A CONSTRUÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA DA BAHIA NA PRIMEIRA ...sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/01-...

12
1 A CONSTRUÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA DA BAHIA NA PRIMEIRA REPÚBLICA: Relato de um projeto de levantamento e pesquisa e dos seus resultados Elizabete Santana Universidade do Estado da Bahia UNEB e-mail : [email protected] Palavras chaves: história da educação - escola primária - currículo Resumo Relato da experiência de um projeto de pesquisa que em sua primeira fase de execução realizou levantamentos destinados a produzir as referências que se faziam necessárias para o estudo das mudanças curriculares na construção da escola primária do Estado da Bahia, na Primeira República. Textos de autoria de Johnson Jr. (1980), Giroux (1986), Sacristán (2000), Faria Filho; Vidal (2000) e outros foram utilizados na construção de uma base teórica. Luz (2009), Vidal (2006) e outros apoiaram a construção de conhecimentos sobre o ensino primário. Ao longo dos levantamentos realizados foram publicadas obras de referência e construídos conhecimentos sobre várias questões entre elas a ação de delegados e inspetores escolares. 1 INTRODUÇÃO A necessidade de uma história da construção da escola primária na Bahia que inclua de modo abrangente e articulado os diferentes aspectos do seu funcionamento deu origem ao projeto “Mudanças curriculares na construção da escola primária na Bahia: os currículos prescritos nas reformas do ensino e suas relações com o currículo em uso nas escolas (1889-1930)”. Ao tomar como eixo para a estruturação das atividades de levantamento e sistematização de dados os conceitos de currículo, currículo prescrito e currículo em uso, o projeto contemplou temas que, estando presentes no funcionamento e no cotidiano da escola, estão de algum modo relacionados com os conteúdos ensinados.

Transcript of A CONSTRUÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA DA BAHIA NA PRIMEIRA ...sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/01-...

Page 1: A CONSTRUÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA DA BAHIA NA PRIMEIRA ...sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/01- ESTADO E POLITICAS... · Ao tomar como eixo para a estruturação das atividades

1

A CONSTRUÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA DA BAHIA NA PRIMEIRA

REPÚBLICA: Relato de um projeto de levantamento e pesquisa e dos seus

resultados

Elizabete Santana

Universidade do Estado da Bahia – UNEB

e-mail : [email protected]

Palavras chaves: história da educação - escola primária - currículo

Resumo

Relato da experiência de um projeto de pesquisa que em sua

primeira fase de execução realizou levantamentos destinados a

produzir as referências que se faziam necessárias para o estudo

das mudanças curriculares na construção da escola primária do

Estado da Bahia, na Primeira República. Textos de autoria de

Johnson Jr. (1980), Giroux (1986), Sacristán (2000), Faria Filho;

Vidal (2000) e outros foram utilizados na construção de uma

base teórica. Luz (2009), Vidal (2006) e outros apoiaram a

construção de conhecimentos sobre o ensino primário. Ao longo

dos levantamentos realizados foram publicadas obras de

referência e construídos conhecimentos sobre várias questões

entre elas a ação de delegados e inspetores escolares.

1 INTRODUÇÃO

A necessidade de uma história da construção da escola primária na Bahia que

inclua de modo abrangente e articulado os diferentes aspectos do seu funcionamento

deu origem ao projeto “Mudanças curriculares na construção da escola primária na

Bahia: os currículos prescritos nas reformas do ensino e suas relações com o currículo

em uso nas escolas (1889-1930)”.

Ao tomar como eixo para a estruturação das atividades de levantamento e

sistematização de dados os conceitos de currículo, currículo prescrito e currículo em

uso, o projeto contemplou temas que, estando presentes no funcionamento e no

cotidiano da escola, estão de algum modo relacionados com os conteúdos ensinados.

Page 2: A CONSTRUÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA DA BAHIA NA PRIMEIRA ...sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/01- ESTADO E POLITICAS... · Ao tomar como eixo para a estruturação das atividades

2

Além de identificar as mudanças nos currículos prescritos e de delimitar os seus

reflexos nas práticas em uso nas escolas, havia a pretensão de comparar a estrutura e os

componentes curriculares propostos nas diversas reformas vigentes; conhecer as

condições e forças locais e nacionais que impulsionaram as mudanças e influenciaram

os princípios filosóficos e pedagógicos das diversas propostas oficiais; produzir

interpretações e explicações sobre as relações entre o currículo e outros aspectos da

prática escolar e social.

Esses são objetivos amplos que exigem uma divisão do projeto em etapas e

metas, um caminhar por diferentes percursos metodológicos e o uso de diferentes

fontes, sobretudo porque no caso da Bahia ainda são escassos os estudos que tratam a

escola primária com uma perspectiva abrangente das questões pedagógicas e do

currículo.

O levantamento da literatura pertinente ao tema resulta na descoberta de textos

com conteúdos importantes e substanciais em relação aos seus objetos centrais de

análise, mas que oferecem poucas informações sobre os referidos temas. Veja-se, por

exemplo, os estudos de Silva (1997), Luz (2009), e Nunes (2003) que trazem importantes

subsídios para o estudo da educação primária sem dar um tratamento amplo às questões

pedagógicas e ao funcionamento da escola primária.

Portanto, uma abordagem abrangente e articulada dos diferentes aspectos do seu

funcionamento se faz necessária. Tendo em vista a sua posição de elemento central para

o funcionamento da escola e de eixo em torno do qual podem ser construídas questões

de pesquisa, o currículo foi considerado o fio condutor a partir do qual os diversos

aspectos do estudo da escola primária que estamos empreendendo serão articulados.

As bases teóricas e metodológicas da pesquisa foram inicialmente construídas a

partir dos aportes da área de currículo, da história da educação e da pesquisa em

educação encontrados em Johnson Jr. (1980), Giroux (1986) Sacristán (2000), Faria

Filho ; Vidal, (2000), Luz (2009) e Vidal (2006). Ao longo da execução do projeto

houve a contribuição de outros autores no que se refere ao tratamento de temas

específicos.

O alcance dos objetivos delimitados exigia a construção de uma base

documental de apoio às investigações necessárias para encontrar respostas para as várias

questões de pesquisa que estavam postas.

Page 3: A CONSTRUÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA DA BAHIA NA PRIMEIRA ...sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/01- ESTADO E POLITICAS... · Ao tomar como eixo para a estruturação das atividades

3

O ponto de partida foi o reconhecimento de que a estruturação do sistema

público de ensino vai se configurando através de medidas oficiais cujo conhecimento

ajuda a recompor parte do contexto e da realidade em que tramitaram e a encontrar

pistas para buscar outras peças e elementos que permitam uma aproximação e uma

interpretação da história. Em razão disso, em sua primeira fase, o levantamento

privilegiou a legislação que regulamentou a instrução pública primária do Estado da

Bahia incluindo, desde a primeira reforma republicana posta em prática, em 18 de

agosto de 1890, até a lei de 1929 e o Decreto de 1930, que modificaram alguns artigos

da lei de reforma e do regulamento vigentes a partir de 1925. As buscas da legislação

foram iniciadas a partir das obras de referência produzidas por Tavares (1985;

2001/2002).

Sobre as fontes, deve-se considerar o valioso apoio encontrado nas obras

organizadas sob a coordenação do professor Luiz Henrique Tavares, principalmente

naquela que, segundo ele, foi “toda ela gerada pela inteligência criadora do maior

pensador da educação brasileira neste século XX, Anísio Spínola Teixeira, a quem

também se deve o título de criador de bibliotecas de educação e de centros de

documentação da memória da educação em nosso país” (2001/2002). Organizado a

partir da atividade de pesquisador de História da Educação, exercida durante o período

de seis anos (1955-1961), no Centro Regional de Pesquisas Educacionais (CRINEP),

órgão do INEP-MEC na Bahia, o guia de fontes do professor Tavares foi essencial para

a localização física de leis de reforma, regulamentos e relatórios de diretores de

instrução que atuaram na administração estadual.

A localização física das leis e regulamentos em arquivos da cidade de Salvador,

já contou com o apoio aportado ao subprojeto Levantamento e sistematização de

referências documentais sobre a construção da escola primária na Bahia (1889-1930)

pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB).

Entre atos, leis e decretos foram localizados e fotografados 14 documentos que,

depois de impressos, foram digitados com o cuidado de preservar a grafia original.

Apesar do interesse específico pelo ensino primário, os documentos foram publicados

na integra nos formatos de livro impresso e digitalizada em um CD.

É no conteúdo dos temas presentes em vários artigos das leis que podemos

encontrar as intenções, as características e a tônica das propostas e medidas

educacionais. A ênfase atribuída a determinados temas indica as tendências, a

Page 4: A CONSTRUÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA DA BAHIA NA PRIMEIRA ...sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/01- ESTADO E POLITICAS... · Ao tomar como eixo para a estruturação das atividades

4

importância política atribuída aos mesmos e as necessidades reais percebidas na

sociedade. Daí a proposta de produzir um guia organizado em torno daqueles temas ou

itens relevantes para o estudo do currículo e da escola primária os quais são,

seguidamente, objeto de regulamentação no conteúdo dos documentos legais. Entre

eles, estão: as matérias de estudo, métodos pedagógicos, organização pedagógica e

administrativa da escola, rotinas escolares, materiais didáticos, sistema de provas e

exames e vários outros. O Guia de referências temáticas nas leis de reforma e

regulamentos (1890-1930), publicado em 2011, é uma ferramenta que permite

introduzir o leitor no conteúdo da lei, sem que ele tenha de “perder-se”, primeiro, na

leitura de muitos dos seus artigos. Cada representação gráfica traz a indicação do ato, lei

ou regulamento, acompanhada de referências sobre os artigos que tratam,

especificamente, do tema. Portanto, o guia remete o leitor ao documento, facilitando a

sua consulta.

A análise dos documentos legais, aprofundada durante a preparação do Guia,

confirmava o pressuposto de que as prescrições oficiais indicavam as medidas para

uniformizar o ensino público primário e colocá-lo, progressivamente, dentro de uma

estrutura de rede de escolas e de sistema de ensino. Davam pistas sobre o

funcionamento possível da escola primária e da administração do ensino, mas não

indicavam o que realmente acontecia no cotidiano das escolas e nem como as

proposições legais impactavam na vida dos alunos e dos professores, em suas práticas,

ideias e expectativas. Várias são as análises sobre essa distância entre a prática e as

recomendações oficiais e os diversos significados que podem ser atribuídos à legislação,

entre as quais se encontra a realizada por Faria Filho (1998).

Outra preocupação presente na condução deste projeto é a de considerar os

agentes pedagógicos através dos quais as normas e práticas se concretizam (Julia, 2001).

Daí a intenção de articular o estudo da legislação com o do pensamento desses agentes e

das estratégias e formas que utilizam para construir a escola. Considerar que as

estratégias são o resultado do modo de interpretar e reinterpretar as recomendações

legais e de integrá-las ou acomodá-las às formas de ver e fazer a escola estimulava a

buscar respostas para questões formuladas no início do projeto. Entre tais questões

destacavam-se as relacionadas com a função que as práticas educativas

complementares, rotinas, práticas metodológicas e didáticas, materiais, formas da escola

se articular com a comunidade, etc. assumem nos currículos propostos e no currículo em

Page 5: A CONSTRUÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA DA BAHIA NA PRIMEIRA ...sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/01- ESTADO E POLITICAS... · Ao tomar como eixo para a estruturação das atividades

5

uso e as que se referem às relações estratégicas existentes entre o currículo e outros

aspectos da prática escolar e social.

Essas questões remetiam a um esforço para a localização de escritos de

professores, alunos e observadores dos movimentos relacionados com a escola e a

educação, caso de jornalistas, políticos e outros que utilizam a imprensa, os discursos e

os escritos para comunicar suas ideias.

O desejo de conhecer o cotidiano da escola foi reforçado quando da descoberta

da passagem da administração das escolas estaduais do município da Capital para a

órbita da Intendência Municipal de Salvador, em 1895, através da Lei 117. Daí uma

ampliação das fontes predominantemente utilizadas na 1ª fase do projeto e uma busca

por documentos representados por relatórios, cartas, relação de pontos para exame,

materiais escolares, notícias de jornais, artigos de revistas, livros didáticos, teses e

memórias de professores, relatórios de intendentes e delegados escolares.

Concentrar o olhar em Salvador, considerando o período transcorrido entre o ano

de 1896, quando se efetivou a municipalização, e 1927, ano em que ocorre a reversão da

medida, representou uma redução temporária da abrangência geográfica do

levantamento na perspectiva de aprofundar o estudo do tema e de encontrar elos entre

experiências e eventos históricos vivenciados no interior e na capital, no campo da

educação.

Também acreditávamos que devido a sua posição de Capital, a cidade de

Salvador e o seu município sede poderiam ter se constituído de algum modo em um

laboratório irradiador de ideias e práticas para outras localidades do estado.

Nessa fase o grupo de pesquisa não contou com um guia de fontes para facilitar

a busca dos documentos. Valendo-se do conhecimento sobre temas articulados ao

currículo construído na primeira fase, foi elaborado um roteiro para orientar a leitura de

relatórios da intendência municipal localizados em arquivos da capital. O resultado foi

uma listagem de temas que orientou a busca de documentos manuscritos sobre a escola

primária da capital do estado, no período em que esteve sob a administração da

intendência municipal.

O acesso a essas fontes localizadas no Arquivo Histórico Municipal de Salvador

estimulou a sua exploração em análises preliminares para conhecer o que se passou com

a escola primária de Salvador, entre 1896 e 1927. Complementados por outras fontes,

Page 6: A CONSTRUÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA DA BAHIA NA PRIMEIRA ...sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/01- ESTADO E POLITICAS... · Ao tomar como eixo para a estruturação das atividades

6

vários dos documentos manuscritos levantados foram utilizados na escrita de artigos

inclusos na primeira parte da obra O ensino primário no Município de Salvador (1896-

1924), que se encontra no prelo. São artigos sobre escolarização da população infantil,

características do aluno da escola primária de Salvador, dificuldades e obstáculos para

implantar a escola primária, representações dos professores e sobre um livro de leitura

para crianças escrito por um professor primário municipal.

Uma terceira fase do levantamento está em curso com o intento de responder a

questão: Que relações e influências a Escola Normal da Bahia e os alunos - mestres nela

formados tiveram na construção das propostas oficiais de currículo e no currículo em

uso nas escolas onde atuaram? Esta é a questão central do projeto MODOS DE FAZER:

Presença e influência das escolas primárias anexas ao Instituto Normal e do ensino de

pedagogia e metodologia nas práticas curriculares em uso na Primeira República, que

se encontra em execução com o apoio da FAPESB.

2 AS DESCOBERTAS SOBRE A CONSTRUÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA NA

BAHIA, NA PROMEIRA REPÚBLICA: Um novo modo de ver a ação dos delegados e

inspetores escolares.

No início da pesquisa havia a tendência de considerar os delegados e inspetores

escolares como elementos do sistema de controle, representantes diretos do governo

junto aos professores com o objetivo maior de zelar pelo cumprimento das normas,

reduzindo a autonomia dos professores. Ao longo das atividades de leitura,

sistematização de informações e de organização do material levantado várias foram as

evidências que indicaram a importância do papel dos delegados e inspetores escolares

na expansão da escolarização, na vulgarização dos métodos pedagógicos, e no registro

de informações valiosas para a história da educação.

Os relatórios dos delegados municipais de Salvador dirigidos à Intendência

Municipal permitiram conhecer dados como matrícula e frequência dos alunos, nome

dos professores que assumiam as escolas e onde essas estavam localizadas. Esses

documentos constituem fonte valiosa sobre o tumultuado processo de municipalização

do ensino uma vez que aqueles agentes registraram as providências administrativas

postas em prática ou postergadas; as disputas de poder entre o governo estadual e

municipal; o clima reinante entre os professores; e as dificuldades, avanços e progressos

Page 7: A CONSTRUÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA DA BAHIA NA PRIMEIRA ...sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/01- ESTADO E POLITICAS... · Ao tomar como eixo para a estruturação das atividades

7

observados. Trata-se de um material importante para a construção de uma história da

educação, no que diz respeito ao estudo de questões relativas às diversas nuances que

envolvem um processo de municipalização do ensino, sendo de grande utilidade para

um Estado como o da Bahia onde, recentemente, as escolas de ensino fundamental

foram entregues à administração municipal.

Entre os esforços para transformar a escola, no início da República, relatados

pelos delegados municipais, encontram-se os relacionados à classificação dos alunos de

acordo com os diversos níveis de curso que constituíam o ensino primário.

O Regulamento de 1881, último vigente na Bahia, antes da proclamação da

República, e que trazia como novidade a introdução do método intuitivo, não faz

referências a níveis, cursos e estágios. A escola primária não estava estruturada em

níveis ou graus, um só professor dava conta da preparação do aluno durante todo o

período de duração do curso primário. No referido Regulamento os conteúdos do ensino

eram indicados sob a forma das seguintes matérias: Leitura; Escrita; Elementos de

gramática portuguesa; Aritmética – operações elementares com aplicações práticas,

frações decimais e ordinárias, sistema métrico decimal, proporções e suas aplicações;

Desenho linear; Noções de geografia e história, especialmente da geografia e história

pátria; Elementos de ciências naturais e Religião e civilidade. Cabia aos professores

fazer a seu modo a divisão dos conteúdos ensinados aos diversos grupos de alunos sob o

seu encargo.

A subdivisão dos programas de modo a indicar a fração de conhecimentos

correspondentes a cada um dos níveis ou cursos da escola primária era um dos

requisitos para a constituição de uma escola graduada, moderna, submetida a novos

parâmetros de funcionamento, de controle e de produtividade. A nova escola exigia a

classificação dos alunos para constituir grupos homogêneos considerando a idade e o

domínio dos conteúdos adequados a cada faixa etária. Logo após a República, no

primeiro Regimento para as escolas primárias do Estado da Bahia, datado de 1891,

encontra-se a primeira referência à divisão da escola primária em cursos, que seriam o

elementar, médio e superior, com a correspondente distribuição dos conteúdos. Nele já

se observa um maior detalhamento dos assuntos e matérias do programa de estudos.

No que diz respeito ao município de Salvador, a Lei 219, de 20 de abril de 1896,

que instituiu o ensino municipal, determina a divisão das escolas primárias de 1º grau

em três cursos: Curso elementar ou 1º curso correspondendo ao período de iniciação,

Page 8: A CONSTRUÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA DA BAHIA NA PRIMEIRA ...sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/01- ESTADO E POLITICAS... · Ao tomar como eixo para a estruturação das atividades

8

ensino formal; o curso médio ou 2º curso, período de aquisição de conhecimentos

usuais, ensino real e o curso superior que seria o período de instrução prática, de

repetição e de ensino principalmente cívico.

A necessidade da classificação pedagógica dos alunos por esses três cursos são

constantemente reafirmados nos diversos documentos oficiais do município de

Salvador, cabendo aos delegados escolares zelar pelo seu cumprimento. A

responsabilidade de classificação cabia ao professor no início do ano e contribuiria para

uma boa ordem das atividades pedagógicas. Entretanto, os professores não procediam à

classificação e a esse respeito o Delegado Antonio Bahia da Silva Araújo, faz um

pronunciamento apontando as desculpas dadas pelos professores – falta de mobília e de

material de ensino –, o que, segundo o delegado, não procede, uma vez que quanto ao

espaço físico, a classificação apenas exigia localizar em uma mesma área da sala alunos

da mesma idade e do mesmo nível de aprendizagem, facilitando o trânsito durante as

atividades (1899, p. 307).

Diante da resistência dos professores em classificar os alunos, apontada pelos

delegados incumbidos da fiscalização, os exames semestrais perdiam a sua função de

aferir o progresso da aprendizagem.

De acordo com art. 21 da lei n. 219, esses exames deveriam ser realizados em

julho, estavam a cargo dos delegados e tinham a função de apurar o aproveitamento da

classe no primeiro período do ano letivo e de constituir o grupo dos alunos que

realizariam os exames finais em Novembro. A não classificação dos alunos prejudicava

os exames de aproveitamento realizados no primeiro semestre o que interessava aos

professores acostumados a apenas concentrar esforços para preparar os alunos mais

aptos a serem submetidos aos exames finais.

Em 1899, amparadas Lei 219 e pelas instruções para exame e constituição das

classes que estavam anexas ao ato 425, de 24 de abril de 1899, comissões compostas

por Delegados Escolares visitaram as escolas e fizeram a classificação dos alunos, em

uma ação que podemos considerar precursora da implantação da escola graduada entre

nós. Ao mesmo tempo, em suas visitas durante os exames, os delegados zelavam pelo

cumprimento das normas relativas ao programa prescrito e pela uniformização dos

métodos e dos livros didáticos adotados na escola.

Page 9: A CONSTRUÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA DA BAHIA NA PRIMEIRA ...sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/01- ESTADO E POLITICAS... · Ao tomar como eixo para a estruturação das atividades

9

Figura 1

Fragmento do mapa geral dos exames de aproveitamento procedidos

no ano de 1899 nas escolas primárias do Município de Salvador

Fonte: GUIMARÃES, 1900, p. 287-305

O mapa dos exames de aproveitamento realizados no ano de 1899, do qual se

extraiu o fragmento apresentado na Figura 1, foi elaborado por Antonio Bahia da Silva

Araújo e João Theodoro Araponga e publicado em relatório (GUIMARÃES, 1900, p.

287-305). Está composto, em seu formato impresso, de 18 páginas. Retrata o resultado

do trabalho realizado pelos delegados escolares, entre os dias 08 de julho e 11 de

novembro, com o objetivo de dividir os alunos por grupos, de acordo com o seu nível de

aprendizagem, segundo a classificação pedagógica prescrita no ato 425 que indica os

seguintes níveis: classe preparatória, 1º curso, 2º curso e 3º curso. O mapa registra a

data e hora das visitas realizadas, destaca as poucas escolas que tinham feito a

classificação pedagógica dos alunos, apresenta os resultados das classificações

procedidas pelos delegados e aponta os motivos da não realização da classificação em

Page 10: A CONSTRUÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA DA BAHIA NA PRIMEIRA ...sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/01- ESTADO E POLITICAS... · Ao tomar como eixo para a estruturação das atividades

10

diversas escolas. Apresenta, também, observações sobre a gestão do currículo em cada

uma das 101 escolas visitadas no município de Salvador.

As observações registradas evidenciam a existência de tensões na relação entre

o currículo em uso nas escolas e o currículo prescrito, quando acusam que a grande

maioria dos professores ensina apenas leitura, escrita, desenho e cálculo. A redução do

currículo a essas matérias é um indício de que as escolas estavam distanciadas da

proposta de conteúdos prescrita no Ato 245 que instituiu o regulamento das escolas

primárias do município da capital . O Art. 27 do referido Ato estabelecia que a escola

primária de 1° grau teria a duração de 2 anos e desenvolveria o ensino de: língua

materna; leitura; escrita; cálculo e sistema métrico; geografia e história do Brasil,

principalmente a da Bahia; noções de higiene; noções de ciências físicas e naturais;

noções de agricultura; geometria elementar e desenho; moral prática, instrução cívica,

Constituição do Estado; elementos de música, canto coral, hinos patrióticos; ginástica e

exercícios militares para meninos; calistenia para meninas; trabalhos manuais para

meninos; trabalhos de agulhas e prendas para meninas.

Apesar desse elenco de matérias, as instruções anexas ao Ato n. 425, de 24 de

Abril de 1899 que regulamentava a constituição das classes e a sua organização

pedagógica reduzem a abrangência do currículo. Enfatizam os conteúdos relacionados

com leitura, escrita e cálculo ao indicar as aprendizagens essenciais para o aluno

progredir de um curso para outro e para ser considerado apto aos exames finais. Diante

disso, pode-se dizer que os professores davam prioridade às normas práticas

introduzidas para facilitar a operacionalização dos exames, em detrimento do plano de

estudo prescrito na legislação. Ou seja, distanciavam-se do currículo oficial,

estabelecido no Ato 245, mas privilegiavam os conteúdos expressos em habilidades que

outro ato legal determinava como os mínimos que deveriam ser aprendidos pelos

alunos. Assim, buscavam garantir o máximo de aprovações nos exames semestrais e

finais e não se aventuravam no ensino dos novos conteúdos introduzidos a partir do

início da República. Somente alguns professores foram apontados como ensinando

todas as matérias do programa. Entre eles encontram-se João Gonçalves Pereira,

Leopoldo do Reis, Cincinato Franca, Presciliano José Leal, professores que nos diversos

documentos examinados aparecem recebendo elogios por seu desempenho profissional,

recebendo prêmios, participando de eventos, assumindo funções destacadas, liderando

grupos, divulgando ideias inovadoras sobre educação através de revistas e jornais.

Page 11: A CONSTRUÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA DA BAHIA NA PRIMEIRA ...sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/01- ESTADO E POLITICAS... · Ao tomar como eixo para a estruturação das atividades

11

No mesmo relatório que apresenta o mapa dos exames, anteriormente referido,

Antonio Bahia da Silva Araújo solicita ao Intendente Francisco de Paula Oliveira

Guimarães a manutenção dos exames semestrais,

[...] já porque fazem e mantém a classificação pedagógica da

escola, já porque obriga o professor a trabalhar com todos os seus

alunos, desde o começo do ano letivo, e não unicamente com alguns

escolhidos para figurarem nos exames finais com o abandono do

ensino dos demais alunos, que ficam a cargo de monitores, já porque

com segurança e verdade se conseguem a matrícula e a frequência

exatas das escolas.

Anos mais tarde, por volta de 1913,1914 e 1915, nas Conferências Pedagógicas

a indicação do ensino da Ginástica, História, Geografia, e das prendas como tema para a

elaboração das teses que seriam apresentadas por professores no evento, revela que

ainda permaneciam as dificuldades de penetração no cotidiano da escola.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora ainda não tenha ocorrido um tratamento abrangente do tema, prometido

no corpo do projeto que deu origem aos diversos levantamentos aqui referidos, novos

conhecimentos sobre a construção da escola primária da Bahia, na Primeira República,

estão sendo construídos e disponibilizados através da elaboração de artigos, trabalhos de

TCC e dissertações de mestrado que de diversas formas estão retomando as questões

iniciais de pesquisa e investigando-as com o uso dos documentos localizados e de

outros complementares. Junto com esse movimento as atividades de levantamento

também vão aportando informações e sugerindo conexões. Espera-se que a redução dos

compromissos com as atividades de levantamento e de organização do material

levantado abra espaço para um tratamento do tema mais próximo daquilo que foi

proposto no projeto Mudanças curriculares na construção da escola primária na

Bahia: os currículos prescritos nas reformas do ensino e suas relações com o currículo

em uso nas escolas (1889-1930).

REFERÊNCIAS

ARAPONGA, João Theodoro. [Mapa datado de abril de 1897] [9 fl]. Arquivo

Histórico Municipal de Salvador – FUNDO INTENDÊNCIA MUNICIPAL – Seção

Ensino Municipal- Diretoria do Ensino Municipal. CAIXA 20

Page 12: A CONSTRUÇÃO DA ESCOLA PRIMÁRIA DA BAHIA NA PRIMEIRA ...sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/01- ESTADO E POLITICAS... · Ao tomar como eixo para a estruturação das atividades

12

ARAUJO, Antonio Bahia da Silva. [Mapa datado de abril de 1897] [9 fl]. Arquivo

Histórico Municipal de Salvador – FUNDO INTENDÊNCIA MUNICIPAL – Seção

Ensino Municipal- Diretoria do Ensino Municipal. CAIXA 20

FARIA FILHO, L. M; VIDAL, Diana. Os tempos e os espaços escolares no processo de

institucionalização primária no Brasil. Revista Brasileira de Educação, São Paulo

n.14, p. 19-34, mai. /ago.2000

GIROUX, Henry. Teoria crítica e resistência em educação. RJ: Editoras Vozes. 1986.

GUIMARÃES, Francisco de Paula RELATÓRIO APRESENTADO AO CONSELHO

MUNICIPAL, 1900, BAHIA. Typ. do Correio de Notícias, p. 287 – 305.

JOHNSON JR, Mauritz. Definições e modelos na teoria do currículo. In: MESSICK,

Rosemary G.; PAIXÃO, Lyra; BASTOS, Lília da R. Currículo: Análise e debate. RJ:

Zahar Editores, 1980..

JULIA, Dominique. A Cultura Escolar como Objeto Histórico. In: Revista Brasileira

de Educação, n. 1, 9-44, Jan./jun. 2001.

LUZ, José Augusto Ramos da. Um olhar sobre a educação na Bahia: a salvação pelo

ensino primário (1924-1928)..Tese (doutorado) – Salvador: Faculdade de Filosofia e

Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia. 2009.

SACRISTÁN, J. Gimeno. O currículo: Uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre:

Artmed, 2000.

SILVA, M. C O ensino primário na Bahia: 1889- 1930. Tese (Doutorado em

Educação). Salvador: Faculdade de Educação – Universidade Federal da Bahia,

Bahia.1997.

TAVARES, Luís Henrique Dias. Fontes para o estudo da educação no Brasil.

(BAHIA – TOMO I). Salvador: PROMEBA/UNEB, 2000/2001. 502p.

_____. (Coord.). Ementário da legislação educacional baiana no período

republicano 1889-1983. Salvador: SEC/IAT, 1985.

VIDAL, Diana Gonçalves (org.). Grupos Escolares: Cultura Escolar Primária e

Escolarização da Infância no Brasil (1893-1971). Campinas. SP: Mercado de Letras,

2006.