20). Por isso, no se h de confundir aprendizagem da leitura com o seu objetivo: a compreenso, uma vez que [. . .] no correto tomar a finalidade de uma atividade como sendo sua definio (MORAIS, J. apud BRASIL, 2003, p. 21).
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RESUMO
O objetivo geral desta pesquisa consiste em avaliar a influncia de um minicurso a futuros
alfabetizadores trabalhando a conscincia fonolgica, com base nos princpios do sistema
alfabtico do portugus do Brasil (SCLIAR-CABRAL, 2003a; b), com e para o letramento.
Evidenciam-se tambm possveis contradies ontolgicas comumente encontradas nos
materiais didticos adotados na aprendizagem inicial da leitura, a saber: (i) entre o conceito de
alfabetizao e o conceito de letramento, mesmo depois da adoo do ensino fundamental de
nove anos; (ii) entre a relao grafemas e fonemas do portugus do Brasil.
Metodologicamente, tal minicurso foi estruturado como parte integrante dos contedos
propostos em uma disciplina curricular do 5 semestre de Pedagogia, e foi ministrado em trs
etapas: (i) pr-teste: aplicao de dez questes (questionrio) a 14 sujeitos; (ii) interveno
docente na aplicao de um minicurso; e (iii) ps-teste: reaplicao do mesmo instrumento de
avaliao (questionrio) ao trmino do minicurso. Os pressupostos terico-metodolgicos
norteadores da pesquisa tm como base a psicolingustica, os avanos das neurocincias para
a aprendizagem inicial da leitura, e os princpios do sistema alfabtico do portugus do Brasil
(SCLIAR-CABRAL, 2003a, p. 50-51), no que diz respeito ao trabalho com a conscincia
fonolgica na aprendizagem inicial da leitura. Os resultados evidenciam que, embora os
sujeitos investigados tenham demonstrado despreparo terico-metodolgico sobre a
conscincia fonolgica na alfabetizao, este comportamento inicial pde ser amenizado com
o minicurso ministrado, o que nos remete importncia de os espaos de aula sobre o referido
contedo serem ampliados. H que se rediscutir: (i) os fatores envolvidos na aprendizagem
inicial da leitura, cujo enfoque seja a premissa de que LER diferente de APRENDER A
LER; (ii) a importncia de se firmarem, nos semestres posteriores, os conhecimentos
lingusticos (estruturais) e metalingusticos, sobretudo em termos de fonologia e as relaes
entre ela e a aprendizagem inicial da leitura na formao dos futuros docentes-alfabetizadores.
Palavras-chave: Conscincia fonolgica. Aprendizagem inicial da leitura. Formao docente.
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ABSTRACT
The general objective of this research consists of evaluating the influence of a mini course of
teacher formation about the importance of working the phonological conscience in the initial
learning of reading, with basis in the principles of the Brazilian Portuguese alphabetic system
(SCLIAR-CABRAL, 2003a; b), to prospective teachers whose proposal of work deals with
alphabetization with and to literacy. Possible ontological contradictions found commonly in
didactic materials adopted in the initial learning of reading are also highlighted, such as: (i)
the concept of alphabetization and literacy, even after the introduction of the nine-year
Elementary school; (ii) the relation between grapheme and phoneme. Methodologically, such
mini course was designed as an integrant part of the proposed contents in a curricular
discipline of the 5th semester of Pedagogy, and it was divided into three parts: (i) pre-test:
application of ten questions to 14 subjects; (ii) teacher intervention in the application of the
mini course; and (iii) post-test: reapplication of the same instrument of evaluation
(questionnaire) at the end of the mini course. The methodological/theoretical indications that
lead the research is based on the psycholinguistic, advances in neuroscience discoveries about
the learning of the initial reading, and the principles of the Brazilian Portuguese alphabetic
system (SCLIAR-CABRAL,2003a, p.50-51), regarding the importance of working the
phonological conscience in the learning of initial reading. The results show, although the
subjects in question had demonstrated lack of methodological/theoretical knowledge about the
importance of phonological conscience in the alphabetization, such initial behavior could be
eased by the mini course, what points out the importance of discussing more about such
subject in class. Some issues have to be discussed: (i) the involving factors in the initial
learning of reading, whose focus be the premise that READING is different from
LEARNING HOW TO READ ; (ii) the importance of guaranteeing , in the prospective
semesters, linguistics and metalinguistics knowledge, in terms of phonology and the relation
between it an the learning of initial reading in the formation of prospective alphabetizer
teachers.
Keywords: Phonological conscience. Initial learning of reading. Teacher formation.
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Percentual do nmero de sujeitos que concebem ou a leitura ou a escrita como
objetos de ensino para crianas de 6 a 8 anos...........................................................................60
Tabela 2 Resultado numrico das respostas da Questo 1. b) Leitura e Escrita como
habilidades distintas (ou no): pr e ps-teste. .........................................................................65
Tabela 3 Resultado numrico das respostas da Questo 1. c) Leitura e Escrita como
habilidades que se complementam:pr e ps-teste. ..................................................................67
Tabela 4 - nfase da escola para as habilidades de leitura e escrita.........................................70
Tabela 5 Diferena entre as atividades de escrever e copiar: pr e ps-teste. ........................72
Tabela 6 Sons de vogais do portugus do Brasil: pr e ps-teste...........................................74
Tabela 7 Trabalhar a distino entre sons de vogais e letras de vogais: pr e ps-teste. .......79
Tabela 8 Resultado da classificao atribuda ao nmero de vogais das palavras estudadas:
pr-teste. ..................................................................................................................................82
Tabela 9 Resultado numrico das respostas dos sujeitos sobre as possveis causas dos erros
de grafia na fase inicial de alfabetizao: pr e ps-teste.........................................................84
Tabela 10 - Estratgia do sujeito em relao aos diferentes sons do grafema e, no EF de
nove anos. .................................................................................................................................89
Tabela 11 Resultado numrico das respostas da questo 9): pr e ps-teste..........................93
Tabela 12 Resultado numrico das respostas/inferncias dos sujeitos sobre o assunto
trabalhado no minicurso: pr e ps-teste. .................................................................................95
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LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Valores dos grafemas, independentes do contexto.................................................39
Quadro 2 Relaes biunvocas entre fonemas e grafemas. ...................................................45
Quadro 3 - Relaes no-biunvocas entre fonemas e grafemas. .............................................46
Quadro 4 Valores dos grafemas e e o, em contextos no-tnicos. .................................47
Quadro 5- Sistema voclico do portugus do Brasil. ...............................................................50
Quadro 6 Dados de identificao dos sujeitos da pesquisa. ..................................................53
Quadro 7 Apresentao da questo 1 do instrumento de pesquisa. ......................................59
Quadro 8 - Apresentao da questo 1. a do instrumento de pesquisa.....................................59
Quadro 9 Transcrio das respostas sobre o que os sujeitos entendem como ensino de leitura
para crianas de 6 a 8 anos: pr e ps teste. .............................................................................62
Quadro 10 Transcrio das respostas sobre o que os sujeitos entendem como ensino da
escrita para crianas de 6 a 8 anos: pr e ps teste. ..................................................................63
Quadro 11 - Apresentao da questo 1. b do instrumento de pesquisa. .................................64
Quadro 12 Transcrio das respostas dos sujeitos da questo 1. b: pr e ps-teste. .............64
Quadro 13- Apresentao da questo 1. c do instrumento de pesquisa....................................66
Quadro 14 - Transcrio das respostas dos sujeitos da questo 1. c: pr e ps-teste. ..............66
Quadro 15 - Apresentao da questo 1. d do instrumento de pesquisa.Erro! Indicador no
definido.
Quadro 16 Transcrio das respostas dos sujeitos da questo 1. d: pr e ps-teste. .............69
Quadro 18- Apresentao da questo 2 do instrumento de pesquisa. ......................................71
Quadro 19 Transcrio das respostas dos sujeitos da questo 2 (2. 1): pr-teste. .................71
Quadro 20 Transcrio das respostas dos sujeitos da questo 2 (2. 1): ps-teste..................72
Quadro 21 Apresentao da questo 3 do instrumento de pesquisa......................................73
Quadro 22 Transcrio das respostas dos sujeitos da questo 3 (3. 1; 3. 2): pr-teste. .........73
Quadro 23 Transcrio das respostas dos sujeitos da questo 3 (3. 1; 3. 2): ps-teste. .........74
Quadro 24 - Apresentao da questo 4 do instrumento de pesquisa. .....................................75
Quadro 25 Transcrio das respostas dos sujeitos da questo 4: pr-teste.............................76
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Quadro 26 Transcrio das respostas dos sujeitos da questo 4 (4.1; 4.2; 4.3; 4.4): ps-teste.
..................................................................................................................................................76
Quadro 27 - Apresentao da questo 5 do instrumento de pesquisa. .....................................77
Quadro 28 Transcrio das respostas dos sujeitos da questo 5: pr-teste.............................78
Quadro 29 Transcrio das respostas dos sujeitos da questo 5: ps-teste. ...........................79
Quadro 30- Apresentao da questo 6 do instrumento de pesquisa. ......................................81
Quadro 31- Apresentao da questo 7 do instrumento de pesquisa. ......................................83
Quadro 32 Transcrio das respostas dos sujeitos da questo 7: pr-teste.............................84
Quadro 33 Transcrio das respostas dos sujeitos da questo 7: ps-teste. ...........................84
Quadro 34- Apresentao da questo 8 do instrumento de pesquisa. ......................................86
Quadro 35 Transcrio das respostas dos sujeitos da questo 8 (8. 1): pr-teste. ..................87
Quadro 36 Transcrio das respostas dos sujeitos da questo 8 (8. 1): ps-teste..................88
Quadro 37 - Apresentao da questo 9 do instrumento de pesquisa. .....................................91
Quadro 38 Transcrio das respostas dos sujeitos da questo 9: pr-teste.............................92
Quadro 39 Transcrio das respostas dos sujeitos da questo 9: ps-teste. ...........................92
Quadro 40 Apresentao da questo 10 do instrumento de pesquisa....................................94
Quadro 41 Transcrio das respostas dos sujeitos da questo 10: pr e ps-teste. ...............95
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SUMRIO
1 INTRODUO.................................................................................................................13
1.1 A IMPORTNCIA DO SISTEMA ESCRITO PARA O LETRAMENTO....................15
1.2 ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS: A ALFABETIZAO NO CICLO DA
INFNCIA ...............................................................................................................................18
1.3 OBJETIVOS E ESTRUTURA DA DISSERTAO.....................................................20
2 FUNDAMENTAO TERICA...................................................................................22
2.1 LETRAMENTO E ALFABETIZAO.........................................................................22
2.2 A CONSCINCIA FONOLGICA NA APRENDIZAGEM DA LEITURA................28
2.3 O PROCESSAMENTO DA LEITURA ..........................................................................34
2.4 O AVANO DAS NEUROCINCIAS E A APRENDIZAGEM DA LEITURA..........35
2.5 PRINCPIOS DO SISTEMA ALFABTICO DO PB REFINANDO CONCEITOS..37
2.6 A NO-BIUNIVOCIDADE NA DESCODIFICAO DE ALGUNS GRAFEMAS...45
3 METODOLOGIA.............................................................................................................52
3.1 TPICOS METODOLGICOS .....................................................................................52
3.1.1 Pesquisa Participativa.................................................................................................52
3.1.2 Problema ......................................................................................................................52
3.1.3 Sujeitos .........................................................................................................................53
3.1.4 Corpus da pesquisa......................................................................................................54
3.2 PROCEDIMENTOS DE COLETA DE DADOS............................................................54
3.3 PROCEDIMENTOS DE ANLISE DO CORPUS ........................................................56
4 ANLISE E DISCUSSO DOS DADOS.......................................................................57
4.1 ANLISE E DISCUSSO DA QUESTO 1 ................................................................58
4.1.1 Anlise e discusso da questo 1. a ............................................................................59
4.1.2 Anlise e discusso da questo 1 (1. b) pr-teste e ps-teste.................................64
4.1.3 Anlise e discusso da questo 1 (1. c) pr-teste e ps-teste .................................66
4.1.4 Anlise e discusso da questo 1 (1. d) pr-teste e ps-teste.................................68
4.2 ANLISE E DISCUSSO DA QUESTO 2 ................................................................71
4.3 ANLISE E DISCUSSO DA QUESTO 3 ................................................................73
4.4 ANLISE E DISCUSSO DA QUESTO 4 ................................................................75
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4.5 ANLISE E DISCUSSO DA QUESTO 5 ................................................................77
4.6 ANLISE E DISCUSSO DA QUESTO 6 ................................................................81
4.7 ANLISE E DISCUSSO DA QUESTO 7 ................................................................83
4.8 ANLISE E DISCUSSO DA QUESTO 8 ................................................................86
4.9 ANLISE E DISCUSSO DA QUESTO 9 ................................................................91
4.10 ANLISE E DISCUSSO DA QUESTO 10 ..............................................................94
5 CONSIDERAES FINAIS...........................................................................................98
REFERNCIAS ...................................................................................................................105
ANEXOS ...............................................................................................................................108
ANEXO A INSTRUMENTO DE AVALIAO (PR-TESTE E PS-TESTE).......109
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1 INTRODUO
Dizer que ler muito mais do que descodificar, conforme apontam muitos
estudiosos, especialmente da rea da educao, implica a inferncia de que ler seja, tambm,
decodificar: por esta faceta da aprendizagem da leitura que este trabalho vai se firmar. A
opo por esta natureza de estudo (no nvel mais lingustico) no deve ser interpretada como
uma viso reducionista de leitura: concebe-se a decodificao como mais um dos nveis de
leitura. Numa arquitetura neuronal, a decodificao se situaria num nvel mais baixo e o da
interpretao textual num nvel mais alto (SCLIAR-CABRAL, 2008). Partindo do princpio
de que ler diferente de aprender a ler, a realizao do presente estudo deu-se como uma
tentativa de se evidenciar a importncia do papel da instruo (lingustica e psicolingustica)
nessa fase inicial da aprendizagem da leitura com e para o letramento.
Ler diferente de aprender a ler. Para Scliar-Cabral (2008), o ato de ler constitui-
se numa atividade muito complexa, por envolver um conjunto de processos que se do
paralelamente no nosso crebro. O estudo da leitura pode ser abordado sob diferentes
perspectivas: epistemolgica, discursiva, cognitiva e, na aprendizagem inicial desta
habilidade, tambm sob a perspectiva lingustica/metalingustica (instruo sobre fonema,
grafema, som, letra, etc.). Neste trabalho, nosso foco recai sobre esta ltima perspectiva.
Outrossim, vale ressaltar que o fato de centrarmos o foco de discusso nos aspectos mais
lingusticos e psicolingusticos da aprendizagem da leitura, no implica, de forma alguma, que
releguemos para um segundo plano os problemas mais amplos que envolvem a leitura, como
os que tratam de aspectos semntico-discursivos, nem tampouco a importncia de se trabalhar
a motivao para a leitura desde a fase inicial de escolarizao.
A descrio dos princpios do sistema alfabtico do portugus do Brasil por
Scliar-Cabral (2003a, p. 19) emerge da convico da autora de que a principal causa dos
fracos resultados obtidos no ensino-aprendizagem da leitura e da escrita, e que muito vem
aumentando o ndice de analfabetismo funcional no Brasil, reside na ausncia de uma slida
fundamentao por parte dos educadores sobre os processos neles envolvidos.
So muitos estes processos, dentre os quais se ressaltam a descodificao e
codificao da palavra escrita: neste estudo, vamos abordar especificamente os que dizem
respeito descodificao no portugus do Brasil. 1
1 Na pgina 36 estes conceitos so desenvolvidos.
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O processo de descodificao implica o reconhecimento das letras e os valores
atribudos aos grafemas por parte do leitor, para que ele reconhea a palavra escrita, condio
imprescindvel para chegar compreenso e interpretao do texto escrito. Na codificao, o
processo inverso: aqui o redator converte os fonemas em grafemas na escrita, e o faz a partir
de sua variedade sociolingustica. 2 Por isso de fundamental importncia o professor estar
atento variedade que seu aluno pratica, uma vez que a distncia entre o oral e o escrito ser
algumas vezes muito grande, cabendo explicaes especficas, pois embora o sistema escrito
seja um s para todo o territrio brasileiro, a diversidade impera na fala (SCLIAR-CABRAL,
2003a, p. 124).
Esta dissertao, portanto, evidencia a importncia do estudo dos princpios do
sistema alfabtico do portugus do Brasil na formao inicial e continuada de docentes que
atuam nos anos iniciais do ensino fundamental de nove anos, bem como a importncia de se
trabalhar a conscincia fonolgica no ciclo da infncia3, para que formem leitores e escritores
para o letramento, ou seja, para o exerccio pleno da cidadania.
A alfabetizao, entendida como a aprendizagem inicial da leitura, vem sendo h
muito objeto de estudo de vrios pesquisadores de diferentes reas do conhecimento. Isso
porque a alfabetizao, processo complexo e mltiplo, um dos momentos mais esperados de
toda a sequncia da vida escolar, pois nesse perodo que a criana se lana efetivamente no
mundo da linguagem escrita.
Nesta dissertao, trata-se da descrio da realizao de um minicurso a futuros
alfabetizadores trabalhando a conscincia fonolgica na aprendizagem inicial da leitura
(SCLIAR-CABRAL, 2007; 2008; 2009), com e para o letramento.
Tal minicurso constituiu parte integrante dos contedos propostos em uma
disciplina curricular do 5 semestre de Pedagogia de uma universidade do estado de Santa
Catarina, e foi ministrado em trs etapas: (i) pr-teste: aplicao de um teste de dez questes
(questionrio) a 14 sujeitos, com o objetivo de se diagnosticar o conhecimento (dos referidos
sujeitos) sobre o tema; (ii) interveno docente na aplicao de um minicurso; e (iii) ps-teste:
reaplicao do mesmo instrumento de avaliao (questionrio) ao trmino do minicurso.
Os pressupostos terico-metodolgicos norteadores da pesquisa tm como base a
psicolingustica firmada nos avanos das neurocincias para a aprendizagem inicial da leitura,
e os princpios do sistema alfabtico do portugus do Brasil (SCLIAR-CABRAL, 2003a, p.
2 Na pgina 39 estes conceitos so desenvolvidos. 3 Ciclo da infncia compreende o perodo das trs sries iniciais do ensino fundamental de nove anos, e que se
estendem faixa etria de 6 a 8 anos das crianas, conforme a legislao atual.
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50-51), no que diz respeito conscincia fonolgica na aprendizagem inicial da leitura: tais
princpios tomam como base as lies de Mattoso Camara Jr., a partir dos fundamentos da
fonologia do portugus.
O presente trabalho aborda o ensino da lngua em contexto de sala de aula: como
tal, integra-se ao grupo de pesquisa GADIPE (Grupo de Anlise do Discurso: Pesquisa e
Ensino), 4 vinculando-se ao projeto Letramento, Ensino e Sociedade, do Programa de Ps-
Graduao em Cincias da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina. Por sua vez,
o referido projeto integra-se ao Ler & Ser, prevenindo o analfabetismo funcional5, projeto
coordenado pela professora emrita Leonor Scliar-Cabral, em parceria interinstitucional,
UFSC e UNISUL.
1.1 A IMPORTNCIA DO SISTEMA ESCRITO PARA O LETRAMENTO
O acesso ao sistema escrito um direito de todos. Esse processo de mediao do
sujeito constitui uma condio necessria, embora no suficiente, para o pleno exerccio da
cidadania. A apropriao da linguagem escrita e a prtica da cidadania esto interligadas e
permitem ao indivduo expressar seus pensamentos, o que pode torn-lo cidado crtico e
ativo, transformador da realidade.
O exerccio das prticas sociais do nosso tempo tem, em grande medida, o sistema
escrito como pressuposto. Ele est a servio das necessidades do homem e tem a propriedade
de subsidiar boa parte das atividades cotidianas.
Sabe-se, no entanto, que, no Brasil, no que se refere alfabetizao, a situao
ainda desanimadora. Segundo os resultados do INAF (2007), na faixa etria dos brasileiros
de 15 a 64 anos, temos: 7% de analfabetos absolutos; no nvel rudimentar, temos 25%; no
nvel bsico, temos 40%, e apenas 28% conseguem o nvel pleno. Tais nmeros evidenciam
que ainda temos um nmero muito elevado de analfabetismo funcional no pas. 6
4 GADIPE a professora Marilia Reis integra este grupo de pesquisa, coordenado pela professora Maria Marta
Furlanetto. O GADIPE volta-se, especificamente, para a PE: PESQUISA e ENSINO de lngua. 5 Projeto Ler & Ser, prevenindo o analfabetismo funcional: para maiores informaes, visitar o endereo:
http://lereser. wordpress. Com. 6 Conforme Projeto Ler & Ser, diminuindo o analfabetismo funcional, sob a coordenao da professora
Emrita Leonor Scliar-Cabral (2008, p. 4).
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De acordo com esses dados, especificamente em relao ao alto ndice de
analfabetismo funcional, percebe-se que uma grande parte dos brasileiros no tem as
condies mnimas necessrias ao exerccio pleno da cidadania. Diante de tal realidade,
necessrio reforar a importncia de um ensino-aprendizagem inovador da leitura e da escrita,
como condio fundamental de transformao dessa mesma realidade.
recorrente a queixa, por parte de professores, sobre o baixo desempenho de
alunos no que diz respeito compreenso em leitura e produo escrita. Esse problema tem
origem muitas vezes nos anos iniciais de escolarizao e se prolonga at a vida adulta, quando
estes mesmos alunos ingressam na universidade, por exemplo.
Especificamente sobre a produo escrita, Heinig (2003b), analisando o contexto
escolar, contrape duas posturas adotadas por professores frente ao ensino e aprendizagem do
sistema escrito da lngua portuguesa: a mecanicista e a laissez-faire ou espontanesta. Na
primeira concepo, existe a crena de que a aprendizagem da ortografia se d atravs de
estratgias de memorizao, ou seja, criana so apresentadas listas de palavras e frases
que so lidas, decoradas e servem para o ditado (p. 12). Por sua vez, para fixar a grafia
correta de uma palavra, isto , de acordo com a norma, a criana deve repeti-la por meio de
treino ortogrfico, no havendo, portanto, a preocupao em relacionar a aprendizagem do
sistema escrito com o cotidiano do aprendiz.
Na segunda concepo, a laissez-faire, a crena a de que a aprendizagem do
sistema escrito acontece de forma natural e espontnea, em que o aluno, exposto
repetidamente a materiais escritos, aprende a grafia correta das palavras. A autora assinala
ainda que, de acordo com esta concepo, no se deve interferir na forma como o aluno
escreve, preciso respeit-lo, ficando implcito assim um preconceito contra o ensino
sistemtico da lngua escrita. Disso resulta uma grande incoerncia, pois no se ensina
ortografia, mas se cobra. Isso facilmente perceptvel quando da produo de textos dos
alunos, em que a partir dos resultados, a avaliao feita levando-se em conta principalmente
o seu rendimento ortogrfico.
Neste sentido, Morais (2007, p. 37) tambm afirma que aprender ortografia no
um processo passivo, no um simples armazenamento de formas corretas na memria.
Ainda que a norma ortogrfica seja uma conveno social, o sujeito que aprende a processa
ativamente. Por isso, nesse processo, o que se faz necessrio realizar uma interveno
didtica adequada, e no exerccios mecnicos e descontextualizados, que privilegiam a
memorizao/fixao em detrimento da compreenso dos mecanismos de escrita, a saber: os
aspectos fonticos, fonolgicos e sintticos. Para tanto, o educador precisa ter conhecimento
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sobre as regras de descodificao e codificao do portugus do Brasil, a fim de que possa
equacionar de forma segura e eficiente as dificuldades que o aprendiz experimenta.
A criana, ao chegar escola, traz consigo os conhecimentos, crenas, costumes,
valores e variedades lingusticas adquiridas no meio social em que est inserida. Assim, ao
escrever, faz a todo instante uma relao entre o que fala e o que ouve, ou seja, ela usa sua
fala, sua variao sociolingustica como referncia para a escrita. Da que comumente escreve
da forma como ouve e fala (Ex: mininu, leiti, denti, bolu, ...). neste momento de introduo
aprendizagem da leitura que o professor tem um papel determinante no processo de
aprendizagem do aluno, levando-o a compreender a convencionalidade da escrita ortogrfica
e, principalmente, conscientizando-o de que, muitas vezes, fala-se de uma forma e escreve-se
de outra.
A exposio frequente a materiais escritos, inegavelmente, ajuda o aluno a
conhecer sua lngua materna, mas no suficiente. Cabe ao professor sistematizar o ensino do
sistema escrito, de maneira a potencializar o educando a refletir, a partir de suas dificuldades,
sobre a produo escrita, instrumentaliz-lo autocorreo e reviso constante dos prprios
textos. Essa estratgia, alm de contribuir para o aprendizado da ortografia, propicia ao aluno
a compreenso de que escrever reescrever, revisar, buscando aperfeioar, ou seja, revemos
o que escrevemos para nos comunicarmos melhor (MORAIS, 2007, p. 118). Desse modo,
entendemos que a ao pedaggica mais adequada e produtiva a que contempla, de maneira
articulada e simultnea, o respeito pelas diferentes variedades sociolingusticas e a
conscientizao sobre as regras de descodificao e codificao da nossa lngua.
Nessa direo apontada, Scliar-Cabral (2003a) apresenta uma proposta consistente
e coerente sobre o ensino-aprendizagem da leitura e da escrita em lngua portuguesa,
auxiliando os educadores envolvidos com leitura e escrita: para a autora, os que se interessam
pela compreenso do sistema escrito, por compreend-lo, podero ter uma mediao mais
eficiente (e significativa) em sala de aula. A autora preconiza que a formao dos educadores
que atuam no ensino fundamental requer especial ateno, uma vez que carregam a
responsabilidade de orientar os alunos no domnio do principal instrumento de acesso
informao e reflexo, que a leitura (por extenso, a escrita). E uma das principais causas
do insucesso escolar est nas dificuldades que os alunos enfrentam para se tornarem eficientes
em leitura (SCLIAR-CABRAL, 2003b).
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1.2 ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS: A ALFABETIZAO NO CICLO
DA INFNCIA
Atualmente, no Brasil, a aprendizagem formal da leitura d-se no ciclo da infncia
do ensino fundamental de nove anos, com a entrada da criana aos seis anos na escola. A
ampliao do ensino fundamental de oito para nove anos de durao, instituda pela lei n 11.
274, em 6 de fevereiro de 2006, estabelece a incluso de crianas de seis anos de idade na
instituio escolar. Um fator importante para a incluso dessas crianas (de seis anos) no
sistema de ensino deve-se aos resultados de estudos demonstrarem que, quando as crianas
ingressam na instituio escolar antes dos sete anos de idade, apresentam, em sua maioria,
resultados superiores em relao quelas que ingressam somente aos sete anos, obtendo,
inclusive, melhores mdias de proficincia em leitura. (SAEB, 2003 apud MEC, 2007, p. 5-
6). Assim, o objetivo de um maior nmero de anos de ensino obrigatrio assegurar a todas
as crianas um tempo mais longo de convvio escolar, maiores oportunidades de aprender e,
com isso, uma aprendizagem mais ampla. (MEC, 2004, p. 17).
A Resoluo n 110 CCE/SC de 12/12/2006 estabelece que os trs anos iniciais
so importantes para a qualidade da Educao Bsica: voltados alfabetizao e ao
letramento, necessrio que a ao pedaggica assegure, nesse perodo, o desenvolvimento
das diversas expresses e o aprendizado das reas de conhecimento estabelecidas nas
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental. Dessa forma, entende-se que a
alfabetizao dar-se- nos trs anos iniciais do ensino fundamental, agora sob a denominao
de ciclo da infncia. Nesses termos, os professores alfabetizadores passam a dispor de mais
tempo para trabalharem o ensino da leitura e da escrita para as crianas de 6 a 8 anos.
O documento Ensino Fundamental de Nove Anos: orientaes para a incluso da
criana de seis anos de idade, elaborado pelo Ministrio da Educao MEC (2007) postula,
dentre outras orientaes que, o espao da sala de aula deve ser um espao de formao de
leitores. Um espao, portanto, com muitas leituras: de livros, jornais, panfletos, msicas,
poesias e do que mais se tornar significativo, que tenha o professor, leitor experiente que [ou
deveria ser], como mediador. Reafirma-se neste documento uma grande nfase prtica
pedaggica que propicie s crianas o acesso e contato intensos com diferentes gneros
textuais: textos da ordem do narrar, do relatar, de descrever aes, do expor e do
argumentar, a fim de que elas no s se motivem para ler e escrever como tambm
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observem/reflitam sobre as diferentes caractersticas desses textos que circulam socialmente,
seus estilos, usos e finalidades. Os autores pontuam que esse contato, por si s, no garante
que as crianas se alfabetizem, ou seja, que se apropriem do Sistema Alfabtico de Escrita.
necessrio, alm disso, um trabalho sistemtico, centrado tanto nos aspectos funcionais e
textuais quanto nas correspondncias grafofnicas, isto , nas relaes grafema-fonema7.
Nessa direo, torna-se importante destacar alguns aspectos relacionados aprendizagem
inicial da leitura contemplados no referido documento, que corroboram com o que se defende
neste trabalho.
Para o MEC (2007), [. . .] a escrita possui relao com a pauta sonora. Essa
uma descoberta que nem sempre realizada espontaneamente, razo pela qual se torna
imprescindvel (p. 78) ajudar o educando a descobrir os princpios que regem tal relao: a
relao grafema-fonema. Para tanto, preciso lev-lo a compreender que os grafemas
substituem/representam algo: os segmentos sonoros mnimos que chamamos de fonemas. Aos
poucos, a criana dever entender, por exemplo, que: CA no pode ser o mesmo que AC, que
a ordem muda as coisas quando lemos e/ou escrevemos; o grafema c representa algo (os
fonemas /k/ ou /s/), independente de c aparecer manuscrito [c] ou em outro formato
autorizado para ser c [c]; o CA de casa igual ao CA de cavalo, porque as palavras orais
/kaza/ e /kavalu/ comeam parecido, quando falamos, embora se refiram a coisas bem
diferentes do mundo real; em toda slaba de nossa lngua, ou seja, em cada parte pronunciada
de uma palavra h sempre uma vogal. (MORAIS 2005 apud MEC, 2007, p. 79).
Finalizando, Leal, Albuquerque e Rios (2005 apud MEC, 2007, p 80-81) citam
algumas brincadeiras que fazem parte da nossa cultura e envolvem a linguagem, que podem
ajudar no processo de alfabetizao, que podem auxiliar os alfabetizandos na automatizao
dos valores dos grafemas: cantar msicas e cantigas de roda, recitar parlendas, poemas,
quadrinhas, adivinhas, jogo da forca, entre outras. As autoras ressaltam que os jogos
fonolgicos aqueles que dirigem a ateno da criana para as semelhanas e diferenas
sonoras entre as palavras podem ser poderosos aliados dos professores no ensino da leitura.
No caso da apropriao do sistema alfabtico, tais jogos possibilitam criana manipular as
unidades sonoras/grficas (palavras, slabas, palavras), a comparar palavras ou partes delas
[....], a usar pistas para ler e escrever outras palavras, avanando, dessa forma, na
aprendizagem inicial da leitura.
7 No documento citado, as palavras so respectivamente: letra-som.
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1.3 OBJETIVOS E ESTRUTURA DA DISSERTAO
O objetivo geral desta pesquisa consiste em avaliar a influncia de um minicurso a
futuros alfabetizadores trabalhando a conscincia fonolgica, com base nos princpios do
sistema alfabtico do portugus do Brasil (SCLIAR-CABRAL, 2003a; b), com e para o
letramento. Alm desse, um objetivo especfico foi focado: evidenciar possveis contradies
ontolgicas comumente encontradas nos materiais didticos adotados na aprendizagem inicial
da leitura, a saber: (i) entre o conceito de alfabetizao e o conceito de letramento, mesmo
depois da adoo do ensino fundamental de nove anos; (ii) entre a relao grafemas e fonemas
do portugus do Brasil8. Em relao a este ltimo, partiu-se do seguinte questionamento: teria
o sistema alfabtico do portugus apenas cinco vogais? Na maioria dos manuais didticos
sobre a aprendizagem da leitura, sim. Entretanto, com base nos princpios do nosso sistema
alfabtico, a criana chega escola com o conhecimento intuitivo muito maior que o das
cinco letras que representam os fonemas voclicos: sete fonemas voclicos orais, mais cinco
fonemas voclicos nasais, o que no coincide, de forma alguma, com a equivocada
classificao tradicional de apenas cinco vogais. Da a grande contradio ontolgica que
impera nesta fase inicial do ensino-aprendizagem da lngua portuguesa que, uma vez no bem
resolvida, contribuir, certamente, para a ampliao dos ndices de analfabetos funcionais no
pas.
Em termos de sua organizao, o trabalho traz, alm deste captulo, outros quatro.
No segundo captulo, est o referencial terico que enfoca, inicialmente, consideraes sobre
os conceitos de alfabetizao e letramento, evidenciando a importncia em se distinguir
alfabetizao e letramento, e a especificidade de ambos os processos. Na sequncia, abordam-
se a conscincia fonolgica na aprendizagem inicial da leitura, com base nos resultados das
pesquisas das neurocincias e os processos envolvidos no processamento da leitura.
Apresentam-se ainda os princpios do sistema alfabtico do portugus do Brasil, quando
tambm se discute sua importncia na compreenso de como acontece o processo de
decodificao, quais os contextos e regras envolvidos. Discutem-se tambm as
correspondncias biunvocas e no-biunvocas entre grafemas e fonemas. Sabemos que tais
8 Conforme Scliar-Cabral (2009, p. 35), lembramos que todo o falante-ouvinte nativo, alfabetizado ou no, tem
conhecimento no-consciente [conhecimento intuitivo] dos fonemas e os utiliza com propriedade; quando escuta ou fala, sabe a diferena entre /ba.la/ e /ma.la/. J o conhecimento consciente dos fonemas [foco da presente pesquisa] se desenvolve com a aprendizagem do sistema alfabtico da respectiva lngua.
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relaes nem sempre se realizam da forma esperada, em que cada grafema venha
corresponder a um fonema e cada fonema a um grafema.
O terceiro captulo descreve a metodologia adotada na pesquisa, explicitando tipo
de pesquisa, sujeitos, instrumento de coleta de dados e sua forma de aplicao e anlise. No
quarto captulo, so apresentados os dados para anlise e discusso, o que foi feito
considerando-se as respostas dos sujeitos ao pr-teste e ps-teste. Por fim, so apresentadas as
consideraes finais, enfatizando os aspectos mais relevantes da dissertao. Em anexo,
encontra-se o instrumento de coleta de dados elaborado para a pesquisa (um questionrio de
dez questes), enfocando a conscincia fonolgica na alfabetizao.
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2 FUNDAMENTAO TERICA
2.1 LETRAMENTO E ALFABETIZAO
No presente estudo, aborda-se a alfabetizao com e para o letramento. Tem-se,
portanto, a compreenso da necessidade de aprendizagem do cdigo escrito como objetivo
maior no s da alfabetizao por si s, mas da alfabetizao para o exerccio pleno de
cidadania, iniciado ainda nos primeiros anos da escolarizao do ensino fundamental, uma
vez que ela [a escrita] condiciona a aquisio de informao na nossa sociedade e
compreende a aquisio de conhecimentos e habilidades matemticas e cientficas (MORAIS
et al, 2004, p. 53), o que justifica firmarmos o que estamos denominando de alfabetizao
com e para o letramento.
significativo que a palavra letramento cause certa estranheza, pois no Brasil, foi
dicionarizada recentemente. O surgimento desse termo teve origem na verso para o
Portugus, da palavra de lngua inglesa literacy. O ingls literacy vem do latim littera, que
significa letra e, o sufixo cy denota condio ou estado de ser. Ou ainda, conforme Soares
(2004, p. 18), letra- do latim littera, e o sufixo -mento, que denota o resultado de uma ao
(como, por exemplo, em ferimento, resultado da ao de ferir).
O termo letramento foi criado quando se passou a entender que nas sociedades
contemporneas, isto , nas sociedades regidas pelo desenvolvimento tecnolgico e cientfico,
insuficiente o aprendizado das primeiras letras. Para viver e trabalhar em uma sociedade
urbanizada e informatizada, se faz necessrio um domnio cada vez maior da leitura e da
escrita. Este domnio configura-se, hoje, condio fundamental para o pleno exerccio da
cidadania. Como bem observa Soares (2004), para atender adequadamente as exigncias dessa
sociedade, no basta o sujeito aprender a ler e escrever, mas se apropriar verdadeiramente da
escrita nas prticas sociais que a envolvem.
A autora adverte, entretanto, que se apropriar da escrita diferente de ter
aprendido a ler e escrever, uma vez que, aprender a ler e escrever significa adquirir uma
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tecnologia, a de decodificar a lngua escrita; apropriar-se da escrita , antes, tornar a escrita
prpria, assumindo-a como sua propriedade. Um exemplo disso quando o sujeito, mesmo
no sabendo ler e escrever, no sendo alfabetizado, faz uso da contribuio que a escrita
impe em seu meio social: quando vai a um estabelecimento comercial e solicita o carn
para efetuar o pagamento de suas contas; quando, ao passar no caixa do supermercado, exige
o cupom fiscal dos produtos comprados; quando pede a algum que lhe leia a bula de remdio
e/ou o manual de instruo de um eletrodomstico; quando sabe discernir o nibus apropriado
para sua rota, enfim, muitas outras prticas poderiam ser citadas.
importante dizer que no h uma questo fechada acerca do que seja o
letramento, o que existe so diferentes posies tericas adotadas por autores que estudam o
fenmeno. Tfouni (2002) assinala que existe at mesmo uma polissemia relacionada a este
termo, tornando a sua conceituao ainda mais complexa.
Costa Val (apud CARVALHO; MENDONA, 2006), define letramento como
sendo um processo de insero e participao na cultura escrita, que tem incio bem cedo e se
prolonga por toda a vida. Exemplifica, dizendo que este processo inicia quando a criana,
imersa que est na sociedade letrada, comea a conviver com as diferentes manifestaes da
escrita seja visualizando placas, rtulos, embalagens comerciais, folheando revistas etc. . .
Para Matncio (apud KLEIMAN 2003, p. 242), letramento a construo de
sentidos pelos sujeitos permeado por suas prticas sociais, culturais e discursivas.
Complementando, Rojo (1998, p. 181-182) afirma que O letramento adquire mltiplas
funes e significados, dependo do contexto em que ele desenvolvido [. . .] est presente
tambm na oralidade. Nas palavras de Marcuschi (apud SANTOS, 2004, p. 120), letramento
um processo de aprendizagem social e histrica da leitura e da escrita em contextos
informais e para usos utilitrios, por isso um conjunto de prticas, ou seja, letramentos [...]
Distribui-se em graus de domnios que vo de um patamar mnimo a um mximo.
Retomando a perspectiva de Soares (2004, p. 44), letramento o estado ou
condio de quem se envolve nas numerosas e variadas prticas sociais de leitura e de
escrita. Chamemos a ateno para as palavras: estado e/ou condio. O sujeito alfabetizado,
que sabe ler e escrever e que faz uso socialmente da leitura e da escrita, isto , que se envolve
nas prticas sociais de leitura e de escrita, muda seu estado, seu modo de viver na sociedade.
Disso decorre que, ao tornar-se letrado, torna-se diferente sob vrios aspectos: social, cultural,
cognitivo, lingustico, entre outros; passa, inclusive, a pensar de maneira diferente de uma
pessoa no-alfabetizada ou iletrada, por exemplo. (SOARES, 2004).
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Ainda seguindo Soares (2004), h que se identificar no conceito de letramento as
dimenses social e individual. Na dimenso individual, o letramento visto como um atributo
pessoal, em que so evidenciadas as habilidades individuais presentes na leitura e na escrita,
envolvendo desde a habilidade de codificao e decodificao de palavras at a capacidade
de compreender textos escritos. Nesta perspectiva, a leitura e a escrita so tidas como
habilidades igualmente lingusticas e psicolgicas, mas que envolvem processos distintos.
Enquanto as habilidades de leitura estendem-se da habilidade de decodificar palavras escritas capacidade de integrar informaes provenientes de diferentes textos, as habilidades de escrita estendem-se da habilidade de registrar unidades de som at a capacidade de transmitir significado de forma adequada a um leitor potencial (SOARES, 2004, p. 69).
Contudo, a autora assinala que, apesar das diferenas essas categorias no se
opem, antes, se complementam. Acrescente-se a isso o fato de que as habilidades e
conhecimentos empregados na leitura e na escrita podem ser aplicados diferenciadamente
produo de uma variedade de gneros de escrita, dificultando assim a formulao de uma
definio precisa/consistente de letramento. Essa impreciso conduz a uma questo ainda
mais problemtica: o que caracterizaria um sujeito letrado e um sujeito iletrado?
Considerando-se a heterogeneidade presente em cada um dos constituintes do
letramento, a leitura e a escrita, possvel afirmar que pelo vis da dimenso individual fica
difcil se ter resposta pergunta acima. Segundo Soares (2004, p. 70), As competncias que
constituem o letramento so distribudas de maneira contnua, cada ponto ao longo desse
contnuo indicando diversos tipos e nveis de habilidades, [...] o que consequentemente
implica uma outra questo: que ponto desse contnuo define uma pessoa como letrada? E a
decididamente se impe uma nova pergunta, para a qual tambm no temos resposta: que
qualidades e/ou atributos so inerentes ao indivduo para que seja considerado letrado? Scliar-
Cabral (2009, p. 10) esclarece que No existe uma oposio entre letrado e iletrado e sim,
graus de letramento, desde aquele que no consegue reconhecer a palavra escrita at aquele
com a competncia para compreender e redigir os textos de complexidade maior que circulam
socialmente.
As questes levantadas evidenciam a relativizao do fenmeno do letramento,
uma vez que, para definir sujeitos letrados de iletrados, se faz necessria uma definio do
conceito de letramento com o qual se articula, ou seja, o que se conta como letramento na
sociedade moderna num contexto social especfico. Se nos reportarmos a definies de
letrado e iletrado apresentadas pela UNESCO em 1958, por exemplo, e a compararmos com a
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definio de letrado funcional da UNESCO (2007), veremos que as atividades sociais que
envolvem a lngua escrita variam no tempo e no espao, segundo as necessidades de
determinado momento histrico e de determinado estgio de desenvolvimento da sociedade,
no tendo, portanto, uma essncia esttica e nem universal. Vejamos:
letrada a pessoa que consegue tanto ler quanto escrever com compreenso uma frase simples e curta sobre sua vida cotidiana. iletrada a pessoa que no consegue ler nem escrever com compreenso uma frase simples e curta sobre sua vida cotidiana (UNESCO, 1958 apud SOARES, 2004, p. 71). funcionalmente letrada a pessoa que puder engajar-se em todas as atividades nas quais o letramento for condio para o desempenho efetivo no seu grupo e comunidade e tambm para permitir-lhe que continue a utilizar a leitura, a escrita e o clculo para o seu prprio desenvolvimento e o de sua comunidade (UNESCO, 2007 apud SCLIAR-CABRAL, 2009, p. 10).
Cabe mencionar ainda outra definio: [. . .] ser letrado entender, usar e refletir
sobre textos escritos, a fim de alcanar as prprias metas para desenvolver o conhecimento e
as potencialidades e participar na sociedade (PISA, OCDE, 2003, trad. SCLIAR-CABRAL,
2009, p. 10).
Na perspectiva da dimenso social, que privilegiaremos, o letramento
[...] no um atributo unicamente ou essencialmente pessoal, mas , sobretudo, uma prtica social: letramento o que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e de escrita, em um contexto especfico, e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e prticas sociais. Em outras palavras, letramento no pura e simplesmente um conjunto de habilidades individuais; o conjunto de prticas sociais ligadas leitura e escrita em que os indivduos se envolvem em seu contexto social (SOARES, 2004, p. 72).
Finalizando, a perspectiva apontada nos remete ao que diz Scliar-Cabral (2009)
sobre a alfabetizao como sendo o passo necessrio e indispensvel para o letramento e a
decodificao como meio para o letramento. Para essa autora A alfabetizao necessria
para o indivduo atingir um nvel de letramento que lhe permita a insero na sociedade,
compreendendo e sabendo redigir os textos indispensveis para exercer a cidadania e para
competir no mercado de trabalho (p. 16). Ressalta ainda que
Uma boa alfabetizao permite ao indivduo automatizar o reconhecimento das letras, os valores dos grafemas associados aos fonemas. Sem esta automatizao, o indivduo tropear diante de palavras novas e no ler com fluncia, no compreender os enunciados, o texto. Somente uma leitura fluente far com que o indivduo leia com prazer, o que permitir a ampliao e o aprofundamento dos esquemas cognitivos, ou seja, de seu conhecimento, com a construo de sentidos adequados e inferncias (SCLIAR-CABRAL, 2009, p. 16).
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Nessa direo, entende-se uma boa alfabetizao como sendo aquela que
contempla a especificidade e, ao mesmo tempo, a indissociabilidade de ambos os processos
alfabetizao e letramento. Da uma proposta de alfabetizao com e para o letramento, a
qual releva, como j enfatizamos, estratgias de ensino-aprendizagem que desenvolvam a
conscincia fonolgica do educando, a partir da decodificao de palavras inseridas em
textos da prtica social de leitura e escrita do aprendiz (REIS, 2008). A esse respeito, Soares
(2004), em seu artigo Letramento e alfabetizao: as muitas facetas faz uma retomada
[necessria] dos conceitos de alfabetizao e letramento, buscando identificar a evoluo
desses conceitos ao longo das duas ltimas dcadas, em um movimento que prope chamar de
reinveno da alfabetizao, visto que, diferentemente do que acontece em outros pases, h
uma tendncia na literatura especializada tanto na rea das cincias lingusticas quanto na
rea da educao no Brasil em aproximar [ainda que propondo diferenas] alfabetizao e
letramento, o que tem levado a uma inadequada e inconveniente fuso dos dois processos,
com prevalncia do conceito de letramento sobre o conceito de alfabetizao, que tem
conduzido, por sua vez, a um apagamento da alfabetizao, apagamento esse que a autora
denomina, talvez com algum exagero, como ela mesma diz, desinveno da alfabetizao.
Segundo Soares (2004, p. 8-9), o neologismo desinveno pretende nomear a
progressiva perda da especificidade do processo de alfabetizao, [. . .] que fator explicativo
evidentemente no o nico, mas talvez um dos mais relevantes do atual fracasso na
aprendizagem inicial da leitura nas escolas brasileiras. Dentre outras causas para essa perda de
especificidade, a autora aponta a mudana conceitual que se difundiu no Brasil a partir de
meados dos anos de 1980, derivada dos estudos sobre a psicognese da lngua escrita, de
Emlia Ferreiro e Ana Teberosky (1985). Importa esclarecer que Soares no nega a
incontestvel contribuio da concepo construtivista na rea da alfabetizao, uma vez que
possibilita a compreenso da trajetria que a criana faz em direo descoberta da escrita,
porm, ressalta que o paradigma conceitual construtivista conduziu a alguns equvocos e
falsas inferncias, no que diz respeito aprendizagem da leitura, pois, privilegiando a faceta
psicolgica da alfabetizao (p. 11), obscureceu sua faceta lingustica fontica e
fonolgica.
Soares destaca ainda e fundamentalmente entre os equvocos e falsas inferncias,
o tambm falso pressuposto, decorrente deles e delas, de que apenas atravs do convvio
intenso com o material escrito que circula nas prticas sociais, ou seja, do convvio com a
cultura escrita, a criana se alfabetiza (SOARES, 2004, p. 11). Da que afirme que a
alfabetizao, enquanto processo de aprendizagem do sistema convencional de uma escrita
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alfabtica e ortogrfica foi, de certa forma, obscurecida pelo letramento, tendo este
frequentemente prevalecido sobre aquela. Em suma, a proposta construtivista de alfabetizao
no Brasil, semelhana da Whole language9 nos Estados Unidos, considera que as relaes
entre o sistema fonolgico e os sistemas alfabtico e ortogrfico da nossa lngua, no
constituem propriamente objeto de ensino, pois sua aprendizagem deve ser incidental,
implcita, assistemtica (p. 14) sob o pressuposto, conforme j foi dito, de que a criana
capaz de descobrir por si mesma as relaes grafema-fonema, em sua interao com material
escrito e por meio de experincias com prticas de leitura e escrita (SOARES, 2004, p. 14).
Nesse contexto, ento, h que se perguntar: ocorreria a algum a possibilidade de
se alfabetizar, de APRENDER A LER sem a aprendizagem das relaes grafema-fonema,
isto , das relaes entre o sistema fonolgico e os sistemas alfabtico e ortogrfico de sua
lngua? Qual seria a especificidade da alfabetizao e do letramento? No que precisamente
consiste a reinveno da alfabetizao proposta por Soares?
A exposio frequente a materiais escritos que circulam socialmente,
inegavelmente, ajuda o aluno a conhecer sua lngua materna, a motiv-lo para a leitura, mas,
em se tratando de alfabetizao, isso insuficiente. Para que a criana efetivamente se
alfabetize, APRENDA A LER, preciso que haja um ensino intencional, sistemtico e
intensivo das relaes grafema-fonema, a fim de que ela [a criana] possa compreender,
dominar e refletir sobre tais relaes, atingindo dessa forma a essncia no o objetivo da
aprendizagem da leitura: a decodificao. Reconhecer (ou identificar) palavras a primeira e
mais importante tarefa a nica tarefa especfica ao processo de aprender a ler (BRASIL,
2003, p. 22).
Alfabetizao e letramento so processos de natureza diversa, que envolvem [...]
conhecimentos, habilidades e competncias especficos, que implicam formas de
aprendizagem diferenciadas e, consequentemente, procedimentos diferenciados de ensino
(SOARES, 2004, p. 15). Assim, a especificidade da alfabetizao implica o desenvolvimento
da conscincia fonmica e o ensino explcito, direto e sistemtico das correspondncias
grafema-fonema; a aprendizagem das relaes entre o sistema fonolgico, alfabtico e
ortogrfico. J a especificidade do letramento implica o desenvolvimento de habilidades de
uso [do sistema convencional de escrita] em atividades de leitura e escrita, nas prticas sociais
que envolvem a lngua escrita; [. . .] a imerso das crianas na cultura escrita, participao
9 Movimento que se difundiu nos Estados Unidos nos anos de 1970, sob a liderana de Kenneth Goodman, que,
entre ns, no Brasil, chegou pela via da alfabetizao com o chamado construtivismo no quadro desta
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em experincias variadas de leitura e escrita, conhecimento e interao com diferentes
gneros de material escrito (SOARES, 2004, p. 15).
Isso posto, percebe-se que alfabetizao e letramento tm diferentes facetas,
embora designem processos distintos, so interdependentes e indissociveis uma no deve
se sobrepor outra, e sim, integrar-se no ensino-aprendizagem da leitura, cada qual com a sua
necessria e importante especificidade.
Finalizando, a reinveno da alfabetizao proposta por Soares (2004) vem ao
encontro do que se defende neste trabalho: a faceta fnica da alfabetizao, a especificidade
da alfabetizao, que implica o ensino intencional, sistemtico e intensivo das relaes
grafema-fonema, isto , a decodificao, e relaes fonolgico-grafmicas, isto , a
codificao. No entanto, preciso esclarecer, tal como Soares, que defender a especificidade
do processo de alfabetizao no significa dissoci-lo do processo de letramento (p. 11),
como j assinalamos anteriormente, mas, antes, recuperar uma faceta fundamental deste
processo: a decodificao.
Reinventar a alfabetizao, portanto, significa romper com alguns paradigmas
conceituais anteriores responsveis em grande parte pelos altos ndices de reprovao e
repetncia na etapa inicial do ensino fundamental - que, ou se concentram na excessiva
especificidade da alfabetizao, ou seja, na exclusividade atribuda a apenas uma das facetas
da alfabetizao, ou, em lugar de fugir a essa excessiva especificidade, apagam a necessria
especificidade da aprendizagem inicial da leitura: a decodificao. Da a importncia em se
distinguir alfabetizao de letramento. Este ltimo [. . .] s se pode desenvolver no contexto
da e por meio da aprendizagem das relaes grafema-fonema, isto , em dependncia da
alfabetizao (SOARES, 2004, p. 14).
2.2 A CONSCINCIA FONOLGICA NA APRENDIZAGEM DA LEITURA
A alfabetizao, entendida como a aprendizagem inicial da leitura, vem sendo h
muito objeto de estudo de vrios pesquisadores, de diferentes reas do conhecimento. Isso
porque a alfabetizao, processo complexo e mltiplo, um dos momentos mais importantes
concepo as relaes grafema-fonema no constituem objeto de ensino direto e explcito, pois sua aprendizagem decorreria de forma natural da interao com a lngua escrita (SOARES, 2004, p. 12).
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de toda a sequncia da vida escolar. nesse perodo que a criana se lana efetivamente no
mundo da linguagem escrita. E ainda que diferentes teorias de aprendizagem se proponham a
explicar como a criana aprende, seja pelo vis do estmulo-resposta (behaviorismo),
construtivismo e/ou do sociointeracionismo, nem sempre explicam por que alguns alunos
aprendem mais rapidamente que outros. Isso desperta, inevitavelmente, dvidas cada vez mais
frequentes nos professores envolvidos com a to importante e difcil tarefa de alfabetizar.
Ressalte-se, entretanto, que no objetivo, nesta seo, discorrer sobre tais teorias, nem
discutir mtodos e tcnicas de alfabetizao que se aproximam mais ou menos daquelas
correntes tericas. Pretende-se apenas discutir sobre o desenvolvimento da conscincia
fonolgica como facilitador da aprendizagem da leitura e da escrita pela criana.
Scliar-Cabral (2009, p. 33-34) aborda a conscincia fonolgica como um dos
fundamentos das dificuldades que o alfabetizando enfrenta, alm da dificuldade que trata do
desmembramento da slaba:
Antes de se alfabetizar, o indivduo percebe a cadeia da fala como um contnuo: no h pausas entre as palavras, como os espaos em branco que as separam na escrita, nem contrastes entre os sons que constituem as slabas: no s as pistas acsticas que definem uma consoante e uma vogal adjacentes so interdependentes, como tambm seus respectivos gestos na fonao, em virtude da co-articulao.
Definimos conscincia fonolgica, conforme Scliar-Cabral (2009, p. 35):
A conscincia fonolgica insere-se na conscincia metalingustica. Elas decorrem da capacidade de o ser humano poder se debruar sobre um objeto, no caso, a lngua, de forma consciente, utilizando uma linguagem. No caso da conscincia fonolgica, o objeto sobre o qual voc se debrua conscientemente so os fonemas, e a linguagem utilizada o alfabeto. Uma primeira distino a fazer entre conhecimento no consciente dos fonemas para o uso e o seu conhecimento consciente dos fonemas. Todo o falante-ouvinte nativo, alfabetizado ou no, tem conhecimento no consciente dos fonemas e os utiliza com propriedade: quando escuta ou quando fala, sabe a diferena entre /bala/ e /mala/. J o conhecimento consciente dos fonemas se desenvolve com a aprendizagem do sistema alfabtico da respectiva lngua.
A autora, em Conscincia fonolgica e os princpios do sistema alfabtico do
portugus do Brasil, levanta duas perguntas imprescindveis para uma melhor compreenso
de conscincia fonolgica: O que um fonema? e Por que o fonema no som?.
Vejamos a primeira:
O que um fonema? Muitos confundem fonema com som. No entanto, a definio clssica de fonema, estabelecida pelo linguista R. Jakobson, : O fonema um feixe de traos distintivos. O fonema tem uma funo distintiva, isto , serve para distinguir um significado bsico de outro, como j no citado exemplo de /bala/ e
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/mala/. Veja bem, o fonema no tem significado: serve para distinguir significados. Quer dizer que /b/ e /m/ no significam nada, mas trocando um pelo outro no contexto /_ala/, o significado se altera (2009, p. 35).
E a segunda pergunta a seguinte:
Por que o fonema no som? Porque o fonema uma unidade psquica: assim como no se pode colocar uma cadeira dentro da cabea, as molculas de ar que se comprimem e se rarefazem para produzir as ondas acsticas tambm no podem entrar em dentro da cabea. [....] O fonema um feixe de traos invariantes, de natureza abstrata, que so reconhecidos por sua funo de distinguir significados, permitindo que as pessoas se comuniquem atravs da lngua verbal oral. No importa como as pessoas pronunciem o terceiro seguimento que aparece na palavra carta [r], pois o som que o carioca produz s tem de parecido com o que um gacho de Bag diz no fato de ambos serem consoantes, e s! Mas o fonema o mesmo! (2009, p. 35).
Para Scliar-Cabral, a conscincia fonmica ou habilidade de perceber as unidades
mnimas da fala (os fonemas), considerada por muitos autores como sendo capaz de predizer
o sucesso na alfabetizao, motivo pelo qual vm se difundindo no Brasil materiais e prticas
pedaggicas tanto no meio educacional, especificamente na pr-escola e em classes de
alfabetizao, quanto em clnicas fonoaudiolgicas para o desenvolvimento de tal habilidade.
Confirmando o pressuposto, Micbride-Chang (1995 apud SCLIAR-CABRAL, 2003a, p. 50)
assevera que a conscincia fonmica est entre os mais poderosos prenunciadores de uma
subsequente capacidade para a leitura de palavras longitudinais. Pesquisadores do
Laboratrio de Psicologia Experimental da Universidade Livre de Bruxelas, tambm
referenciados pela autora, acreditam categoricamente, porm, com base em experimentos
realizados, em que a relao entre a aquisio da conscincia fonmica sobre o fonema e a
aquisio do letramento alfabtico o de causalidade recproca. (MORAIS; MOUSTY;
KOLINSKI, 1998, apud SCLIAR-CABRAL, 2003a, p. 51).
Nessa mesma direo, os autores do relatrio brasileiro sobre a Alfabetizao
Infantil: Os Novos Caminhos, encomendado pela Comisso de Educao e Cultura dos
Deputados em 2003, apontam a conscincia fonolgica como sendo a chave para a
compreenso do princpio alfabtico, isto , de que os grafemas representam fonemas.
Ressaltam ainda que a conscincia fonolgica o mais importante preditor de sucesso em
leitura, que esta habilidade [de prestar ateno s unidades mnimas de sons da fala] ajuda a
criana a entender a lgica da decodificao e que, portanto, deve situar-se na base de
qualquer programa de alfabetizao (BRASIL, 2003, p. 37).
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Do exposto, papel ento do educador, - e aqui no se fala s do alfabetizador,
mas tambm aqueles que atuam com pr-escolares - criar estratgias de ensino-aprendizagem
que propiciem o desenvolvimento da conscincia fonolgica.
Como exemplo de aplicao pedaggica, Scliar-Cabral (2003b, p. 40-41) sugere
que se demonstre ao educando que as palavras so formadas por pedacinhos representados
por letras. Mudando uma pela outra, muda o significado. O professor pode, ento, escrever
na lousa a palavra vela ou mela. medida que for escrevendo cada letra, deve pronunciar
o som do fonema que ela representa: /v/, //, /l/, /a/ a fim de que a criana reconhea a
diferena de valores dos grafemas. Outra possibilidade: usando fichas, pode pedir s crianas
para formarem essa mesma palavra sobre sua carteira. Depois, pedir a elas que substituam a
primeira letra por p, b, t, d, s, n, e fazer um jogo para ver quem consegue formar mais
palavras. Em seguida, solicitar a leitura das palavras produzidas pelo aluno, com as quais
formar uma frase. Outra sugesto gravar uma fita com a fala das crianas. Aps grav-las,
o professor pode examinar as gravaes em sala de aula, e pedir que ouam/observem como
cada um tem o seu jeito prprio de falar, que deve ser respeitado. Esse tambm o momento
de professor e aluno fazerem a ponte entre a fala e a escrita, de compreenderem como j foi
dito, que apesar das variaes na fala, no escrevemos do mesmo jeito que falamos.
Esta mesma estratgia, seguida do registro e anlise na lousa de uma das falas das
crianas, possibilita refazerem a percepo que elas tm da cadeia da fala, como j o dissemos
anteriormente, ou seja, possibilita refazerem a percepo daquilo que elas reconhecem como
um continuum, um bolol, que precisa ser segmentado, isto , dividido em pedacinhos
menores, as palavras, e estas em pedacinhos menores ainda (no possvel falar em fonemas
para uma criana pequena) que so representados por uma ou duas letras (SCLIAR-
CABRAL, 2003b, p. 39-40).
neste cenrio que entram as descobertas das pesquisas de ponta no assunto,
realizadas pelas neurocincias e pela psicolingustica, que possibilitam compreender os
processos mentais que ocorrem ao se aprender a ler e a escrever: nelas todas, foi constatado o
ganho cognitivo para o alfabetizando, quando se aborda a conscincia fonolgica na sua
aprendizagem inicial da leitura. Pautada nas principais concluses de tais pesquisas, Scliar-
Cabral (2008) chama a ateno para a necessidade de repensarmos os mtodos de
alfabetizao e o ensino-aprendizagem da leitura e da escrita, a fim de prevenirmos o
analfabetismo funcional no Brasil.
Estratgias de ensino-aprendizagem que desenvolvem a conscincia fonolgica
no constituem em si um mtodo, conforme exemplificamos anteriormente, embora se
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assemelhem aos mtodos fnicos de alfabetizao, uma vez que dirigem a ateno da criana
para a dimenso sonora da lngua, ou seja, das relaes grafema-fonema. Na conscincia
fonolgica, trabalha-se a percepo do valor de cada grafema, e qual a representao do som
de cada grafema numa dada palavra, num dado contexto.
O que aqui se defende a faceta fnica da alfabetizao, a especificidade da
alfabetizao, que implica o ensino intencional, sistemtico e intensivo das relaes grafema-
fonema, isto , a decodificao grafofonolgica. A razo primordial que fundamenta a fnica
que a base dos sistemas alfabticos, ou seja, os grafemas (formados por uma ou mais letras)
representam um fonema (classe de sons com funo de distinguir significados) (SCLIAR-
CABRAL, 2009, p. 15).
Nossa preocupao, portanto, reside no processo de aprender a ler para que o
alfabetizando possa consequentemente compreender, alcanando dessa forma o objetivo
central da leitura. E aqui chegamos exatamente no ponto em que a abordagem fnica
criticada, especialmente no Brasil.
lie Bajard (2006), em seu artigo Nova embalagem, mercadoria antiga, questiona
dois textos representativos da abordagem fnica: o relatrio entregue Cmara dos
Deputados do Brasil e um texto do Observatoire National de la Lecture (ONL), instituio
referenciada no relatrio. Segundo o autor, os textos analisados expressam uma dicotomia
entre decodificao e compreenso, ou seja, h uma necessidade de extrair a pronncia antes
do sentido, de decodificar a palavra antes de compreend-la, de dominar o sistema alfabtico
antes de atingir a compreenso, relegando, desse modo, a construo de sentido/significado a
uma fase posterior, j que a essncia da leitura se centra na decifrao do cdigo, segundo a
interpretao que Bajard faz sobre a proposta que releva a importncia de se trabalhar a
conscincia fonolgica na aprendizagem inicial da leitura. O autor acrescenta ainda que,
retornar ao mtodo fnico [a partir da conscincia fonolgica], ou seja, avatar do mtodo
tradicional, no pode ajudar a sociedade a reduzir o analfabetismo funcional por ela produzido
em massa (p. 506).
No presente estudo, discordamos de Bajard, especialmente no que se refere no-
contribuio da proposta de instruo fnica para erradicao do analfabetismo funcional.
No isso que os dados do programa Iniciativa de Interveno Precoce (Early Intervention
Iniciative), desenvolvido pelo Conselho do Condado Oeste de Dunbartonshire, na Esccia,
revelam. Segundo Scliar-Cabral (2007, p. 5),
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O programa comeou em 1997, com a meta para ser atingida em dez anos. Em 1997, somente 5% das crianas que frequentavam a primeira srie do primrio conseguiam escores altos em leitura: com a aplicao do programa, a cifra subiu para 45%. A reverso do problema tambm se pode observar no fato de que em 1997, as crianas com escores baixos que frequentavam a segunda srie do primrio, constituam 11% e em 2007 baixaram para 1 %. Ainda em 2001, antes que o programa apresentasse efeitos nos estudantes que ingressavam na escola secundria, um entre cada trs alunos (28%) era analfabeto funcional: depois de ter frequentado sete anos do ensino fundamental, seu nvel de leitura era o equivalente ao de uma criana de 9 anos e meio. Em agosto de 2005, j sob o efeito do programa, a porcentagem de tais alunos baixou para 6%.
Entende-se como analfabeto funcional o indivduo que, embora alfabetizado, no
compreende os textos que l, dificultando, assim, o seu exerccio de cidadania, no que se
refere s suas prticas sociais da leitura e da escrita (SCLIAR-CABRAL, 2008), isto , falta-
lhe a competncia para ler e escrever os textos dos quais necessita em sua vida cotidiana
familiar, social e de trabalho. Scliar-Cabral (2007, p. 5) explica que o programa Iniciativa de
Interveno Precoce (Early Intervention Iniciative),
prioriza a educao infantil, desenvolvendo a conscincia fonolgica na pr-escola e utilizando basicamente o mtodo fnico sinttico e o enfoque multissensorial, com material pedaggico elaborado a partir de pesquisas (Jolly Phonics); atividades de interveno, com uma equipe de professores especialmente treinados; avaliao e monitorias contnuas; tempo extra para a leitura no currculo, acessoria s famlias e de quem cuida das crianas e a implementao de um entorno de letramento na comunidade (Education Guardian, 2007).
semelhana deste, situa-se o projeto interinstitucional (UFSC/UNISUL) Ler &
Ser: prevenindo o analfabetismo funcional, cujo principal objetivo realizar uma ao
consistente e continuada para reduzir o analfabetismo funcional no Brasil, no qual esta
pesquisa se integra.
Retomando a perspectiva de Bajard (2006), no que diz respeito aos pressupostos
terico-metodolgicos abordados no Relatrio Final pelo Grupo de Trabalho Alfabetizao
Infantil: Os Novos Caminhos, cumpre dizer que, a nosso ver, este ltimo documento
bastante elucidativo e coerente quando afirma: Lemos para compreender. O propsito da
leitura a compreenso. Mas ler no o mesmo que compreender. Podemos ler sem
compreender. Podemos compreender sem ler. Ler diferente de aprender a ler (BRASIL,
2003, p. 20). Por isso, no se h de confundir aprendizagem da leitura com o seu objetivo: a
compreenso, uma vez que [. . .] no correto tomar a finalidade de uma atividade como
sendo sua definio (J. MORAIS apud BRASIL, 2003, p. 21).
Os autores do relatrio citado, especialistas nacionais e internacionais, advogam
que existe diferena entre aprender a ler e ler para aprender. Ler diferente de aprender
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a ler. Aprender a ler ajuda o leitor a ler. Ler ajuda o leitor a compreender. Para entender um
texto escrito, primeiro o leitor precisa saber ler (BRASIL, 2003, p. 21). Assim, as pessoas
aprendem a ler, tornam-se capazes de ler, e usam essa capacidade para aprender a partir do
que lem (op.cit., p. 21). Com base em pesquisas realizadas, afirmam ainda que: As
crianas que lem melhor e mais compreendem o que lem so as que melhor aprenderam a
decodificar, pois essa habilidade permite que se tornem leitoras eficientes e independentes
(op. cit., p. 48). Para esses mesmos autores, ensinar a decodificar e ler com fluncia a
forma mais eficaz de preparar a criana para desenvolver vocabulrio e compreenso de
textos, posteriormente (op. cit., p. 48).
Do exposto, vale lembrar que a decodificao precisa ser aprendida pelo valor
que as letras tm, muitas vezes condicionadas pelo contexto, e no por seus nomes bem
como, que, tanto os fonemas (classe de sons), quanto sua representao, os grafemas (uma ou
mais letras), tm a funo de distinguir significados, o que propiciar o avano para uma
aprendizagem plena da leitura (SCLIAR-CABRAL, 2009, p. 16).
2.3 O PROCESSAMENTO DA LEITURA
De acordo com Scliar-Cabral (2003b, p. 35-36), os processos envolvidos na
leitura so os seguintes:
Motivao, que determina que texto se vai ler: poesia, notcia de jornal, seo de
anncios de emprego, classificados, entre outros.
Pr-leitura, que determina a seleo do esquema mental para ns atribuirmos o
sentido adequado s palavras do texto. Um esquema mental, tambm denominado roteiro ou
marco, um conhecimento prvio que temos sobre alguma coisa. Assim, quando a criana
vem escola, por exemplo, j tem alguns conhecimentos estruturados em sua memria, isto ,
j tem esquemas como famlia, casa, brinquedos (vrios), vesturio, bairro, dentre outros.
escola, portanto, cabe ampliar e aprofundar tais esquemas, o que ocorrer, principalmente,
atravs da leitura.
Movimentos de fixao e sacada para fatiar a frase, ou seja, quando o
indivduo j est alfabetizado, no fixa o olhar s numa letra, mas processa toda uma frase,
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com suas respectivas particularidades (pargrafo, maisculas, sinais de pontuao,
conectivos. . .).
Reconhecimento das letras, atribuio dos valores aos grafemas e
identificao do vocbulo (descodificao): a autora adverte que decorar o nome das letras
no tem nada a ver com descodificao, visto que uma mesma letra pode representar fonemas
distintos, dependendo da posio que ocupa na palavra, como exemplificamos em outras
sees. O que importante enfatizar a funo dos grafemas: distinguir significados, como,
por exemplo, se substituirmos o p de pato por m, b, t, f, g, j, c e assim por diante. Quanto ao
reconhecimento das letras, imprescindvel mostrar ao alfabetizando, desde o incio da
aprendizagem da leitura, o que diferencia uma letra de outra: trabalhar sempre por
comparao.
Veja-se:
O meio crculo c combinado com um trao vertical I sua direita, vai nos dar a
letra d; a rotao para esquerda nos dar a letra b; ao rotarmos para baixo teremos a letra p; j
a rotao para esquerda agora nos dar a letra q. Do mesmo modo, O trao vertical I sozinho
pode representar o i maisculo ou o le minsculo, se acrescido de um trao horizontal - vai
nos dar a letra L maiscula, que por sua vez, se acrescido de mais dois traos formar a letra
E. Nessa mesma letra E, se retirarmos o trao horizontal inferior, teremos a letra F. Ao
acrescentar um trao vertical esquerda da letra V, distinguimos VALA DE MALA.
Atribuio do sentido s palavras, s frases e ao texto; a interpretao do
texto e a reteno. Esse ltimo consiste na incorporao, de forma estruturada, dos
conhecimentos adquiridos na leitura de um texto memria.
Essa mesma autora ressalta que criana no se podem dar textos para ler, sobre
os quais no tenha qualquer conhecimento prvio sobre o assunto (ou seja, um esquema). De
outro lado, argumenta que os textos informativos devem ampliar e aprofundar os
conhecimentos que o aprendiz j possui (p. 37).
2.4 O AVANO DAS NEUROCINCIAS E A APRENDIZAGEM DA LEITURA
Nesta seo, parte-se do seguinte questionamento: Como se d o processamento
das habilidades de leitura e escrita no crebro humano?
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Nos estudos de Stanislas Dehaene, neurocientista francs, foi descoberto que o
crebro humano associa as regies da linguagem e da viso para proporcionar a leitura. Em
seus experimentos, atravs de um aparelho (IRM imagem por ressonncia magntica),
Dehaene rastreou o funcionamento do crebro de dois grupos de pessoas: um grupo de
alfabetizados, e outro, de no alfabetizados. Ento, a partir de estmulos visuais (textos
verbais e no-verbais) testados com esses grupos, o pesquisador no hesita em afirmar que
[...] o lado esquerdo do crebro que ativamos quando lemos, precisamente atrs da orelha, na regio occpito-temporal-ventral-esquerda. Seria, ento, essa a regio que muda no momento da leitura: as pessoas alfabetizadas, ao lerem, ativam esse circuito; as no alfabetizadas, ao serem expostas a letras, no ativam esse circuito (DEHAENE, 2007 apud SCLIAR-CABRAL, 2008).
Para cada sentido, para cada funo, o crebro reservou uma rea especializada.
Para a leitura identificada a regio occpito-temporal-ventral-esquerda (no hemisfrio
esquerdo), regio especializada em reconhecer os traos invariantes que compem as letras,
cujos valores so os mesmos, independente de seu tamanho ou fonte (SCLIAR-CABRAL,
2008).
Ilustrando o conceito de invarincia:
MALA; MALA; mala; mala; MALA; mala; mala; MALA; mala.
V-se, no caso das letras que compem a palavra mala, que, independente de
seu tamanho, da caixa (MAISCULA ou minscula) ou da fonte (impressa, manuscrita,
itlico, negrito ou sublinhado) l-se /mala/ e no /bala/, por exemplo. Isso possvel porque
uma ou duas letras (os grafemas) esto associadas a um fonema, ambos com a funo de
distinguir significados, conforme verificado nas tcnicas de neuroimagem funcional (IRM),
de eletroencefalografia (EEG) e de magnetoncefalografia (MEG), utilizadas por Dehaene
(SCLIAR-CABRAL, 2008).
Scliar-Cabral (2008) esclarece que o processo de leitura se d mediante uma
interconexo entre as reas visuais [do crebro] que reconhecem as letras, as reas auditivas e
motoras da palavra oral (recepo) e as reas que processam o sentido.
A recepo da linguagem anterior a sua produo, isto , para aprender a falar,
a criana precisa, antes, ouvir e compreender o que os adultos dizem para ela, para s depois
produzir suas primeiras palavras. A mesma coisa acontece com a lngua escrita: para saber
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escrever, preciso, antes, saber ler. Nesta perspectiva, a alfabetizao no deve comear pelo
ensino isolado da escrita, ela [a escrita] at pode ser trabalhada durante a leitura, desde que
quela no seja atribuda importncia maior (SCLIAR-CABRAL, 2008). Atente-se para o
seguinte: a habilidade de copiar diferente da habilidade de escrever.
O que reunimos, no curso da leitura, no so os nomes das letras, mas os
fonemas que elas representam as unidades da fala, abstratas e escondidas, que a criana
deve descobrir (DEHAENE apud REIS, 2008, p. 8). Nessa direo, a aprendizagem inicial
da leitura dar-se- no somente pelo reconhecimento das formas das letras, como tambm (e
especificamente) pelo valor que elas representam. Reis (2008) cita ainda a hiptese de leitura
e escrita de uma criana de seis anos num trabalho escolar: G foi. Esta criana escreveu,
vrias vezes, a expresso G foi para uma dada atividade escolar, que j havia acontecido e
a leu para sua me como J foi. Neste caso, a criana se orientou pela sua percepo
auditiva (a escuta), associando o fonema // letra g, a qual somente teria o valor de // se
estivesse diante de e ou i, como em gelo e girafa, respectivamente.
Finalizando, com base em Scliar-Cabral (2008), advoga-se que as descobertas das
neurocincias podem nos instruir sobre a forma como a criana vai aprender a ler o sistema
escrito, que releva:
estratgias de ensino-aprendizagem que desenvolvam a conscincia
fonolgica do aprendiz;
o reconhecimento, pela criana, dos traos que diferenciam as letras entre
si. Ex: L, F, E, V, M, p, q, b, d, c, e;
o domnio, pelo alfabetizando, dos valores dos grafemas associando-os aos
fonemas que representam. Ex: caro e carro, caa e saca, bela e dela;
a compreenso, pelo aprendiz, de que tanto os fonemas quanto os grafemas
tm a funo de distinguir significados. Ex: VEJA diferente de SEJA.
2.5 PRINCPIOS DO SISTEMA ALFABTICO DO PB REFINANDO CONCEITOS
Scliar-Cabral (2003a; b) tem dedicado grande parte de suas pesquisas para
entender e explicar as possveis razes do baixo desempenho de alunos, no que diz respeito a
descodificao e codificao da lngua escrita. A descodificao refere-se ao reconhecimento
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da palavra, ou seja, ao reconhecimento das letras e atribuio dos valores aos grafemas na
leitura. J a codificao refere-se converso dos fonemas em grafemas na escrita, isto , a
escrita da palavra.
Para uma melhor compreenso dos princpios do sistema alfabtico do portugus
do Brasil, apresentamos, numa das sees anteriores, os conceitos de fonema e de som,
conforme Scliar-Cabral (2009). 10
Acrescenta-se diferena que a autora estabelece entre fonema e som, a diferena
entre fonema e grafema: se, por um lado, o fonema, conforme j dito, um feixe de traos
distintivos, cuja funo a de distinguir significados, pode-se compreender o grafema como
a representao do fonema. Deve-se entender grafema como uma ou mais letras que
representam um fonema (no sistema alfabtico do portugus do Brasil, no mais que duas
letras) (SCLIAR-CABRAL, 2003a, p. 27). Veja-se na palavra txi: temos quatro grafemas
para representarem os seis fonemas /ta.ki.si/11. No caso, o grafema x se l como a
transposio realizao de ks. Na palavra bolo, temos quatro grafemas para representarem
os quatro fonemas /bo.lo/.
Os princpios do sistema alfabtico do portugus do Brasil esto organizados em
dois grandes grupos: as regras de descodificao e as de codificao. As regras de
descodificao implicam o reconhecimento e identificao, por parte do leitor, das letras que
representam os grafemas e seus valores na leitura; por sua vez, as regras de codificao dizem
respeito converso dos fonemas em grafemas na escrita. Nesta seo, porm,
apresentaremos sucintamente as que consideramos mais relevantes num e noutro grupo.
Scliar-Cabral (2003a; b) desdobra as regras de descodificao em quatro
subgrupos, a saber: as regras de correspondncia grafofonmica independentes do contexto;
as regras de correspondncia grafofonmica dependentes do contexto grafmico; as regras
dependentes da metalinguagem e/ou do contexto textual morfossinttico e semntico; valores
imprevisveis para o grafema x, e e o e a leitura de muito.
O primeiro