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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais
Luiza Santana de Oliveira
A CONSTRUÇÃO DA CULTURA E DA IDENTIDADE NACIONAL: UMA ANÁLISE
DO INDEPENDENTISMO CATALÃO E DO CATALANISMO
Belo Horizonte
2019
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais
Luiza Santana de Oliveira
A CONSTRUÇÃO DA CULTURA E DA IDENTIDADE NACIONAL: UMA ANÁLISE
DO INDEPENDENTISMO CATALÃO E DO CATALANISMO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Relações Internacionais da
Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre em Relações Internacionais
Orientadora: Profa. Dra. Rashmi Singh
Área de concentração: Política Internacional
Belo Horizonte
2019
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Oliveira, Luiza Santana de
O48c A construção da cultura e da identidade nacional: uma análise do
independentismo Catalão e do catalanismo / Luiza Santana de Oliveira. Belo
Horizonte, 2019.
145 f. : il.
Orientadora: Rashmi Singh
Coorientador: Rodrigo Correa Teixeira
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais
1. Wendt, Alexander, 1966-. 2. Construtivismo (Filosofia). 3. Nacionalismo. 4.
Características nacionais. 5. Cultura política. 6. Catalunha (Espanha) - História. 7.
Catalunha (Espanha) - Aspectos políticos. I. Singh, Rashmi. II. Teixeira, Rodrigo
Correa. III. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-
Graduação em Relações Internacionais. IV. Título.
CDU: 329.17
Ficha catalográfica elaborada por Fabiana Marques de Souza e Silva - CRB 6/2086
Luiza Santana de Oliveira
A CONSTRUÇÃO DA CULTURA E DA IDENTIDADE NACIONAL: UMA ANÁLISE
DO INDEPENDENTISMO CATALÃO E DO CATALANISMO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Relações Internacionais da
Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre em Relações Internacionais
Área de concentração: Política Internacional
________________________________________________________
Profª. Drª. Rashmi Singh – PUC Minas (Orientadora)
________________________________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Correa Teixeira – PUC Minas (Co-orientador)
________________________________________________________
Profª. Drª. Silvana Seabra Hooper – Universidade Presbiteriana Mackenzie SP e PUC Minas
(Banca Examinadora)
________________________________________________________
Profª. Drª. Marinana Andrade e Barros – UNI-BH (Banca Examinadora)
Belo Horizonte, 20 de agosto de 2019
Dedico o presente trabalho aos meus pais, pelo suporte e compreensão. A minha querida avó
Ceição, por me ajudar sempre, mesmo sem perceber.
AGRADECIMENTOS
Não posso esquecer tampouco de quem esteve comigo durante esta longa jornada, e nomeio:
Prof. Rodrigo C. Teixeira – muito mais do que um coorientador –, Profª. Rashmi Singh, Prof.
Javier Vadell, Prof. Otávio Dulci (em memória). Às amigas que me incentivaram a continuar,
mesmo quando tudo parecia infindável e muito duro: Tatiana e Jordano Ramalho, Cíntia
Antão de Santana, Franciely Torrente, Andrea Resende – que verdadeiramente me ajudou a
caminhar –; muito obrigada! Agradeço a Maria Dias Carvalho, mãe de Carlos, que foi uma
amiga fiel e que me acolhe como mãe. A Carlos Fernando, por suportar minhas diárias
neuroses, das quais não me envergonho por me mostrar humana. Ademais, pelo
companheirismo. Aos autores que me inspiraram. À minha psicóloga Paula Lamego. Aos
meus orientandos. Aos meus animais.
“Tudo é política e nada seria mais ingênuo
do que atribuir à História o papel neutro de
mestra da vida.”
PAIVA, Henrique et GAVIÃO, Leandro
RESUMO
A pergunta que orienta a dissertação discorre sobre a questão nacional e o independentismo
catalão. A pergunta que nos orienta é o porquê de, ainda hoje, em Estados desenvolvidos
[Espanha], pertencentes a grandes comunidades culturais e econômicas [União Europeia];
haver nações com sentimento de não representação nacional e identitária ao ponto de
buscarem sua independência [catalães]. Com o objetivo de desenvolver e trazer uma resposta
para nossa questão fazemos uso do estudo de caso, protagonizado pela questão catalã sob a
luz do Construtivismo de Alexander Wendt. A abordagem metodológica é, portanto,
qualitativa baseada em fontes secundárias. Nosso caminho envereda por pontos jurídicos,
políticos, e antropológicos essenciais para compreensão do problema, com toda sua
complexidade. Fazemos também uma análise histórica e geopolítica, que nos dá solo para, ao
fim do trabalho, com novas informações e à luz dos últimos acontecimentos, demonstrarmos a
importância e atualidade da questão estudada para inúmeras áreas do conhecimento. Ao fim
trazemos também uma provocação em prol da continuidade e pertinência dos estudos em
níveis individuais.
Palavras-chave: Catalunha. Catalanismo. Independentismo. Nacionalismo.
Construtivismo. Cultura política.
ABSTRACT
The present thesis argues about the national issue and Catalan Independentism. The guiding
question is why there are still nations that feel non represented in terms of nationality and
identity as the Catalans – even in our days, even belonging to developed States [Spain] and to
great cultural and economical communities [European Union]. Aiming developing and
bringing answers to this issue we make a study case from the Catalan situation through the
light of the Alexander Wendt’s Constructivism. Our methodological approach is, therefore,
qualitative and secondary source based. To do such we do a geographical and historical
analysis, passing through essential judicial, political and anthropological aspects of the
problem. This allows us, in the end of the work – with new information and the newest events
–, to demonstrate the importance, complexity and topicality of the studied question to several
knowledge fields. In the end we instigate our fellow colleagues to advancing the studies on
individual levels given its importance and relevance.
Key-words: Catalonia. Catalanism. Independentism. Nationalism. Constructivism.
Political Culture.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Museu d’arqueologia de Catalunya. La Roca dels Moros d’El Cogul. ................. 80
Figura 2 – Mosaico de paisagens de Catalunha....................................................................... 88
Figura 3 – Torre Del Teatre-Museu Dalí D. Julia.................................................................... 90
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AD – Análise de Discurso
AD2 – Análise de Discurso Construtivista
AD3 – Análise de Discurso Pós-Estruturalista
CE – Comunidade Europeia
CEE – Comunidade dos Estados Europeus
CEDA – Confederação Espanhola de Direitas Autônomas
CGT – Confederação Geral do Trabalho [francesa]
CiU – Convergència i Uniò
CNT – Confederação Nacional do Trabalho
EA – Estatuto de Autonomia
EAC – Estatuto de Autonomia da Catalunha
ERC – Esquerda Republicana da Catalunha
ETA – Euskadí ta Askatasuna [País Basco e Liberdade]
EUA – Estados Unidos da América
FAI – Federação Anarquista Ibérica
FE – Falange Espanhola
FP – Frente Popular
GCE – Guerra Civil espanhola
GENCAT – Generalitat de Catalunya
GF – Guerra Fria
I GG – Primeira Grande Guerra
II GG – Segunda Grande Guerra
JAI – Conselho de Justiça e Assuntos Internos [UE]
JONS – Juntas de Ofensiva Nacional Sindicalistas
ONU – Organização das Nações Unidas
PCE – Partido Comunista Espanhol
PR – Primeira República [espanhola]
PRP – Partido Republicano Popular
PSOE – Partido Socialista Obrero Español
RE – Renovação Espanhola
REPPARP – Red Europea Primeros Pobladores y Arte Rupestre Histórico
RI – Relações Internacionais
RU – Reino Unido
SI – Sistema Internacional
SR – Segunda República [espanhola]
TNI – Tratado de Não Intervenção
TPI – Teoria Política Internacional
TR – Terceira República [espanhola]
TUE – Tratado da União Europeia
PESC – Política Externa e de Segurança Comum
PSOE – Partido Socialista Operário Espanhol
UE – União Europeia
UEM – União Econômica e Monetária
UGT – União Geral dos Trabalhadores [espanhola]
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 1
2. O CONSTRUTIVISMO NA DISCIPLINA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 4
2.1 Tradição, costume e convenção: conceitos que estendem a compreensão da identidade
nacional ...................................................................................................................................... 13
2.1.1 Tradição e agrupamentos humanos ................................................................................... 14
2.1.1. Categorização da tradição ............................................................................................... 21
2.2. Nação e a invenção do sentimento nacional: construção identitária .......................... 22
2.2.1. Nacionalismo e identidade ................................................................................................ 24
2.2.2. Identidade e política ......................................................................................................... 27
2.3. Da Nação ao Estado Nacional ........................................................................................ 30
2.3.1. O Estado Político .............................................................................................................. 33
2.3.2 A soberania ....................................................................................................................... 36
3 DA ESPANHA À CATALUNHA .................................................................................. 43
3.1. A Espanha: passagem da Idade Média à Idade Moderna ........................................... 44
3.1.1. A Independência de Cuba: a conformação das identidades na Espanha Moderna ......... 50
3.1.2. A Semana Trágica de Barcelona ...................................................................................... 53
3.1.3. A década de 1920: a ditadura de Primo de Rivera ........................................................... 56
3.1.4. A década de 1930: a Segunda República espanhola ........................................................ 57
3.2. A Guerra Civil espanhola ............................................................................................... 61
3.3. Do Franquismo à redemocratização espanhola ........................................................... 66
3.3.1. O Franquismo ................................................................................................................... 67
3.3.2. A redemocratização na Espanha ...................................................................................... 70
3.4. A Catalunha ..................................................................................................................... 72
3.5. O Tratado de Maatricht .................................................................................................... 76
4 A CONSTRUÇÃO DO CATALANISMO ............................................................................. 79
4.1 Os marcos culturais catalães .............................................................................................. 79
4.1.1. As artes e a catalanidade ................................................................................................. 82
4.1.2. A linguagem na conformação nacional: o catalão .......................................................... 99
4.1.3. O reestabelecimento da Generalitat e o surgimento do catalanismo .............................. 104
4.2. O Plebiscito, a Catalunha e a União Europeia: o Catalão, o Espanhol, o Europeu. . 112
5 CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 122
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................. 125
APÊNDICE 1: .......................................................................................................................... 135
ANEXO 1 ................................................................................................................................. 138
ANEXO 2 ................................................................................................................................. 139
ANEXO 3 ................................................................................................................................. 140
ANEXO 4 ................................................................................................................................. 141
ANEXO 5 ................................................................................................................................. 142
ANEXO 6 ................................................................................................................................. 143
ANEXO 7 ................................................................................................................................. 144
ANEXO 8 ................................................................................................................................. 145
1
1. INTRODUÇÃO
O objetivo desse trabalho é explicar e compreender como a problemática da
identidade atua dentro dos processos nacionalistas contemporâneos. Num passo adiante, nos
questionamos por que deseja a Catalunha buscar a independência de Espanha estando num
posto central, num país Europeu, membro da União Europeia e participante da Zona do Euro –
motivos que ao menos num primeiro momento não justificariam um sentimento de insatisfação
sobre falta de acessos, colonização, nem mesmo um afastamento ideológico brusco. Para tanto,
colocamos as seguintes perguntas: 1) A Catalunha, tendo em vista sua formação histórica,
constitui um Self independente de Espanha? 2) Até que ponto a Guerra Civil Espanhola acirrou
o movimento nacionalista catalão? Por fim, 3) Por que alguns catalães dizem que a Espanha
usurpa1 a identidade catalã?
Como de praxe metodológica, nos colocamos três hipóteses iniciais que
responderiam às perguntas. São elas: 1) A Catalunha e a Espanha possuem identidades
diferentes e distintas; e que 2) A Guerra Civil teria reavivado sentimentos nacionais catalães
adormecidos, na medida em que suprimiu a expressão de uma suposta catalanidade.
Finalmente, uma terceira hipótese seria de que a mundialização ameaça uma identidade fraca,
que vê na independência sua única forma de sobrevivência.
Para colocar as hipóteses em xeque, consideramos necessário primeiro escolher
uma teoria de trabalho que permitisse considerar todas as variáveis que pareciam permear a
temática, tais como cultura, identidade, nação, nacionalismo. Ademais, mesmo que seja um
evento regional, é um fenômeno que tem se apresentado em variadas partes do globo. Não
poderíamos, portanto, adotar uma teoria que desconsiderasse o historicismo ou as teorias de
estado, ou questões que remetessem à construção e manutenção de narrativas e tradições. Por
bem, definiu-se que trabalharíamos com a teoria construtivista das Relações Internacionais de
Alexander Wendt. Como uma ramificação do seu próprio construtivismo, Wendt propõe uma
forma inovadora de compreender os fenômenos internacionais a partir dos conceitos que
julgamos como chaves para esclarecer nossos questionamentos. É por isso que usamos
largamente seu livro Teoria Social da Política Internacional.
Toda teoria, no entanto, por melhor que seja, não se resume a um livro ou autor,
mas é tributária de um corpus que deve ser respeitado. Devido à interdisciplinaridade do tema,
1 Termo usado em detrimento do seu uso pelos catalães independentistas.
2
no nos furtamos de voltar a textos de autores renomados nos estudos sobre nossos conceitos
essenciais. Dessa maneira, adotamos uma abordagem metodológica qualitativa, baseada em
fontes secundárias, permitindo o estudo de caso aprofundado da questão catalã.
Construímos a presente obra, desta feita, expondo de maneira geral o trabalho no
primeiro capítulo introdutório. No segundo capítulo o locus ocupado pelo Construtivismo das
RI e apresentamos a partir dele a teoria de Alexander Wendt e suas contribuições para a
temática. Desta maneira, introduzimos o trabalho com um estudo da arte. Seguindo uma
linearidade lógica, trazemos pontos chave para compreensão da problemática, trabalhando os
conceitos delineados inicialmente e outros, que se mostraram necessários ao longo do estudo
para compreensão da complexidade do caso catalão, tais como a questão da relação da
identidade e da política e a partir delas da soberania e cidadania. Nesse capítulo trazemos uma
discussão de clássicos que, de maneira crítica, nos levam a um posicionamento teórico cada vez
mais claro.
No terceiro capítulo é trazida a história da formação do Estado espanhol e sua
localização em relação ao mundo, às potências mundiais. Também o fazemos com a Catalunha,
pois imaginamos que o percurso histórico é indispensável uma vez que tratamos de conceitos
que se constroem eles mesmos como frutos da ciência da história e do fazer histórico. São
conceitos vivos, que se alteram no tempo e no espaço, e também de acordo com o olhar que a
eles damos. O lapso temporal que analisamos aqui é o momento de formação do Estado
espanhol, acreditando que seria este o momento em que, frente ao nascimento da problemática
do nacional, haveríamos acesso a fatos que justificassem ou anulariam as reivindicações catalãs
de supressão de sua identidade por parte de Espanha.
Finalmente, no quarto capítulo, expomos as peculiaridades catalãs, os aspectos
culturais, cotidianos, indispensáveis para compreender o catalanismo e o movimento de
independência, este último que tem presença em inúmeros Estados. Ademais, apresentamos os
desenlaces e repercussões em Catalunha até a data de finalização do estudo, visto que, sendo
um fenômeno em curso, traz novos elementos a cada dia. De qualquer maneira, não é nenhum
infortúnio, antes mostra a extrema atualidade e relevância do nosso estudo, pois muitos dos
elementos que trazemos extrapolam a esfera catalã.
Por último, oferecemos no quinto capítulo nossas conclusões em vista de teoria,
história e análise, e retomando pontos específicos de forma a encerrar o trabalho. Isto porque a
pesquisa que trazemos aduz novas demandas e novos desafios, a despeito das respostas que
levantamos. Ao final do trabalho colocamos mapas como anexos, os quais são referidos ao
3
longo do texto; e um apêndice com os eventos mais recentes sobre a problemática do
independentismo catalão, visto ser um evento que se desdobra tem tempo presente. Não
obstante, a fim de facilitar a leitura da obra para públicos distintos, adianto que as notas de
rodapé presentes no texto não são indispensáveis para seu entendimento, embora tragam
exemplos ou expressem orientações para que o texto não culmine em má interpretação. Nesta
toada, podem ser lidas a partir do interesse daquele que lê, bem como em caso de necessidade
de melhor compreensão de algum ponto que possa ter ficado obscuro no texto.
4
2. CONSTRUTIVISMO NA DISCIPLINA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
A teoria que orienta a presente pesquisa é o Construtivismo das Relações
Internacionais, conforme exposto por Alexander Wendt (1987, 1992, 2014)2. A teoria
construtivista se desenvolve a partir do processo histórico internacional que se deu frente às
mudanças que ocorreram em nível global principalmente após o fim da Segunda Grande Guerra
(II GG), mas já iniciados no decorrer da história oficial mundial3. A esta seguiram ainda
eventos fulcrais para a consolidação da disciplina das Relações Internacionais (RI), como é o
caso da formação da Organização das Nações Unidas em 1948, a ONU; e a ocasião da Guerra
Fria (GF). Ainda, com o advento da globalização, do crescimento massivo de interdependência
entre os atores internacionais, torna-se cada vez mais claro que, embora fazendo parte de um
ambiente majoritariamente anárquico, que os atores globais precisam aceitar algumas diretrizes
de ação e princípios em comum para orquestrarem movimentos internacionais; seja na parte
econômico-comercial, seja na parte social, seja em termos de direitos humanos
(BALAKRISHNAN, 2008; MANN, 1998; GOTTMAN, 2012; HOBSBAWM, 1990, 2010; et
al).
A teoria Construtivista entra no debate na década de 1990, buscando uma nova
maneira de compreender os eventos internacionais recentes à época, mencione-se, o fim da
Guerra Fria. Ela vem, assim, como resposta aos novos fenômenos conjunturais, além de
tergiversar sobre expectativas que o novo momento trazia. Segundo Suppo (2012, p. 13),
porém:
[...] o tema vinha sendo desenvolvido há muito mais tempo fora do mundo acadêmico
anglo-saxão. Por exemplo, em 1980, numa conferência no México sobre “O papel do
fator cultural nas relações internacionais”, Marcel Merle já fizera uma proposta
revolucionária: a criação de um novo paradigma centrado no fator cultural,
considerado “o fator determinante que poderia explicar todos os comportamentos dos
atores internacionais” (MERLE, 1985: 342).
Segundo o especialista francês, os três grandes paradigmas dominantes na área de
relações internacionais, ao privilegiar apenas um fator (o político para o realista, o
econômico para o liberal, e a revolução tecnológica para o da interdependência) não
conseguiam explicar toda a complexidade da realidade internacional.
2 “A visão de mundo construtivista fundamenta-se nas teorias clássicas de Grotius, Kant e Hegel, e foi brevemente
dominante em RI entre as duas guerras mundiais.” (WENDT, 2014, P.19). Outros nomes de destaque dentro desse
ramo da teoria construtivista das Relações Internacionais estão: Onuf (1989), Adler (1999), Kratochwil (1986,
1989), entre outros. 3 Leia-se, ocidental.
5
Vemos que Suppo menciona três paradigmas dominantes, que se inserem em três
debates principais dentro da disciplina de RI. Considerando uma evolução4 linear do
pensamento internacionalista, localizamos o Construtivismo das RI no chamado Terceiro
Debate. Dessa maneira, faz-se mister mencionar mesmo que brevemente os outros dois.
O Primeiro Debate – Racionalismo versus Idealismo – traz elementos-chave
clássicos da teoria política, com Hobbes representando a inflexibilidade e o caráter
individualista dos atores sociais e com Kant representando os valores morais e a crença num
lado mais valorativo dos agentes. Vê-se o motivo do nome debate: foi um momento em que
grupos de estudiosos defendiam maneiras opostas de interpretar o ambiente internacional.
Autores de destaque para a consolidação da corrente do Realismo foram Ernest Carr; Karl
Deutsch; Morton A. Kaplan; Hans Morgenthau; John J. Mearsheimer. Suas obras colocavam o
Estado como ator central das teorias, com poderes materiais objetivos, que viviam num
ambiente anárquico, e que adotavam um comportamento de autoajuda (self help) a fim de
sobreviver ou dominar o ambiente internacional. Os atores, ou Estados, seriam assim egoístas.
A essa visão convencionou-se chamar “modelo da bola de bilhar”.
Por sua vez, para os Idealistas foram basilares Kant (2018), Locke (1689/ 2019) e
Woodrow Wilson (1918)5. Apesar de trazerem discussões que serão retomadas por outros
debates, teve pouca adesão pelos teóricos naquele momento, devido à própria conjuntura
internacional (histórica) vivida pela humanidade. Seu momento teórico mais ativo ou de maior
presença foi durante o período do Entre Guerras: de 1919, ao que marca o final da I GG e que
perde sentido em 1939, quando eclode a II GG. O motivo é bastante objetivo: o Presidente
Wilson formula e profere em 1918 seus 14 Pontos para uma sociedade pacífica, pontos esses
que são basilares para fundar a Liga das Nações. Ela foi uma primeira organização
internacional que, no entanto, falhou devido a não adesão dos Estados mais ativos na arena
internacional – as potências. Isso se dá devido, entre outros, às dificuldades vividas
internacionalmente.
No Segundo Debate, por sua vez, há uma retomada das discussões científicas
metodológicas e positivistas. Por um lado, há um retorno de um tradicionalismo científico6; e
por outro, uma abertura às ideias da sociologia e antropologia, havendo por isso forte
componente das ciências sociais nas novas escolas teóricas; o que conferiu um toque
4 Evolução no sentido em que um novo momento surge, em resposta a uma alteração que o antecede.
5Kant e Wilson sendo autores-chave para a corrente idealista e Locke intermediando realismo e idealismo, na
medida em que dá solo e permite tanto os estudos liberais [Liberalismo] como para os de vertente holista
[culminando no Pós-Positivismo]. 6 Positivismo, com sua valorização do método, experimento, obtenção de resultados objetivos.
6
behaviorista aos estudos dos comportamentos dos agentes internacionais. Os autores ingleses
são nucleares nesses debates, na medida em que os novos teóricos retomam os clássicos da
ética britânica, como John Stuart Mill (2000); Jeremy Bentham (1974); entre outros
utilitaristas. Estes influenciariam juntamente com os estudos sociais uma vertente nova de
estudos internacionais – o Neoliberalismo. Seus oponentes teóricos foram majoritariamente
estadunidenses, como Martin Wight (2002), Robert Keohane (2001, 2005) e Kenneth Waltz
(2002, 2004)7. A esse debate dá-se o nome de Neo-Neo, pois há uma retomada tanto da dureza
do realismo clássico (Neorrealismo) – embora com novos elementos –; quanto do liberalismo
inglês, que fundamenta o Neoliberalismo (WENDT, 2014).
A conjuntura internacional influenciou diretamente os autores nos seus estudos, na
medida em que as teorias clássicas não mais conseguiam explicar a mudança que se passava no
sistema. Analisemos.
No século XIX o mundo viveu um momento multipolar, isto é, em que inúmeras
potências estruturavam o fazer político internacional, dominando o globo8. A partir da
Revolução Industrial inglesa – seguida da francesa –, e com o forte avanço na produção de
armamento bélico, no ano de 1919 rompe a I Grande Guerra (I GG), que opõe Blocos ou
Alianças entre as potências novecentistas, que disputam a hegemonia mundial.
Finda a I GG claro fica que a política internacional nunca será a mesma e esse
momento é marcante o suficiente em termos internacionais para coincidir com o nascimento da
disciplina das RI. Também a Revolução Russa, iniciada no final do século XIX e encerrada no
primeiro terço do século XX, foi crucial para uma nova consolidação estrutural do ambiente
internacional. Surgem, nesse momento, novos Estados, regimes e alianças; explicitando que a
conjuntura não era mais a mesma e que a ação de cada um não poderia mais se dar de maneira
unilateral: os mercados e as trocas cresciam em âmbito global, havia um forte movimento de
migração internacional e os Estados estabeleciam tratados e pactos de benefício entre os
participantes, buscando formas de aumento de poder material9.
A Quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, afetaria a economia da maior parte
dos países europeus de forma direta, e de muitos outros de forma mais ou menos (in)direta. A
crise acirrou o ânimo dos atores, que buscaram nas políticas nacionalistas uma solução para
superar suas dificuldades socioeconômicas. Como consequências dos tratados assinados ao fim
da I GG, e da dificuldade econômica vivida pela Alemanha, o Nazismo ascende no país,
7 Os dois últimos podendo ser considerados os maiores teóricos do Neorrealismo.
8 Cujas potências hegemônicas eram representadas pela Prússia, Reino Unido (encabeçado pela Inglaterra), Rússia,
França e Estados Unidos. 9 Tal momento será percebido pelos teóricos mais tarde como o despertar de um mundo interdependente.
7
escancarando uma cultura racista e xenófoba já presente no continente europeu e que foi então
difundida e alargada por meio da adoção de regimes autoritários e totalitários. A perseguição
aos judeus e a estrutura de exterminação humana em massa repercutiu em todo o mundo, com
forte repressão ao estrangeiro e com forte endurecimento de políticas nacionais. Lutando contra
essa ideologia, eclode a II GG (LUZ, 2008).
Num ambiente de constante ameaça uma nova preocupação se consolidará ao final
da II GG (1945), com o advento da bomba atômica e da possibilidade de uma guerra que não
teria sobreviventes (uma guerra nuclear). Torna-se iminente discutir a segurança coletiva, já
que a sobrevivência é primordial para todos. Em 1948 surge a ONU.
Tendo entrado de forma tardia na II GG, os Estados Unidos da América (EUA) são
decisivos para seu desfecho, que se dá com o lançamento e explosão de duas bombas atômicas,
respectivamente em Hiroshima e Nagasaki, no Japão, em agosto de 1945 (LUZ, 2008). O
mundo se torna brevemente unipolar, com a hegemonia estadunidense sendo apenas
confrontada pela consolidação do bloco soviético (URSS). À guerra ideológica que opunha o
capitalismo estadunidense e o socialismo soviético chamamos Guerra Fria. Durante esse
período o mundo é testemunha do emparelhamento dos Estados a um dos hegêmonas. Em
1969, o homem desce pela primeira vez à Lua, marco da corrida espacial conduzida pelas
potências durante a GF. Num momento evidentemente belicoso, não é de se espantar que a
corrente realista tivesse tantos teóricos e seguidores. Isso fica evidente por meio das obras – seu
nome e conteúdo –, em número massivamente maior do que as que defendiam uma visão
idealista – que ficara aparentemente obsoleta com a eclosão da II GG.
A Revolução Tecnológica emerge de um movimento globalizador, a partir do
surgimento de novas tecnologias que permitiam que pessoas comuns acompanhassem eventos
em tempo real – como foi o caso da Guerra do Vietnam, protagonizada pelos EUA e Vietnam e
televisionada ao vivo para o mundo. Assim, há uma real polarização ideológica por parte de
toda a sociedade.
Movimentos revolucionários que questionam o sistema são frequentes a partir da
segunda metade da década de 1960, momento em que as fronteiras também passam a se tornar
mais fluidas e mais interdependentes. Esse momento marca a intensificação do Debate Neo-
Neo, por meio de uma releitura do novo cenário a partir das lentes de antigos liberais ingleses e
com a presença e valorização da cultura e dos estudos culturais. Os novos estudos trazem a
partir dessa nova perspectiva dos eventos internacionais questões obliteradas pelos fenômenos
8
anteriores, mas que se colocavam incontestes frente à necessidade de ressignificação do mundo
(ZAPPA e SOTO, 2008).
As tradições e etnias, valores e sociedades são reestudados, novas descobertas e
novos motivos são trazidos à tona. Novos grupos e movimentos humanos influenciam mais
uma vez a percepção do mundo pelos estudiosos, encaminhando o Terceiro Debate. Ele ganha
relevo com o final da GF e da oposição ideológica global.
Apesar de os atores internacionais – os Estados –, continuarem tendo um papel
importante e até mesmo central como já tinham nos debates anteriores, os eventos recentes10
demonstravam que as teorias sobre os eventos globais não explicavam a derrocada do regime
soviético, com seu posterior desmembramento11
. Não apenas isso, mas a nova maneira de o
homem se colocar no mundo leva a uma onda de descolonialismos e independentismos, e uma
insurgência de povos e nações outrora dominada por Estados fortes e centrais, que demandaram
um novo ciclo de novas teorias, desta vez que vissem de forma crítica o mundo dado
(ANDERSON, 2012).
A ONU ganha nesse momento um destaque no recebimento desses novos países,
sua aceitação pelo mundo internacional e que faz as vezes de reguladora num sistema que se
sabe anárquico. Ora, sabemos que o sistema é anárquico na medida em que não há um poder
central governante, no entanto, vê-se que sem normas básicas de convivência e sem agir de
maneira cooperativa, os membros desse sistema não têm força para lidar com os desafios e
novos eventos que a Contemporaneidade traz. Essa é uma herança já deixada pelo debate Neo-
Neo12
e que se recrudesce a partir da década de 1990 (HERZ, 1997).
10
As Revoluções de 1968, os Black Panthers, a Primavera de Praga, os movimentos feministas e operários –
movimentos chamados de contra culturais; questionavam a rigidez dos regimes, apelavam para a humanidade
ausente nos discursos políticos e para a necessidade de novos direitos que as instituições deveriam garantir. Havia
um questionamento da forma como o poder exercido pelos governos e instituições influenciavam suas vidas
particulares, por exemplo, quando a Igreja questiona o uso da pílula anticoncepcional, na década de 1950. Com a
expansão das mídias, com o aumento dos fluxos culturais, com a possibilidade de transportes transoceânicos mais
velozes e acessíveis, o conhecimento e as culturas chegam às pessoas comuns, que se percebem como sujeitos
potencialmente participantes e atuantes nas sociedades às quais pertencem. Cito Zappa e Soto (2008, p. 29):
“Normalmente os acontecimentos são reconhecidos como relevantes em retrospecto, mas o curioso, em 1968, foi a
importância que seus contemporâneos deram à época e a si próprios. Esse choque geracional na Europa, por
exemplo, tinha como origem as transformações, sobretudo na área da educação, ocorridas a partir da década de
1950. E, no início de 1968, já se podia sentir a ebulição juvenil que desencadearia a revolta estudantil.”. 11
Que marcou a quebra da bipolaridade em 1991 (WENDT, 2014). 12
No caso do Construtivismo de Wendt (2014), a anarquia é considerada em termos sistêmicos e agenciais, uma
vez que é a relação social que se constitui – e que se constrói – entre esses níveis que possibilita a compreensão
dos fenômenos intra e internacionais. Mais adiante, Wendt afirma que: “Fundamentos jurídicos oferecem uma
lógica mais forte para a teoria dos sistemas. Independentemente do quanto a interdependência corrói as fronteiras
de facto entre as políticas domésticas e externa, no sistema internacional contemporâneo a autoridade política é
organizada formalmente de maneira bifurcada: verticalmente dentro dos Estados (“hierarquia”), horizontalmente
entre eles (“anarquia”) (Waltz, 1979: 114-116). Isso ocorre em parte devido à natureza dos Estado e em parte
devido à instituição internacional da soberania, pela qual os Estados reconhecem uns aos outros como detentores
9
Nesse ínterim, nota-se uma alternância e sequência progressiva no debate teórico
não apenas em relação à importância e enfoque que se dá à cooperação e à visão unívoca dos
Estados como atores internacionais, mas também no que se refere aos poderes exercidos por
esses agentes. Um crescimento dos questionamentos sobre o que constitui e conforma esses
agentes, bem como melhores explicações para suas interações e papéis dentro de um ambiente
lido cada vez mais como sociedade internacional, culmina nas teorias holistas, culturais e
críticas. Wendt classifica como holistas13
culturais a Escola Inglesa14
, a Sociedade Mundial, a
RI Pós-Moderna e a RI Feminista. São teorias majoritariamente críticas e idealistas. A seu
turno, teorias holistas, mas com um veio mais materialista, são representadas pela Teoria dos
Sistemas Mundiais, pelo Marxismo e pelos Neogramscianos15
(WENDT, 2014).
O Construtivismo, por sua vez, inova ao dar o mesmo valor a dois tipos de análise:
estatais (agenciais) e sistêmicas, sendo estes fatores buscados para explicar determinados
fenômenos internacionais, não havendo um hierarquicamente superior ao outro. A proposta
construtivista traz os indivíduos para o centro do debate, não apenas como sujeitos jurídicos,
mas como construtores identitários16
, na medida em que os tomadores de decisão são eles
mesmos indivíduos. Nesse ínterim, tanto agentes quanto estrutura podem ser levados em
consideração nas análises teóricas das relações grupais, grande contribuição dessa vertente
teórica17
(WENDT, 2014). Considerando a contribuição que traz para a análise do problema
proposto, julgamos necessário discutir essa teoria de maneira mais atenta.
exclusivos de autoridade política dentro de territórios separados. Enquanto o espaço político global se organizar
dessa forma, os Estados se comportarão de maneira diferente em relação uns aos outros de como agem com suas
próprias sociedades. Em casa, os Estados estão envoltos em uma grossa estrutura de regras de modo a manter sua
autoridade prestando contas à sociedade. No exterior, estão envoltos em um conjunto de regras diferentes, a lógica,
ou, como defenderei, lógicas da anarquia.” (WENDT, 2014, p. 30). Ou seja, do ponto de vista da abordagem
teórica, o construtivismo e o neorrealismo tem semelhanças, compartilham pontos. No entanto, o construtivismo
dá um passo além quando busca no particular coerência no agir dos atores dentro da sua arena de atuação – i.e.,
levando em consideração interesses, valores, normas, identidades e tradições. 13
Pós-positivistas. 14
Cujo grande expoente é Hedley Bull (2002).Wendt (2014, p. 49) afirma que “A Escola Inglesa não aborda
explicitamente a formação de identidade dos Estados, mas trata o sistema internacional como uma sociedade
governada por normas compartilhadas.”. 15
Ver em Anexo 1 quadro elaborado por Wendt e apresentado em Teoria Social da Política Internacional que
mostra graficamente as tendências ideológicas e interpretativas das teorias aqui mencionadas. 16
Trazendo aspectos costumeiros, crenças, valores e identidades compartilhadas – incluindo não apenas seus
aspectos positivos, portanto, mas também trazendo, reproduzindo e construindo preconceitos, por exemplo; ou
mantendo um status quo prejudicial a determinado povo ou grupo. 17
Wendt justifica a importância das teorias sociais: “A teoria social concentra-se nas premissas fundamentais da
investigação social: a natureza da agência humana e sua relação com as estruturas sociais – ou papel das ideias e
forças materiais na vida social –, a forma correta das explicações sociais e assim por diante. Tais perguntas de
ontologia e epistemologia podem ser feitas sobre qualquer associação humana, não apenas sobre política
internacional.” (WENDT, 2014, p. 20). Não obstante, o que nos interessa é notavelmente seu reflexo na política
internacional, a partir do que exporemos a seguir.
10
Os teóricos construtivistas afirmam sobre as teorias racionalistas que estas seriam
insuficientes para analisar os eventos internacionais, na medida em que não consideram todas
as variáveis que atuam no processo decisório e de configuração internacional. O realismo não
traz, por exemplo, uma explicação completa do porquê de haver alternância de hegemonia
dentro do Sistema, ou do porquê de alguns tomadores de decisão agirem abrindo mão de
benefícios imediatos para si e seu Estado. Da mesma forma, não explica o porquê, dentro de
uma economia europeia, forte, que tende a uma grande estabilidade, haver movimentos
nacionais separatistas. Para buscar uma justificativa plausível para o desejo catalão de
independência da Espanha, é necessário que voltemos, nesse ínterim, no mais primevo dos
elementos culturais: a identidade. É de sua compreensão que podemos pensar os interesses
nacionais em jogo e a importância que dão à virtude de uma reafirmação nacional. A Catalunha
busca, via independência, o estabelecimento e reconhecimento de si como agente dotado de
identidade soberana própria. Deseja para isso, reconhecimento entre seus pares. Para
compreender a importância da expressão da Catalunha como um grupo coletivo, com
identidade própria, que deseja voz, que deseja (inter)agir, a teoria que melhor dá suporte é a
teoria social proposta por Alexander Wendt (2014). Isto porque conjuga pontos cegos
ignorados por outros autores, viabilizando e considerando bem o fenômeno trazido.
Segundo o construtivismo wendtiano, o Estado é um ator autointeressado (portanto
um Self), ao qual pode ser atribuídos desejos, interesses, intencionalidade e, logo, identidade.
Tal identidade é limitada, porém, no sentido de sua objetividade: tal como para os realistas,
Wendt considera o Estado como um fenômeno real18
. Esse fenômeno, no entanto, possui
agência, o que torna possível sua análise a partir da antropomorfização do ente do Estado.
Normalmente tal estatuto, de Self do Estado como agente corporativo, é alcançado por meio da
narrativa, dirá Wendt – logo, pelas vias histórica e intelectual –, por meio do conhecimento
coletivo. Não é, porém, necessário que todos os membros do grupo sejam conscientes dessa
ideia compartilhada; embora seja imprescindível que os membros participantes reconheçam as
normas lançadas de forma institucional, e que as cumpram19
. “Todos parecem concordar que a
agência corporativa é, na verdade, um tipo de estrutura de conhecimento compartilhado ou
18
“[...] sabemos que os Estados são reais porque a sua estrutura gera um padrão de efeitos observáveis, como
qualquer um que negar sua realidade descobrirá rapidamente.” (WENDT, 2014, p. 264). 19
Pois em não o fazendo, haverá conflito. Dessa forma, a institucionalização da ação coletiva é mais que
interessante: é sugerida. Nas palavras do autor: “A chave para isso são as regras que especificam as relações de
autoridade, dependência e responsabilidade entre os membros de um grupo que transferem a responsabilidade das
ações individuais para o coletivo, de modo que os indivíduos ajam como representantes ou em nome desse
último.” (WENDT, 2014, p. 268).
11
discurso que permite aos indivíduos se envolver em ação coletiva institucionalizada.”20
(WENDT, 2014, p. 263). Observemos o conceito de Estado. Eles são entes auto-organizados
por meio de normas e leis que submetem suas populações, portanto, de cima para baixo (top-
down). Dentro desse organismo do Estado podemos reconhecer, algumas vezes, identidades de
grupos específicos, que terão ou objetivarão suas próprias normas e que, por isso, acabarão por
colidir com aquelas colocadas pelo Estado. Tais grupos, e também as nações, podem ter
existência anterior, concomitante ou mesmo posterior à formação estatal.
Identidades de grupo (da tribo para o clã, para a nação, entre outros) são baseadas em
primeiro lugar em coisas como língua, cultura, religião e etnia. Essas coisas, às vezes,
são efeitos da política de Estado, mas alguns grupos já existiam muito antes de haver
Estados, e alguns sobreviveram apesar dos Estados. Até aí, esses grupos podem ser
tomados como fatos sociais que se auto-organizam e que surgem do “fundo” da
experiência humana. Identidades de grupos auto-organizados ainda são “construções”
(o que mais elas poderiam ser?), mas, em relação a Estados e sistemas de Estados,
essas construções são muitas vezes externas ou exógenas. (WENDT, 2014, p. 257)
Tais identidades de grupo – e mesmo a dos Estados – é passível de conhecimento,
diferentemente dos pensamentos humanos, por exemplo. Por meio de declarações, debates
públicos e por meio de tomadas de decisões, as identidades estatais e de grupos se mostram e se
fazem presentes socialmente. Dessa maneira, não é preciso muita abstração para verificar
comportamentos e desejos de determinados atores, sendo antes conhecimentos objetivos.
Naturalmente que o conteúdo que vem a público não é sempre aberto, existe confidencialidade
e sigilo, mas a partir da expressão de seus valores, desejos e interesses, é possível atribuir
identidade aos agentes domésticos e internacionais, negando-lhes a atribuição racionalista de
20 Para tanto, o construtivista categoriza a identidade em quatro tipos, que fundamentarão as análises dos
fenômenos: as identidades corporativa, tipo, papel e coletiva (WENDT, 2014). Dessa maneira, sua tipologia serve
apenas para auxiliar o papel do analista, pois todos os Estados têm traços de todos eles em determinados
momentos ou ações, podendo mais de um deles ser vistos a partir de um mesmo evento. Isso é possível uma vez
que os Estados, tais como os homens, estão em constante interação uns com os outros e inseridos numa sociedade.
Segundo Wendt (2014, p. 266), “A maioria das estruturas sociais não são agentes corporativos e, como tais, não
são capazes de ação intencional” (grifo nosso). Disso podemos depreender que para ser um agente corporativo,
deve haver ação intencional por parte do ator interessado. No caso do Estado, devido à sua estrutura interna, deve
haver não apenas a ideia de que se é um agente (identificação) – a partir de sua estrutura e das ações que pode
promover –, mas também que deve agir de forma institucionalizada, organizada e aceita socialmente
(legitimamente autorizadas) por meio de um vínculo de lealdade. Assim, é inegável que seja um Self que um grupo
toma por verdadeiro e legítimo. Diz Wendt (2014, p.31) ainda sobre o Estado e as teorizações feitas pelas teorias
existentes sobre ele: [...] o projeto sistêmico dos Estados assume que seu objeto pode ser estudado com relativa
autonomia com base em outras unidades e níveis de análise da política mundial. Não podemos estudar tudo de
uma só vez, e há boas razões para considerarmos o sistema de Estados um fenômeno distinto. Isso não torna
ninguém um Realista. [...] Tampouco quer dizer que o sistema de Estados é o único tema que os acadêmicos de RI
devem estudar. Os acadêmicos da disciplina às vezes negligenciam as unidades não estatais e os níveis não
sistêmicos, mas esse não pode ser um argumento contra o estudo do sistema de Estados. Há muita coisa no mundo
da política que a teorização sistêmica não consegue explicar [...].
12
caixa-preta21
. As intenções e capacidades estatais são, assim, frequentemente conhecidas para a
maioria dos jogadores na arena internacional, o que facilita não apenas a interação entre eles,
como permitem a feitura de convenções e acordos, bem como a previsão de seus
comportamentos.
Não obstante, é possível que estruturas do Estado corporativo sofram alterações. Os
atores podem se dividir, se fundir, podem constituir novas formas de regimes para lidar com
determinada questão ou agenda, além de poderem especializar instituições específicas já
existentes, como por exemplo, a da segurança (WENDT, 2014). As alternativas mencionadas,
no entanto, só são possíveis pelas características inerentes ao agente estatal. É precisamente no
Estado que, na teoria wendtiana, recaem atribuições de identidade e interesses. São eles que
geram “disposições motivacionais e comportamentais” (Idem, p. 272) de maneira semelhante às
que podemos atribuir a pessoas. Também de forma similar, gozam de uma consciência e de
memória coletiva, sendo facilmente abstraíveis e generalizáveis. A extrapolação desse modelo
identitário leva à inquestionável existência dos interesses dos atores, que, numa equação de
desejo e crença geram a ação22
.
Depreende-se daí a expansão dos conceitos que abarcam as questões de gostos e
preferências, originados a partir das relações identitárias entre os Estados e entre nações (no
nosso caso). É a partir dessa classificação que poderemos dissecar o interesse nacional – isto é,
os interesses e objetivos expressos por determinado grupo, como o da segurança, sobrevivência
física, autonomia e de bem-estar econômico. Da mesma forma, importará pensar numa
autoestima coletiva, no sentido de que fazer parte do grupo é desejável para seus membros.
Wendt trabalha nesse ponto com as autoimagens positivas e negativas para o Self, que
inevitavelmente refletirão na ação do agente (WENDT, 2014).
No estudo do lado mais holístico e ideacional das relações internacionais, portanto, o
Construtivismo se mostra uma boa teoria para estudos culturais, de soberania e nacionalismos,
temas do presente trabalho na medida em que nos questionamos sobre o comportamento das
pequenas nações dentro de grandes Estados Nacionais; i.e., na medida em que os relacionamos
a uma macro e a uma microestrutura23
. Falar de identidade é, dessa maneira, fundamental para
compreender e trazer uma justificativa inteligível para os fenômenos separatistas ou
independentitas que ocorrem hoje dentro da União Europeia, mas especialmente para o caso da
Catalunha – sendo ele o estudo de caso que trazemos.
21
Negando o modelo da bola de bilhar. “O Estado é um “grupo Self” capaz de cognição em nível de grupo (Kohut,
1985: 206-207; Wilson e Sober, 1994: 602).” (WENDT, 2014, p. 273). 22
Voltaremos a esse assunto no próximo capítulo, ao falarmos sobre costumes e tradições [nacionais]. 23
Conforme conceito proposto por Wendt (2014).
13
Se nos questionamos a causa de os indivíduos desejarem um reconhecimento
identitário para além do Estado ao qual estão juridicamente vinculados, em nível internacional,
devemos buscar justamente no estudo dos Nacionalismos e estudos de construção de
Identidades elementos conceituais para o alcance de possíveis respostas. Uma vez que
buscamos entender a repercussão desses movimentos para o Estado em questão, para sua região
e como isso afeta o internacional, devemos buscar na construção e compreensão de suas ideias
tais respostas. Considerando a importância que damos ao impacto da disciplina da História, da
Sociologia e da Antropologia dentro dos estudos internacionais, e considerando a subjetividade
relativa do construtivismo wendtiano, é a ele que recorremos24
. Wendt (2014) afirma tentar
encontrar uma via média entre os conhecimentos disponíveis e interdisciplinares. Essa é
também nossa forma de trabalho. Prosseguimos, portanto, com a exposição dos elementos que
permeiam nossa questão.
2.1 Tradição, costume e convenção: conceitos que estendem a compreensão da identidade
nacional
Transbordando a problemática da identidade nacional, buscamos elementos que nos
auxiliam a desvendar sua natureza tão complexa. Há que se voltar, para tanto, a estudos dos
elementos adjacentes à identidade, isto é, que a constroem e, num movimento de via dupla,
acabam também por ser construídos junto a ela, permeando-a ou a tocando de alguma forma.
Percorremos os conceitos que remontam um caminho processual, que gradualmente vai, ponto
a ponto, conformando o fenômeno almejado, na medida em que compreendemos ser ele o que
melhor explica esse complexo relacional de Espanha e Catalunha.
Começamos com o conceito de tradições. Isto porque estas são um dos primeiros
fenômenos sociais humanos, herdadas ou construídas por representantes nacionais que gozam
de algum destaque, a fim de consolidarem seu poder e influência sobre determinado povo ou
nação. A isso se dá o nome de (compartilhamento de um) imaginário coletivo, sendo uma
faísca inicial que dará origem às percepções e interesses dos atores sociais como grupo25
e
identidade coletiva. Tal questão envolve, para nós, o conceito dos Estados Nacionais26
24
Para tanto, baseamo-nos em duas premissas impostas por Wendt: “(1) o que realmente importa é o que existe, e
não como sabemos disso; (2) a ciência deve ser guiada pela pergunta, não pelo método, e a importância das
perguntas constitutivas cria um papel essencial na ciência social para métodos interpretativos.” (2014, p. 58-59). 25
É mister ressaltar que, uma vez que trabalhamos o construtivismo, dizer que originam um fenômeno não exclui
o fato de que também se alteram na interação simbólica. 26
E, portanto, com seus processos constitutivos, bem como por suas representações. Por Estados Nacionais me
refiro aos Estados modernos (National States).
14
europeus e são componentes-chave da identidade nacional, tal como se manifesta hoje em
Espanha e Catalunha. Consideramos que o conceito de tradições é, portanto, forjado e
construído por grupos, clãs e tribos, de maneira a defender ideais por parte dos mais respeitados
participantes, ou quiçá poderosos e influentes, como forma de adquirir ou aumentar seu poder.
A manipulação de símbolos nos leva a questionar os conceitos de costumes, convenção, rotina,
ritual, comunidade e autoridade. Isso fica mais claro quando estudamos o processo formativo
das fronteiras territoriais e políticas dentro do continente europeu, precursores da ideia de um
Estado territorial e soberano tal como entendemos na contemporaneidade. A discussão do
aspecto teórico deve, dessa maneira, ser exposta já de início, para uma análise minuciosa dos
fenômenos, num segundo momento.
A questão do nacional faz uso de velhos e novos elementos culturais que se
relacionam de forma mais ou menos próxima às instituições políticas. Esses elementos são, por
exemplo, a linguagem, os hinos, as músicas, objetos, movimentos ideológicos, estereótipos e,
evidentemente, a própria história da comunidade que se estuda. Nesse ínterim, resta claro que
falaremos também da construção folclórica, que participa da construção simbólica das tradições
da Espanha e da Catalunha. Por fim, trazemos alguns conceitos políticos que envolvem a
questão nacional, que darão fundamento para discussão à frente do catalanismo político e da
questão do movimento de independência da Catalunha.
2.1.1 Tradição e agrupamentos humanos
Quando falamos de tradição pensamos em elementos de referência, compartilhados
por um grupo, que remete a uma ancestralidade comum, um hábito, instrumentos, repetição e
rituais. Eric Hobsbawm (1997), na introdução ao livro A invenção das tradições, as coloca,
dessa maneira, como passíveis de alteração ou mesmo de criação por povos que buscariam
sedimentar uma origem comum ou reunir grupos humanos que compartilhavam um senso de
comunidades27
compartilhadas28
.
27
Não buscamos entrar nesse momento na distinção feita por Tönnies entre comunidades (Gemeinschaften) e
sociedades (Gesellschaften), embora reconheçamos que existe uma diferença entre os dois conceitos, sendo o
primeiro mais tribal e embrionário (portanto mais solidário e provinciano) que o segundo, que já traz em si uma
configuração mais moderna em termos de agrupamentos humanos (TÖNNIES, 1887). Na medida em que formos
trabalhar com o conceito de Volksgeist (o espírito de um povo, no momento do nascimento da nação)
retornaremos a eles. 28
“O termo “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as “tradições”
realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais
difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo – às vezes coisa de poucos anos apenas – e se
estabeleceram com enorme rapidez.” (HOBSBAWN, 1997, p. 9)
15
Nessa direção, outros autores discutem esses conceitos, como Benedict Anderson e
Anthony Smith. Estes, porém, trazem olhares mais amplos que Hobsbawm, pois trazem a
consonância entre tradição inventada e manipulada no dia a dia por homens comuns e pelos
eventos do dia-a-dia – o que conduz à ideia de narrativa e discurso associados à concepção e à
formação das nações e das identidades. Eric Hobsbawm pressupõe que as nações, as
nacionalidades e a identidades nacionais adviriam diretamente de ações políticas, i.e., que
seriam forjadas por homens interessados de forma planejada. De modo geral, os teóricos
contemporâneos do nacionalismo parecem concordar com essa premissa.
A premissa dos dias de hoje se opõe àquela proposta, por exemplo, por Gellner,
para quem as comunidades vêm de um conceito mais primitivo, da história dos primeiros
povos. Essa descendência comum, no mundo contemporâneo, traz discussões sobre pontos
nodosos no que se refere à identidade nacional29
, dando origem aos estudos de etnografia e
etnologia – na busca de uma origem primeva (ancestral) compartilhada pelos homens pré-
históricos. No entanto, tal visão já parece ultrapassada, pois mesmo que abrigue algumas
reivindicações por parte de alguns povos, não são em absoluto justificadas de um ponto de vista
genético, uma vez que “actualmente nenhum grupo humano importante é racialmente
homogêneo” (VILAR, 1985). Não há, a partir dessa premissa, raça, mas num limite apenas
etnias30
. Contrapondo a romantização do movimento no nacionalismo, e aprofundando nessa
questão Smith afirma que:
Falando em termos gerais, [...] a compreensão histórica do complexo fenômeno do
nacionalismo baseia-se numa definição bastante estreita e num modo de explicação
igualmente específico. Este último é basicamente conceitual, psicológico e
difusionista. Insiste, a meu ver com acerto, em situar o nacionalismo e os conceitos
que caracterizam esse movimento no contexto do pensamento e da história europeus,
pelo menos no que concerne a suas origens; esses conceitos e idéias só podem ser
entendidos dentro desse contexto histórico. Uma vez que a Europa moderna assistiu a
uma desarticulação de seus tipos de comunidade, economia e ordem política, as
vantagens e os aspectos psíquicos do nacionalismo são enfatizados, e recebem
especial atenção as funções que ele exerce para os indivíduos desorientados e as
comunidades retiradas de seus lugares de origem. Por fim, o mecanismo favorito para
explicar a difusão do nacionalismo para a Ásia, a África e a América Latina é uma
mescla de imitação e reação: as elites, sobretudo intelectuais, adotam e adaptam as
idéias ocidentais de nação e de regeneração nacional. O nacionalismo floresce nas
circunstâncias específicas do imperialismo e do colonialismo europeus, mas sua
disseminação é basicamente auto-impulsionada e auto-reprodutora, desde que tenha
29
Tal ponto será melhor trabalhado ao longo do trabalho. Para exemplificação de um ponto nodoso, temos a
questão integracionista turco-alemã: os turcos, já em terceiras e quartas gerações na Alemanha, ainda são
defrontados por sua origem e tem sua germanidade discutida frequentemente em várias mídias – sua ausência os
torna menos alemães. 30
Interessante trazer a reflexão que Hobsbawn traz em seu livro Nações e nacionalismos, afirmando que nenhum
estudioso do nacionalismo há de ser nacionalista.
16
surgido uma minúscula camada de intelectuais no país receptor. (SMITH, 2008, p.
186)
Podemos afirmar a partir disso que o nacionalismo tem um momento de nascimento
específico: “A nação data do momento do sucesso nacionalista: é um conceito puramente
moderno e produto de processos modernos, como a burocracia, a secularização, a revolução e o
capitalismo.” (SMITH, 2008, p. 187). Podemos inferir, a partir desses argumentos, que
qualquer grupo humano, ao reivindicar qualquer tipo de superioridade sobre outras populações
ou territórios, buscam em realidade ampliar poder e influência por meio do domínio de terras,
mares, recursos humanos e físicos. Isso justifica o jargão atribuído às questões de nacionalidade
e ancestralidade como mitos das origens31
, pois não passam, grosso modo, de mitos.
Entendemos por mito uma ideia em que se acredita, que busca se fundamentar por meio de
algum tipo de materialidade, com um grau de sucesso razoável, ou seja, partilhado por uma
quantidade suficiente de pessoas. Mas retomemos brevemente o discurso moderno afim de
torná-lo inteligível e com uma intenção última de fazer dialogar tais concepções.
Os primeiros grupos humanos se reuniram a fim de superarem uma deficiência que
tinham, para adquirir algum recurso ao qual não tinham acesso, de forma a melhorar suas
condições de vida, bem como para manutenção de suas famílias, fratrias, tribos e clãs. Para
tanto, usa-se a abstração da questão das fronteiras, inicialmente bem menores do que as de hoje,
não passando de linhas imaginárias (e imaginadas). Podemos dizer isto, pois, em sua maioria,
tais fronteiras não são visíveis, embora separem contingentes humanos.
Nos primeiros tempos talvez fosse possível definir tais fronteiras de maneira mais
simples, uma vez que traços étnicos, linguagem, costumes e fronteiras naturais e demográficas
se mostravam de maneira mais clara devido à própria questão de habitabilidade das localidades.
É, assim, inegável que na contemporaneidade os fluxos humanos, a superpopulação e a
facilidade de locomoção não influenciem todas juntas a constituição dos agrupamentos
humanos. Não obstante, barreiras naturais ainda são frequentemente usadas para definição de
território, que hoje em dia já são definidos por meio de tratados interestatais e internacionais,
isto é, através da política. Temos, portanto, que a política é um fator fundamental para
pensarmos a questão do nacional, da nação, do nacionalismo e das identidades32
. Tais termos
31
Termo também usado por Marilena Chauí (2010). 32
Trago uma colocação interessante de Cardoso de Oliveira (2000, p. 14), que estuda a situação da andorranidade,
conforme nomeado pelo próprio autor. Ele diz: “E para quem se habituou ao significado de "fronteira cultural"
ou boundaries, bastante difundido, cabe dizer que prefiro a expressão "limite cultural" para dar conta do sentido do
termo que lhe atribui Fredrick Barth, deixando o termo fronteira para expressar o conceito tradicional de "fronteira
política". Naturalmente, não se trata de realizar pesquisas a respeito de fronteiras, mas apenas de realizá-
17
são, embora relacionados, bastante distintos. Trabalharemos com esses conceitos em tópicos
próprios adiante no capítulo.
De qualquer maneira, a questão das tradições compartilhadas, ao pensarmos na
origem do mito da nação e do nacional, é de fundamental importância, pois se relaciona de
forma próxima com o costume – i.e., com hábitos particulares, ou particularidades culturais33
–,
que é o volante e motor da continuidade das crenças, valores e ideias originárias de uma
sociedade. Ainda que essa repercussão no tempo seja artificial, ainda é importante para
definição dos povos e para o reconhecimento de traços comuns compartilhados; traços esses em
grande medida empíricos. Hobsbawm (1997) chama a atenção de seus leitores para esses dois
vocábulos: tradição e costume. Para o referido historiador a tradição denota invariabilidade no
tempo, imutabilidade, enquanto o costume é passível de variação devido ao seu próprio caráter
móvel e impulsionador.
Para que haja, porém, essa motricidade, os indivíduos que compartilham de
determinado costume devem aceitar (tacitamente ou não) sua repetição no tempo, ao que se
chama ritualização. Os objetos passam a representar ideias, que tem, na prática, influência
direta na rotina das pessoas, na medida em que lhes permite lidar com situações de caráter
inédito – na medida em que influencia o seu processo decisório. Isto é, ao passo em que novos
fenômenos particulares (mas naturalmente também os sociais) são administrados em reflexo de
concepções coletivamente pré-moldadas, se inserindo dentro do que poderíamos chamar de
hábitos consuetudinários34
. As ações rotineiras, a seu turno, não abrigam a importância da
convenção, com toda sua pompa, mas são fundamentais para constituição de noções de
identidade – sendo usadas também como formas de inovação ou manutenção de ideias por dada
comunidade – e influenciando diretamente nessas novas interpretações frente ao novo
(HOBSBAWM & RANGER, 1997; WENDT, 2014).
Um exemplo claro de hábito rotineiro, embora extremamente político e social, cita
Hobsbawm (1997), é a automatização ou burocratização, “onde o procedimento fixo
geralmente é considerado como o mais eficiente” (p. 11); podendo, no entanto, se tornar um
las na fronteira; e no caso de investigações sobre identidade étnica ou nacional, sublinhe-se que a fronteira se
impõe — como já disse — como um cenário privilegiado.”. O trecho citado mostra a complexidade não apenas do
conceito de fronteiras, mas de como ele está estritamente vinculado à problemática cultural e identitária. Nas
palavras do autor, existe uma dialética entre identidades étnicas e nacionais, que passam pelo conceito de
fronteira. 33
Hábitos estes compartilhados por uma comunidade ou sociedade. 34
Assim como um religioso segue rituais conforme ritos compartilhados, quando experimenta um fenômeno
similar ao que lhe foi passado através dos dogmas, tende a orientar sua ação nessa compreensão. Isso tanto reforça
o dogma quanto seu vínculo social, bem como auxiliam esse indivíduo a se sentir parte de um grupo, dando
significado (e razões) às suas ações.
18
entrave ao ter que lidar com uma situação que foge à regra. A rotina, portanto, dificultaria a
efetivação de alterações importantes, sendo inevitáveis para um processo mais acentuado e
menos pragmático de mudança; i.e., ela se constitui como uma forma importante de
manutenção social, política e econômica35
.
Nesse ínterim, “as tradições ocupam um lugar diametralmente oposto às
convenções ou rotinas pragmáticas.” (HOBSBAWM, 1997, p. 11), pois diversamente do que
ocorre via processo burocrático, coíbem até mesmo ações que não confrontam, já as evitando
por meio do constrangimento da ação pública36
. Da mesma maneira, a mudança só é possível
quando transformações amplas e rápidas se mostram necessárias, sendo forçoso o abandono
parcial ou total de algum costume, rotina ou hábito. Isso é possível apenas a partir da inovação
requerida pelo fenômeno original [inédito] que surpreende os atores sociais pela ausência de
precedentes ou correlatos históricos, que lhes forçará a saírem de sua zona de conforto, isto é, a
agirem fora de seus costumes e hábitos.
Isso não é o mesmo de dizer que novas tradições surgem apenas de situações de
crise, podendo ocorrer também para melhor adaptação de tradições antigas que não mais se
ajustem à realidade de dada comunidade37
. Outra situação possível seria a busca de antigos
modelos, não mais em uso, para solução de questões atuais. Não obstante, “a inovação não se
torna menos nova por ser capaz de revestir-se facilmente de um caráter de antigüidade.”
(HOBSBAWM, 1997, p. 13)38
.
Devemos também chamar a atenção ao fato de que toda sociedade humana possui
um repertório suficientemente grande de elementos que remetem às suas tradições, isto é, que
comunicam memórias remotas. As localizamos nos símbolos, em práticas, na moral oficial de
um lugar, na religião, nos hábitos, vestimentas, alimentação, folclore e também na maçonaria
(HOBSBAWM, 1997)39
. Não obstante, muitas tradições que hoje são ditas milenares são
35
Sendo esse status quo bem ou mal visto. Note-se que a burocracia não deve ser compreendida, nem a
manutenção sistêmica necessariamente como algo negativo: ela também serve para garantir direitos, sistemas
políticos, entre outros. Observe-se que ela é uma das formas de prevenção do autoritarismo. 36
Nas teorias da Escolha Racional isso fica claro quando pensamos no constrangimento cada vez maior nas
interações face-a-face. Quanto mais díspar a ação de um agente é constatada, mais ele sofre coerção dos seus
iguais (WENDT, 2014). 37
“Por outro lado, a força e a adaptabilidade das tradições genuínas não deve ser confundida com a “invenção de
tradições”. Não é necessário recuperar nem inventar tradições quando os velhos usos ainda se conservam.”
(HOBSBAWM & RANGER, 1997, p. 16) 38
Interessante citar Smith (2010, p. 202), que diz que: “A invenção pode ser entendida [também] em seu outro
sentido: é uma recombinação inédita de elementos já existentes.”. 39
“A promessa nacionalista de posteridade atraiu poetas, músicos, pintores, escultores, romancistas, historiadores,
arqueólogos, dramaturgos, filólogos, lexicógrafos, antropólogos e folcloristas (Smith, 2010, p. 119) que
procederam à escavação intensa à procura de uma identidade e de valores genuinamente nacionais, projetados a
partir de um passado comum.” (MORENO, 2014, p. 21)
19
quando muito seculares, baseadas em uma “experiência comum e na memória seletiva”
(SMITH, 2008, p. 189). Por vezes, a reivindicação da nacionalidade busca apenas justificativa
para despotismo e revolução, sendo por isso capaz de originar deveres e obrigações políticas
(LORD ACTON, 2008). Devemos apontar, portanto, que caráter nacional é algo distinto de
traços comuns compartilhados em determinada época por determinada população humana. Não
obstante, é justamente nesse espírito nacional popular (Volksgeist, palavra que dá origem aos
folclores) que é fonte de inspiração para os românticos. Segundo Lorde Acton, cabe por isso à
ciência o papel de desmitificar a compreensão do que seja o nacional.
Localizar e dizer até que ponto tais elementos influenciam o agir das sociedades no
mundo contemporâneo, no entanto, é não apenas difícil, como talvez impossível. Dessa
maneira, não é nosso objetivo com esse trabalho trazer essa mesura, mas demonstrar como elas
podem influenciar – e como permitem – as (trans) formações institucionais políticas e
movimentos de povos e de grupos humanos, principalmente no caso do nacionalismo e a partir
do sentimento nacional, de pertença em relação a dado grupo. Isto pois estão
inquestionavelmente presentes em todo estudo do humano.
Por meio das lendas populares [crendices, estórias] e por elementos inventados
pelos detentores e manipuladores das narrativas nacionais – que acabam por se tornarem lendas
e mitos originários –; surgem instrumentos que servirão para determinadas populações [nações]
lutarem por mais relevância dentro de um país, por exemplo, como ocorre nas pequenas nações
inseridas em Estados que abrigam pelo menos duas nações.
Na mesma esteira, não se deve atribuir maior ou menor valor para tradições
originais ou antigas, pois seu grau de ancestralidade não quer dizer que uma ou outra tenha
mais representatividade ou influência na realidade. Isso fica claro quando pensamos, por
exemplo, que
[...] os socialistas [...] ganharam um 1º de Maio anual sem saberem bem como; os
nacional-socialistas exploravam tais ocasiões com um zelo e sofisticação litúrgicos e
uma manipulação consciente dos símbolos. Durante a era liberal na Inglaterra tais
práticas foram quando muito toleradas, na medida em que nem a ideologia, nem a
produção econômica estavam em jogo, considerando-se isso uma concessão relutante
ao irracionalismo das ordens inferiores. As atividades sociáveis e rituais das
sociedades de ajuda mútua eram encaradas ao mesmo tempo com hostilidade
(“despesas desnecessárias”, tais como “gastos com festas de aniversários, desfiles,
fanfarras e adereços”, eram proibidas por lei e com tolerância pelos liberais no que
dizia respeito aos banquetes anuais, pelo fato de que “a importância desta atração,
especialmente em relação à população rural, não pode ser negada”). (HOBSBAWN,
1997, p. 17)40
.
40
Em nota Hobsbawm faz referência à obra de HARTWIG, Helmut, “Plaketten zum 1. Mai 1934-39”, Aesthetic
und Kommunikation, vii, nº 26 (1976), pp. 56-59.
20
Isto é, independente da idade de uma dada tradição, ela pode emergir e ser
absorvida socialmente de maneira abrangente, seja por meio de lutas pela sua
institucionalização ou como forma de instituições atribuídas pelos detentores de poder. Isso não
lhes tira validade nem influencia nos processos de mudança social, pois fazem parte do que
chamamos cultura, especialmente – pois matéria de nosso estudo – cultura do nacionalismo. “É
dessa maneira – através de reconstruções e bricolagens – que os discursos identitários que
fundamentam a nação, estruturam-se sobre a “recombinação de elementos pré-existentes” (Cf.
Smith, 2000, p. 207).” (MORENO, 2014, p. 21).
Nessa esteira, pensando na relação das tradições e seus usos e empregos pelos
grupos de poder dentro de uma sociedade, bem como de seu papel na construção identitária
nacional em nível representacional, percebemos a importância da construção lógica e legítima
das narrativas nacionais. A disciplina da história, que emerge academicamente no século XIX –
como tantas outras disciplinas das humanidades, que dialogam com ela – tem, por isso, uma
grande relevância no estudo do nacional, bem como se mostra como elementar para “a
consolidação política e simbólica dos Estado-nação.”41
(MORENO, 2014, p. 23).
Mesmo considerando a possibilidade de ação direta e intencional do Estado através
dos meios de comunicação, nos quais também podem ser incluídos a escola e os livros
didáticos; é preciso ponderar que esta ação se utiliza de valores enraizados com certo
respaldo social. Toda representação de identidades necessita dessa ressonância: “é nas
cosmologias pré-existentes em concepções arraigadas que se encontram o material
suficiente, o repositório partilhado para a conformação de modelos identitários, que
fazem sentido para além da manipulação mais imediata” (Schwarcz, 2001, p. 14). A
seleção, contudo, dos aspectos da cultura a serem ressaltados é feita, muitas vezes,
com a atribuição de outros valores a estes elementos, buscando-se uma ressignificação
consonante com objetivos de cada grupo em cada período. O fim almejado será
sempre a conquista da adesão afetiva, canalizando interesses, emoções, aspirações e
medos coletivos. (MORENO, 2014, p. 22)
Nossa discussão deve passar, portanto, por esses pontos, quais sejam: nação,
formação nacional, criação do estado moderno, formação simbólica nacional, e estereótipos
nacionais ou de povos. A história, por sua vez, assenta os conceitos na compreensão da
problemática colocada, na medida em que reforça e que perpetua as narrativas e construções
discursivas, lhes dando coesão social. Em não havendo adesão a essas ideias, isto é, seu
compartilhamento, não há adesão à representação nacional oferecida pelo Estado nacional.
41
“Trata-se da busca de um passado utilizável cuja construção evidencia também a ligação entre o historicismo e o
Romantismo no século XIX.” (MORENO, 2014, p. 23, grifo do autor). Discutiremos o Romantismo mais à frente
no trabalho.
21
2.1.1. Categorização da tradição
Finalizando nossa exposição sobre o tópico de tradição, gostaríamos apenas de
chamar atenção aos tipos de tradição trazidos por Hobsbawn (1997) em obra dedicada ao tema.
A separação analítica feita pelo autor nos permite verificar com clareza o que ocorre no caso
catalão mais adiante nesse trabalho. O autor diz que as categorias das tradições parecem
sobrepostas, sendo, porém, possível diferenciá-las em três tipos:
a) aquelas que estabelecem ou simbolizam a coesão social ou as condições de
admissão de um grupo ou de comunidades reais ou artificiais; b) aquelas que
estabelecem ou legitimam instituições, status ou relações de autoridade, e c)
aquelas cujo propósito inicial é a socialização, a inculcação de idéias, sistemas de
valores e padrões de comportamento. (HOBSBAWM, 1995, p. 17)
O autor diz que, dentre essas categorias, somente a é original, sendo b e c
seguramente inventadas. Diz ainda, que a acabou prevalecendo. As outras seriam forjadas ou
derivadas e implícitas a um “sentido de identificação com uma ‘comunidade’ e/ou as
instituições que a representam” (Idem, p. 17). Não obstante, no estudo da questão nacional,
vemos correntemente b e c, pois vai ao encontro de nossa ideia de que a nação e de países se
origina antes como uma categoria imaginada do que como princípio fundacional per se
(ANDERSON, 2008a)42
.
[...] como é óbvio, a lenda original não tem em si mesma nenhum fundamento; dado
que as tribos resultam da coagulação de elementos diversos [...]. Porém, tal imagem
está longe de ser tão-só uma representação mental, uma lenda para crianças, um
produto folclórico. Desenha, com efeito, os planos de clivagem que dividem a
sociedade... (VALENSI43
apud VILAR, 1985, P. 147)
É também por isso que cremos que os aparatos utilizados para corroboração do
sentimento de pertença sejam imagéticos, empíricos, tais como bandeiras, hinos, armas, cantos,
músicas, literatura. Com o advento da globalização isso se mostra cada vez mais presente,
dando significação para o sentimento de alteridade que vai sendo estabelecido entre os povos,
entre as ideias de nacional e estrangeiro, bem como orienta os participantes de tal comunidade a
agir de acordo com as regras estabelecidas, a compartilharem um espírito de lealdade e
42
“Assim, dentro de um espírito antropológico, proponho a seguinte definição de nação: uma comunidade política
imaginada – e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana.” (ANDERSON,
2008, p. 32); “O que estou propondo é o entendimento do nacionalismo alinhando-o não a ideologias políticas
conscientemente adotadas, mas aos grandes sistemas culturais que o precederam, e a partir dos quais ele surgiu,
inclusive para combatê-los.” (Idem, p. 39). 43
VALENSI, Lucentte. Le Magreb avant La prise d’Alger. 1969.
22
solidariedade, dever, etc. Assim, entendemos a tradição – de que faz uso extenso a disciplina da
história – como fator de coesão social e formador do caráter nacional44
.
2.2. Nação e a invenção do sentimento nacional: construção identitária
Como já se mostra claro, definir o termo nação é uma tarefa árdua, que tem
ocupado vários estudiosos, especialmente a partir do século XIX. A dificuldade na definição do
termo se deve à quantidade de variáveis que o termo abriga: geografia, história, língua, religião,
costumes, instituições e vontade política. Outros nós compartilhados pelos estudiosos do
nacionalismo são: a inclusão de todos os grupos que participam de uma nação; a subjetividade
implícita na problemática; e, por fim, a variedade das unidades definidas como nações. Sua
natureza é, portanto, “complexa e abstrata” (SMITH, 1991, p. 14).
A ideia de Estado-nação, em que pese ser um conceito historicamente bastante
moderno, já seria trazida pelo Tratado de Verdun (843 d.C.), que formalizava a dissolução do
Império de Carlos Magno em França, Inglaterra, Alemanha, Itália e Espanha (RENAN, 2010).
Antes disso, a crença ocidental nas origens seria fortemente inculcada pelo Império Romano
em todo território por ele ocupado, o que funcionaria como uma semente em torno de ideias de
semelhança e herança comum45
. Vilar (1985) afirma que a configuração do Império Romano
favorece a ideia de que vários clãs compartilhavam um mesmo território, fiel a um poder
central, cujo espaço físico supera aquele ocupado hoje pelas nações, mas ainda assim maiores
do que os territórios ocupados pelos antigos clãs. Ressalta-se, então, que a nação não é um
representante ideológico ou simbólico, ou um sinônimo de grupo étnico, sendo esta apenas uma
de suas manifestações ou um de seus componentes.
Verifica-se assim, por conseguinte, que o mundo feudal da Europa ocidental se funda
sobre uma herança tripla, em cuja reordenação dispendeu muito tempo: a das distantes
estruturas tribais, a das hordas “bárbaras” do norte e do sul (germanos e árabes) que
sobrepuseram as próprias estruturas e costumes às antigas realidades da terra, e,
finalmente, a das recordações (ou nostalgias) da superestrutura política romana.
(VILAR, 1985, p. 150)
44
Como coloca Vilar (1985, p. 149): “[...] as tradições culturais, a educação dos estabelecimentos de ensino, o
vocabulário aprendido na escola, jogam um papel importante na elaboração ideológica da consciência de grupo.” 45
Vilar (1985) ressalta também o papel da língua nesse processo. Pode-se inferir que a adoção do latim em todo o
Império Romano certamente teve um papel de propagador de uma ideia de compartilhamento de crenças, ideias e
valores, bem como de formador de mitos de origem. Há toda uma ideologia da pátria como valor moral supremo,
ideologia essa que tem origem romana e que, através da “cultura clássica”, triunfou nos países de língua românica
depois do Renascimento – França, Espanha, Itália. Os poetas da Pleiade procuram decalcar um mito histórico
francês no modelo da Eneida. [...] Corneille dá-nos, com Horácio, o protótipo da tragédia patriótica. E a
Revolução adopta todo o vocabulário dos discursos de Tito Lívio.” (p. 145). Vale ressaltar que o termo pátria vem
do grego patrís, a terra dos pais, que derivou o termo latino patria, não sendo sinônimo de nação (SMITH, 2010),
mas que flerta com os termos “país”, “nação”, “ancestrais”.
23
Segundo colocado por Smith (2010), somente com a Revolução Francesa abre-se o
precedente do conceito de nação como o temos hoje. Também Vilar (1985) ressalta o papel dos
conflitos, para além do sentimento de solidariedade, na conformação das primeiras
nacionalidades. No caso da Revolução Francesa, ela trouxe a separação da política e o
questionamento da soberania restrita à Igreja, do poder dos reis e da atribuição do aspecto
sagrado à realeza até então. Ela é a precursora, portanto, do fenômeno nação.
Também Vilar (1985) apresenta uma análise de três vocábulos, que para o autor
estão intimamente ligados, seja analiticamente, seja etimologicamente: natureza, nascimento e
nação. Sobre a natureza podemos fazer uma conexão com questões como origem, etnia,
ancestralidade, herança. Por sua vez, tais termos se relacionam com o nascimento (origem,
família), que, finalmente, está etimologicamente ligado ao sintagma nação46
.
Note-se que, embora haja esta aproximação terminológica, hoje os estudos sobre
os nacionalismos preconizam a etno-história, uma vez que, como já foi apresentado nesse
estudo, a ancestralidade de um povo remete na contemporaneidade mais a ideias e narrativas
compartilhadas e tradições inventadas, que justificaram o impulso fundador dos Estados-
nacionais e os sentimentos de pertença e solidariedade, do que propriamente obedece a critérios
de sangue, ou genéticos: um conceito de raças humanas “puras” seria hoje absolutamente
deslocado. Renan (2010), já mencionado anteriormente, coloca em O que é uma nação que:
[...] o culto dos ancestrais é entre todos o mais legítimo; os ancestrais nos fizeram o
que somos. Um passado heroico, grandes homens, glória (entenda-se, a autêntica):
este é o capital social em que se funda uma ideia nacional. Possuir glórias comuns no
passado e uma vontade comum no presente; ter feito grandes coisas juntos e ainda
querer fazê-las: essas são as condições essenciais para ser um povo. (p. 64) (tradução
nossa)47
Entendemos, portanto, que, conforme colocado pelos autores expostos, o
sentimento de pertencimento nacional é construído e somente existe na medida em que
determinada narrativa é aceita pelo grupo, seguida e buscada. História e destino são conceitos
que caminham juntos, embora o fenômeno nacional não dependa apenas deles. Smith (2010)
chama a atenção que igualmente importante são, por exemplo, a auto definição coletiva, a
46
Fazendo coro, Hobsbawm (1997, p. 28): “[...] como a filologia poderia sugerir, o primeiro significado da palavra
“nação” indica origem e descendência: “naissance, extraction, rang” para citar um dicionário francês antigo que
cita a frase de Froissart, “je fus retourné au pays de ma nation en la conté de Haynnau” (Eu retornei à terra de meu
nascimento/origem, no condado de Hainault).” 47
No original: “[...] el culto de los ancestros es entre todos el más legítimo; los ancestros nos hicieron lo que
somos. Un pasado heroico, grandes hombres, gloria (entiéndase, la auténtica): éste es el capital social en el que se
funda uma ideia nacional. Poseer glorias comunes en el passado y una voluntad común en el presente; haber hecho
grandes cosas juntos y todavia querer hacerlas: ésas son las condiciones esenciales para ser un pueblo.”
24
questão da alteridade (nós versus outros) e o emblema nacional48
. Concordamos, então, com
Hobsbawn (1990), para quem a ideia da participação de uma nação, que sugere a identificação
a partir de uma suposta memória compartilhada, precede a formação estatal: a existência da
nação precede à do Estado-nação49
. Não acreditamos, porém, que esta seja uma verdade
incontestável e de caráter geral ou generalizável, uma vez que a história e as narrativas são
vivas e são feitas e refeitas a todo o tempo. Nesse sentido, não podemos dizer que
necessariamente a nação permite o surgimento do Estado-nação, mas que, na medida em que
são construtos retroalimentáveis, e em constante relação, que também nações podem ser
construídas ou amalgamadas num segundo momento, após a consolidação do Estado nacional.
2.2.1. Nacionalismo e identidade
Nessa esteira, o nacionalismo se apresenta como um sentimento afetivo
compartilhado, ressaltado de aspectos culturais, que canaliza “interesses, emoções, aspirações e
medos coletivos” (MORENO, 2014, p. 22). Esse sentimento se relaciona com uma memória
também compartilhada, ainda que de maneira ideacional, que liga as pessoas que fazem parte
de uma comunidade cuja ancestralidade seria sua originária. Esse sentimento se traduz como
identidade: identificação por semelhança, mas também pela diferença (alteridade). Tais laços
são por isso, para além de políticos50
, e talvez o que lhe traga mais força, afetivos.
Certo é que o nacionalismo tornou-se um substituto para a coesão social através de
uma igreja nacional, de uma família real ou de outras tradições coesivas, ou auto-
representações coletivas, uma nova religião secular, e que a classe que mais exigia tal
modalidade de coesão era a classe média em expansão, ou antes, a ampla massa
intermediária que tão notavelmente carecia de outras formas de coesão. A esta altura,
novamente, a invenção de tradições políticas coincide com a de sociais.
(HOBSBAWM, 1997, p. 311)
Fato que auxiliou em demasia a expansão das ideias de identidade,
compartilhamento de memória, rituais e cultura, foi o advento da imprensa. A escrita, desde
tempos remotos já cumpre seu papel de difusora por excelência de histórias, mitos51
, contos,
48
A bandeira, o hino, a língua, a literatura, as armas, dias festivos, celebrações públicas, etc. Igualmente
importantes são os valores cívicos e educacionais, embora sejam encontrados formalmente após a conformação do
Estado-nacional (SMITH, 2010). 49
Hobsbawm (1990, p. 19) diz que “As nações não formam os Estados e os nacionalismos, mas sim o oposto.” 50 [O termo] “Nação é historicamente muito recente. [...] o New English Dictionary, já sublinhava isso ao indicar,
em 1908, que o velho significado da palavra contemplava principalmente a unidade étnica, embora seu uso recente
indicasse mais “a noção de independência e unidade política”.” (HOBSBAWM, 1990, p. 31). 51
“Desse emaranhamento deriva um conceito de pessoa, de identidade [...], a qual, por não poder ser “lembrada”,
precisa ser narrada.” (ANDERSON, 2008, p. 278). Temos, portanto, que tanto as identidades como as
comunidades advindas delas são, fundamentalmente, imaginadas e construídas.
25
haja vista o legado civilizacional deixado pelos gregos; os hieróglifos pelos egípcios; entre
outras formas de veiculação de ideias desde as primeiras escritas cuneiformes. A catalogação
do conhecimento é imprescindível para passagem de conhecimentos e culturas escritas de uma
geração para as próximas; e a linguagem tem, por isso, papel fundamental na história da
humanidade. É ela que permitiu os avanços que vivemos hoje nas ciências, bem como é ela que
permite a difusão de ideias comuns e seu compartilhamento52
.
A escrita e a linguagem, em si, constituem a seu turno também um ritual,
fundamental para construção e passagem da memória de povo para povo, geração para geração
– por meio da narrativa53
. Para a expansão da cultura por meios orais e escritos o surgimento
das primeiras Universidades foi fundamental. Não mais como no modelo Escolástico – que
empregava o modelo do Trivium –, em que a Igreja era responsável e patrona do conhecimento;
na Idade Média surgem os Studia Generalia (BENNETT, 2007), principalmente a partir dos
séculos XI e XII, quando há um crescimento desses núcleos de conhecimento e cultivo da
cultura – e até mesmo um culto a eles. Entre algumas das cidades em que houve esse modelo de
difusão das artes e do conhecimento localizamos Barcelona e Lérida, ambas na costa catalã54
.
Segundo Bennett (2007, p. 213):
As universidades tiveram sem dúvida um grande impacto em muitos aspectos da
sociedade medieval. Os eruditos construíram a moldar as atitudes e opiniões em
muitas áreas da vida. Os universitários abandonaram o mundo acadêmico para exercer
suas carreiras em todos os níveis da administração secular e eclesiástica. A cultura do
intelectual medieval foi, pois, uma parte essencial da sociedade medieval. (tradução
nossa )
55
Desde a época medieval, portanto, com as Universidades, bem como por meio da
difusão das artes, principalmente da poesia dos primeiros trovadores – mas também da
arquitetura, etc. –; vemos que já havia uma difusão cultural que exercia enorme influência e
conectava político-geograficamente “as casas de Anjou, Aragão-Toulouse e Provença que [...]
52
Tome-se nota do papel civilizatório desencadeado pela Igreja, pelas Universidades. Não queremos com isso
desmerecer o papel rico das tradições orais, de cânticos, sonetos, de religiões e mantras milenares; no entanto, no
que se refere à difusão cultural, ao fluxo internacional de ideias, às letras cabe um papel inquestionável (SIMON,
2006; PINHO, 2015). 53
Pensemos ainda na ciência cartográfica, em si também uma forma de linguagem, que permitiu as grandes
navegações, a descoberta de novas terras, frutos, animais, o conhecimento de novos povos e culturas, bem como a
troca de conhecimentos entre grandes civilizações. 54
Verificar anexos 6 (Trovadores: centros de creatividad y viajes de los poetas) e 7 (El surgimiento de las
Universidades (1339, fecha aproximada)), onde colocamos os mapas retirados da Obra de Ditchbun, MacLean e
MacKay (2011). Atlas de Europa Medieval. 55
Do original: “Las universidades tuvieran sin lugar a dudas un gran impacto en muchos aspectos de la sociedad
medieval. Los eruditos universitários abandonaban el mundo académico para ejercer sus carreras em todos lós
niveles de la administración seglar y eclesiástica. La cultura del intelectual medieval fue, pues, uma parte essencial
de la sociedad medieval.”
26
alimentavam uma tradição continuada de patronato poético entre seus próprios membros.”56
(BENNETT, 2007, p. 217).
Com a invenção da imprensa e a possibilidade das super tiragens de jornais e livros,
do aceite do vernáculo como língua impressa, a expansão das ciências, dos estudos e uma
capacidade cada vez maior de disseminação de informação somente pôde aumentar;
transnacionalizando os conhecimentos e promovendo por vezes a união e por outras a desunião
entre os povos, por meio de sua construção identitária e das obras que exaltavam ou
condenavam determinados tipos de condutas, valores ou tradições (ANDERSON, 2008a).
Por fim, vale ressaltar o processo educacional em sua relação com a constituição da
identidade nacional, uma vez que é um promovedor por excelência das ideias compartilhadas
de um povo57
. Assim, buscando o papel da educação no século XIX, no momento da eclosão da
formação dos Estados nacionais, chegamos à conclusão que, embora não alcançasse grande
parte da população, tomava cada vez maior relevo numa sociedade que buscava o progresso, a
racionalidade e a ciência. Isto nada mais é que a cultura europeia delineando a modernidade58
-
colocando no centro narrativo internacional sua ideologia e seus valores.
Mais uma vez fica claro que a cultura é o centro de formação e difusão de ideias,
valores e crenças, que conformam o universo do nacional. O simbolismo que a educação agrega
e difunde, bem como o ritual de fixação ideológico que ela permite, auxiliam a expansão dos
sentimentos e emoções vinculadas à identidade compartilhada, comum entre os membros de
dada sociedade, construindo seu contexto sócio-histórico (GUIBERNAU, 1997; ANDERSON,
2008a; MORENO, 2014).
Uma das maneiras em que podemos identificar sentimentos de pertença nacional se
dá, portanto, com a construção identitária via nacionalismo e o movimento que o romantizou,
na passagem da Idade Média para a Idade Moderna. Embora reconheçamos a problemática que
envolve dizê-lo, no caso em questão, de formação da consciência nacional, não vemos como
negar a relação entre esses dois conceitos. São fenômenos sociais percebidos em mais de uma
localidade ou região, e seguem os movimentos nacionais com seus movimentos culturais,
56
Original: “Muchos de estos desplazamientos y la consiguiente difusión cultural emanaban de la enorme
influencia y conexiones político-geográficas de las casas de Anjou, Aragón-Toulouse y Provenza, que, junto com
otras casas transalpinas como la de Montferrat, alimentaban una tradición continuada de patronazgo poético entre
sus propios membros.”. 57
Portanto, de determinada ideologia. 58 “Entretanto, qualquer levantamento das invenções culturais deste período não pode deixar de observar o
desenvolvimento de subculturas e práticas autóctones de classe baixa que nada deviam às classes altas – eram
quase certamente derivadas da urbanização e da migração de massas.” (HOBSBAWM, 1995, p. 315) Assim,
embora não possamos ignorar o papel da educação na formação socioidentitária de um povo, não podemos
esquecer que muitas revoluções vieram justamente das classes que não tiveram acesso ao estudo formal, isto é, que
não fizeram parte de uma intelectualidade ou intelligentsia.
27
literários e folclóricos, de maneira que estão necessariamente relacionados. O tom de
ancestralidade, associado ao mito das origens, promovem a narrativa nacional, que justifica as
reivindicações daqueles que se identificam com eles. Por fim atingem também as massas
populacionais, precedendo possíveis [novas] formações nacionais59
(BRAUDEL, 1983;
HOBSBAWN, 1997).
Apesar do exposto, o conceito nacionalismo ainda gera confusão e questionamentos
em muitos, havendo diferentes percepções por parte de um estudioso ou outro do tema60
. Por
sua vez, o estudo da identidade [nacional, estatal], permite aos estudiosos das Relações
Internacionais uma melhor compreensão das interações que ocorrem entre os agentes. Isto pois,
como veremos adiante, a identidade, na medida em que se contorna de forma fortemente
cultural, passa a ser também uma expressão por excelência da cultura política61
, pois “está
ligada à representação da cultura de um ou mais grupos humanos [...] num contexto de relações
de poder” (MORENO, 2014, p. 8).
2.2.2. Identidade e política
Nesta toada, fica cada vez mais fácil de compreender a identidade como expressão
política, na medida em que é fruto das relações humanas em determinado tempo e espaço,
mutável ao longo dos eventos históricos.
Essa vontade de definir o Self por referência a como os Others o veem é um elo na
cadeia por meio do qual a cultura constitui agentes, uma vez que, a menos que atores
se apropriem da cultura como deles, não pode entrar em suas cabeças e movê-los, mas
por meio desta própria vontade muitos dos termos de sua individualidade se tornam
um fenômeno cultural. As instituições que sustentam o holismo estão enraizadas nesse
aspecto social da individualidade. (WENDT, 2014, p. 222)
Uma das maneiras que a individualidade de um povo se manifesta, é, portanto, por meio
da expressão de sua soberania. A discussão é ampla e rica, tendo sido abordada pela maioria
59
Num movimento de retroalimentação. 60
Demonstrando, também, sua atualidade e a necessidade de novas pesquisas que demonstrem as diversas facetas
da questão nacionalista. O fato de os estudos trazerem algumas respostas e muitas dúvidas só reitera a importância
de seu estudo. 61
Pois o homem é um ser social e político, o que já Aristóteles afirmava em sua Ética à Nicômaco. Moreno (2014)
vai além, afirmando que, se tomada numa vertente essencialista [perene e imutável], a identidade pode ser ainda
tomada como fato social e como tal estudada. No caso, Bauman seria considerado como um essencialista. A
acepção utilizada por Hobsbawm, Anderson e Smith, ao contrário, são categorizadas como pluralistas, devido ao
seu caráter atualizável e mutável a partir de tempo e espaço.
28
dos escolásticos que trabalham a questão do nacionalismo. As definições variam desde modos
mais simplistas, isto é, menos abstratas, como é trabalhada na geografia e algumas vezes pela
história, a partir do conceito de território (físico, portanto) e sua relação com um governante
que arroga sobre esse pedaço de terra propriedade, governo e utilização. Esta é uma visão
construtivista e cultural estruturalista. No entanto, não se mostra como unívoca.
Devido a esta característica de posse podemos afirmar que – ainda que o termo não
tivesse ainda sido cunhado ou trabalhado da maneira como é hoje presente na Teoria Política
Internacional (TPI)62
–, nos tempos dos Grandes Impérios [Antiguidade] e na Idade Média a
noção de soberania já era presente nos discursos, embora esta se manifestasse sob a forma de
posses e poderes, influência e domínio familiares, laços de sangue, entre outros vínculos sociais
já abordados anteriormente no trabalho sob o conceito de tradição.
Esta é uma noção que Anderson, em introdução ao livro Um mapa da questão nacional,
organizado por Balakrishna (2008), traz. Essa ideia de identidade, Estado, soberania e seu
vínculo político; teria, ao longo da história, por meio de guerras e dominação; laços políticos,
territoriais e matrimoniais; pelas revoluções; dentre outros eventos internacionais, geopolíticos
e históricos; evoluído até a concepção moderna do Estado-nacional (nation-State). No mesmo
texto, Benedict Anderson sugere um novo fenômeno para a crise contemporânea que vivemos
dentro dos estudos do nacionalismo e de suas concepções e sua relação com o Estado. É um
questionamento particularmente interessante na medida em que não muito raramente os autores
da área conceituam e trabalham os mesmos conceitos63
de forma contraditória: “a crise
iminente do hífen” – se referindo ao hífen contido no termo Estado-nação, na medida em que
une conceitos que hoje sabemos que, não obstante árduas tentativas de vinculação, devemos
admitir que podem ser melhor compreendidos de maneira desvinculada. Isto não impede que
possamos num segundo momento trabalhá-los de maneira articulada, uma vez sendo uma ideia
já compartilhada de maneira sistêmica e estrutural64
.
Tomando o último ponto em consideração, fica claro que tanto identidade quanto
soberania são fenômenos não apenas culturais, mas também políticos – principalmente porque
abordamos a política como expressão cultural – isto é, como uma crença socialmente
62
Uma abordagem mais elaborada sobre o conceito da soberania será trazido em breve no capítulo, trabalhando de
forma crítica os pontos em que a TPI, a teoria construtivista e a teoria pós-estruturalista dialogam. 63
De Estado, nação, soberania, identidade, etc. 64
Isto é, na medida em que possui uma dimensão cultural (WENDT, 2014).
29
compartilhada –, na medida em que somente existe a partir dos laços de legitimação social, isto
é: a partir do processo de estruturação social e da interação65
.
“Formas culturais específicas, como normas, regras, instituições, convenções, ideologias,
costumes e leis, são todas feitas de conhecimento comum.”, dirá Wendt (2014, p. 200). Não
obstante, a relação entre tais conceitos – do conhecimento compartilhado [comum] e da crença
dos atores – é de redutibilidade, não de superveniência. Isto quer dizer que a importância
analítica da crença é de previsão do comportamento dos atores, na medida em que afeta o
cálculo de suas ações em múltiplas instanciações – embora não sejam redutíveis a ela.
Crenças de grupo são frequentemente marcadas em “memória coletiva”, os mitos,
narrativas e tradições que constituem quem um grupo é e como ele se relaciona com
os demais. Essas narrativas não são meramente as crenças compartilhadas e assumidas
pelos indivíduos em determinado momento – embora elas dependam dessas crenças –,
mas inerentemente fenômenos históricos mantidos vivos ao longo de gerações por um
processo contínuo de socialização e atualização ritual. É em virtude de tais memórias
que grupos adquirem continuidade e identidade ao longo do tempo. Contanto que
indivíduos mantenham lealdade e compromisso com o grupo, memórias coletivas
estarão disponíveis como recursos para mobilizar ação coletiva, mesmo se elas não
forem objeto de crença, num sentido fenomenológico, dos indivíduos. Elas podem
ajudar a explicar padrões em comportamento coletivo. (WENDT, 2014, p. 202)
A cultura, portanto, diferenciando-se de sistemas sociais, é por excelência plástica, no
sentido de que é passível de mudança, que está sempre em processo e que, embora faça parte da
estrutura, não a determina (WENDT, 2014). Devemos compreender, portanto, que, por mais
que devamos estudar o fenômeno do nacionalismo e reconhecer sua importância na
contemporaneidade, também devemos compreendê-lo como fenômeno inserido num espaço e
tempo precisos, sendo narrativas que partem de emissores singulares, também inseridos
historicamente num processo de construção permanente (ANDERSON, 2008b). O esforço em
compreendê-lo, é também contínuo, uma vez que “[...] um imperialismo cultural ou uma
invasão por conquistadores podem transformar a ordem social.” (WENDT, 2014, p. 229).
Dessa maneira, estando a identidade de um povo inserida num contexto social específico,
também ela – embora podendo ser estudada como conceito isolado fora da temática – deve ser
aqui compreendida como identidade cultural, nacional, compartilhada e construída: um
processo. Assim, a “[...] cultura é mais que uma soma de ideias compartilhadas que indivíduos
65
“[...] o conhecimento comum é firmemente um fenômeno ao nível da interação.” (WENDT, 2014, p. 199). Mais
adiante em seu livro, o autor enaltece essa abordagem, pois “Uma abordagem que reconhece que a estrutura é
constituída não só pelas condições materiais, mas por ideias compartilhadas, deve se sair melhor [do que a dos
materialistas]” (2014, p. 225), concordando com os grandes nomes já citados no presente trabalho e reafirmando a
importância que a interação tem na construção dos conhecimentos comuns.
30
têm, mas algo “comunitariamente sustentado” e, portanto, um fenômeno inerentemente público.
(Taylor, 1971: 60).” (WENDT, 2014, p. 203).
Nessa esteira, ela se insere numa relação com o nacionalismo – que leva inevitavelmente
à discussão dos conceitos de nação e Estado – e em última instância com a política, todos eles
inseridos num campo maior, qual seja, da cultura; dos estudos culturais66
.
2.3. Da Nação ao Estado Nacional
Os primeiros questionamentos sobre a origem do Estado surgem na época do
Iluminismo, com a filosofia política moderna, para cujos pensadores é uma formação artificial.
Assim, diferenciar-se-iam de algo natural aos homens: o Estado surgiria para dar segurança a
seus membros, num mundo perverso e perigoso, sendo um contrato feito entre os homens, que
outorgariam o poder a um soberano, que por sua vez proporcionaria uma resposta aos anseios
sociais em troca de parte da liberdade dos participantes, na medida em que lhe dão poder para
tomar por si decisões que afetam suas vidas67
. O Estado deriva do que os teóricos
contratualistas chamam de “estado de natureza”, uma suposta posição original de igualdade
entre os homens, em que imperam os instintos e as paixões humanas (GONDIM &
RODRIGUES, 2008). Desse estágio inicial, evoluem as sociedades, que culminarão
eventualmente na necessidade de distinção e definição de território e sociedade civil.
Entre os grandes teóricos políticos que iniciaram o debate sobre tais questões estão
Hobbes, Maquiavel, Locke, Rousseau e também Montesquieu, que retomou a ideia aristotélica
da repartição dos poderes estatais de forma tripartite (legislativo, executivo e judiciário), dando
66
“O que estudiosos de RI discordarão fortemente é quão significativa essa superestrutura cultural é para governar
o comportamento do Estado em relação à base das condições materiais. Em resumo, eles discordarão sobre como a
cultural internacional “importa”.” (WENDT, 2014, p. 231). Isto demonstra que, embora os estudos atuais da
disciplina deem maior ou menor relevo para os fenômenos culturais nas análises propostas nos seus estudos, não
há quem negue a existência deles. Assim, talvez a cultura não responda a alguns problemas colocados, mas é
inegável sua importância, principalmente, ressaltamos, para o nosso estudo. Não obstante, justifica o uso da teoria
construtivista no presente estudo. Sua conjunção com outras áreas do conhecimento apenas demonstra sua
complexidade e importância. 67
“O que o cidadão espera do Estado é que ele garanta seus direitos de cidadania ou, em outras palavras, que lhe
dê segurança ou o proteja: contra o inimigo externo, contra a desordem interna, contra a violência do próprio
Estado e de cidadãos e organizações poderosos (direitos civis), contra o governo autoritário (direitos políticos),
contra a desigualdade, contra a fome e a pobreza, em relação aos cuidados de saúde, na velhice (direitos sociais) e
contra a captura do patrimônio público e do meio ambiente (direitos republicanos).” (BRESSER-PEREIRA, 2017,
p. 164). É mister ressaltar que tal conceituação é bastante recente e traz claros traços hobbesianos, se relacionando
com fundamentos realistas clássicos. Apesar disso, não vemos como essa consideração possa desmerecer sua
contribuição à reflexão que trazemos, mesmo sendo ela de caráter construtivista.
31
início a uma tradição política francesa – a republicana68
– e que seria mais tarde retomada por
Kant, Wilson e Rawls. Também os Federalistas estadunidenses e Tocqueville foram
importantes autores que delimitaram a noção que temos de Estado na atualidade69
.
De maneira geral, podemos dizer que em termos políticos contemporâneos, “O
estado (...) é a organização política de uma sociedade; seu governo, o agente por meio do qual
atua, e a Lei, o veículo pelo qual muito de seu poder é exercido.” (RAZ, Joseph70
apud
MORRIS, 2005, p. 45). Há ainda um consenso entre os estudiosos das teorias de Estado: ele é
um produto tipicamente europeu, que se impôs a partir da modernidade devido aos elementos
do sistema de colonialismo e soberania. De certa maneira, a formação dos primeiros Estados
acabou culminando com a formação ampliada de outros e novos Estados, seja para competir
mercado, defender ou dominar territórios e povos (questão militar). Também contribuiu para
sua conformação as transformações sociais ao longo dos séculos, advindas de questões
sistêmicas71
.
A partir disso uma nova organização política se mostra importante num mundo
cada vez mais conectado, principalmente a partir da última década do século XV, com as
grandes navegações e um contato – a “descoberta” – de um novo continente, as Américas.
Dessa forma, embora as primeiras manifestações estato-nacionais tenham se dado ainda no
século XII, ela se tornou proeminente com o fim da Idade Média e início da Idade Moderna,
marcada pelas novas relações políticas e familiares que se estabeleciam na Europa (MORRIS,
2005)72
.
Uma prova interessante a respeito do surgimento do Estado tal como o concebemos
hoje é trazida por Hobsbawn (1990), em Nações e nacionalismo. Ele fez uma pesquisa
68
“A glória e a grandeza, a riqueza e o poder podiam ser simbolicamente compartilhados com os pobres da realeza
e seus rituais. Quanto maior o poder, menos atraente era, pode-se imaginar, a opção burguesa pela monarquia.
Podemos lembrar que na Europa a monarquia continuou sendo a forma universal de estado entre 1870 e 1914,
exceto na França e na Suíça.” (HOBSBAWM, 1997, p. 291). É interessante ressaltar que devemos também à
tradição europeia a separação entre Estado e Governo, conceitos que se confundem dentro do Federalismo
estadunidense, por exemplo. (MORRIS, 2005) 69
Vê-se, assim, que o debate em torno da questão é amplo e interdisciplinar, de forma que se torna necessário que
compreendamos que houve um debate inicial que fundamenta as origens do que virá a ser o Estado tal como o
compreendemos na atualidade não apenas pela via da antropologia, mas também pela sociopolítica, visto que tais
visões se complementam. 70
RAZ, Joseph. The morality of Freedom. (Orford: Clarendon Press, 1986), p. 70. 71
Por exemplo, passagem da comunidade religiosa para o sistema dinástico, ou ainda, passagem de um sistema
mundial de poder bipolar para um multipolar, etc. 72
Em verdade há um grande debate sobre o início da Modernidade e do momento de concepção do conceito de
Estado Nacional, já que, à parte dos Estados juridicamente formados durante a Paz de Westphalia, as datas de
independência política e de governo dos países variaram bastante ao longo dos séculos. Não obstante, no que se
refere a Estados formados à luz da invenção das tradições, retrata Hobsbawm (1997) que “[...] o fenômeno da
invenção das tradições [...] surgiram com freqüência excepcional no período de 30 a 40 anos antes da I Guerra
Mundial.” (p. 271)
32
documental entre várias edições do Dicionário da Real Academia Espanhola, em que o termo
Estado somente aparece em 1884 – isto é, apenas no século XIX – 104 anos antes de sua
primeira edição, em 1780. Antes disso a entrada localizada pelo historiador se resume a nação,
que é definida como “[...] o agregado de habitantes de uma província, de um país ou de um
reino”, sendo referido também a “estrangeiro” (HOBSBAWM, 1990, p. 27). Dessa maneira,
tanto a atribuição da definição dos termos quanto seu estudo formal demonstram que os
conceitos e sua relação são uma construção recente em termos históricos mesmo no mundo
ibérico, que já no século XII possui uma configuração territorial e governamental mais
aproximada com o que será o padrão na Europa moderna.
No mesmo dicionário, em 1884, o termo nação é redefinido, segundo Hobsbawn
(1990, p. 27), para “um Estado ou corpo político que reconhece um centro supremo de governo
comum; [...] território constituído por esse Estado e seus habitantes, considerados como um
todo; [...] conjunto dos habitantes de um país regido por um mesmo governo” (Idem). Antes
dessa categorização, diz o autor, não haviam sido relacionados os termos governo e nação, este
sendo muito vinculado ao nascimento e origem, sem qualquer sentido político. Também não
havia um sentido ligado a território, sendo expressa somente uma origem familiar; o vocábulo
ligado à terra era pátria (tierra, em espanhol). Também eram chamados de terra porções
dominadas por Senhores ou Estados, sem, no entanto, coincidirem ou serem sinônimos.
Segundo Hobsbawm, a relação entre esses termos se dá de maneira notável apenas após 1925,
quando o próprio pátria se vincula a nação e Estado.
Hobsbawm (1990), ainda sobre nação e Estado, afirma que, nas línguas europeias,
o primeiro deriva de natio, vernáculo, e não língua culta. Sua apropriação se dá, assim, de
maneira étnica, diferenciando-se de Estado na medida em que nações podem estar inseridas
dentro do espaço estatal (e em uma maioria podemos dizer que estão), não sendo o contrário
verdadeiro73
.
A questão da linguagem e da manifestação desses termos é não apenas interessante,
mas verdadeiramente importante, na medida em que a linguagem ocupa um lugar de destaque
dentro da antropologia cultural. A língua atribui intimidade, proximidade e afeto, e aqueles que
compartilham uma língua pensam de maneira mais próxima do que seres com linguagens
diferentes. Anderson (2008a) demonstra igualmente essa forte proximidade entre linguagem e
73
O Estado, embora abrigue em si nações, não necessariamente corresponde a apenas uma nação, ou tem origem
nacional. Prova disso é pensar na Bélgica ou Holanda, que abriga em si não apenas povos distintos, mas onde mais
de uma língua é considerada como língua oficial nacional. Da mesma maneira, o Estado espanhol, que trazemos a
esse estudo, é composto por mais de uma nação, origem de suas disputas por autonomia e representação hoje.
33
propagação de ideologias, compartilhamento de pensamentos. A língua aproxima e exclui,
delimita espaços, vincula pessoas e atribui identidade.
A identidade nacional, portanto, só pode ser compreendida quando apartamos os
dois conceitos, de Estado e de Estado-Nacional, ou mesmo de Nação. Devemos ter em mente
que o Estado é uma construção sociopolítica moderna, que atende às demandas sistêmicas de
seus agentes ou participantes e que passam, em determinado momento histórico, a ser
legitimado pela soberania popular.
2.3.1. O Estado Político
Afastando um pouco da análise histórico-antropológica-linguística, resta-nos definir
o Estado à luz de seu conceito para ciência política, sendo este um elemento chave para
compreensão do seu papel na atualidade e mais ainda, em um mundo em que vemos um
acirramento de sentimentos nacionais e de desejos separatistas.
Luiz Carlos Bresser-Pereira (2017), de forma muito coerente e bastante
contemporânea, traz uma concepção materialista para o debate: ele trata o Estado como
consequência das revoluções capitalistas que se iniciaram no século XIV. Os Estados são
tratados como sucessores de uma revolução comercial, da luta de classes e entre famílias, em
grande medida vinculados em sua origem à Igreja74
– numa emergência burguesa contra o
Absolutismo.
Dessa maneira, Bresser-Pereira vincula o fenômeno do Estado a um movimento de
soberania popular em relação ao poder político. Assim, para ele, é “[...] a ordem jurídica e a
organização ou aparelho soberano que a garante.” (p. 162). Tal ordem torna a Instituição
legítima, se aplicando a todos que participam do sistema internacional de Estados. O Estado
diferencia-se do estado nacional, dessa maneira, conceitualmente: “o estado-nação ou país é um
tipo de sociedade político-territorial soberana, formada por uma nação, um Estado é um
território.” (2017, p. 158).
74
“Modesto Florenzano (2007, p.33), ao estudar as origens e o desenvolvimento do Estado moderno, vê nele
quatro “aparatos de poder” essenciais: “autonomia financeira, burocracia permanente remunerada pelo Estado e
dele dependente, exército permanente e Igreja Nacional .” (BRESSER-PEREIRA, 2017, p. 163). O autor
acrescenta que a esses soma-se a ordem jurídica ou a Lei. Afirma, ainda, a respeito da Igreja: “A inclusão da Igreja
nacional entre os componentes do Estado é correta porque, quando surgiram os Estados modernos, a Igreja fazia
parte integrante dele: não apenas do aparelho, mas também do sistema normativo e de valores que constitui a
ordem jurídica. A Igreja Católica, com sede em Roma, se pretendia internacional, no quadro do Império Romano-
Germânico, mas o que ocorreu a partir da Reforma foi o surgimento dos estados-nação e dos nacionalismos
apoiados em igrejas nacionais.” (p. 163).
34
Outra opção que teria surgido a partir da ascensão burguesa e do desenvolvimento
do comércio, foram as cidades-Estado e as ligas de cidades. Não obstante, o Estado-nação,
devido à maior capacidade de reunir suas forças, comerciais e militares, acabou sobrepujando
aquelas. Sua colocação vai ao encontro do que apontava Weber sobre a questão da
sobrevivência (e possível extensão de povos, fronteiras e riquezas) e legitimidade do Estado,
sendo este definido como “[...] uma comunidade humana que, dentro dos limites de
determinado território [...] reivindica o monopólio legítimo da violência física.” (WEBER,
1918, p. 56)75
.
Essa legitimidade passa pela Teoria Geral do Estado, que reivindica a autoridade
formal advinda de uma dominação racional-legal. Essa concepção é expressa por Morris, em
sua análise sobre o advento do Estado:
Na maior parte das vezes é importante que os meios para resolver conflitos e
discordâncias estejam estabelecidos. Na maioria das sociedades medievais, havia
muitos desses meios, alguns mais formais e institucionais que outros. Mas, como
observei, os deveres de obediência eram múltiplos, as jurisdições frequentemente se
sobrepunham e geralmente ocorriam significativas desavenças e conflitos entre a
classe regente e as pessoas. Na ausência de uma hierarquia de autoridade amplamente
reconhecida e isenta de ambigüidade, as resoluções poderiam ser ineficazes. Sem uma
fonte única e última de poder político dentro de um domínio – muitos assim
consideram – as desavenças não podiam ser “decididas” exceto pela força. Talvez essa
possibilidade tenha sido examinada com alarme, especialmente dada a ferocidade de
muitos conflitos humanos. Quanto mais sérios os conflitos entre as pessoas, tanto mais
premente é, provavelmente, a pergunta: “Quem decide?”. “Decidir” uma questão,
nesse sentido, é ser frequentemente compreendido como “o árbitro final”. Na
Cristandade só Deus – e como a Sua Palavra requeria interpretação frequente – a
Igreja poderiam ter essa atribuição. [...] A resposta do Estado à questão “quem decide”
é a de colocar a si próprio no lugar da Igreja, ou melhor, no de Deus – “le prince est
image de Dieu”. Ele, e somente ele, é o árbitro final, pelo menos localmente, nas
matérias que lhe dizem respeito. Para asseverar isto, os Estados tiveram que contestar
a autoridade da Igreja. Precisaram também contestar o poder de rivais “internos”, a
saber, os nobres feudais. Emergindo dessas contestações está a noção moderna de
soberania: o Estado é a derradeira fonte de poder dentro de seu domínio.” (MORRIS,
2005, p. 68-69).
Não obstante a construção e aceitação da ideia do Estado forte, uno, poderoso e
legal; os estudos sociais, históricos e construtivistas ressaltam o papel cumprido pela memória
– o “passado eterno”. “[...] costumes santificados pela validez imemorial e pelo hábito,
75
Em Política como vocação (1918), Weber afirma que a dominação, ou o aceite social dos súditos se deve à
possibilidade de controle dos bens materiais de maneira organizada a partir de um estado-maior administrativo que
detém os meios materiais de gestão. Segundo Weber, existem três formas de dominação política, quais sejam:
tradicionalista, legalista ou carismática. “[...] o Estado moderno é um agrupamento de dominação que apresenta
caráter institucional e que procurou (com êxito) monopolizar, nos limites de um território, a violência física
legítima como instrumento de domínio e que, tendo esse objetivo, reuniu nas mãos dos dirigentes os meios
materiais de gestão.” (p. 62)
35
enraizado nos homens”, que devem então, respeitá-los (WEBER, 1918, p. 57). Isto porque
“Grupos sociais, ambientes e contextos sociais inteiramente novos, ou velhos, mas
incrivelmente transformados, exigiam novos instrumentos que assegurassem ou expressassem
identidade e coesão social, e que estruturassem relações sociais.” (HOBSBAWM, p. 271).
É dessa construção e compartilhamento imagético que parte a ligação entre Estado
e Nação e, então, do nacionalismo.
Segundo Hobsbawm (1990), a ideia de nação que temos na atualidade precede à
formação estatal, ao mesmo tempo em que (paradoxalmente) surge a partir dela, uma vez que
nem sempre havia uma ligação direta – uma associação histórica – entre o Estado (de
formação) recente e a união ou coexistência neste de um único povo76
. Tais ligações se
mostram a partir, por exemplo, da questão linguística: raros Estados formados inicialmente na
Idade Moderna continham uma população que empregava um único idioma. Isto fica claro
quando analisamos a questão da evolução da imprensa, da transmissão do conhecimento desde
os Antigos até o momento da formação estatal: havia sempre as línguas vernáculas e a adoção
de uma língua erudita, compartilhada pelos sábios, pelos nobres e pelo clero. O emprego de
uma mesma linguagem unia os povos dentro de um território, culminando numa identificação
nacional entre essas populações – muitas vezes formadas por minorias77
(HOBSBAWM, 1990;
ANDERSON, 2008a).
Por último, a questão da conquista trazia um sentimento de pertença a partir de uma
noção de inquestionável evolução social: “o caminho mais seguro para se conseguir a
nacionalidade era provavelmente o de pertencer a alguma entidade política a qual, pelos
padrões do liberalismo século XIX, fosse anômala, obsoleta e condenada pela história e pelo
progresso.” (HOBSBAWM, 1990, p. 50). Adicionando a esse argumento, trazemos o de
Guibernau: “O nacionalismo faria pouco sentido num mundo em que a boa confraternização
entre as culturas fosse possível e onde os estados poderosos não sentissem nenhuma tentação de
absorver os pequenos.” (1997, p. 73).
Dessa maneira, o nacionalismo tem íntima ligação com a identidade nacional,
reconhecimento de um povo, desejo de pertencimento, e está fortemente ligado aos processos
de formação do Estado-nação, sendo o propulsor do surgimento da voz de minorias, bem como
a expressão da voz de maiorias.
76
Aqui compreendido como sinônimo de nação, evitando estudos mais complexos sobre a temática, que não
acrescenta elementos relevantes à nossa pesquisa. 77
“[...] os principais estados da Europa oitocentista eram enormes entidades políticas poliglotas, cujas fronteiras
quase nunca coincidiam com as comunidades linguísticas.” (ANDERSON, 2008a, p. 267).
36
2.3.2 A soberania
Outro conceito fundamental para compreensão do fenômeno nacional, da formação
dos Estados, das Nações e das identidades [nacionais] é o conceito de soberania. O termo
remete ao termo originário do baixo latim, falado no alto medioevo, superanus
(NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, 2017). O sintagma é formado por três partes: super,
acima; anus, procedência ou origem; mais o sufixo ia. É, portanto, algo que emana ou que vem
de cima, indicando uma supremacia, superioridade – que no caso político é traduzido em
termos do poder. Juliana Neuenschwander Magalhães (2016) ressalta que o termo soberania
nasce após e em relação ao soberano – aquele que possuía a soberania. A relação que se
estabelece é, assim, vertical, na medida em que o soberano é aquele que antecede ou está numa
posiçao acima (superior) de outro alguém: a abstração que se faz hoje, atribuindo a entes e a
Estados a soberania demonstra que em algum momento histórico há uma ruptura do substantivo
e do adjetivo (atributivo) dele derivado. Montserrat Guibernau (1997) atribui ao termo também
hierarquia, já que é algo que sobrepuja outrem. Segundo Hobsbawm (1990), remete aos laços
de dever de súditos frente aos seus governantes ou detentores de terra, ou ainda, à monarquia,
ao imperador – o que também abriga a conotação trazida pela autora catalã supracitada. Vê-se
que o próprio sintagma tem uma origem paradoxal (NEUENSCHWANDER MAGALHÃES,
2016), o que não o justifica ou encerra seu significado, mas aponta para uma problemática
antiga, sendo um verbete próprio de uma categoria abstrata.
Dito isto, hemos de frisar a relação estreita que há entre soberania e poder. Embora
ambos sejam conceitos complexos, gostaríamos por ora de trazer sua associação com a lei e
com a ordem, a fim de estabelecer uma demarcação meramente política e moderna. Partindo
dessa premissa, para que tenhamos um soberano, é preciso que haja também aqueles que
reconheçam o poder desse soberano, expressos no Estado de direito por meio de suas leis – a
serem seguidas e respeitadas por todo membro do corpo socioestatal. Somente podemos falar
de exercício de soberania sob a perspectiva de um ator poderoso – independente da forma como
esse poder tenha lhe sido atribuído e do grau de afeição ou representação que apresenta. Aqui,
reiteramos que não vinculamos o poder ou a soberania à democracia ou à forma de seu
exercício, mas trabalhamos com o conceito puro, como estratégia metodológica78
. Por sua vez,
admitimos a compreensão de Hannah Arendt do poder, que admite em si graus de violência que
levam à submissão – estando atrelado, portanto, ao exercício da autoridade (ARENDT, 2011).
78
O que é possível por ser nosso objeto de estudo um conceito europeu, e por nosso objeto analisado no estudo de
caso também não se tratar de nenhum lugar de exceção dentro desse universo central.
37
Seu aspecto normativo ou de subjugo remete às origens do direito, ainda na Grécia, que traz os
primeiros relatos de movimentos políticos e discussões sobre a vida em sociedade, sobre a
democracia79
e sobre o exercício da cidadania. Para compreendermos a soberania, portanto,
devemos trazer questões como direitos e deveres, disponibilidade do poder, formas de governo
e reconhecimento – ou admissão da existência da soberania ela mesmo –, de representatividade,
entre outros.
Para iniciarmos a discussão retornemos à nossa concepção de Estado: um ente
territorial que abriga em si uma ou mais nações. Diferencia-se, assim, da soberania, uma vez
que esta pressupõe a existência e o exercício do governo, a detenção do poder político. O
governo é, então, uma forma de enxergar uma administração80
do Estado81
. Para poder gerir a
coisa pública (Res Publica), numa democracia direta, elegemos assim representantes82
, que
assumem papeis diferenciados hierarquicamente e por áreas, durante um dado período de
tempo – i.e., deve haver organização política. Para que um representante exerça seu mandato,
também é necessário que tenha seu poder legitimado pela sociedade em que está inserido –
deve possuir autoridade sobre determinado território (o Estado). Deve gozar da fidelidade83
de
seus membros, o que lhe dá tanto legitimidade quanto governabilidade. Por último, obtém
justificativa por meio de anuência das partes integrantes do Estado, bem como efetividade no
exercício do seu poder (MORRIS, 2005).
A soberania não existe, no entanto, apenas domesticamente: ela também se dá em
âmbito internacional. Existem discussões sobre a internacionalidade e modernidade do
conceito, já que na Antiguidade já se estabeleciam os primeiros contatos entre os povos, que
deveriam reconhecer entre si – dentro de seu território – sua soberania, e dentro de outro, outra.
79
Ainda que para os gregos o termo traga outra conotação do que a que utilizamos na atualidade (do grego antigo
demo: o povo; cracia: poder; logo, poder do povo – não especificando claramente quem faz parte desse povo).
Ressaltamos por isso que na Grécia Antiga somente cidadãos, conceito bastante restrito (homem em situação de
maioridade, com determinado grau de instrução e posses, não escravo); podiam participar das reuniões na Ágora,
espaço físico que os recebia para decidir questões de (ordem) pública. Não temos, portanto, nenhum grau de
representatividade como na contemporaneidade, mesmo que nossas democracias ainda estejam aquém de um ideal
político. 80
Não queremos com isso entrar na discussão sobre os poderes políticos ou nas nomenclaturas próprias do direito,
mas antes nos manter no terreno linguístico. Em inglês, diz-se de um governo tanto government quando
administration, que remete ao nosso uso do termo. 81
Por isso usa-se a diferenciação entre chefe de Estado e chefe de governo – mais visível dentro do espectro
inglês, em que o Primeiro Ministro é Chefe de Governo e o Monarca é o Chefe de Estado. Também na Alemanha:
die Regierung e der Staat são coisas distintas, o governo e o Estado, respectivamente, sendo seus representantes o
Primeiro Ministro e o Chanceler; na França: L’État e le gouvernement; para os espanhóis, lo stato e lo governo –
não sendo tais termos intercambiáveis como no inglês. (MORRIS, 2005). Sobre isso também ler nota 22. 82
De maneira que se transfere, de forma transcendente, a representação do desejo e expectativas de seus membros. 83
Uso mais a concepção inglesa de loyalty que de fidelity, termos que são traduzidos em língua portuguesa como
fidelidade. Embora tenhamos também o termo lealdade no português, optei por fidelidade por dois motivos: 1) a
tradução que uso de Morris assim o faz (MORRIS, 2005, p. 157); 2) para evitar a conotação familiar e cordial que
lealdade traz.
38
Nas invasões antigas, se trata justamente da negativa por parte de um grupo da soberania de
outro, nesse caso, perante o uso da força física – pressuposto do uso legítimo da força por parte
do Estado nas concepções modernas e contemporâneas (WEBER, 1918)84
.
Levando o exposto em consideração, devemos chamar a atenção que o governo
nega a existência de uma anarquia, a ausência de governo85
. O termo anarquia mereceria uma
larga exposição devido à sua importância dentro do ramo das Relações Internacionais, tendo
iniciado muitos debates; no entanto, não é necessário que aprofundemos na discussão para
alcançarmos os objetivos do presente estudo. Dessa forma, basta que tenhamos claro que nos
moldes contemporâneos, é difícil pensar em política internacional em termos meramente
anárquicos.
Jens Bartelson (1995), também citado por Wendt (2014), trabalha o conceito da
soberania a partir de sua desconstrução, demonstrando que ela é mais do que apenas a definição
clássica. Ele traz o caráter dual da soberania e o analisa sob a perspectiva da anarquia
[supracitada] e da hierarquia, seu ponto antípoda. Bartelson diz que, domesticamente, a
soberania é indiscutível, no entanto, externamente, ela passa a ser extremamente relativa,
principalmente ao se deparar com interesses de outros atores internacionais. O poder político,
concomitantemente, também passa a ser relativo. Nas palavras do autor:
Esse caráter dual e constitutivo da soberania aponta numa direção importante, e
explica parcialmente o porquê tem sido tão difícil de compreender analiticamente.
Num mínimo, a soberania parece conotar uma condição política, mas é extremamente
recalcitrante quando se refere a algo interno ou externo aos estados. A soberania,
como um conceito, parece flutuar livremente entre suas esferas doméstica e
internacional. Ao invés disso, ultrapassa esse nível de análise e parece ser a condição
atrás da sua separação e interdependência; formando uma conexão crucial entre
anarquia e hierarquia. (BARTELSON, 1995, p. 17, tradução nossa)86
84
Guibernau (1997, p. 60) coloca: “[...] o parentesco representa o primeiro passo num processo posteriormente
substituído pelas formas mais refinadas de identificação e lealdade. A Idade Média permitiu a formação de grupos
maiores ligados a um território concreto. Através da criação de mercados, da intensificação do comércio, da
manutenção de guerras e da lenta mas progressiva ampliação da finalidade do estado, emergiu uma consciência de
formar uma comunidade que diferia daquelas de outros grupos do lado de fora. É precisamente nessa etapa que
podemos falar da emergência de nações.” 85
Sempre ressaltamos que a ausência de governo não é sinônimo da ausência de ordem. 86
Do original: “This dual and constitutive character of sovereignty points in na importante direction, and partly
explains why it has been so difficult to grasp analytically. At a minimum, sovereignty seems to connote a unified
political condition, but turns out to be extremely recalcitrante when thought to refer to something ‘internal’ or
‘external’ to states. Soveregnty as a concept seems to float free of its instances in the ‘domestic’ and
‘international’ spheres. Instead, it cuts across these levels of analysis, and seems to be the condition behind their
separation and interdependence; it forms the crucial link between anarchy and hierarchy.”
39
A partir dessa conceituação, Bartelson afirma que o problema da soberania está atrelado
às possibilidades do conhecimento, tentando mostrar a incapacidade de precisarmos os termos
devido às suas representações, isto é, por se colocar como uma realidade comum que existe
fora de si mesma. É deste ponto que o autor inicia a desconstrução do termo, acreditando que o
discurso, sendo político (e científico), está inexoravelmente ligado à construção da realidade.
Em sua abordagem crítica, Bartelson começa falando da soberania como algo atribuído
a um Estado, indagando a partir disso qual a ontologia desse verbete político. Ele questiona: o
que distinguiria o Estado de outras formas de organização política? Chega à conclusão de que o
Estado é colocado de maneira histórica e ontológica como anterior a qualquer estudo de política
internacional, sendo, portanto, uma condição necessária para a existência do sistema
internacional (BARTELSON, 1995, p. 23)87
. É devido a essa natureza dicotômica do Estado
que Bartelson dirá que autores realistas, como Waltz, estatocêntricos, pecam: eles deixam de
lado o caráter histórico do Estado, tirando, portanto, uma parte constituinte fundamental, além
de privilegiarem a anarquia em detrimento da soberania em sua análise.
Resumindo, a primazia ontológica conferida ao Estado na teoria política internacional
implica a givenness da soberania como sua propriedade definidora; soberania
significando aquilo que está dentro do Estado, ou que é constituído pela queda da
unidade original, ou simplesmente tomada como certa no nível da definição. Em
ambos os casos, a soberania é constituída como presença primitiva da qual toda
teorização necessariamente deve partir, se for permanecer na teorização da política
internacional. (BARTELSON, 1995, p. 24, tradução nossa)88
É a partir dessa categorização que Bartelson prossegue afirmando que a soberania surge
como dicotomia, na medida em que o interno só existe a partir do externo; e esse passa a ser um
locus fundamental de sua teoria, colocando a soberania como derivada e constituinte do Estado,
este sendo o sujeito político por excelência da TPI. Esse sujeito, por sua vez, participa de um
ambiente internacional juntamente (e concomitantemente) com outros Estados, que também
reivindicam uma soberania (própria), visto que o sistema é plural. Ora, a partir disso, como
conciliar a tensão quanto à democracia e políticas externas e domésticas?
A este questionamento, Wendt (2014) traz uma solução dentro de sua teoria social das
RI: diz que essas categorias analíticas devem ser compreendidas como complementares, pois
87
“For since the state is regarded as historically and ontologically prior do the system of states in the discourse on
international politics, the essence of statehood appears to be the necessary condition also of the larger whole, the
international system.” 88
Do original: “To sum up, the ontological primacy accorded to the state in international political theory implies
the givenness of sovereignty as its defining property; sovereignty signifies what is inside the state, either
constituted by the fall from a primordial unity, or simply taken for granted at the level of definition. In either case,
sovereignty is constituted as a primitive presence from which all theorizing necessarily must depart, if it is to
remain international political theorizing.”
40
são interdependentes. Assim, é possível compreendê-las colocando-as num mesmo nível de
análise, uma vez que são “ambos [...] estruturados e [...] instanciados pelo processo.”
(WENDT, 2014, p. 227), e porque “não existem estruturas sem agentes e não existem agentes –
exceto num sentido biológico – sem estruturas.”89
Outra problemática apontada por Bartelson é a indivisibilidade prevista no ator estatal,
pois pensando no uso racionalista predominante nos países de cultura ocidental e democrática,
há inevitavelmente a divisão de seus poderes ao menos nos três poderes clássicos de
Montesquieu: judiciário, executivo e legislativo90
. Isto reforça, segundo o autor, um caráter
histórico da soberania, que teria se dado de maneira gradual a partir das ações e dos interesses
humanos – ao que vemos um afastamento da teoria de antropomorfização do Estado – muito
enraizadas no senso comum ordinário. Wendt (2014) lembra como frequentemente dizemos
que os estados “acreditam”, “atacam”, “sofrem”: o próprio direito internacional se refere a uma
“personalidade” do Estado91
. Todavia, conforme Alexander Wendt, esse efeito que regula uma
relação causal a partir das ações estatais “[...] não esgota a diferença que ideias compartilhadas
podem fazer” (Idem, p. 208), na medida em que constituem suas identidades e interesses.
Assim, o papel de cada Estado apenas é possível a partir da independência dos atores,
pois somente assim atuam plenamente no processo, expressando uma equação fundamental
para compreensão do conceito de identidade wendtiana: a equação do desejo mais crença92
.
89
Vale citar parágrafo completo: “Em particular, não devemos tratar a estrutura e o processo como diferentes
níveis de análise, como Waltz, Buzan, Jones e Little fazem, uma vez que isso implica que a estrutura existe ou tem
efeitos independentes do processos (“reificação”) e esse processo não é em si estruturado. Há dois níveis de
análise (micro e macro), mas ambos são estruturados e ambos são instanciados pelo processo. Não existem
estruturas sem agentes e não existem agentes – exceto num sentido biológico – sem estruturas. Os processos
sociais são sempre estruturados, e as estruturas sociais estão sempre em processo.” (WENDT, 204, p. 226-227). 90
Assim, o poder estatal ficaria com duas respostas fictícias possíveis: ou a soberania é 1) indivisível nas mãos de
um só homem; ou está 2) dispersa dentro do corpo social, achando sua expressão numa vontade geral indivisível
ou no consenso da maioria. (BARTELSON, 1995, p. 26, tradução nossa). Do original: “The answers given hover
between two legal fictions; either sovereignty is indivisible and concentrated in the hands of one man, or
sovereignty is dispersed in the social body, finding its expression in an indivisible general will or in the consent of
a majority.” 91
Wendt associa esse caráter trazido pelo direito internacional como similar a uma das identidades que atribui ao
Estado, o de corporação. O autor construtivista acredita que as realidades dos sistemas internacionais são
constituídas por essas atribuições de qualidades do ator estatal. À identidade corporativa se somam ainda a
identidade tipo, papel e coletiva. É mister ressaltar que todas elas existem num mesmo agente,
concomitantemente. 92
A ruptura com os racionalistas e materialistas é, assim, inevitável; bem como a abertura para uma nova
compreensão da ação política e da diplomacia, pois não se pode ignorar a variável humana por trás das interações
estatais, na medida em que a política também é socialmente construída e protagonizada por homens, em última
instância. Dessa forma, não há conflito na antropomorfização do ente estatal, sendo esta antes a resposta para
compreensão das interações internacionais; para compreensão da feitura das políticas domésticas e externas dos
Estados e da co-constituição de suas identidades (WENDT, 2014). Não entramos no debate sobre internalismo ou
externalismo do pensamento, uma vez não ser necessário para a análise proposta.
41
Não obstante, não deve haver confusão entre individualidade e autoridade unificada: a
soberania não pode ser desagregada93
(WENDT, 2014).
Como ocorre com a soberania interna, é importante enfatizar que a questão aqui não é
de autonomia. A interdependência internacional crescente significa que os Estados
estão cada vez mais sujeitos a poderosos constrangimentos externos sobre sua ação.
Isso cria uma lacuna entre o direito de fazer o que eles quiserem e sua capacidade de
exercer esse direito, mas não significa que os estrangeiros tenham “autoridade” sobre
os Estados. Autoridade requer legitimidade, não mera influência ou poder. (WENDT,
2014, p. 255)
A legitimidade, por sua vez, será dada pela organização política do Estado, retirando do
chefe do Estado a concentração de todo o poder. Assim, o que a princípio parece polêmico é
apenas mal compreendido: “[...] o que dá ao Estado soberania em face de sua divisão interna é
uma estrutura organizacional de autoridade unificada não rival que permite que suas partes
trabalhem juntas como uma unidade ou uma “equipe”.” (WENDT, 2014, p. 255). Nessa esteira,
soberania pode ser traduzida como independência constitucional externa (Idem).
Outro ponto trabalhado tanto por Bartelson quanto por Wendt é a questão da
territorialidade – em verdade inevitável ao se tratar da soberania. De forma breve, o primeiro
define o espaço físico estatal – portanto territorial – como portador de algumas dimensões
básicas: a) o fato físico (e geopolítico); e o 2) ambiental94
. Assim, “um território delimitado
pode tanto ser interpretado como uma condição necessária de soberania, ou, de forma
alternativa, a soberania pode ser interpretada como uma condição necessária de um território
delimitado.” (BARTELSON, 1995, p. 30, tradução nossa)95
.
Já Wendt (2014, p. 258) categoriza que “Sem território, não há Estado.”, concordando
com Michael Mann (1984), a quem cita: “o Estado é [...] um lugar” (MANN apud WENDT,
2014, p. 258, tradução nossa)96
. Isso porque nesse caso, a autoridade do Estado não é abordada
como uma ideia, mas um fato, vinculado à matéria sensível da terra, sendo este seu aspecto
distintivo. Segundo Gottman (2012), de fato é difícil falar de soberania sem falar em território,
93
Wendt lembra que “Os seres humanos são animais grupais, e a unidade mais elementar no “estado de natureza”
é o grupo, e não o indivíduo (Alford, 1994).” (2014, p. 257). 94
O autor coloca ao todo cinco características, que segundo ele, se resumem nas duas acima, por isso optamos por
colocar somente elas. De qualquer maneira, temos que o Estado é 3) o palco onde ocorre e de que parte a ação
humana; é 4) um suporte das questões espaço-territoriais humanas e que é 5) um fato geopolítico (ou essência
metafísica), uma vez sendo o espaço determinado por uma configuração particular das relações do homem com o
espaço. 95
Do original: “(...) a bounded territory can either be interpreted as a necessary condition of sovereignty, or
conversely, sovereignty can be interpreted as a necessary condition of a bounded territory.” 96
Do original em Mann, 1984: “The state is, indeed, a place – both a central place and a unified territorial reach.”
(MANN, 1984, p. 198). Vale dizer que a discussão trazida pelo autor no artigo em questão é muito mais complexa
do que a citação permite julgar. A frase surge na discussão da centralidade do Estado e podemos dizer que de
qualquer maneira, este é precisamente o ponto que toda definição estatal parece compartilhar.
42
sendo sua definição cada vez uma preocupação maior dos juristas na medida em que se coloca
o Estado como personalidade jurídica97
. Apesar disso, o autor é enfático na negativa de o
Estado ser um corpo político, sendo antes uma composição de “povo, território e organização
governamental” (SCELLE, 1951 apud GOTTMAN, 2012, p. 524).
A partir do exposto fechamos esse capítulo lembrando que tanto a questão da soberania,
quanto a do Estado e do território, bem como a forma de governo, e as demais categorias
previamente abordadas; estão presentes no debate do nacionalismo. Uma vez que analisamos o
debate da hispanidade, europeidade e catalanidade, não há como escapar do trabalho minucioso
desses conceitos, necessidade que desejamos que fique clara ao final do trabalho. Essa
discussão é retomada brevemente ao final da dissertação, a fim de organizar nossos
argumentos, que são unidos por meio desses conceitos, respondendo à pergunta de partida, isto
é, permitindo uma compreensão macro e micro do independentismo catalão. Fica claro, pelo
exposto, portanto, que tais teorias nos dão solo adequado para lidar com o debate cultural, os
organizando e associando às concepções trazidas pelos teóricos de RI98
, preenchendo suas
lacunas. A necessidade de trazê-los se deve à interdisciplinaridade do nosso tema, que não se
limita à compreensão construtivista, ou da TPI e da ciência da história; deixando explícita
nossa perspectiva analítica. Sugerimos que a leitura dos próximos capítulos seja feita, portanto,
a partir do paradigma apresentado.
97
É precisamente a partir do Direito Internacional Público que a problemática da soberania se mostra de maneira
(para alguns) conflituosa. Isto porque nos sistemas internacionais não há um governo único e centralizado. No
entanto, se presumirmos a existência de uma sociedade internacional, que aceita e reconhece algumas regras como
absolutas e necessárias – como as erga omnes do direito internacional –; a existência de tribunais internacionais; a
da ONU – entre outros órgãos internacionais –; e ainda dos tratados internacionais; e na medida em que
compreendemos a necessidade e importância das interações para sua existência, conseguimos reconhecer que a
anarquia de fato não pressupõe a ausência de organização, nem tampouco que acordos ferem necessariamente a
soberania nacional. Até mesmo porque o reconhecimento das soberanias, bem como disponibilidade para
acionamento e exercício do poder são requisitos fundamentais para que esse ordenamento sistêmico, benéfico para
todos seus membros, seja possível. 98
O último conceito que trabalharemos no capítulo é o de cidadania. Esta é construída, ou possibilitada, somente
enquanto subjetividade histórica, existente dentro de uma configuração soberana: no caso de perda da soberania,
ela se perde. Assim, embora seja uma “jaula”, nas palavras de Bartelson (1995, p. 44), a soberania permite a
existência de cidadãos, que, embora expectadores dessa história, somente se conhecem a partir dela. Lemos no
original: “(...) the state is the result of crime organized on a huge scale, propelled by massive violence. But so is
the citizen-spectator himself, since he is a modality of the same historically determined subjectivity; his
estrangement is only partial and he cannot be emancipated completely from this iron cage of modern sovereignty,
without, as it were, simultaneously losing knowledge of himself.” (BARTELSON, 1995, p. 44)
43
3 DA ESPANHA À CATALUNHA
España, España, España, dos mil años de historia no acabaron de
hacerte...
EUGENIO DE NORA, Canto (apud TRILLO-FIGUEROA, 2013)
A Espanha é um país múltiplo na medida em que é constituída por nações
distintas, que alegam não se sentirem representadas no conceito de espanhol (SOLÍS, 2003).
Características marcantes do povo espanhol, como sua "fúria", "paixão" e mesmo as "touradas"
são rechaçadas fortemente pelos catalães, galicianos (ou galegos) e bascos, que se percebem
como povos mais "racionais" e "equilibrados" que os espanhóis (BUADES, 2013b). No
entanto, apesar dos enfoques nacionalistas de cada grupo, esses são em grande medida fruto de
ideologias99
e movimentos políticos, acirrados em momentos históricos específicos: seja em
eventos como a Guerra Civil Espanhola, seja pela morte do ditador Franco (em 1975), seja
devido a eventos esportivos como a Copa do Mundo ou as Olimpíadas, pela formação de uma
unidade supranacional (como a União Europeia100
) e mesmo pela recente crise de 2008. É
míster ressaltar que tais eventos influenciam de maneira diferente o sentimento nacional de
cada um desses povos. Por sua vez, a mídia, em suas inúmeras manifestações101
, é um ator de
peso nesses momentos, agindo ora em consonância, ora contra determinações políticas e
mesmo de maneira neutra, podendo, no entanto, influenciar diretamente sentimentos de
pertença nacional (CAMARGO, 2009). Além disso, é um veiculador por excelência de
discursos políticos, fundamental na construção da narrativa nacional.
A partir das discussões acerca da construção imaginária nacional a partir da
consolidação dos Estados-nação, e de como eles se inserem hoje no cenário internacional,
principalmente a partir de um evento como o estabelecimento de uma "União Europeia",
podemos dizer que vivemos uma época pós-nacional102
, caracterizada pela alteração e pela
99
Utilizamos um significado genérico de ideologia, qual seja, um conjunto de ideias fundamentais que constituem
o pensamento de uma pessoa ou coletividade em dado período histórico e espaço. Tal conceito segue a linha
exposta pela autora Marilena Chauí (2017). 100
Doravante UE. 101
Consideramos mídia também expressões artísticas, como literatura, pintura e fotografia. 102
O termo pós-nacional se refere àquele atribuído por Guibernau (2004), bem como por outros teóricos dos
estudos da questão nacional, como Hermet (1996), para os quais o conceito nacional se deu num contexto da
Modernidade, quando os movimentos de constituição dos Estados-nação se deram. Assim, vivemos uma era pós-
nacional na medida em que esse conceito inicial e mesmo os movimentos de formação nacional ou
desmembramento e questionamento dos valores outrora concebidos, na Idade Moderna (principalmente nos
séculos XVII, XVIII e XIX), foram já superados, de maneira que vivemos hoje um momento pós-nacional, em que
outras questões se colocam no centro do debate, como questões de local-global, folclore/tradição x unidade, entre
outros.
44
mudança das comunidades políticas modernas, quando há uma reinterpretação não apenas do
que seja o nacional, mas de sua relação com a soberania local e de como esse conceito vem
sofrendo alterações, não sendo mais circunscrito pela conceituação clássica dos estudos das
relações internacionais103
. Os Estados passam a viver permutações espaciais próprias e a ter
novas relações políticas e identitárias em "entornos globais complexos" (PÉREZ; BECERRIL,
2006, p. 191), o que promove vínculos criativos entre o local e o global, trazendo a necessidade
contínua da reinterpretação.
3.1. A Espanha: passagem da Idade Média à Idade Moderna
Uma vez que estudamos o fenômeno independentista catalão a partir da premissa de
uma identidade histórica distinta da espanhola, faz-se necessário retornar à formação tanto de
Espanha quanto de Catalunha, para que tal questão possa ser melhor avaliada. Isso se dá uma
vez que consideramos o nacionalismo tributário de uma narrativa sustentada pelos pensadores
da nação, os criadores das tradições. Levando-se em consideração a antiguidade da história
dos povos mediterrâneos, das nações que lá habitam e habitaram, não parece tarefa dispensável
verificar o processo de consolidação do Estado espanhol. Dito isto, é válido mencionar que não
raro lê-se, em textos que analisam a questão catalã, da origem histórica das questões
autonômicas.
Para iniciarmos o percurso, trazemos duas passagens interessantes no que se refere
à grandeza ou declive imperialista catalão:
Depois da Reconquista, Baleares se une à Catalunha [...]. A Coroa de Aragão
acostuma a praticar o <<pactismo>>: cada território está unido ao soberano por um
pacto que recapitula suas franquias, suas isenções, etc. / Nas regiões conquistadas, os
muçulmanos conhecem diversas sortes. Os do Vale do Ebro se mantém ali e
conservam sua religião, mas perdem o uso da língua árabe no século XIII. Os dos
Baleares são expulsos e substituídos por colonos catalães. No reino de Valência, os
muçulmanos são claramente majoritários, apesar da implantação de colonos catalães e
aragoneses nas cidades.104
(SELLIER, 2008, p. 61, tradução nossa)
103
Os conceitos são trabalhados na parte teórica desse estudo. 104
Do original: “Después de la Reconquista, Baleares se une a Cataluña [...]. La Corona de Aragón acostumbra a
practicar el <<pactismo>>: cada territorio está unido al soberano por un pacto que recapitula sus franquicias, sus
exenciones, etc. / En las regiones conquistadas, los musulmanos conocen diversas suertes. Los del valle del Ebro
se quedan allí y conservan su religión, pero pierden el uso de la lengua árabe en el siglo XIII. Los de Baleares son
expulsados y sustituidos por colonos catalanes. En el reino de Valencia, los mudéjares son claramente
mayoritarios, a pesar de la implantación de colonos catalanes y aragoneses en las ciudades.”. Note-se que
preferimos traduzir mudéjares como muçulmanos, evitando uma nomenclatura inadequada para esse tipo de
praticante do Islã.
45
A tensão entre Castela – centralizadora e unificadora – e as regiões periféricas –
recalcitrantes – marca desde então [finais do século XIII] a história da península. Uma
reivindica a unidade ibérica, as outras, o respeito às liberdades tradicionais. Deixando
à parte Portugal (que só perderá sua independência de 1580 a 1640), Castela, centro
do reino de Espanha, consegue pouco a pouco impor sua hegemonia política. A partir
do século XIX, o desenvolvimento econômico da península (sobretudo catalão e
basco) põe em dúvida a hegemonia castelhana. O delicado equilíbrio atual entre
autoridades centrais e comunidades autônomas reflete (e tenta acalmar) essas tensões
multisseculares.105
(SELLIER, 2008, p. 57, tradução nossa)
A partir dessas duas passagens demonstramos não apenas a antiguidade desses povos, como de
seus distintos momentos [mais ou menos influentes] dentro da região. A história da Catalunha
é, portanto, verdadeiramente antiga, marcada por disputas de poder (posse e influência)
direcionadas a seu território e as suas populações. Isto ficará cada vez mais claro na medida em
que formos narrando a história da formação do Estado espanhol, sempre tentando trazer a
presença catalã e mostrar como ela se dava nos períodos mencionados. Comecemos a narrativa.
A história do Estado espanhol tal como compreendido e estimulado pelos modernos
tem início no século XV, ao final da Idade Média. Escolhemos esse momento porque é nele que
“os tratados fronteiriços entraram nos costumes políticos.” (HERMET, 1996, p. 43). É nesta
ocasião que as primeiras identidades etnopolíticas surgem na Europa de maneira formal,
abandonando uma compreensão anterior em que os laços eram mais familiares que dependentes
de política.
O período que dá origem ao que chamamos de Idade Moderna surge da perda da
identidade coletiva desses agrupamentos iniciais, influenciados também pelo forte papel dos
universos políticos, religiosos e mentais, num momento em que o conceito de soberania106
começa a ser desenvolvido aos moldes que o trabalhamos [hoje e] em nosso estudo. É
interessante ressaltar que é em 1492 que se tem um primeiro decreto expulsando os
muçulmanos que habitavam a região da Hispania107
, antigo nome atribuído à Espanha ao fim
105
Do original: “La tensión entre Castilla – centralizadora y unificadora – y las regiones periféricas – recalcitrantes
– marca desde entonces la historia de la península. Una reclama la unidad ibérica, las otras, el respeto a las
libertades tradicionales. Dejando aparte Portugal (que sólo perderá su independencia de 1580 a 1640), Castilla,
centro del reino de España, consegue poco a poco imponer su hegemonía política. A partir del siglo XIX, el
desarrollo económico de la península (sobre todo catalán y vasco) pone en duda la hegemonía castellana. El
delicado equilíbrio actual entre autoridades centrales y comunidades autónomas refleja (e intenta calmar) estas
tensiones multiseculares.”. 106
“Há aqui a prefiguração de um [sic.] espécie de federalismo combinado com a lógica medieval da soberania.
Isto é, a visão do destino único de um corpo político compósito [sic.], não fragmentado por um feudalismo à
francesa, mas unido por um sistema de dinastias da mesma família, de governos descentralizados reconhecendo
um “centro espanhol”, constituído pelo reino de Castela e de Leão.” (HERMET, 1996, p. 47). Sobre a visão de
soberania com que trabalhamos, rever capítulo anterior, em tópico assim nomeado. 107
Na Antiguidade Hispania, sendo alterada para Spania, em língua vulgar no primeiro milênio, para após ainda
chamar-se Hispani. (HERMET, 1996). A esses grupos identificam-se os habitantes cristãos, para quem os
muçulmanos serão vistos como rivais até sua expulsão, ao final do século XV. Como vimos em citação anterior,
muito antes disso, porém, os muçulmanos já sofrem uma série de expulsões de territórios, guerras que são
46
da era Romana nesse território. Apesar disso, a ocupação muçulmana na Península Ibérica,
segundo Hermet (1996), não foi tão impactante em termos culturais, visto que “a terminologia
cultural e espiritual se manteve no essencial de origem latina, mesmo entre os letrados, e que só
palavras relativas à vida material impregnaram duradouramente o espanhol.” (Idem, p. 45). Ele
menciona os letrados, pois estes eram em grande maioria bilíngues, se expressando em latim e
em árabe.
Não obstante, os cristãos traziam ressentimento e antagonizavam os
muçulmanos que habitavam a Hispânia, iniciando um sentimento de nós e eles, rejeitando a
permanência de uma sociedade plurirreligiosa e plurilinguística, pois muitos criam que isso
lhes feria a identidade, trazendo uma sensação nova e uma “vontade de resistência e a
esperança activa da libertação.” (HERMET, 1996, p. 45). Segundo Hermet (1996), a ocupação
muçulmana em Ibéria teve duração de 25 gerações, de 711 com o desembarque na costa
andaluza de Tariq a 1492, com o movimento de reconquista (cristã). Os espanhóis passam a
pensar num futuro em comum excluindo essas populações muçulmanas108
. Ressaltamos nesse
momento que justamente na Catalunha, na Galícia e no Norte de Portugal houve precoce
libertação dos domínios árabes, o que dá uma pista para o sentimento apartado que sentem em
relação ao resto da Espanha moderna, principalmente no caso da Catalunha e Galícia, embora
menos no último. Apesar disso, embora haja o reconhecimento dessa alteridade, devemos
considerar que tal concepção partia mais dos monarcas a seus súditos, excluindo as classes
camponesas, “ignorantes” (GELLNER apud HERMET, 1996):
Num tal contexto, estes estratos privilegiados conseguiam influência através do seu
papel especial de nobreza militar, de clero voltado à sacralização do poder, de
burocracia burguesa encarregue da administração do reino, ou ainda de classe
mercantil que trabalhava tanto para a prosperidade daquele como para a sua própria.
(HERMET, 1996, p. 54)
De qualquer maneira, é a partir do movimento de Reconquista, cujo marco em
Espanha se dá em 1542, quando há um orquestramento por parte das Coroas109
que regiam a
chamadas eventualmente de Reconquista por parte da literatura. Tais levantes, ocorridos ainda no século IX já são
nomeados como Reconquista por Sellier (2008), por exemplo. 108
“Depois de 1212 e do triunfo militar de Las Navas de Tolosa, cada vez se apaga mais a contradição entre o
sentimento de pertencer a uma mesma comunidade histórica e a realidade dos cinco reinos reconhecidos todos
igualmente como espanhóis: os reinos de Castela-Leão, de Aragão e da Catalunha, de Navarra, de Portugal e
finalmente também do reino árabe de Granada destinado a unir-se-lhes. Todos vistos como regidos pelas mesmas
regras e usos essenciais apesar das adaptações locais, pela “lei usual da Espanha” idêntica sob os seus diversos
nomes. É neste contexto que, cerca de 1270-1280, Afonso X, o Sábio, se torna autor da primeira história, quase
nacional, redigida em língua vulgar na Europa e que inaugura todas as que irão visar a edificação patriótica no
decurso do século seguinte.” (HERMET, 1996, p. 47-48, grifo no original). A batalha de Las Navas de Tollosa,
por sua vez, foi considerado o ponto culminante da Reconquista por parte dos historiadores espanhóis. Trata-se de
uma batalha ocorrida em Serra Morena, atual Andaluzia (FERNÁNDEZ, 2016). 109
Quais sejam: Rei Alfonso VIII de Castella, Pedro II de Aragão e Sancho VII de Navarra.
47
região da Península Ibérica com a Santa Sé, a Cristandade, na figura do Papa, que conferiu ao
movimento o estatuto de Cruzada, isto é, movimento de luta frente ao infiel e à heresia
(FERNÁNDEZ, 2016). É a partir da Reconquista que se abre espaço para o questionamento e
legitimação da conquista e diferenciação étnica e religiosa dos povos. É um momento em que
uma grande porção da Europa Ocidental passa a se impor como cultura diferenciada frente, no
caso, dos árabes e judeus muçulmanos (os sefarditas), tendo também servido de meios para
formar uma marinha que encabeçaria a conquista da América por parte dos reis católicos
cristãos e que moldaria a ideia moderna de Espanha, com uma conformação de uma política
imperial espanhola, bem como da filosofia e epistemologia da Modernidade110
(FERNÁNDEZ,
2016; PRESCOTT apud FERNÁNDEZ, 2016).
A questão marítima é extremamente interessante, pois coloca não apenas a
Espanha, mas a Catalunha em posição geográfica bastante estratégica: ela se localiza as
margens do Mar Mediterrâneo, o coração de todas as trocas na Baixa Idade Média (vide mapas
anexos ao final do trabalho). Isto lhe permite participar de um comércio internacional e agir
como sujeito muito antes da formação do Estado espanhol. Não obstante, demonstra que,
devido à sua importância em Catalunha, auxiliou na construção da identidade dos povos que
viviam nessa sociedade, com o detalhe de que esse povo apenas abrangia uma parcela
específica e bastante restrita da população. Lemos em Hermet (1996, p. 54):
Para ele [Gellner], o imenso contraste cultural entre estes dois estratos [elites
compósitas e massas camponesas ignorantes] consolida nestas sociedades o domínio
das elites sobre grupos bastando-se a si próprios e imóveis, incapazes de conceberem a
solidariedade que lhes permitisse sacudir o jugo que sobre eles pesava. Nessas
sociedades, é a distância social intransponível da desigualdade absoluta e não a busca
de um consentimento alargado que constitui a base do poder. [...] A observação é
evidente a respeito da barreira cultural e estatutária irremediável, que impede o
simples povo de se identificar com os senhores, com os letrados ou com os membros
do alto clero, e reciprocamente. Ela impõe-se, também, no que diz respeito às relações
de identidade partilhada, que não podiam existir entre as milhares de comunidades de
camponeses ou de pobres das cidade [sic.], fechadas como estavam pela ausência de
estradas, de dialectos comuns, de trocas materiais e matrimoniais ou pela sufocação da
miséria. Em contrapartida, poder-se-ia imaginar que as elites escapassem a esta
separação [...].
110
Citando a teoria do Sistema-Mundo de Wallerstein, é a primeira vez que temos o centro dominando a periferia,
que a Europa se estabelece como conquistadora e dominadora, marcando o final da Idade Média e início da Idade
Moderna. É nesse momento que nascem as ideias que darão base ao Renascimento, sendo a Península Ibérica a
única potência capaz de conquistar territórios externos – Portugal sendo a primeira nação a navegar, seguido da
Espanha (ORIQUE, 2014). Nasce também a ideia do conquistador e do outro, conquistado, dando origem ao mito
da superioridade de nações e, ao cabo, da Europa (DUSSEL apud FERNÁNDEZ, 2016). Sobre isso vale dizer que
autores tem ideias diferentes sobre esse início da Modernidade, pois alguns pensam que seu início seria marcado
com a Reforma Protestante, em 1514, encabeçada por Lutero, enquanto outros se referem ao Tratado de
Westphalia, firmado pelos Estados signatários em 1648.
48
A Catalunha era, assim, aberta ao mundo, mas apenas para elites, que teriam acesso
à sua internacionalidade. Apenas os detentores de poder e capital, e os povos que habitavam
áreas litorâneas gozavam desse convívio com a realidade das trocas, produtos, educação,
cultura múltipla e de trocas culturais elas mesmas, entre outros. Barcelona, capital catalã e
centro dessa realidade na Idade Média e Moderna, é pouco citada na literatura de língua
portuguesa como cidade portuária e de comércio nas literaturas formais, no entanto, não sobra
dúvida desse seu aspecto quando lemos Fernand Braudel (1983, p. 168-169):
[...] aldeias marítimas não bastam para criar uma região economicamente activa;
necessitam do insubstituível complemento de uma grande cidade, capaz de fornecer os
mastros, os panos para velas, massame, alcatrão, cordame, capitais, e capaz de
assegurar a existência de mercadores, fretadores, seguradores e todos os outros
serviços disponíveis apenas nas grandes urbes. O progresso da actividade marítima ao
longo da costa catalã seria dificilmente explicável sem a existência de Barcelona, com
os seus artesãos, os seus mercadores judeus, os seus soldados aventureiros e os
variados recursos do bairro de Santa Maria del Mar; de facto, tal sucesso só foi
possível pela intervenção activa da grande cidade e pelo sentido imperialista dessa
intervenção. A costa catalã despertou para a vida marítima historicamente visível no
século XI, mas a sua expansão só se iniciou dois séculos mais tarde, coincidindo com
a própria expansão de Barcelona. A partir daí, e durante quase três séculos, a
<<praia>> de Barcelona registrou o incessante vaivém de navios, oriundos não só da
<<riviera>> catalã como das Baleares, de Valência (rival tradicional), da Biscaia, de
Marselha e de Itália. Mas Barcelona perde a independência, após longa luta contra
João de Aragão. Com a independência, vão-se as liberdades, e, vinte anos após (em
1492) vai-se a sua <<judiaria>>, também com graves consequências; finalmente, os
seus capitalistas renunciam, pouco a pouco, aos negócios arriscados, preferindo
limitar-se aos rendimentos mais regulares da Taula de Cambi ou à compra de terras
nos arredores da cidade. Seguiu-se um período de decadência quer da grande cidade
quer da costa catalã, a ela intimamente associada. Decadência que atingiu tal nível que
o comércio catalão quase desapareceu do mediterrâneo e que o litoral do Condado foi
destruído, quase sem opor resistência, pelos corsários franceses quando das guerras
entre os Valois e os Habsburgos, e, mais tarde, pelos piratas argelinos, não menos
perigosos que os anteriores e solidamente entricheirados no desértico delta do Ebro111
. 112
Apesar de ter vivido um apogeu, principalmente ao longo da Baixa Idade Média, portanto, a
Catalunha, em especial a cidade de Barcelona, acaba sendo afetada com os movimentos
dinásticos e de consolidação do Estado espanhol.
Após a morte de Fernando de Aragão113
, em 1516, Carlos V ruma à sucessão do
Sacro Império Romano-Germânico, sob o título de Carlos I da Espanha. É a partir desta data
111
O Delta do Ebro corta a região da Catalunha. 112
Braudel (1983, p. 169) segue demonstrando a importância da atividade marítima barcelonesa: “Papel idêntico
ao de Barcelona na costa catalã desempenharam Marselha, Gênova e Ragusa em relação aos pequenos portos que
as rodeavam.”. Segundo o autor, outro motivo que favorecia Barcelona e a Catalunha em si era a grande
quantidade de matéria disponível, devido à proximidade com os Pirineus. Outras regiões tinham que exportar
madeira, que com o passar do tempo era cada vez mais escassa. 113
Casado com Isabel de Castella, dando origem a um reino católico.
49
que a Espanha passa a ser um reino, com vários vice-reinos, governado por um monarca, da
dinastia dos Habsburgos, ou Casa da Áustria (BUADES, 2013b, p. 15)114
. Essa Espanha tinha
traços federativos, o reino115
permitindo que houvesse um certo grau de autonomia a cada vice-
reino. Não obstante, o poderio catalão exercido outrora não era mais o mesmo.
Durante o reinado da Casa austríaca houve momentos de interrupção da hegemonia
da Coroa espanhola – como quando da invasão napoleônica, que durou de 1808 a 1814 – ou de
sucessão, como foi o caso da sucessão dos Habsburgos pela Casa Bourbon, em 1715. Foi
somente ao fim da invasão espanhola por Napoleão Bonaparte, em 1812, que foi promulgada a
primeira Carta Magna espanhola, a Constituição de Cádiz, em que constavam os ideais do
liberalismo, rechaçando o absolutismo – mesmo que o regime continuasse a ser monarquista
(BUADES, 2013, p. 15). Em 1814, Fernando VII retorna ao trono espanhol, tendo sua esposa,
Maria Cristina de Bourbon, o sucedido após sua morte, em 1833, o que levou a uma revolta
popular entre aqueles que defendiam o estado mais liberal, representados pela Casa Bourbon; e
os chamados carlistas116
, conservadores que defendiam a posse de Carlos María Isidro, tio de
Maria Cristina, absolutista. Isabel II, filha de Maria Cristina, acabou sendo emancipada aos 13
anos, em 1843, governando até 1868. Tanto Maria Cristina de Bourbon quanto Isabel II
defendiam o Estado mais liberal e políticas sociais progressistas (PAYNE, 2008, p. 162).
A Primeira República (PR) só teria lugar em 1874, tendo durado apenas onze
meses, com quatro diferentes Presidentes. A ela se seguiu a Restauração Bourbônica, quando os
Bourbons (carlistas117
) voltariam a governar a Espanha (BUADES, 2013, p. 16). Em 1931, tem
lugar a Segunda República (SR), que seria a “primeira experiência verdadeiramente
democrática da história espanhola” (Idem, página 14); seu fim coincide com o início da Guerra
Civil Espanhola (1936-1939). Antes da Guerra Civil, no entanto, a Espanha vive um ativo
período político, repleto de movimentos sociais, refletindo também as mudanças de conjuntura
internacional, com o advento da Revolução Russa, em 1919, das Guerras Mundiais e do
crescimento dos movimentos nazifascistas e nacionalistas, ainda na primeira metade do século
XX. Percebe-se assim que a história espanhola é instável, marcada por incontáveis eventos
políticos, sucessões de monarcas e possessões. Passamos a descrever brevemente os eventos
114
Tendo, portanto, vencido a guerra com os Valois franceses. 115
“A kingdom, or regnum in medieval parlance, was just a distinct principality and not necessarily even a fully
sovereign state. Sancho’s usage affirmed a completely independente entity, what in traditional parlance was
termed an empire, though he made no specific claim to empire itself.” (PAYNE, 2011, p. 109). 116
Essa foi a Primeira Guerra Carlista, entre carlistas e cristinos (estes em favor de Maria Cristina de Bourbon,
mãe de Isabel II, representando uma visão mais liberal, enquanto os primeiros o absolutismo). 117
A história espanhola é marcada pelas chamadas Guerras Carlistas, em virtude do nome do pretendente ao trono
(Carlos Maria Isidro). Foram as primeiras guerras civis espanholas e remontam a 1833 (BUADES, 2013, p. 13-
16).
50
culturais e ideológicos que antecederam a Guerra Civil Espanhola, fundamentais para
compreender o pano de fundo de um nacionalismo latente dentre os nacionais espanhóis que
culminaria na ditadura franquista, dada a proposta da pesquisa.
3.1.1. A Independência de Cuba: a conformação das identidades na Espanha Moderna
Um dos eventos marcantes na virada do século e que dá início a uma ideia de
hispanidad é a Independência Cubana, em 1898, seguida das independências também de Porto
Rico e Filipinas. É o fim da era do colonialismo espanhol, já que Cuba e Porto Rico eram suas
últimas colônias. A Independência de Cuba marca também uma crescente influência dos
Estados Unidos da América no continente americano, já que ganha força de potência
imperialista ao intervir no conflito118
(CAPELATO, 2003).
O evento também ficou conhecido como o “Desastre”, pois foi visto pelos
espanhóis como uma grande derrota militar, que manchou a honra da Espanha. Dentro de um
contexto da modernidade, a intelectualidade espanhola se integra a discutir os grandes eventos
de sua época, as grandes questões colocadas pelos eventos, e acaba contribuindo para uma
formação da identidade nacional a partir de uma insatisfação generalizada e a busca de uma
regeneração da Espanha, que, segundo os autores da virada do século XIX, se encontrava
perdida desde a morte dos reis católicos. Os intelectuais que defendiam que a Espanha
restaurada era inconsistente (ENTRALGO, 2016) ficaram conhecidos como geração de 98119
.
A chamada geração de 98 manifestava angústia pelo estado de decadência a que
estava submetida a Espanha. Os autores procuravam analisar as causas desse mal e
propunham soluções para regenerar o país; por esse motivo são identificados como
“regeracionistas”. Caracterizavam-se por uma percepção negativa da nação espanhola
e lamentavam o fato do país manter-se à margem da Europa. [...] Consideravam que,
embora a Espanha tivesse dado início a um processo de modernização econômica, as
condições materiais eram ainda muito precárias. [...] A derrota na guerra de Cuba foi
responsável por uma crise de identidade que se integrou numa crise mais ampla, de
âmbito europeu, caracterizada por reações contra a modernidade e a modernização.
(CAPELATO, 2003, p. 37)
Parte do questionamento que se fazia era direcionado a uma crítica às tradições
imperialistas tomadas dos anglo-saxões – e é nessa dicotomia nós-eles que é formado o eu
118
Um acordo com os EUA, o Tratado de Paris (1898), ocasionou na perda das colônias de Cuba, Porto Rico e,
posteriormente, das Filipinas (CAPELATO, 2003). 119
Sobre a geração de 98 temos que: “Al principio, entonces, nos encontramos com el siguiente cuadro de la
Generación: un grupo de jóvenes escritores, de origen pequeno burguês, de formación laica y universitária por lo
general, sin otros recursos económicos que su preparación académica, y orientados hacia la ‘clase profesional’, la
cual era todavia casi nueva en España. Muy politizados aún antes del desastre de 1898, reaccionan en seguida com
tendencias extremistas sacadas de la ideología del socialismo y hasta del anarquismo.” (SHAW, 2016, p. 640).
51
espanhol –: o espanhol declinava por ter deixado a tradição humanista latina e se direcionado à
cultura expansiva da Idade Moderna120
. Da mesma maneira, os hispano-americanos,
influenciados pela intelectualidade espanhola, bem como pela literatura compartilhada, se unem
num ideal hispânico:
A discussão que se travou em torno da cultura saxã versus cultura latina serviu para
unir espanhóis e hispano-americanos. [...] a literatura produzida por eles, nessa época,
foi fundamental para a evolução literária do século XX. Os grandes escritores
espanhóis e hispano-americanos se converteram em modelos internacionais.
(CAPELATO, 2003, p. 38).
Alguns autores, como Pedro Cerezo Galán, mencionam esse momento como a
“crise ideológica do 98”, em que houve uma revisão de crenças e valores não apenas espanhóis,
como europeus. Outros, como Miguel de Unamuno, acreditam que o mal-estar da cultura
vivido nesse momento é fruto de um desconforto que já vinha de antes de 1898. A seu turno,
Ángel Ganivet apontava para um choque resultante do embate dos discursos da modernidade e
religioso espanhóis, que tinham que disputar por lugar dentro das tradições (CAPELATO,
2003; ENTRALGO, 2016).
A posição intelectual da “geração de 98” diante da história e da vida espanhola
produziram um movimento político e literário nacionalista no sentido de interpretação
da realidade nacional; mas aceitaram também as reformas estéticas, literárias, de
caráter cosmopolita. (CAPELATO, 2003, p. 42)
Assim, os autores defendiam uma retomada da hispanidad adequada aos avanços
da modernidade europeia, alguns deles dando “soluções concretas para os problemas da
Espanha” (CAPELATO, 2003, p. 43). Shaw (2016) coloca que a europeização se constitui
nesse momento como um mito social através do qual a Espanha conseguiria superar suas
questões socioeconômicas e o legado moral do Desastre de 98. Pra tanto, “o método mais
eficaz era atacar de frente a ideologia tradicionalista que na prática dominava a todas as
alianças políticas, tanto “liberais” como “conservadores” (SHAW, 2016, p. 640)121
.
Concomitantemente, a postura imperialista estadunidense nas Américas foi
tomando contornos, e acirrando-se à medida que o século XX adentrava122
. Isso favoreceu com
que um sentimento de maior definição nós-eles fosse tomando forma tanto na Europa como nas
Américas. Ao mesmo tempo, crescia um movimento anti-estadunidense (CAPELATO, 2003).
Pensando na atuação dos EUA na arena internacional não é difícil entender o porquê dessa
120
Por sua vez havia também autores que defendiam a superioridade anglo-saxã, que subjugava os povos latinos e
suas tradições. Com a Derrota, tais teses negativas sobre a “raça inferior espanhola” (num sentido cultural) eram
reforçadas (CAPELATO, 2003). 121
Do original: “El método más eficaz era atacar de frente la ideología tradicionalista que em la práctica dominaba
a todas las alianzas políticas, tanto “liberales” como “conservadores”.”. 122
Embora o comportamento imperialista estadunidense remeta ainda ao século XIX.
52
polarização, que cada vez mais unia os latino-americanos e latino-europeus: deixavam-se de
lado querelas de um passado colonial para recuperar um passado comum, para resgatar uma
identidade perdida. Não obstante, a ideia de um inimigo comum traz um sentimento de
pertencimento e identificação dos povos hispânico-americanos. Com isso colaborou também o
fato de inúmeros autores terem vivido na América por um tempo, tendo auxiliado no
compartilhamento e divulgação de valores e ideias, criando laços de solidariedade entre esses
povos, que tornavam traços sociais e políticos cada vez mais claros.
A hispanidad passou a incentivar, dessa maneira, o estudo histórico, fomentando
a consciência nacional, de uma personalidade coletiva e compartilhada, que se opunha ao
materialismo que imperava à época. A contento, também plantava as sementes de uma direita
nacionalista123
crescente na Europa, que ficaria em evidencia no período Entre Guerras.
Não se pode afirmar que essa visão identitária dos regeracionistas fosse plenamente
progressista e democrática, mas enquanto os debates permaneceram no plano da
cultura e da mentalidade, as críticas à situação vigente, controlada pelos
conservadores, foram frequentes. Porém, com o passar do tempo, diante do
recrudescimento dos conflitos sociais e políticos e da evolução do quadro europeu no
sentido de uma radicalização entre esquerda e direita, os regeracionistas tanto da
Europa como da América foram se definindo ideologicamente no sentido da extrema
direita. Poucos permaneceram no quadro do liberalismo político. (CAPELATO, 2003,
p. 51)
A este posicionamento extremista dos intelectuais seguirá a polarização política
na Espanha, que perpassa as décadas de 1910 e 1920, quando enfim, em 1930, é instaurada a
ditadura franquista no país. Esses 30 anos gozam de discussões políticas de relevo, que
marcarão a política espanhola até a atualidade. Também os movimentos independentistas,
especialmente da Catalunha e do País Basco se acirram, dada a discrepância da realidade
industrial vivida nessas localidades. O restante dos espanhóis se ressente desta atitude
segregacionista, sentimento que pode ser percebido até hoje nos debates sobre a independência
desses povos. A geração de 98 se posiciona fortemente a favor de uma unidade espanhola,
rechaçando a separação racial – compreendida num aspecto até espiritual –, moldando as
concepções nacionalistas que viriam contornar o conceito do espanhol no século XX e XXI.
A partir da segunda metade do século XIX até o segundo terço do XX, o Estado
espanhol se caracterizava por uma hegemonia liberal, ainda que se manifestasse às
vezes como uma corrente conflitiva submersa de uma índole tradicionalista.
Concomitantes com o nascimento do Estado liberal europeu, aparecem os conceitos de
“nacionalismo”, “nação” e “cultura”, com sentidos inter-relacionados; isto é, que
existia na Espanha um nacionalismo político com um sentido funcional e pragmático
quanto à promoção de uma forma de Estado-Nação de índole liberal-democrática e,
por sua vez, um nacionalismo de caráter cultural, acentuando traços mais emotivos e
comprometidos, como artefato ao serviço da vida política. Daí para frente, o tema da
123
Não entramos na discussão política de esquerda e direita nesse trabalho, fazendo uso do senso comum para os
conceitos.
53
gênese e institucionalização da interpretação de Espanha – e das ideias relacionadas
com seu caráter nacional – vão ocupar durante várias gerações um espaço importante
na história literária, cultural e política espanhola. (FOX, 2016, p. 01, tradução
nossa)124
É também o desastre de 98 que instigará na Catalunha sua Renaixença, que
marca a concepção de sua ideologia nacionalista, na medida em que a fragilidade espanhola é
evidenciada não apenas política, mas também economicamente. Por não haver uma coesão
social entre a Espanha e suas regiões, o Estado espanhol vê-se frequentemente – com seus
períodos de ditadura e centralismo político – formulando programas de subordinação, sejam
eles linguísticos, militares ou culturais. Juan-José López Burniol (2017) afirma por isso que nos
enganamos ao falarmos de questões catalãs, bascas ou galegas: em verdade o problema é
espanhol, visto que sequer consegue imprimir um papel timbrado comum – do que é
testemunha, devido ao seu cargo público de notário desde 1971.
3.1.2. A Semana Trágica de Barcelona
Concomitantemente aos eventos que repercutiram na independência cubana, em
Catalunha, respondendo a esse momento de consolidação da percepção dos povos que viviam
em território espanhol (em termos da construção de seu Self), ocorre um dos mais calorosos
eventos dessa época de instabilidades: a Semana Trágica de Barcelona, que data de 1909,
meses de julho e agosto (26 de julho a 02 de agosto). Essa semana foi marcada por protestos,
saques a estabelecimentos, a igrejas e a conventos, e também incêndios de casas, fábricas e
igrejas. Uma vertente da sociedade espanhola, que flertava com o anarquismo, foi uma das
mais ativas nesse momento. Ao fim da semana, foram registrados mais de 70 mortos e dois mil
presos (BUADES, 2013a). O movimento foi também uma manifestação contra a guerra que a
Espanha travava contra o Marrocos, com soldados se negando a irem para batalha. Não
obstante, não apenas a perda das colônias de Cuba, mas também das Filipinas em 1898 pela
Espanha confrontavam os povos em Espanha. Todos esses eventos acabam consolidando um
124
Do original: “A partir de la segunda mitad del siglo XIX y hasta el segundo tercio del XX, el Estado español se
caracterizaba por uma hegemonía liberal, aun cuando se manifestara a veces uma corriente conflictiva submergida
índole tradicionalista. Concomitantes com el nacimiento del Estado liberal europeo, aparecen los conceptos de
‘nacionalismo’, ‘nación’ y ‘cultura’, con sentidos inter-relacionados; es decir, que existía em España um
nacionalismo político com um sentido funcional y pragmático em cuanto a la promoción de uma forma de Estado-
Nación de índole liberal-democrática, y, a la vez, um nacionalismo de carácter cultural, acentuando rasgos más
emotivos y comprometidos, como artefacto al servicio de la vida política. Desde entonces em adelante, el tema de
la génesis e institucionalización de la interpretación de España – y de las ideas relacionadas con su carácter
nacional – van a ocupar durante varias generaciones um espacio importante en la historia literária, cultural y
política española.”
54
movimento de cunho antimonarquista, anticlerical e sindicalista125
por parte de muitos que
viviam sob a alcunha de espanhóis (GALLO, 2013) naquele momento, e que já não se sentiam
confortáveis com a atuação do Estado com relação a eles – isto é, por não se identificarem com
seu modus operandi. Isto porque a Monarquia espanhola se impunha à frente de todo e
qualquer espanhol, desejosa de estar presente para além de seu continente e exercer um poder
para além de suas fronteiras europeias.
O ser espanhol foi, portanto, se consolidando de modo bastante conflituoso e
confuso. O desejo de expressão de um Self naquele momento significava também assumir um
papel identitário fortemente imperialista, o Estado atuando de forma absolutamente
corporativista na medida em que não buscava defender sua população, mas se constituir como
potência imperialista. O poder do Estado espanhol estava em jogo e houve convocação dos
reservistas para atuar in loco em suas investidas coloniais. Evidentemente, a postura da Coroa
não agradou nem a espanhóis nem às nações que viviam dentro da Espanha.
A convocação de uma greve geral desde Madrid, a ocorrer em 02 de agosto 1909,
deu início à Semana Trágica: foi a partir dessa exortação que o partido Solitaritat Obrera, de
Barcelona, decide agir localmente e antecipar sua participação para 26 de julho. O movimento
levou a um aumento de consciência dos operários espanhóis, que passavam a se posicionar de
forma mais ativa politicamente. O crescimento da consciência de classe pelos operários, porém,
não foi seguida por toda a sociedade espanhola; fato que os intelectuais da geração de 98 fazem
questão de ressaltar em seus escritos de forma a desencorajar possíveis entusiastas, como fica
claro na passagem de Ortega y Gasset em texto da década de 1920 (2013, p. 85):
Em 1917 tentaram operários e republicanos uma revoluçãozinha. O desmandamiento
militar de julho os havia feito crer que era o momento. O momento de que? De
batalhar? Não, ao contrário: o momento de tomar posse do Poder público, que parecia
jazer em meio ao córrego, como res nullius. Por isso, aqueles socialistas e
republicanos não quiseram contar com ninguém, não chamaram com palavras
fervorosas e de elevada liberdade ao resto da nação. Supuseram que quase todo o
mundo desejava o mesmo que eles, e procederam a dar o “grito” em três ou quatro
bairros [apenas] dentre tantas outras populações. (tradução nossa )
126
125
Setores da sociedade que defendiam o anarquismo, socialismo e/ou republicanismo. 126
Do original: “En 1917 intentan obreros y republicanos uma revolucioncita. El desmandamiento militar de julio
les había hecho creer que era el momento. ¿El momento de qué? ¿De batallar? No, al revés: el momento de tomar
posesión del Poder público, que parecia yacer em médio de Arroyo, como res nullius. Por esto, aquellos socialistas
y republicanos no quisieron contar con nadie, no llamaron con palabras fervorosas y de elevada liberalidad al resto
de la nación. Supusieron que casi todo el mundo deseaba lo mismo que ellos, y procedieron a dar el “grito” en tres
o cuatro barrios de otras tantas poblaciones.”. A partir da passagem lembramos que a sociedade política da
Espanha à época se dividia em duas frentes: monarquistas e conservadores; e socialistas, republicanos e
anarquistas.
55
Note-se que a convocação da greve toma maiores proporções justamente em
Barcelona127
, onde cada vez mais há uma percepção de diferenciação de si frente ao espanhol.
Defender-se de uma suposta tirania espanhola passa a ser um traço desde já naquele que se
reconhece cada vez mais como catalão – distintos em etnia, linguagem e costumes dos
espanhóis. A resistência dentro desse contexto tem caráter principalmente existencialista por
meio da expressão de uma cultura própria, dissipada social e abertamente. Contra a cultura
dominante surgem assim os movimentos de contracultura em Espanha, que se ocupavam em
esclarecer a população espanhola por meio das artes, da literatura e da política. O fazem através
da educação e da reforma política, ou seja, via movimentos sociais. Diz Antonio Machado, um
dos autores regeracionistas de relevo:
Sabemos que a pátria não é uma propriedade herdada de nossos avós, boa apenas para
ser defendida na hora da invasão estrangeira. Sabemos que a pátria é algo que se faz
constantemente e se conserva só através da cultura e do trabalho. O povo que descuida
dela ou a abandona perde-a, ainda que saiba morrer. Sabemos que não é pátria o solo
que se pisa, mas o que se lavra; que não basta viver sobre ele, mas sim para ele: que
ali onde não existe marca do esforço humano não há pátria, nem sequer região, apenas
uma terra estéril, que tanto pode ser nossa como dos abutres ou das águas que sobre
ela voam. (MACHADO apud CATALÃO, 2016, s/p)
O movimento de 1909 foi reprimido pela força depois de uma semana, embora sua
repercussão tenha se estendido por um tempo muito maior – até mesmo sob a forma de
repressão política. À época governava o conservador Antonio Maura, que ao fim desse ano
perdeu o apoio do Rei Alfonso XIII. A queda de Maura levou ao desmembramento do partido
conservador em diversas correntes (BUADES, 2013b). A divisão das ideologias em Espanha
era iminente, e estarão claramente presentes nos eventos posteriores. Mesmo na atualidade,
todos esses eventos que trazemos se mostram nas políticas discutidas em Espanha, presentes
nas discussões identitárias, educacionais e culturais. Mais uma vez nota-se o cunho
sociopolítico da literatura produzida à época, fundamental para a conformação e compreensão
da identidade espanhola – e a partir dela, das pequenas nações que vivem em território
espanhol.
127
No livro de George Orwell, Homenagem à Catalunha, o escritor deixa claro que a postura catalã sempre foi na
contramão dos abusos espanhóis: o socialismo era uma ideologia crescente naquele momento, em oposição aos
fascismos, e como minorias que já se sentiam, os catalães defendiam sua existência se opondo a um centralismo
espanhol que os subsumiria. Não é à toa que os partidos políticos com forte presença catalã carregam
frequentemente em suas insígnias “trabalhadores”, “socialistas”, “esquerdas”, “republicanos” – PSOE, ER, etc.
56
3.1.3. A década de 1920: a ditadura de Primo de Rivera
A Espanha manteve postura neutra durante a I Grande Guerra, embora houvesse
dentro do país partidários a favor de ambas as partes da Guerra. Também por isso, a indústria
espanhola foi beneficiada, pois negociava com todos os lados, fornecendo aos combatentes
material bélico, têxtil, calçado, alimentos e minério (BUADES, 2013b). A seu turno, as massas
populares não foram direta e rapidamente contempladas, havendo muita pobreza e desigualdade
na Espanha. Essa realidade social, unida à instabilidade vivida pelos espanhóis e combatida
pela intelectualidade do país levou à identificação com o movimento operário que levou à
vitória dos bolcheviques na Rússia e que levou, posteriormente à formação da URSS a partir da
Revolução Russa (1917). Os eventos internacionais tiveram, portanto, impacto forte na
intrahistória espanhola, polarizando as forças anarquistas e socialistas dentro de sua sociedade.
Os socialistas acabaram por concentrar-se em dois partidos políticos, o Partido Socialista
Operário Espanhol (PSOE) e o Partido Comunista Espanhol (PCE), fruto de uma cisão do
PSOE no começo da década de 1920 (BUADES, 2013a) e de seguidores fieis das diretrizes da
III Internacional128
(BUADES, 2013b).
O movimento operário à entrada da década de 1920 era, assim, muito intenso.
Greves eram constantes, bem como a repressão armada a essas lutas. Os anarquistas radicais se
organizaram num grupo chamado Los solidarios, que acirrou as animosidades internas. Tortura
e execuções dos sindicalistas faziam parte do combate do governo espanhol. Enquanto isso, a
Guerra do Marrocos prosseguia, com a baixa de mais de 10 mil soldados em 1921, na Batalha
de Annual. O evento acirrou o desgosto popular com o regime da Restauração de Afonso XIII,
o que levou, em setembro de 1923, ao pronunciamento de Miguel Primo de Rivera, o capitão-
general da Catalunha, contra o governo central. Numa tentativa de salvar a monarquia
espanhola, Alfonso XIII dá poder a Rivera, com o apoio do regeracionistas – uma ditadura
militar, acreditava-se, poderia ser benéfica à nação (BUADES, 2013b).
Rivera combate com violência os anarquistas, mas busca uma aproximação com
os socialistas dando proteção social aos trabalhadores. Quanto à política doméstica, o ditador
reprime os movimentos autonômicos espanhóis, acabando com a liberdade com que as regiões
separatistas gozavam desde o século anterior, cada uma com um Estatuto próprio reconhecido
pelo poder central espanhol. Não obstante, proibiu o uso público de outras línguas que não a
128
Também conhecida como Comintern ou como Internacional Comunista, foi a organização bolchevique
leninista para reunir os diversos partidos comunistas de diferentes países do globo.
57
castelhana129
. Em termos de política externa, Rivera constituiu um diretório civil, responsável
por reformas econômicas significativas, que objetivavam aumentar a relação comercial e
diplomática com territórios hispânicos ultramarinos, enviando uma imagem de Espanha
moderna ao mundo (BUADES, 2013b).
A ditadura de Rivera não sobreviveria muito tempo: em 1926 já dava sinais
visíveis de desgaste, com o aumento do número de movimentos contra o regime. A liberdade e
a democracia eram largamente defendidas pelos intelectuais, alguns deles exilados por defender
suas ideias. Alfonso XIII, percebendo o crescimento da insatisfação contra o governo retira o
apoio ao capitão-general, que apresenta sua demissão em 1930, tentando, no entanto, manter
uma ditadura em termos mais brandos (a dictablanda). Dois militares foram encarregados do
governo, cada um a sua vez, primeiro o general Berenguer e depois o almirante Aznar. Como
nenhum deles fora bem sucedido para liderar a Espanha, convocou-se o primeiro plebiscito
desde o golpe de 1923; ao que seguiram eleições locais, em abril de 1931. Os republicanos
foram maioria em todas as capitais, exceto nas áreas rurais, onde ainda predominava o
caciquismo. Nessas regiões os partidos dinásticos venceram as eleições. Em 14 de abril de 1931
diversas localidades proclamaram a República, ao que seguiu a renúncia da Família Real
espanhola e seu exílio voluntário em Roma (BUADES, 2013b). Era o início da Segunda
República.
3.1.4. A década de 1930: a Segunda República espanhola
Uma nova Constituição foi promulgada em 1931, estabelecendo a Segunda
República espanhola. No texto constituinte, havia uma tentativa de responder às reivindicações
dos republicanos e socialistas, o que foi visto com desdém pela direita espanhola, que via
crescer na Europa os movimentos antidemocráticos. Ao mesmo tempo, o momento econômico
era ruim, com as repercussões da Crise de 1929 chegando a todos os países capitalistas. No
caso da Espanha, devido ao fato de sua economia ser majoritariamente agrícola e relativamente
fechada130
, teve efeitos reduzidos, o que não é o mesmo que inexistente.
129
A língua castelhada é aquela que surgiu de um dialeto central espanhol, na região de Castela (por isso
castelhado, do espanhol castellano, de Castela). A maioria das demais regiões espanholas já na época faziam uso
desse “dialeto”, embora houvesse ainda outras regiões, como a Galícia, onde se fala o galego, o País Basco, onde
se fala o basco, o País Valenciano, onde se fala o valenciano, dialeto próximo e derivado do catalão e a própria
Catalunha, onde se fala o catalão. Não se entra aqui no mérito do percentual falado desses dialetos nas regiões em
questão. Hoje o castelhano é conhecido como a referência do idioma espanhol conforme falado na Espanha. 130
“Esta moderación de la Gran Depresión en España tiene su explicación en que se trataba de un país atrasado,
cuya agricultura ocupaba más del 40% de la población activa. Según Antonio Flores de Lemus (1929), la
58
A crise econômica desencadeou mudanças políticas e instabilidade social. Os
problemas econômicos contribuíram com a queda da ditadura de Primo de Rivera, que
arrastou consigo a monarquia. Ele abriu o caminho ao estabelecimento pacífico da
Segunda República. A instabilidade política e social foi geral na Europa. Nem mesmo
a guerra civil espanhola foi uma exceção, pois o rearmamento na Alemanha e na Itália
estavam já incubando outra guerra europeia. A Guerra Civil foi o prelúdio da Segunda
Guerra Mundial. (COMÍN, 2012, tradução nossa)131
Com as ações de governo centradas na mão de um regeracionista, Manuel
Azaña, o Conselho de Ministros acabou composto por outros intelectuais republicanos. Iniciou-
se um período de tentativa de reformas educacionais, agrárias e trabalhistas, como maneira de
agir em prol da República espanhola e da superação de seus problemas. Com o avanço da
reforma agrária, por sua vez, foram feitas alianças entre os grandes proprietários de terra, entre
os militares descontentes e entre a Igreja Católica132
, que culminaria em 1932 com um golpe
contra Madrid na capitania de Sevilha; evento que ficaria conhecido como Sanjurjada, devido
ao nome do general mentor da investida, Sanjurjo. O movimento foi combatido pelo
movimento operário e acabou frustrado. Outro fator motivador desse levante foi a aprovação do
Estatuto de Autonomia da Catalunha (BUADES, 2013a).
A Constituição de 1931 colocava a Espanha como um Estado integral ao mesmo
tempo em que reabria as portas para formação dos Estatutos de Autonomia, isto é, ela previa o
direito das regiões de constituírem autogoverno. A Catalunha foi a primeira região a recompor
seu status autonômico:
Em 14 de abril, o líder catalanista de esquerda Francesc Macià proclamou em
Barcelona “a república catalã no seio das repúblicas ibéricas” (a última grande
proclamação de iberismo do século XX). [...] Assim, em 1932 era reconhecida, com a
oposição dos partidos de direita espanholistas, a autonomia da Catalunha. (BUADES,
2013b, p. 164).
tendencia y los ciclos anuales del PIB venían marcados por la producción agraria. Ambas variables alcanzaron el
máximo en 1929. La mala cosecha de 1930 arrastró al PIB. La crisis industrial y de la construcción empezó al año
siguiente. El sector servicios no sufrió la recesión, pero su crecimiento se ralentizó. El PIB solamente disminuyó
un 6,4% durante 1930 y 1931, según las estimaciones de Leandro Prados (2010). Sectorialmente, la agricultura y
los servicios atemperaron las crisis sufridas por algunas industrias y la construcción. La recesión no afectó a las
industrias de consumo (textil), cuya producción aumentó gracias al crecimiento de los salarios reales.” (COMÍN,
2012). 131
Do original: “La crisis económica desencadenó cambios políticos e inestabilidad social. Los problemas
económicos contribuyeron a la caída de la dictadura de Primo de Rivera, que arrastró consigo a la monarquía. Ello
despejó el camino al establecimiento pacífico de la Segunda República. La inestabilidad política y social fue
general en Europa. Ni siquiera la guerra civil española fue una excepción, pues el rearme de los fascismos en
Alemania e Italia estaba ya incubando otra guerra europea. La Guerra Civil fue el preludio de la Segunda Guerra
Mundial.” 132
A Regilião por várias vezes anda ao lado do nacionalismo. No caso espanhol não é diferente: “Em España, el
régimen franquista no sólo pone fin a la separación de la Iglesia y el Estado instaurada por la República em 1931-
1933, sino que decreta el catolicismo como <<única religión de Estado>>. La Constitución española de 1978
establece que, em cambio, que ninguna confesión tiene carácter estatal, pero mantiene el concordato firmado em
1953 com la Iglesia católica.” (SELLIER, 2008, p. 31). Note-se que tal acordo ocorreu durante a ditadura
franquista.
59
A Generalitat133
, instituição autonômica medieval catalã foi restaurada, dando à
Catalunha governo e parlamento próprios; garantindo-lhe algumas competências, como polícia
própria (os mossos d’esquadra), saúde, educação, habitação, etc. (BUADES, 2013a). Macià foi
o primeiro Presidente da Generalitat. Por sua vez, o País Basco também tentou sua autonomia,
embora tenha encontrado mais resistência que os catalães: somente o conseguiram em 1936, às
vésperas da Guerra Civil Espanhola. Também a Galícia somente em 1936 promoveu um
plebiscito sobre seu estatuto de autonomia. O levante militar que ocorreria em julho, mais
especificamente no dia 18 de julho daquele ano, frustraria as tentativas dos projetos
autonômicos.
A questão militar também era veemente na Segunda República. Havia excesso de
generais e mal preparo técnico do seu corpo. Também careciam de equipamentos, sendo, em
sua maioria, obsoletos. Os próprios generais eram em “sua maioria monárquicos e
conservadores e viam com desconfiança os aspectos socializantes e anticlericais da República.”
(BUADES, 2013b, p. 165). Vale dizer sobre isso que tais aspectos que regiam o pensamento
militar à época eram derivados da mentalidade daquele que regia a República naquele
momento: tal era o pensamento dos regeracionistas, que negavam (ao mesmo tempo que
tentavam resgatar alguma parte) o passado espanhol – lembremos que Azaña estava à frente do
governo.
Azaña ofereceu aos comandantes que não se sentiam à vontade com o novo regime a
possibilidade de aposentar-se mantendo a patente e os salários. No caso dos generais
jovens, dos quais se desconfiava de sua submissão política (como Franco ou Mola), a
solução foi enviá-los a destinos longínquos, como África ou os arquipélagos, para
afastá-los das conspirações de Madri. Essas medidas seriam contraprodutivas a médio
prazo. Os generais aposentados ficaram com mais tempo disponível para conspirar
contra o governo, e os destinados à periferia tiveram sob seu comando as unidades do
exército mais combativas e melhor adestradas. [...] O golpe de estado frustrado de
Sanjurjo em Sevilha (agosto de 1932) deixava claro que o problema militar estava
longe de ser resolvido. (BUADES, 2013b, p. 165-166)
As primeiras eleições absolutamente universais na Espanha se deram em 1933,
em meio a convulsões sociais. Nelas, a direita, representada pela Confederação Espanhola de
Direitas Autônomas (CEDA), e a centro-direita, com o Partido Republicano Popular (PRP),
ganharam as eleições. Os anos de 1934 e 1935 ficaram conhecidos como o Biênio Negro, com
um movimento conservador e contra reformista predominando na Espanha. Foi também nessa
época que a Falange Espanhola (FE) surgiu, tendo como principal dirigente José Antonio Primo
de Rivera, filho do ex-ditador. A FE se inspirava no fascismo italiano de Mussolini. Outro
grupo fascista é fundado então, as Juntas de Ofensiva Nacional Sindicalista (JONS), que fundiu
133
Mais à frente no capítulo daremos mais visibilidade à Generalitat.
60
com a FE em 1934. O movimento fascista espanhol é ainda sutil antes da Guerra Civil
Espanhola, mas foi tomando forma na medida em que também os demais fascismos europeus
cresciam em relevo político. Mais tarde outros grupos com tendências fascistóides, os
monarquistas da Renovação Espanhola (RE) e da própria CEDA, recrudescem seus
posicionamentos. Também partidos anarquistas, como a CNT (Confederação Nacional do
Trabalho) e a FAI (Federação Anarquista Ibérica), se radicalizam (BUADES, 2013b).
Os socialistas se dividem, havendo os partidários de uma saída revolucionária e
outros mais moderados, que buscavam o afastamento da direita no poder. Em 05 de outubro de
1934 eclode um levante socialista que buscava recuperar conquistas anteriores às eleições de
1933. No entanto, uma força de direita retornava agora da África, e auxiliou na repressão do
movimento, liderados pelo general Francisco Franco. Já se via, a partir desse evento, uma
amostra do que seria a Guerra Civil:
Em Barcelona misturou-se o esquerdismo com o nacionalismo. O governo catalão há
tempos estava ressentido com a política do governo de Madri, já que desde a chegada
ao poder dos conservadores o processo de descentralização havia sido freado. Uma lei
sobre arrendamentos rústicos provocou uma controvérsia entre as duas
administrações, levando um tema aparentemente secundário a níveis insuportáveis de
tensão durante o verão de 1934. (BUADES, 2013b, p. 169-170)
Devido a divergências entre cedistas e radicais direitistas, associadas às
denúncias de corrupção do governo, enfraqueceu-se o governo de Lerroux, então no poder.
Enquanto isso, a esquerda se organizava sob orientações de Stálin, que buscava, a partir de uma
união da esquerda europeia, combater os crescentes movimentos fascistas. Dessa coligação, na
Frente Popular (FP), participavam republicanos esquerdistas, socialistas, comunistas,
trotskistas, dentre outros partidos nacionalistas134
ou regionalistas, e os anarquistas. Em 1936,
sob novas eleições, a FP chega ao poder na Espanha.
Apesar da vitória nas urnas, a cena política espanhola não era de calmaria: os
anarquistas continuavam insatisfeitos, agora acompanhados dos radicais de direita. A FP perdia
o controle da situação política, o que predispunha o Exército a intervir, mesmo porque a
violência a políticos e sindicalistas era frequente. Nos dias 18 e 19 de julho de 1936 tem, assim,
início a chamada Guerra Civil espanhola, com militares fazendo frente ao governo da
República (BUADES, 2013b).
134
Nacionalismo periférico, e não o que inspiraria mais tarde o golpe.
61
3.2. A Guerra Civil espanhola
A Guerra Civil espanhola foi um conflito interno que durou de 1936 a 1939 entre as
forças que já conflitavam antes, a saber, os nacionalistas de direita – fascistas –, conservadores
e monarquistas; e os socialistas, liberais-democratas e anarquistas135
. O levante foi liderado
pelos militares de direita, que buscavam dar um golpe de estado e retirar as forças republicanas
da Frente Popular136
que governavam a Espanha em 1936.
O golpe começou a ser pensado desde a África, com os militares que haviam sido
enviados ao protetorado de El Rif, no Marrocos, ou exilados quando da formação da Segunda
República espanhola. Dentre esses militares alguns se destacaram, dentre eles estavam
Francisco Franco, que viria a se tornar o líder da revolução, com o título de Generalíssimo, e
futuro ditador espanhol após o fim da guerra; e Emilio Mola, um general de destaque.
Os apologistas da ditadura de Franco defenderam o levante militar baseando-se em
duas teses principais: a primeira afirmava que em 1936 o governo republicano havia
perdido totalmente o controle da situação, e, com isso, o país entrara em uma espiral
de violência; a segunda considerava que na Espanha estava sendo preparada uma
revolução social seguindo os moldes bolcheviques, revolução que só poderia ser
detida mediante um golpe de Estado preventivo. (BUADES, 2013a)
Tal tese é rebatida, no entanto, por muitos estudiosos do conflito em questão,
conforme deixa claro Salvadó (2005, p. 10):
[...] a despeito das afirmações dos oficiais rebeldes, a guerra não foi inevitável, mas
produto de um golpe ilegal e de seu posterior fracasso parcial. Apesar de todos os
erros cometidos pela classe governante republicana, os pretextos dos conspiradores
para justificar sua rebelião eram inaceitáveis. Certamente, em 1936, ocorriam
tumultos sociais e violência nas ruas. No entanto, a situação não era necessariamente
pior do que em outras épocas da Monarquia. Além disso, como na ascensão fascista ao
poder na Itália e na Alemanha, o colapso da ordem pública foi em grande medida
causado por baderneiros de direita. Ainda mais absurda foi a sugestão, difundida por
elementos próximos à insurreição militar, de que oficiais do Exército agiram para
impedir uma intimidadora conspiração comunista internacional; na verdade, segundo a
evidência dos primeiros dias da Guerra Civil, era claro que as diferentes milícias
republicanas, dos comunistas à Confederação Nacional do Trabalho (CNT), não
tinham armas, treinamento militar e sequer o desejo de tomar o poder de Estado.
De qualquer maneira, o conflito acabou ganhando contornos internacionais, pois
a conjuntura e posição estratégica espanhola o propiciavam. Na arena europeia, os fascismos se
135
A dificuldade de delimitação das duas partes da Guerra Civil Espanhola demonstra a complexidade do conflito,
que, na realidade, não foi um choque entre dois campos homogêneos, mas representativa de uma variedade de
inúmeros conflitos locais. Preston (2002), também chama atenção para o fato dessa complexidade, e de como o
lado franquista da Guerra Civil Espanhola fez uso desse mito historiográfico em seu proveito. 136
Representada pelos republicanos, liberais, democratas, socialistas, comunistas, anarquistas. Ganharam as
eleições em 1936 e subiram ao governo espanhol como a força republicana. Buades, autor espanhol que usamos
devido aos seus estudos sobre a Guerra Civil e o qual citamos algumas vezes, chama de rebeldes e nacionais os
direitistas pró golpe militar, embora nesse trabalho tenhamos preferido utilizar o termo golpista, que dá noção
clara de quem estamos falando. Da mesma forma, chamamos de “nacionalistas” os rebeldes pró golpe militar.
62
alastravam, com duas forças maiores: as forças hitleristas e mussolinianas. Os golpistas
espanhóis buscaram apoio de ambas as forças, mas quer por afinidade, quer por abertura, quer
por proximidade geográfica, Mussolini apadrinhou mais o movimento que Hitler137
. Apesar
disso, os nazistas alemães também chegaram a participar da Guerra Civil espanhola, na qual
também foi empregue armamento alemão138
. Também Salazar, ditador fascista português,
apoiava o golpe em Espanha. Do lado contrário aos autoritarismos de direita, a arena
internacional via crescer as forças soviéticas, as únicas do globo a combaterem de forma mais
contundente os fascismos. Os republicanos, devido até mesmo ao caráter das ideias defendidas
por sua frente, se identificavam mais com estes. Também o auxílio maior aos republicanos
vinha dos soviéticos.
Stálin, a seu turno, se dividia no papel que exercia na Guerra Civil Espanhola,
pois, a princípio, a prioridade era de um socialismo num só país – a URSS. No entanto, embora
não buscasse tais empreitadas externas, era impossível ignorar a expansão das direitas na
Europa, principalmente porque se preocupava com a expansão alemã – que buscava ampliar
sua área de influência e domínio também para o Leste Europeu, tenha-se em vista a política do
Lebensraum germânico139
, que dava uma desculpa à Alemanha a expandir seus territórios, o
que lhe conferiria maiores poderes, principalmente em termos estratégicos devido à localização
do território alemão, com difícil mobilidade entre França e Polônia, além de escasso acesso aos
Mares. Além disso, podiam perder sua influência sobre outros países do Ocidente, como a
França, ou ainda pior: poderiam forçar uma ofensiva aliada140
contra a União Soviética e em
acordo com os propósitos da Alemanha. Dessa forma, mesmo que não tenha sido a maior
preocupação de sua política externa, havia necessidade de mostrarem-se parceiros da burguesia
liberal antifascista. Com relações rompidas desde 1917, a URSS acaba restabelecendo as
137
“A sua influência [italiana] evidenciou-se não somente nos campos de batalha, mas também no crescimento
vertiginoso da Falange, fator que acelerou a fascistização do lado rebelde, que até então possuía contornos
políticos pouco claros. Hinos fascistas italianos como Giovinezza ou Faccietta nera eram cantados frequentemente
nos comícios falangistas, juntamente com o Cara al sol.” (BUADES, 2013a, p. 93). Ademais, tem-se que Hitler
gastou 215 milhões de dólares na incursão espanhola, enquanto Mussolini gastou 354 milhões de dólares. Parte
desses gastos acabaram sendo revertidos em forma de acordos comerciais favoráveis aos países investidores, como
a autorização de compra de direitos de mineração no território espanhol para Alemanha (SALVADÓ, 2005). 138
Uma das participações com maior repercussão por parte dos alemães foi o ataque aéreo a Guernica com a
Legião Condor. 139
A política do espaço vital alemão foi proposta pelo conselheiro do nazista Rudolf Hess, Karl Haushofer. Ele
consistia em legitimar a anexação de territórios necessários ao povo alemão. Isso remetia principalmente à questão
geopolítica (territorial, de movimentação, acesso a alimentos) e era sinônimo de expansão não apenas espacial,
mas ideológica, conferindo cada vez mais poder ao Partido Nacional-Socialista Alemão. Hitler já usara o termo no
seu livro Mein Kampf (Minha Luta), onde amplia esse território vital para todo o globo. Segundo Hitler, a raça
mais forte deveria e iria prevalecer, sendo uma questão de ordem natural. (TEIXEIRA, 2012) 140
O termo aliados aqui somente remete a pessoas que lutam em prol de uma causa comum, e não o termo que se
convencionou referir à força dos vencedores da I Guerra Mundial e que seriam conhecidas a partir da II Guerra
Mundial como Eixo: Alemanha, Itália e Japão.
63
relações diplomáticas com a Espanha com a eclosão e acirramento do conflito interno espanhol,
em agosto de 1936 (SALVADÓ, 2005).
Na mesma medida, a partir do temor de expansão da revolução de esquerda e
temendo uma guerra de maiores proporções, o Reino Unido (RU) defendia uma postura de não
intervenção. Diretamente influenciados por esta postura britânica, 27 países aderiram ao
Tratado de Não Intervenção (TNI) ainda em 1936. Assim, associada à postura anticomunista,
os britânicos pressionaram inclusive a França, então parceira comercial da Espanha e parceira
da URSS, a não vender armamento para o lado republicano. Segundo Julio Alvarez del Vayo
(apud SALVADÓ, 2005, p. 107): “o Quai d’Orsay, pelo menos em relação à Espanha, tornou-
se uma ramificação do Ministério das Relações Exteriores britânico.”141
. Essa não interferência,
na prática, acabou fortalecendo o lado dos nacionalistas142
. Seguindo as orientações de Londres
também os EUA acabaram apresentando um embargo moral de armas aos dois lados do
conflito espanhol, que daria origem, em 1937, ao Embargo Espanhol e à Lei de Neutralidade.
Sobre a postura estadunidense, coloca BUADES (2013a, p. 96):
A não intervenção dos Estados Unidos foi ainda mais fatal aos interesses da
República, porque não se limitou a não fornecer recursos ao governo democrático,
mas facilitou a exportação de material de guerra e combustível para o lado rebelde. Os
empresários estadunidenses apoiaram sem disfarces os generais sublevados e a Texaco
parou de fornecer petróleo à República e desviou seus carregamentos de óleo para a
refinaria que os rebeldes possuíam nas ilhas Canárias. Ford e General Motors
exportaram um grande número de caminhões aos nacionais, e entidades financeiras
dos Estados Unidos abriram linhas de crédito de vital importância ao triunfo da
sublevação.
Do lado alemão, havia interesse específico nas jazidas de tungstênio espanholas,
essenciais às blindagens dos carros de combate. Além disso, o cenário espanhol servia de
treinamento para a Luftwaffe. Do lado italiano, havia um interesse em dominar o Mar
Mediterrâneo: a posição da Espanha facilitava um controle do Estreito de Gibraltar, onde o
Reino Unido mantinha uma de suas bases aeronavais143
. “Gibraltar era, junto com Malta e
Alexandria, uma escala quase obrigatória na rota de comunicação entre a Inglaterra e a Índia
através do canal de Suez. O seu bloqueio garantiria à marinha italiana certo grau de vantagens
caso a Itália e o Reino Unido entrassem em conflito algum dia.” (BUADES, 2013a, p. 90).
141
Salvadó (2005, p. 119) diz ainda sobre a questão francesa na Guerra Civil Espanhola: “De fato, o governo
francês apresentava um quadro paradoxal, já que parte do governo buscava romper o embargo de armas que outros
ministros se empenhavam em cumprir.”. 142
“Joachim Ribbentrop, futuro ministro nazista das Relações Exteriores e na época embaixador alemão em
Londres, observou que um nome melhor para o NIC [TNI] teria sido “comitê de intervenção”.” (SALVADÓ,
2005, p. 109). 143
Lembremos que a Inglaterra por hora defendia as forças nacionalistas europeias como força de combater uma
expansão do socialismo soviético na Europa. De qualquer maneira, é interessante para qualquer líder ter maior
controle geográfico, portanto estratégico, de uma área tão relevante.
64
Na arena internacional se envolveu também o México, sob o governo de Lázaro
Cárdenas. No entanto, seus recursos eram bem menores do que o das grandes potências
internacionais. De todo modo, “as armas mexicanas chegariam em tempo para a defesa de
Madri, em novembro de 1936.” (BUADES, 2013a, p. 96). Quando a guerra parecia já vencida,
ainda em 1936, pelos nacionalistas, a intervenção mexicana chegou auxiliando fortemente o
lado republicano. O México, embora não gozasse de um arsenal tão potente quanto dos demais
países mencionados, servia de “fachada para comprar armas de países do Terceiro Mundo
(reenviadas então para Espanha)” (SALVADÓ, 2005, p. 111); além de enviar combustível,
alimentos, e roupas e de representar “[...] interesses diplomáticos republicanos em várias
nações onde seus funcionários do Ministério das Relações Exteriores tinham desertado e
passado para o lado dos rebeldes.” (Idem).
Outro ponto de destaque durante a guerra foi a participação de soldados
voluntários144
, compostos majoritariamente por civis ingleses e estadunidenses, em sua grande
maioria provenientes das classes operárias. Dentre esses voluntários, porém, chamou a atenção
a adesão, de modo significativo, de intelectuais, que, além de terem participado do lado dos
republicanos, escreveram obras referentes à experiência de batalha posteriormente. George
Orwell, literato inglês de renome, e Ernest Hemingway, norte-americano, são figuras de
destaque, tendo George Orwell escrito Homenagem à Catalunha, e Hemingway Por quem os
sinos sobram, Adeus às armas e Quinta coluna. Tal participação teve efeito positivo para o
lado republicano, pois elevou seu moral. Isso fez parte de um movimento internacional pró
republicano, ou antifascista, daqueles que percebiam que as políticas de não-intervenção
prejudicavam o equilíbrio das forças no palco da guerra. Dessa forma
[...] enquanto os governos se escondiam por trás da fachada da não-intervenção,
comitês de ajuda começaram a se formar nas cidades e vilas das nações democráticas,
recolhendo dinheiro, remédios e roupas para ajudar o sitiado povo espanhol.
Enfermeiras, médicos, motoristas de ambulância e outros se ofereciam como
voluntários para viajar à Espanha. [...] Um pequeno número de estrangeiros tomou
parte do combate desde o início. Muitos eram refugiados exilados, sobretudo
anarquistas alemães, ou tinham viajado para participar da Olimpíada dos
Trabalhadores, programada para começar em Barcelona, em 19 de julho, como
alternativa aos Jogos Olímpicos de Berlim. Pequenos grupos de voluntários
estrangeiros começaram também a cruzar os Pirineus para se juntar às milícias na
Catalunha ou em Aragão. Tanto o Partido Comunista francês como a CGT, o maior
sindicato Francês, estavam engajados em ajudar a República de todas as formas
disponíveis. Além disso, um grande número de intelectuais, escritores e artistas
chegava ao país para expressar sua solidariedade à causa republicana. (SALVADÓ,
2005, p. 112-113)145
144
“Cerca de 35 mil voluntários de 54 países diferentes se uniram às Brigadas Internacionais.” (SALVADÓ, 2005,
p. 127). 145
CGT é a sigla para Confédération Générale du Travail: confederação de sindicatos franceses (SALVADÓ,
2005, p. 15).
65
Houve também ajuda financeira por parte dos intelectuais. Em Hollywood
roteiristas, atores e diretores promoveram eventos abertos ao público para arrecadação de
dinheiro, que poderiam comprar remédios, alimentos, etc. Também as artes plásticas
imortalizaram a Guerra Civil Espanhola: o próprio Picasso, um dos pintores de maior renome
internacional, foi partidário dos republicanos, tendo denunciado os horrores ocorridos em
Guernica146
no seu quadro homônimo, exposto num evento pró República, a Exposição
Universal de Paris, em 12 de julho de 1937 (BUADES, 2013a).
De maneira geral não houve uma preponderância de apenas uma das partes durante
todo o conflito: havia uma nítida percepção de vitória nacionalista dos republicanos. O avanço
das brigadas se deu gradualmente, com batalhas isoladas muitas vezes, e com ação aérea e de
artilharia147
. O pânico na população era constante, já que muitas vezes o alvo não era claro,
com ataques a civis (homens, mulheres e crianças) e a combatentes: os embates foram
constantes e brutais. O que no início tinha-se como uma guerra breve logo se tornou um
conflito longo, que duraria 33 meses, com inúmeros impasses e elementos-surpresa para ambos
os lados. Também a perda humana foi grande: há registros de quase meio milhão de mortos na
Guerra Civil Espanhola (SALVADÓ, 2005). A duração da Guerra Civil Espanhola também
demonstra que ela foi, embora doméstica do ponto de vista do campo de batalha, internacional:
a ligação da realidade local com o contexto internacional foi preponderante para a vitória de
Franco.
146
Falaremos mais sobre o incidente em Guernica no próximo capítulo. Aqui basta dizermos que houve forte
participação das forças nazistas. 147
Uma a uma as cidades com forças republicanas foram caindo, algumas mais rápidas que outras. Apesar de num
relato breve não parecer, os republicanos lutaram bravamente e a ajuda internacional a esse lado da guerra
certamente atrasou o golpe. Tem-se que o extremo Sul e o Norte caíram primeiro, com as cidades de Málaga,
Guadalajara, Guernica e Bilbao, que acabou com a rendição do País Basco. Mesmo após a rendição, a região
tentou uma independência a partir do reconhecimento internacional – da Itália e do Vaticano, mas não obteve
sucesso. Posteriormente houve ataques ao redor de Madrid, que apesar das inúmeras investidas permanecia
defendida pelos republicanos. Brunete e Belchite foram as primeiras cidades a cair nas regiões de Aragão e
Castela, seguida de Teruel. Após a queda de Teruel, os nacionalistas investem na derrubada da Catalunha, onde
encontraram muita luta e resistência dos republicanos. Em abril de 1938 a Espanha se vê realmente dividida em
duas Espanhas. As próximas localidades a caírem frente ao ataque dos rebeldes são as das localidades próximas ao
Rio Ebro, seguidas por fim da queda de Barcelona, em fevereiro de 1939. Por último, os nacionalistas conquistam
e entram em Madrid, em 28 de março de 1939, com Franco anunciando o fim da guerra em 1º de abril daquele ano
(BUADES, 2013a; BUADES, 2013b; SALVADÓ, 2005). Para visualização gráfica da evolução das batalhas
travadas na Guerra Civil Espanhola vide Anexo 1
66
3.3. Do Franquismo à redemocratização espanhola
O General Francisco Franco se proclama caudilho da Espanha com o fim da Guerra
Civil, em 1939, dando início ao período denominado franquismo, terminando apenas com sua
morte, em 1975. A Terceira República, que chega aos nossos dias, somente foi possível com
sua morte, quando é restaurada a monarquia Bourbônica na Espanha, marcada dessa vez pelo
Estado social, democrático e de direito. Em 1978 foi aprovada a última Constituição espanhola,
escrita após as primeiras eleições democráticas depois da GC. A Carta Magna pretendia agradar
franquistas e anti-franquistas, o que explicaria algumas lacunas e contradições desse documento
(GUIBERNAU, 2004, p. 72). Uma dessas contradições é encontrada no Artigo 2º da Carta, que
diz:
A Constituição é baseada sobre a união indissolúvel da Nação Espanhola, a pátria
comum e indivisível de todos os espanhóis, e reconhece e garante o direito à
autonomia das nacionalidades e regiões que a formam e solidariedade entre todas elas
(GUIBERNAU, 2004, p. 72, tradução nossa)148
Há, portanto, ao que se nota já na Constituição da Espanha, uma contradição no
que diz respeito a uma grande e única nação espanhola neste momento, constituída por sua vez,
por nacionalidades “menores”. Essa é uma discrepância que será visível também no chamado
Estatuto de Autonomia, que dá a cada nação espanhola o direito de se expressar e se manifestar
enquanto nação (GENERALITAT DE CATALUNYA, 2015). No caso da Catalunha, ponto
chave do estudo que fazemos nesse trabalho, esse Estatuto é guardado pelo partido
restabelecido Generalitat149
, que tem sua origem ainda na Idade Média, tendo sido proibido
durante o período franquista (Idem)150
.
148
Do original: “The Constitution is based upon the indissoluble unity of the Spanish Nation, the common and
indivisible patria of all Spaniards, and recognizes and garantes the right to autonomy of the nationalities and
regions forming it and solidarity between all of them”. 149
Segundo o Artigo 2 do Estatuto de Autonomia, “a Generalitat é um sistema institucional em que se organiza
politicamente o autogoverno da Catalunha” (PARLAMENT DE CATALUNYA, 2013, p. 21). Do original: “La
Generalitat es el sistema institucional en que se organiza políticamente el autogobierno de Cataluña.” 150
“El Pueblo de Cataluña há mantenido a lo largo de los siglos uma vocación constante de autogobierno,
encarnada em instituciones propias como la Generalitat –que fue creada en 1359 en las Cortes de Cervera- y em
um ordenamento jurídico específico recogido, entre otras recopilaciones de normas, em las «Constitucions i altres
drets de Catalunya ».” Disponível em: <http://web.gencat.cat/es/generalitat/estatut/estatut2006/preambul/>.
Acesso: 22 de junho de 2015.
67
3.3.1. O Franquismo
O Franquismo, antes de mais nada, caracterizou-se por dois elementos
fundamentais dos fascismos: o populismo151
e o nacionalismo extremos. Como visto no tópico
sobre a Guerra Civil espanhola, o lado fascista foi frequentemente chamado de nacionalista, e
isso tem sua origem justamente aí, na concepção mesma dessa linhagem política. No caso
espanhol, esse fascismo ganha contornos particulares, sendo um deles a intensa participação,
envolvimento e defesa da Igreja Católica da Espanha. Também havia uma “fidelidade absoluta
às classes dominantes e às elites tradicionais de poder”152
(SAZ, 1999, p. 4, tradução nossa).
Tais contornos já eram visíveis desde a Segunda República, tendo se acirrado ao longo da
Guerra Civil e solidificado após seu fim, em 1939. Muitos estudos abrangem o Franquismo,
porém, como iniciado em 1936, devido à sua forte presença já na Guerra Civil espanhola. Ao
analisar os elementos que antecederam a GC e seu desenlace, podemos perceber que, em
verdade, a guerra nada mais foi que o resultado imediato de um golpe de Estado que não deu
certo. Assim, foi necessário conquistar o país através das armas para que o regime franquista
pudesse ser estabelecido. Por sua vez, tampouco o partido político de Franco era homogêneo:
ele era sim o resultado de uma coalizão política, sendo o resultado da fusão da FE e das JONS.
Também foi resultado do fracasso da Confederação Espanhola de Direitas Autônomas, a
CEDA, que perdera as eleições em 1931 para a FP. Assim
Tratava-se, em efeito, de um governo em que estavam representadas, em áreas bem
definidas, todas as sensibilidades: o militar e a ordem pública para os militares;
educação e justiça para os católicos; o econômico para técnicos que podiam ser
militares, monárquicos, católicos ou inclusive falangistas, mas sempre bem
relacionados com os meios de negócios; e os ministérios “sociais” e o próprio partido
para os falangistas. (SAZ, 2016, p. 8, tradução nossa)153
Os Nacionais não iniciaram, portanto, como um partido com características
notadamente fascistas: foi um grupo político que se fascistizou, sob influência marcada e
inegável das presenças alemãs e italianas durante a Guerra Civil espanhola. Negavam, a seu
turno, o sistema partidário, a separação da Igreja e do Estado, a autonomia da Catalunha, do
País Basco e da Galícia, bem como iam de encontro à ideia de direitos civis para o povo
espanhol (GUIBERNAU, 2004). É mister chamar a atenção para a conjuntura internacional ao
151
Não desejamos entrar numa discussão aprofundada sobre os limites, desafios e problemáticas do populismo.
Aqui ele tem o sentido atribuído ao senso comum. 152
Do original: “su fidelidad casi absoluta a las clases dominantes y élites tradicionales de poder”. 153
Do original: “Se trataba, en efecto, de un gobierno en el que estaban representadas, em áreas bien definidas,
todas las sensibilidades: lo militar y el orden público para los militares; educación y justicia para los católicos; lo
económico para técnicos que podían ser militares, monárquicos, católicos o incluso falangistas, pero siempre bien
relacionados con los médios de negócios; y los ministérios “sociales” y el proprio partido para los falangistas.
68
final da Guerra Civil espanhola: o início da Segunda Grande Guerra (1939-1945). A partir
disso, é inevitável associar o crescimento do fascismo com o crescimento do Eixo na II GG, e
em seguida seu declínio, com a vitória dos Aliados, em 1945. Essa época determina o que se
chama de um “Primeiro Franquismo”.
Dentro dessa periodização, faz-se habitualmente pelo menos mais duas, de 1939 até
1942 e depois de 1942 até 1945, respectivamente relacionados com a ascensão do Eixo e seu
declínio. Saz (1999) afirma que, inclusive, o fato de a Falange querer lutar ao lado da
Alemanha na II GG trouxe um crescimento da indisposição tanto de partidários de Franco
quanto de seus opositores nessa primeira fase, corroborando uma justificativa dessa divisão
temporal. O que alegavam a favor de uma participação na II GG era, no entanto, que uma
revolução na Espanha só se daria a partir de uma intervenção na dita guerra.
A partir de 1941, porém, buscou-se ressaltar os aspectos espanhóis dentro do
Franquismo, que eram o tradicionalismo e a religiosidade, notadamente cristã católica – por
isso é habitual referir-se ao regime de então como nacional-católico. A Igreja tinha, dessa
maneira, um papel fundamental no novo quadro político da Espanha154
, que se restabelece
como Reino155
; esta monarquia reconstituída, no entanto, seria ela também franquista.
Começavam, assim, a se afastar do fascismo internacional para adequar-se a uma realidade
espanhola. Com isso, nascia uma nova Falange, que reforçava o poder de Franco.
De 1942 a 1945, Franco deixa de apoiar as potências do Eixo, ocultando sua
inclinação fascista e aproximando-se dos Aliados – o que, porém, não obteve muito sucesso
considerando que, finda a guerra, o regime de Franco foi condenado publicamente pela
Organização das Nações Unidas, a ONU, e submetido a um isolamento internacional até por
1955, quando finalmente torna-se parte da Organização (VELEDA, 2010). A partir de 1946,
com o fim da II GG, Franco tenta mais uma vez se aproximar dos Aliados156
, especialmente dos
154
“A participação da Igreja Católica foi intensa na censura, controle educativo, repressão moral, causando uma
confusão entre o âmbito religioso e o civil. Ela promoveu a anulação dos matrimônios civis realizados durante o
período republicano e de Guerra Civil, anulando inclusive suas inscrições no Registro civil; anulou a secularização
dos cemitérios; restabeleceu a remuneração por haveres eclesiásticos e a Igreja ficou livre de pagamentos de
impostos territoriais; criou assessorias religiosas em organizações falangistas, ministérios, centros de estudo, etc.”
(VELEDA, 2010, p. 10). 155
Em 1947 oficializa-se, a partir da Lei de Sucessão, que a Espanha é uma monarquia. Definia também o governo
do Estado a Franco, que governaria até impossibilitado ou até sua morte, tendo também o direito de designar seu
sucessor real (AGÜERO, 2000). 156
O faz adotando uma postura referida como “democracia orgânica”, a partir das Leyes Fundamentales del
Movimiento, com a criação do Fuero del Trabajo em 1938, do Fuero de los Españoles em 1945, da Ley
Constitutiva de las Cortes (1942), da Ley de Referéndum Nacional (1945) e da Ley de Sucesión, em 1946. A
mentalidade é nesse momento ainda muito conservadora e autoritária, predominando na economia a autarquia.
Esta política econômica adotava critérios protecionistas, tendo acirrado questões sociais no país, além de ter
propiciado o êxodo rural em direção à cidade. Houve também racionamento alimentar, inflação, déficit comercial a
partir do fechamento da economia espanhola ao exterior e elevada dívida pública (SAZ, 1999; VELEDA, 2010).
69
EUA, fazendo-o, porém, com dificuldade, já que sofria retaliações internacionais pela
inclinação de seu governo: não fez parte do Plano Marshall, o plano de ajuda dos EUA à
Europa pós Guerra, nem da ONU. Com a iminência da Guerra Fria (GF), há um reforço da
estrutura franquista espanhola, que começa a se fragilizar. Na medida em que cresce a
repressão aos antifranquistas na Espanha, cresce também o movimento desses grupos: nessa
época houve um auge do movimento guerrilheiro na Espanha (Idem).
A partir de 1950 a Espanha finalmente faz acordos (bilaterais) com os EUA, os
Pactos de Amizade e Colaboração com os Estados Unidos – ou Pacto de Paris –, marcando o
fim do isolamento internacional espanhol devido à própria conjuntura internacional: com o
estabelecimento da GF, a Espanha acaba se tornando um bom aliado anticomunista157
. Em
1957 há inclusive uma visita do Presidente estadunidense Eisenhower à Espanha, que consolida
as relações amigáveis entre os dois Estados158
. Diz Buades (2013b, p. 187): “A ajuda norte-
americana foi um dos pilares que sustentaram a ditadura espanhola e permitiram sua longa
duração.”. Em 1952 a Espanha entra para a Organização das Nações Unidas para Educação, a
Ciência e a Cultura (UNESCO) e em 1953 assina a Concordata com a Santa Sé, que estabelecia
a religião católica como a religião do regime, reconhecendo as personalidades jurídicas de
ambos (VATICANO, 2016). O reconhecimento do Franquismo foi outro ponto de destaque.
Este, porém, se deu a partir de importantes concessões à Igreja da Espanha (impostos e
questões legais), o direito de controlar a Educação e as Mídias, publicações e eventos públicos
(GUIBERNAU, 2004).
Na década de 1960, a Espanha é o próprio Estado corporativo de Wendt159
.
Seguindo diretrizes do Banco Mundial, foi implementado o Plano de Estabilidade Econômica,
de 1959, assentando as bases de um “milagre econômico”: houve a retirada de alguns entraves
à iniciativa empresarial e buscou-se manter a inflação em níveis aceitáveis (BUADES, 2013b).
Em 1963 foram promulgados também os Planos de Desenvolvimento, que fixavam metas para
o desenvolvimento econômico, priorizando a indústria, como forma de descentralizar a força
industrial da Catalunha e do País Basco. Também o turismo teve grande notoriedade na década
em questão, sendo um propulsor da economia espanhola, tendo como motor principal o setor de
Também nessa época cresceu a emigração dos espanhóis insatisfeitos com o regime e com a dificuldade por que
passava a Espanha. “Calcula-se que no começo de 1970 havia aproximadamente dois milhões de espanhóis
residindo no exterior.” (BUADES, 2013b, p. 189). 157
“Antes condenada, a Espanha passava agora a ser membro efetivo das Nações Unidas e acessava as
recomendações e linhas de crédito das instituições de Bretton Woods.” (BUADES, 2013b, p. 186). 158
Em 1953 foi acordado que os EUA forneceriam auxilio econômico à Espanha em troca da instalação de bases
militares aéreas e navais na Espanha. 159
Vide nota 20.
70
serviços. Com o crescimento da economia espanhola, os espanhóis se afastaram dos debates
políticos, tendo Franco comemorado, em 1964, “25 anos de paz” (Idem).
Em julho de 1969, Franco apresenta às Cortes espanholas (o Conselho de
Ministros) seu sucessor: Juan Carlos de Bourbon, neto do rei Alfonso XIII160
. Este recebe,
então, o título de Príncipe da Espanha. Com a morte de Franco, em 1975, Juan Carlos assume o
trono espanhol, sendo declarado Rei da Espanha (GUIBERNAU, 2004). Abaixo do Rei havia
ainda três vice-presidências, assumidas por generais, que deveriam, na visão de Franco, e
segundo as bases legais de seu governo, dar continuidade ao regime. Além disso, vários oficiais
ocuparam as Cortes, os Conselhos do Reino e governos regionais. As reformas políticas que se
seguiram foram chamadas por isso de reforma pactada ou ruptura pactada, devido à sua
natureza (AGÜERO, 2000).
3.3.2. A redemocratização na Espanha
A redemocratização da Espanha é concebida como o período de descentralização
política conforme precedido pelos moldes ditatoriais do Franquismo, ou seja, uma transição do
período franquista para democracia. No caso espanhol, esse período não é marcado por grandes
alterações econômicas, mas antes da percepção política dos espanhóis161
. Dentre essas
mudanças, destacamos a retomada do respeito às diferenças nacionais162
existentes entre os
espanhóis, negadas no período franquista. Assim, nessa nova fase, “apesar da violência
micronacionalista, o reconhecimento dos direitos das minorias nacionais progrediu na
Espanha” (MCDONOUGH, BARNES, PINA, FIGUEIRA-MCDONOUGH, 1992, p. 190).
Outro ponto a ser observado ao falarmos da redemocratização espanhola se refere à
participação política das massas, representando a diversificação da sociedade civil. Logo,
também o pluralismo político é recuperado163
, no entanto, não de maneira imediata: “enquanto
a ditadura desapareceu com a morte do ditador, a governança pública e as instituições estatais
160
Deposto em 1931. 161
Isso se deve ao fato de que desde a década de 1960 a Espanha já vinha tendo bastante prosperidade. Conforme
afirmam McDonough et al. (1992, p. 202): “O desenvolvimento estrutural, que começou no início da década de
60, transformou o país numa das doze maiores economias industriais do mundo e num membro pleno da
Comunidade Econômica Européia.”. 162
Referentes ao sentimento de pertença nacional. 163
Um dos seus sinais é o crescimento na filiação a (novos) partidos políticos. Também crescimento participativo
em sindicatos e organizações voluntárias podem ser vistos como expressão de uma democracia mais plural e
estável (MCDONOUGH et al., 1992).
71
permaneceram intactas.” (GUIBERNAU, 2004, p. 71, tradução nossa)164
. Apesar disso já em
1976 o movimento sindicalista foi legalizado, juntamente com a União Geral dos
Trabalhadores (UGT), socialista, e do Partido Comunista Espanhol, o PCE (AGÜERO, 2000).
Isso é um dos aspectos mais marcantes da redemocratização, pois de uma forma geral, tal
movimento segue em direção a uma despolarização ideológica, que, por sua vez, “reduz a
tendência a conflitos de soma zero e promove a tolerância e a negociação” (DAHL, 1971 apud
MCDONOUGH et al., 1992, p. 191).
Um estímulo à diminuição de atritos sociais no caso espanhol é a memória dos anos
da Guerra Civil, que trouxe tanta dor para o povo, sem alcançar os objetivos políticos
almejados; ainda, a lembrança da repressão vivida nos anos do Franquismo também existe, o
que pode justificar uma preferência por posições políticas moderadas na Espanha. Assim,
“questões econômicas passam a ser mais importantes do que pontos de vista
caracteristicamente esquerda-versus-direita em relação a questões econômicas”165
(FIORINA,
1981 apud MCDONOUGH et al., 1992, p. 205).
Guibernau (2004) também aponta que uma Espanha totalitária não estava de acordo
com os valores internacionais, e, portanto, que sua redemocratização não pode ser apartada
desses valores: o nacional-catolicismo estava obsoleto e a sociedade espanhola se encontrava
isolada ideologicamente do resto da Europa desde a Guerra Civil Espanhola. Também “o
impacto das novas tecnologias, comunicações e a industrialização tornou impossível silenciar
as inúmeras vozes crescentes que pediam pela reforma democrática. Novos valores e estilos de
vida emergiram e colocarão em questão estruturas políticas e sociais obsoletas”
(GUIBERNAU, 2004, p. 71, tradução nossa)166
. Uma das interpretações da urgência da reforma
partiu, portanto, de uma crise da autoridade franquista iniciada durante o próprio governo de
Franco167
.
164
Do original:“[...] while the disctatorship disappeared with the death of the dictator, the public administration
and the state institutions remained intact.” 165
Apesar disso, os independentistas catalães toquem nesse aspecto como uma de suas reivindicações, dizendo que
a Catalunha perde soldo para os espanhóis devido à maior quantidade de arrecadação, dada a força econômica da
região. 166
Do original: “The impact of new Technologies, communications and industrialization made it impossible to
silence the increasingly numerous voices calling for democratic reform. New values and lifestyles emerged that
questioned obsolete political and social structures.” 167
Segundo Agüero (2000), a transição ocorreu de modo quase natural até pelo papel que os militares vinham
exercendo no governo de Franco: o regime havia se tornado civil. O autor coloca: “O facto de um regime ser civil
ou militarizado afecta a capacidade dos militares para definir ou influenciar significativamente a agenda de
transição e impor condições prévias que os protejam e que perdurem para além do regime autoritário. Os militares
preservam melhor as suas capacidades quando a transição se faz de um regime autoritário militarizado e não de um
regime autoritário civil.” (AGÜERO, 2000, p. 61).
72
As primeiras eleições democráticas na Espanha redemocratizada ocorreram em
1977, com alta mobilização popular168
e foram seguidas da implementação de uma nova
Constituição, em 1978, que consolidou o período de transição democrático da Espanha. A
Constituição de 1978 reconhece as nações dentro do próprio Estado espanhol, isto é, sua
existência e seu direito de autonomia, no Artigo 2. Em decorrência dele, foi criado um Sistema
de Comunidades Autônomas que restaurou de forma quase automática os Estatutos de
Autonomia da Catalunha, País Basco e Galícia169
. Falaremos adiante sobre a questão.
3.4. A Catalunha
A Catalunha é uma localidade a nordeste da Espanha, com acesso ao Mar
Mediterrâneo, que abarcou desde as regiões onde hoje se situa o país valenciano (Valência) até
o território occitano francês, ultrapassando os Montes Pirineus170
. Também abrangia a região da
Sardenha, onde ainda hoje é falado o catalão – principalmente no noroeste171
. Faz-se
necessário notar, ainda, que Andorra é o “[...] único país oficialmente catalão”172
(OLIVEIRA,
2000, p. 14) – não se inserindo, no entanto, nos limites que nos propomos a estudar, já que não
se refere ao mundo catalão em Espanha173
.
Já na Idade Média, devido à sua situação territorial, às margens do Mar
Mediterrâneo, a Catalunha era uma das partes mais avançadas da Europa, funcionando como
condutora cultural, econômica e política para toda Península Ibérica (HARGREAVES, 2000, p.
18). Esse caráter algo cosmopolita e industrial fez com que a região se desenvolvesse mais
rapidamente que os demais vice-reinos espanhóis, tendo inclusive um notório desenvolvimento
durante a Revolução Industrial Inglesa, ainda no século XIX (Idem, p. 19). É interessante notar
168
O apoio público se deu por meio de “[...] eleições e referendos que acabaram por afirmar e legitimar a reforma,
novas Cortes totalmente eleitas e uma nova Constituição democrática” (AGÜERO, 2000, p. 63). 169
Apesar disso, Guibernau (2004, p. 73) chama a atenção para o fato de que “although Catalonia, the Basque
Country and Galicia, which during the Second Republic had held plebiscites in favour of their own statutes of
autonomy, and which in 1978 were enjoying recently restored provisional autonomous regimes, immediately
gained ‘full autonomy’, other communities had to undergo a five-year period of ‘restricted autonomy’ before
doing so (Article 143 versus Article 151 of the Constitution). Onde full autonomy has been achieved, however, the
Constitution maked no disctinction between the different commuities[...]”. 170
Vide mapa da região da Catalunha na Idade Média, anexo 2. 171
Vide anexos 3 e 4. 172
Segundo Oliveira (2000): “Mas antes de falar sobre pesquisas em fronteiras e de sua relevância específica para
a nossa discussão sobre os caminhos e descaminhos da identidade, ainda quero permanecer na realidade catalã,
porém não mais na Catalunha espanhola, mas no único país oficialmente catalão: Andorra — situado entre
Espanha e França, um país inteiramente "de fronteira".”. 173
Apesar disso, ao falarmos mais propriamente do catalanismo enquanto movimento, trazemos o andorranismo,
com fins comparativos, demonstrando a existência de tipos diversos de nacionalismos e identidades.
73
que durante o mercantilismo, a Catalunha não tinha qualquer tipo de ganho, indo todo acúmulo
colonial para a coroa espanhola, de forma que se mantinha de maneira autônoma, não podendo
inclusive fazer uso coletivo dos portos espanhóis para suas rotas comerciais (Idem).
Após a guerra entre França e Espanha, em 1640, com o auxílio da França, a
Catalunha se fez independente, no entanto, perderia território para os próprios franceses, que
acabaram anexando as províncias ao leste dos Pirineus. O rei espanhol, então, recuperou a
Catalunha ocidental, por meio de nomeações à Câmara Municipal de Barcelona (Consell de
Cent) e para as Cortes (Corts), que passava a não receber apoio da Generalitat
(GENERALITAT DE CATALUNYA, 2015)174
.
Com a guerra de sucessão ao reino espanhol, em 1714, a Catalunha perde ainda
mais sua autonomia, após defender a Grã-Bretanha e seus aliados – e não a Espanha ou a
França, que lutavam pelo trono. Como ficou do lado perdedor, a Catalunha perdeu privilégios e
a partir do Decreto de Nova Planta – Decret de Nueva Planta, de 16.01.1716175
–, todos os
catalães tiveram que se submeter às leis de Castela, bem como ao seu centralismo e
absolutismo (GENERALITAT DE CATALUNYA, 2015; HARGREAVES, 2000). Também
passaram a ser taxados pela coroa espanhola, e tiveram sua língua, o catalão, proibido. O
aniversário de sua rendição à França e Espanha, o 11 de Setembro, é até hoje celebrado como o
Dia Nacional Catalão (La Diada), o que expressa em si uma ironia, marca catalã ela mesma
(HARGREAVES, 2000)176
.
É interessante que apesar dessas dificuldades a Catalunha até hoje é vista como
uma das regiões mais modernas da Espanha, principalmente devido ao seu papel de cidade
capitalista e industrialista empenhado ao final do século XIX e início do século XX, fato que os
174
Para mais informações ver: <http://web.gencat.cat/ca/generalitat/historia/historia_2/>. Acesso: 23 de junho de
2015. 175
“Por el decreto de Nueva Planta, publicado en Cataluña el 16 de enero de 1716, Felipe V configuró un régimen
político que excluía la representación de la sociedad catalana y reforzaba la preeminencia (ya característica del
funcionamiento de las instituciones reales en el Principado a lo largo del siglo XVII) de las autoridades militares
sobre las civiles y una asignación casi sistemática del gobierno de los corregimientos (demarcaciones substitutas
de las veguerías) a oficiales del ejército del rey. El gobierno provincial estaba basado en el dualismo entre capitán
general y Real Audiencia (que recibió como sede la Casa de la Diputación), donde la cabeza militar era a la vez el
presidente del tribunal civil, reunidos constituían el Real Acuerdo y, en la práctica gubernamental, los capitanes
generales tendieron a reducir la Audiencia a la condición de órgano consultivo. Las marcadas tensiones entre estas
dos autoridades, dirimidas ante el Consejo de Castilla con resultados variables, no modificaron el carácter
eminentemente exógeno y la tonalidad siempre represiva del aparato gubernamental del Principado hasta el final
de la vigencia de la monarquía absoluta (final intermitente entre 1808 y 1833).” Disponível no site oficial da
Generalitat, ver nota 12 para endereço eletrônico. 176
A Catalunha tinha um governo próprio desde 1359, quando os primórdios do que viria a ser a Generalitat
Català [no século XVI] constituíam uma comissão permanente, a Disputatio Del General, que dava à Catalunha
um estatuto de Principado, cujo governo era próprio. Foi Felipe V, em 1714, portanto, quem aboliu sua legalidade.
(HARRIS, 2004).
74
catalães gostam de mencionar, principalmente como justificativa para um independentismo da
região.
A Catalunha foi, ao final do século XIX até os anos 1930, a sociedade mais completa
e avançada na Espanha com um setor de classe média forte. É marcante que tantos dos
momentos chave da história moderna espanhola tenham se centrado em Barcelona: a
greve geral de 1902; a Semana Trágica de 1909; o movimento da Assembleia de 1917;
as “guerras armamentistas” de 1919-1920 e o lançamento do golpe do General Primo
de Rivera em 1923. A Catalunha, devido ao seu movimento operário e ao seu
nacionalismo fortes, permaneceu o território chave de preocupação do nacionalismo
espanhol no século 1940. (DOWLING, 2014, p. 8, tradução nossa)177
Hoje não há mais, no entanto, uma discrepância socioeconômica – sobretudo em
termos de desenvolvimento industrial – entre a Catalunha e o resto da Espanha, devido
inclusive às exigências da União Europeia (BUADES, 2013b). Apesar disso, as marcas dos
eventos vividos na região certamente deixaram uma marca e um legado narrativo para os
catalães. Uma outra questão é que, por ter recebido um grande número de migrantes178
, os
catalães da Catalunha acabam ocupando classes mais letradas e profissionais, sendo um
símbolo quase que aristocrático, além de bem visto socialmente ser originário da Catalunha,
falar o idioma (nacional) catalão, etc.; enquanto podemos dizer o contrário das classes mais
baixas na Catalunha: são normalmente originários de outras partes da Espanha, embora,
naturalmente, essa não seja uma regra infalível (HARGREAVES, 2000). Esse é também um
motivo que leva a cada vez mais às publicações em catalão de periódicos, livros, dentre outras
mídias, serem cada vez mais difundidas na Catalunha, somado à força nacional que trazem
consigo179
.
Naturalmente, durante a Ditadura de Franco (1939-1975) – que era um movimento
fascista e centralizador –, a natureza catalã foi duramente reprimida, bem como sua língua
nacional e, mais uma vez na história, o Generalitat. O General Franco foi bem sucedido em
177
Do original: “Catalonia was, in the late nineteenth century and into the 1930, the most complex and advanced
society in Spain with a strong middle-class sector. It is striking that so many of the key moments of modern
Spanish history were centered in the city of Barcelona: the general strike of 1902; the Tragic Week of 1909; the
Assembly movement of 1917; the ‘gun wars’ of 191901920 and the launch of the coup by General Primo de
Rivera in 1923. Catalonia, due to its strong labour movement and nationalism, remained the key territory of
concern to Spanish nationalism into the 1940s.” – gostaríamos de ressaltar que a edição Kindle a que tivemos
acesso foi uma amostra grátis da introdução e primeiro capítulos do livro de Andrew Dowling, viabilizados pelo
site Amazon, que consta apenas de 10 páginas. 178
De dentro da própria Espanha, na Era Moderna, mas de inúmeros povos por estar às margens do Mediterrâneo. 179
Outra questão que carrega esse símbolo aristocrata catalão é o fato de ela ter experimentado a Renaixença,
movimento intelectual influenciado pelos italianos, franceses e pelo romantismo alemão, que fez de sua arte e
literatura, principalmente a poesia, muito famosos. Esse é um motivo de constante orgulho para os catalães.
(HARGREAVES, 2000, p. 24). Muito embora as publicações de livros e jornais publicados em catalão tenham
tido crescimento expressivo, o governo não conseguiu o mesmo resultado positivo quando nos voltamos à
publicidade: propagandas e filmes ainda são majoritariamente feitos em castelhano (Idem, p. 34).
75
centralizar o governo espanhol, e via, nas diferenças nacionais, verdadeiros agravantes para a
integridade estatal. Nesse sentido, não apenas as peculiaridades catalãs foram perseguidas, mas
também as bascas e galegas – embora muito mais fortemente as duas primeiras
(HARGREAVES, 2000). Isso acirra os sentimentos nacionais dessas regiões, chegando com
força aos nossos dias: não deixemos de mencionar a repercussão mundial dos atentados do
ETA180
, revoltosos pró-nacionalistas do País Basco (BUADES, 2013b).
Com a morte de Franco, em 1975, há um retorno da monarquia na Espanha,
encomendada pelo próprio General, antes de morrer, que perdura até hoje (BUADES, 2013b).
No entanto, foi também promulgada uma nova Constituição Espanhola, em 1978, a última da
história do país. Na Constituição é explicitado o direto das nações espanholas de formularem
suas autonomias181
, de forma que está disposto no Capítulo Terceiro: “Das comunidades
autônomas”, Artigo 143 o que segue.
1. No exercício do direito à autonomia reconhecido no artigo 2 da Constituição, as
províncias limítrofes com características históricas, culturais e econômicas comuns, os
territórios insulares e as províncias com entidade regional histórica poderão aceder a
seu autogoverno e constituir-se em Comunidades Autônomas com arranjo conforme
previsto neste Título e nos respectivos Estatutos.
2. A iniciativa do processo autônomo corresponde a todas as Diputaciones
interessadas ou no órgão interinsular correspondente e às duas terceiras partes dos
municípios cuja população represente, ao menos, a maioria do censo eleitoral de cada
província ou ilha. Estes requisitos deverão ser cumpridos no prazo de seis meses desde
o primeiro acordo adotado com respeito a algumas das Corporações locais
interessadas.
3. A iniciativa, no caso de não prosperar, somente poderá reiterar-se passados cinco
anos. (CONSTITUIÇÃO ESPANHOLA, 1978, p. 41, tradução nossa)182
Assim, a partir desse texto, cada região espanhola que assim julgue necessário,
pode formular seu Estatuto de Autonomia. No caso catalão, o Estatuto foi escrito e promovido
pelo Generalitat. Suas leis (orgânicas) são as normas que orientam os aspectos jurídicos na
Catalunha, sendo sua regulamentação reconhecida pelo Estado espanhol. Sua última revisão foi
em 2006 (GUIBERNAU, 2004), tendo também havido outras versões, desde 1919 (então
180
Sigla para Euskadi ta Askatasuna (País Basco e Liberdade). O grupo surgiu em 1968 “com uma cisão de
radicais descontentes com a postura moderada do PNV” (BUADES, 2006, p. 319), o Partido Nacionalista Basco. 181
Conforme coloca Guibernau (2004, p. ix): “The death of Franco in 1975 signalled the transition of Catalan
nationalism from a clandestine resistance movement to a movement demanding self-government for Catalonia.” 182
Original: “Artículo 143. 1. En el ejercicio del derecho a la autonomía reconocido en el artículo 2 de la
Constitución, las provincias limítrofes con características históricas, culturales y económicas comunes, los
territorios insulares y las provincias con entidad regional histórica podrán acceder a su autogobierno y constituirse
en Comunidades Autónomas con arreglo a lo previsto en este Título y en los respectivos Estatutos. 2. La iniciativa
del proceso autonómico corresponde a todas las Diputaciones interesadas o al órgano interinsular correspondiente
y a las dos terceras partes de los municipios cuya población represente, al menos, la mayoría del censo electoral de
cada provincia o isla. Estos requisitos deberán ser cumplidos en el plazo de seis meses desde el primer acuerdo
adoptado al respecto por alguna de las Corporaciones locales interesadas. 3. La iniciativa, en caso de no prosperar,
solamente podrá reiterarse pasados cinco años.”
76
formulado pela Mancomunidad de Catalunya, devido à proibição de exercício do Generalitat à
época); outros anos seriam 1932 e 1979, já com a participação (financiamento) do Generalitat.
Ele foi referendado a partir da redação de vários documentos, escritos pelos partidos políticos
catalães, sendo finalmente aprovado pelo Parlamento da Catalunha, em 2005. Apesar de todo
processo, ainda houve recursos contra artigos específicos, alegando inclusive
inconstitucionalidade – sendo seus maiores críticos o Partido Popular, militantes do PSOE e
governos de outras Comunidades Autônomas (de Valência, Aragão, Múrcia, La Rioja e Ilhas
Baleares). Não obstante, foi aprovado e tem vigência até hoje (GENERALITAT DE
CATALUNYA; PARLAMENT DE CATALUNYA, 2015).
3.5. O Tratado de Maatricht
O Tratado de Maatricht foi assinado a 07 de fevereiro de 1992 em Maastricht,
Holanda. Ele foi fruto de negociações numa Europa que vivia o fim da GF, possivelmente um
dos momentos mais dramáticos desde o final da II Guerra Mundial. A recessão e o desemprego
cresciam, e movimentos separatistas germinavam devido ao fim da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS): assim, os europeus viviam um momento propício à crise
econômica, social e política; uma vez que a desintegração de inúmeras localidades era
iminente, além de um crescimento do nacionalismo (PRYCE, 1994).
Dentre as metas criadas pelo Tratado estão a livre circulação de pessoas, produtos,
serviços e capital, tendo sido também adotada uma moeda comum, o Euro (Artigo B, Tratado
de Maastricht, 1992). Substituindo a antiga Comunidade dos Estados Europeus (CEE), o
acordo previa auxílio quanto à estabilidade do Continente.
O Tratado da União Europeia (TUE) constituiu uma nova etapa na integração
europeia, dado ter permitido o lançamento da integração política. Este Tratado criou
uma União Europeia assente em três pilares: as Comunidades Europeias, a Política
Externa e de Segurança Comum (PESC) e a cooperação policial e judiciária em
matéria penal (JAI). Instituiu igualmente a cidadania europeia, reforçou os poderes do
Parlamento Europeu e criou a União Económica e Monetária (UEM). Além disso, a
CEE passou a constituir a Comunidade Europeia (CE). (PORTAL EUROPA, 2015)183
Não obstante as características econômicas, os cidadãos europeus passavam,
portanto, com a adesão ao Tratado, a compartilhar além da cidadania de seu país de origem, a
cidadania europeia, o que traz tantas benesses quanto traz críticas e problemas. Uma vez que
um Estado autoriza a entrada de um turista ou imigrante, este passa a ter também livre
183
O Portal Europa é publicado por instituições da UE.
77
circulação entre os países-membros, o que é certamente um motivo para atritos. É mister
ressaltar aqui, porém, que o Tratado de Maastricht prevê a cidadania comum, porém é o Acordo
Schengen que libera as fronteiras para visitantes portadores do visto europeu, recebidos ao
passar pela Imigração (normalmente concedida em aeroportos). Desta Convenção participam
também países que não ratificaram o Tratado de Maastricht, ou seja, países não-membros da
comunidade europeia (EUROPEAN COMISSION, 2015)184
.
Assim, embora seja um tratado com grande força econômica, enfrenta dificuldades
ao lidar com questões socioeconômicas de forma conjunta, uma vez que o auxílio político
(como através de forças pacificadoras, por exemplo), agrega e difunde seus interesses comuns
(PRYCE, 1994)185
sem considerar as peculiaridades que seus membros apresentam. Nos
últimos anos há muita controvérsia entre os membros da UE; exemplos são as questões
elementares em como tratar crises dentro de um quadro de liberação das fronteiras entre os
membros do Bloco e as recrudescências focais à economia comum – principalmente visíveis
em episódios como os do Grexit e Brexit. Muito do que traz a cisão entre as vozes discursivas
emerge justamente das formas culturais, na medida em que a cooperação econômica entre os
membros não considera as índoles nacionais (MORGENTHAU, 2003). É a percepção
individual, portanto, e o jogo de poder, as informações e interesses que, ao fim e ao cabo,
inviabilizam algumas medidas, ao esbarrarem nas crenças e expectativas dos participantes, bem
como na sua história e trajetória particulares – que por vezes esbarram com a do outro. Os
fundamentos morais e intelectuais de que gozam os Estados afetará inevitavelmente a forma
com que estes buscam ganhos individuais no jogo coletivo.
No próximo capítulo, abordando os últimos acontecimentos sobre a questão
independentista catalã, abordamos também como essa cidadania adicional europeia influencia a
forma como o europeu do século XXI, especificamente espanhol e catalão, passa a sentir sua
nacionalidade frente a essa nova configuração identitária186
. Não obstante, a dinâmica que
trazemos no próximo capítulo, sobre a construção do catalanismo e seu lugar em Espanha traz
184
Para mais informações visitar: <http://ec.europa.eu/dgs/home-affairs/what-we-do/policies/borders-and-
visas/schengen/index_en.htm>. Acesso: 28 de junho de 2015. 185
Lê-se: “These developments are welcome for a number of reasons, including the welfare gains they offer to
their citizens, and the prospect they hold out of more peaceful and harmonious relations between the states taking
part in them. Conflicts within a region can trigger much wider conflicts: in the case of Europe they led to two
world wars. Effective regional groupings are a necessary part of the architecture of a better-ordered world.”
(PRYCE, 1994, p. 06) 186
Guibernau (2004, p. 03) coloca que: “Identities act as mechanisms of social inclusion and exclusion, creating
imaginary limits between those who belong and those who do not belong to specific communities. Identities are
often strengthened by referring to the existence of a common enemy capable of bringing people together and
reinforcing a feeling of community among them.”. A autora continua especificando o caso catalão: “During the
Francoist period, and also in some other periods of Catalonia’s history, Catile – or sometimes Spain used as a
synonym of Castile – has been used as that external elemento against which the Catalans have often fought.”
78
novos valores ao debate, que culmina no questionamento do próprio conceito de identidade
nacional, na medida em que traremos agora a narrativa catalã, em oposição à já mostrada
espanhola. Finalizaremos o capítulo que encerra o trabalho com uma reflexão sobre todas essas
colocações.
79
4 A CONSTRUÇÃO DO CATALANISMO
A partir dos estudos sobre a formação do Estado moderno, Estado-nação,
nacionalismos e soberanias; e a partir da exposição breve sobre a história da formação do
Estado espanhol nos capítulos precedentes; passamos a uni-los, adicionando a história catalã de
forma mais abrangente, de modo a permitir a análise da situação espanhola-catalã.
Especialmente importante na nossa análise se mostraram a questão da linguagem e dos
elementos tomados por nacionais e que atribuíram identidade a cada um dos selves analisados.
Para acessar ambas as identidades, buscamos fontes originas e secundárias, algumas traduzidas
(Hermet, Guibernau), mas também usamos bastante material em original espanhol e catalão.
Para além de uma análise textual, de obras de estudiosos da temática, usamos as
poesias renascentistas catalãs, fizemos um estudo de sua estrutura política, concomitantemente
com a espanhola, e materiais bastante recentes que surgiram a partir dos últimos eventos
relativos a uma possível independência da Catalunha e seus desenlaces desde o último
plebiscito, feito em outubro de 2016, sob a tutela catalã do ex-Presidente Carles Puidgemont,
hoje exilado em Bruxelas. O Plebiscito de 2016 trouxe novas questões e acirrou os debates em
torno do tema, o que nos deu mais elementos de análise, bem como evidenciaram a situação
que a região vive hoje, demonstrando a relevância e atualidade de nosso debate. Passamos a
expor nossa pesquisa, a fim de que, na conclusão, façamos uma retomada de todos elementos,
trazendo algumas respostas e novas questões.
4.1 Os marcos culturais catalães
As discussões sobre cultura e política tais como estudamos na contemporaneidade e
como mencionado no capítulo segundo da presente dissertação, teve origem com o advento da
Modernidade, que retoma os estudos antigos e traz grandes avanços em termos científicos,
devido ao próprio caráter de enobrecimento da racionalidade e da ciência. Além desse aspecto,
a Idade Moderna traz os conceitos do Humanismo por meio dos movimentos do Renascimento
e do Barroco. Em decorrência do enobrecimento das técnicas e da racionalidade vemos surgir
os valores positivistas, que culminarão no próprio processo de afirmação das estruturas estatais
europeias, que demandava um conjunto de elementos e um certo fazer social.
A partir disso, as relações entre centro e periferia passam a ser estabelecidas, havendo
um movimento centrípeto em direção ao Mediterrâneo, onde ocorria grande volume de trocas
80
de mercadorias e onde se localizava o coração da Europa. Também a Península Ibérica,
próxima geograficamente e que dominava as artes marítimas à época, foi importante exportador
desse modelo social. Assim, a cultura ocidental187
é, a partir desse centro, difundida com força
aos demais povos que mantinham contato com os europeus. Ademais, a cultura da exaltação da
riqueza, das artes e da cultura deu ímpeto imperialista cada vez maior a esses povos, de maneira
que a cultura greco-romana, bem como a literatura latina, a filosofia e os modelos ideológicos
europeus dominaram grande parte do globo ao que chamaram de fenômeno civilizatório.
Com o advento da imprensa e sua expansão, a ideologia europeia passa a ser
disseminada com ainda mais força e alcance, satisfazendo a demanda civilizatória do centro da
civilização, isto é, criando um mercado que girava em torno de ideias que compartilhavam.
Para tanto, uma das estratégias, que supria tanto o desejo civilizatório quanto mercantilista, era
a adoção de uma língua franca, para que as impressões e documentos alcançassem o maior
número de leitores. Esta língua era o latim188
.
Não apenas o advento da imprensa escrita difundiu a cultura europeia – e romana, latina
–, mas também a exportação de um modelo universitário189
, arquitetônico, social, e de
memória. A música, os instrumentos musicais, a engenharia e até mesmo a religião europeia
não tardariam a ter presença em diversas partes do globo. As empresas da Igreja Católica, com
a Companhia de Jesus e marcos como as Grandes Navegações contribuíram para a
emancipação dessa cultura e seu fortalecimento. Não obstante, também houve difusão dos
sistemas métricos, de pesos e medidas, bem como do sistema jurídico romano, que logo
negociaria até mesmo as áreas de influência para cada povo190
. Nota-se, a partir disso, que a
ideia do poder, a expansão cultural e o poder civilizatório, do poder estatal, se conformam
como tal em seio europeu, justificando a importância da simbologia usada por esses povos há
milênios. Detendo eles os meios e os poderes que uniam boa parte dos territórios à época, bem
como as referências culturais, passaram a produzir também identidade na Europa e fora dela.
O reforço dos laços entre poder político e cultura é um dos traços mais característicos
da época da formação dos estados modernos. As relações de força, de domínio ou de
integração entre centro e periferia, entre governos centrais e poderes locais ou
187
Que é assim chamada pensando-se na Grécia como centro do mundo. 188
Não espanta que as literaturas clássicas romanas sejam também a inspiração para o movimento literário
romântico europeu (penso em William Blake, Lord Byron, Victor Hugo, Alexandre Dumas, Herder, Goethe,
Schiller, entre outros). 189
O modelo europeu já era difundido desde o século XII na região do Mediterrâneo, com o surgimento das
primeiras Universidades (PINHO, 2011). 190
Há uma retomada do direito romano, na medida em que o poder é centralizado na mão dos reis e retirado da
Igreja Católica, marcando novamente a entrada na Modernidade – ou a saída da Idade Média. São, pois, os reis e
seus conselheiros reais que dividem as novas fronteiras globais, principalmente nas regiões das novas colônias.
81
regionais, não apenas se deram nos terrenos político, institucional ou fiscal, mas
também em nível cultural e ideológico, criando todos os poderes, identidades,
símbolos e referências culturais. A arquitetura, as artes visuais, a história, o teatro ou a
música se converteram em instrumentos de propaganda e de legitimação, assim como
também em ferramentas que modelaram patriotismos e identidades. (SIMON, 2006, p.
393, tradução nossa) 191
Chamamos a atenção e convidamos o leitor a verificar os mapas presentes nos Anexos
para melhor visualização de como essa expansão se dá, e como a posição geográfica da
Catalunha se insere nesse movimento, sendo uma localidade estratégica e de grande interesse
aos detentores dos meios à época. É, portanto, em mais de um aspecto, atraente para a
influência de potências nacionais e nacionalizantes. Não obstante, devido à sua localização,
recebe influência de vários povos, o que se vê refletido em termos culturais e ideológicos,
marcando a construção e o surgimento de sua identidade e dos Estados modernos.
Compreender esse momento é essencial, pois ao estudarmos o catalanismo, um aspecto que se
sobressai é a importância da alta cultura para os catalães independentistas. Novamente cito
Simon (2006, p. 393):
[...] os movimentos culturais do Renascimento e do Barroco não se podem entender
sem o processo de afirmação das estruturas estatais, sem a atividade dos centros
corteses das grandes dinastias europeias, ou sem a produção do pensamento político,
jurídico e histórico das intelligentsias vinculadas aos centros de poder. (tradução
nossa)192
A partir do exposto fica clara a sensação de desconforto do catalão independentista
quando comparado ao espanhol médio: camponês, medieval, iletrado, inculto, bruto. Este é um
sentimento frequentemente narrado por seus nacionais, bem como pelos estudiosos do tema:
não há quem discorde que há uma percepção coletiva e compartilhada entre catalães de que
seus símbolos e marcas seriam diferenciados daqueles dos espanhóis, que lhe impuseram
domínio desde Aragão e Castela193
.
191
Do original: “El reforzamiento de los lazos entre poder político y cultura es uno de los rasgos más
característicos de la época de la formación de los estados modernos. Las relaciones de fuerza, de domínio o de
integración entre centro y periferia, entre gobiernos centrales y poderes locales y regionales, no sólo se dieron en
los terrenos político, institucional o fiscal, sino también a nivel cultural e ideológico, creando todos los poderes,
identidades, símbolos y referentes culturales. La arquitectura, las artes visuales, la historia, el teatro o la música se
convirtieron em instrumentos de propaganda y de legitimación, así como también en herramientas que modelaron
patriotismos e identidades.” (SIMON, 2006, p. 393) 192
“De hecho, los movimentos culturales del Renascimiento y del Barroco no pueden entenderse sin el proceso de
afirmación de las estructuras estatales, sin la actividad de los centros cortesanos de las grandes dinastías europeas,
o sin la producción del pensamiento político, jurídico e histórico de las intelligentsias vinculadas a los centros de
poder.” 193
Ver anexo 5 o mapa da expansão aragonesa-catalã. Essa expansão se deu ainda na Idade Média, entre os
séculos XI e XII, quando a Catalunha passa de um agrupado de condados, cujos laços dinásticos eram fracos, a
membro de alianças entre os senhores feudais. Esses condados tinham, dessa maneira, forma de políticas
82
Em oposição, Fábio Aristimunho Vargas, estudioso da língua e literatura
espanholas, que afirma que: “[...] de um modo geral a poesia basca e a poesia galega tendem ao
popular, de sua parte a poesia espanhola e a poesia catalã tendem ao erudito.” (VARGAS,
2009, p. 16). Isso leva a crer que a forma como o catalão vê a Espanha é de fato uma ideia que
foi sendo construída ao longo dos séculos, ou que em realidade eles se percebam mais eruditos
por terem tido acesso a mais arte em relação à Castela e em relação ao resto da Espanha.
Devido à sua posição no Mediterrâneo, lendo trechos e biografias dos maiores nomes da poesia
catalã, desde a Idade Média até a Guerra Civil espanhola, proposta do livro de Vargas
(2009)194
, percebemos que os autores trazem não apenas um relance claro de todos os
momentos históricos e artísticos catalães, como sua própria vida se mostra mais cosmopolita. A
título de exemplo, e comprovando nosso ponto trazemos três deles: Ramon Llull – dito o
Goethe catalão195
–, de Palma de Maiorca, viajou por Maiorca, África, França, Ilhas Baleares,
tendo deixado vasta obra em catalão, árabe latim e ocitano; Jordi de Sant Jordi, nascido em
Valência no final do século XIV, morre em Itália em 1423/24; Vincent Olcina nasce em Gorga
a 1731 e morre em Roma em 1809. Ainda, uma das canções populares catalãs apresentadas
recebe o nome de “O marinheiro” e consta do século XVI (VARGAS, 2009). A partir disso fica
mais claro perceber onde se vê tanta diferença entre catalães e espanhois196
.
4.1.1. As artes e a catalanidade
Considerando como arte toda expressão humana, as abordaremos desde sua
manifestação em textos, poesia e música até a arquitetura e esporte197
. Tais manifestações são
antigas na Catalunha, já que, como visto anteriormente, sua localização à margem do Mar
Mediterrâneo lhe deu acesso a inúmeras trocas que se davam na região, desde os mais remotos
dinásticas. Tais formações se viram necessárias principalmente frente às invasões muçulmanas – facilitadas, entre
outros, pela sua localização geográfica, com livre e direto acesso direto ao Mar Mediterrâneo. Antes desses
tratados com Aragão e Castela, a Catalunha era um território diferenciado de Castela-Languedoc, em que o
Arcebispado de Tarragona (hoje território catalão) exercia autoridade sobre as dioceses orientais da Península
Ibérica. (PASCUAL, 2007, p. 129). Não obstante, segundo Sellier (2008, p. 57), os catalães “[...] realizam com
total independência sua própria Reconquista, até o sul de Valência.”– do original: “[...] los catalanes realizan con
total independencia su propia Reconquista, hasta el sur de Valencia.”. 194
Poesia catalã: das origens à Guerra Civil. 195
Para mais informações, visitar o site do Institut Ramon Llull – www.llull.cat –, que também tem representação
no Brasil: www.ramonllull.net. 196
Escolhi colocar em itálico porque passo a identificar o espanhol agora não mais como o castelhano, mas como
todo o resto de Espanha, que não faz parte da Catalunha. Não incluo tampouco o basco, que se mostra bastante
distinto do espanhol, nem o galego. 197
Sobre este abordaremos, porém, ao final do trabalho, de forma breve, pois até mesmo um estudo próprias,
tantas são suas peculiaridades em Catalunha e Espanha.
83
tempos. A Catalunha goza de registros dessa influência sob a forma de pinturas rupestres –
como os de Ulldecona, Montblanc e os da Roca dels Moros em El Cogul, na província de
Lérida; que segundo especialistas representam rituais de fertilidade. Este é um dos melhores e
mais bem preservados sítios arqueológicos em toda Catalunha, sendo também um dos mais
divulgados. É constituído por 42 figuras pintadas e 260 elementos gravados em rocha (MUSEU
D’ARQUEOLOGIA DE CATALUNYA, 2019). A localidade faz parte da Red Europea
Primeros Pobladores y Arte Rupestre Histórico (REPPARP), constituindo uma rota de arte
europeia pré-histórica. Esses desenhos estão presentes ao longo de toda a costa mediterrânea
espanhola198
, já declarados como patrimônios culturais pela UNESCO em 1984.
Figura 1 - Museu d'arqueologia de catalunya. La Roca dels Moros d'El Cogul. (2019)
Por sua vez, durante a Idade Média, a música eclesiástica foi notória, com rituais que
seguiam a liturgia da Igreja Católica Apostólica Romana. Também a partir da poesia catalã da
Idade Média notamos presente a forma dos madrigais e cantigas populares (VARGAS, 2009).
Por meio do ritmo e da rima, os madrigais se constituem como estilo polifônico, demonstrando
também a influência da península itálica no dia-a-dia do catalão. Esse tipo de expressão
artística musical é característica do medievo e teria sofrido influência até mesmo dos
carolíngios199
, que alcançaram a costa mediterrânea ibérica na época do Sacro Império Romano
Germânico, indo até Tarragona200
. Tudo isto está presente na arquitetura tarragonesa, com
anfiteatros em modelo greco-romano, termas, etc. Em termos gerais catalães, vemos a
influência romana na construção das suas igrejas medievais:
As principais inovações foram substituir os tetos de madeira pelas abóbadas de canhão
de pedra, menos vulneráveis ao fogo. Em princípio, somente se abobadavam espaços
pequenos, mas mais adiante se aplicou a mesma técnica em naves grandes, com o
conseguinte fortalecimento da estrutura do edifício. O que se recebe o nome de
198
Arte rupestre del Arco Mediterráneo. 199
A Marca Hispanica (VARGAS, 2009, p. 102). 200
“Repare-se como a Catalunha, aberta ao mar, está pronta a alinhar-se, conforme os ventos da história, quer com
a França (como no tempo dos Carolíngios, e, mais tarde, na época dos trovadores e das Cortes de Amor), quer com
o Mediterrâneo (nos séculos XIII, XVI e XV), que, finalmente, com as regiões ainda não industrializadas das
Península, no século XVIII.” (BRAUDEL, 1983, p. 184)
84
“primeiro estilo romântico internacional” nasceu na Lombardia, onde se abobadava as
fendas das igrejas entre a abside e a nave (por exemplo, Santo Ambrósio de Milão). O
passo seguinte se deu na Catalunha, onde de abobadavam igrejas inteiras com
abóbadas de canhão (por exemplo São Vicente do Castelo, Cardona e a Abadia de São
Martin do Canigó). 201
(BOURDUA, 2007, p. 217, tradução nossa)
No caso da poesia catalã, achamos elementos interessantíssimos que testemunham a
história catalã e retratam a evolução do paradigma nacional catalão. Corroborando nossa fala
trazemos alguns nomes e fatos. Guillem de Berguedà (século XII)202
retrata em seus poemas as
guerras feudais da época, “retratando aspectos da vida catalã da segunda metade do século XII”
(VARGAS, 2009, p. 101); Cerverí de Girona (século XIII), que vivera nas cortes do visconde
Ramon Folc V de Cardona (1220 – 1276) e de Jaime I, o Conquistador (1208 – 1276), traz ecos
do ambiente e do pensamento da época (VARGAS, 2009). Ramon Llull, grande estudioso
catalão, recebendo o título de “escritor, filósofo, místico, teólogo e missionário maiorquino”
(VARGAS, 2009, p. 104) escreveu livros que utilizou na Universidade, como Art
demonstrativa203
; tendo ensinado e criado colégios de línguas orientais em várias universidades
e promovendo novas cruzadas e convertendo infiéis, uma vez que “[...] para se manter a ordem
e a coesão social, tornara-se então imperativo converter os novos habitantes ao cristianismo.”
(Idem, p. 106). Jaume March (Barcelona, 1335 – 1410) deixou poemas de amor e cavalaria, a
forma por excelência do medievo europeu como Jordi de Sant Jordi, cavaleiro e trovador
valenciano (final do século XIV – 1423/24). Ausiàs March (Valência, 1397-1459) “cultivava a
temática do amor cortês, [...] num estilo renascentista de reflexão introspectiva” (Idem, p. 109),
embora sua métrica já não mais priorizasse a musicalidade dos madrigais. Vargas (2009)
também traz canções populares como A canção do Conde Arnau, do século XV e O
marinheiro, do século XVI; ambos remetendo à época da Reconquista (VARGAS, 2009). Pere
Serafí, em verdade um grego que viveu em Barcelona, levou à Catalunha um pouco do
renascimento italiano, em forma de arte pictórica e por meio de textos, que seriam
201
Do original: “Las principales innovaciones fueron sustituir las cubiertas de madera por las bóvedas de cañón de
piedra, menos vulnerables AL fuego. En un principio, sólo se abovedaban espacios pequeños, pero más adelante se
aplicó la misma técnica a naves largas, com el consiguiente fortalecimiento de la estructura del edifício. Lo que se
conoce con el nombre de <<primer estilo románico internacional>> nació em Lombardia, donde se abovedaba la
crujía de las iglesias entre el ábside y la nave (por ejemplo, San Ambroglio de Milán). Al siguiente paso se dio em
Cataluña, donde se abovedaron iglesias enteras com bóvedas de cañón (por ejemplo, San Vicente de Castillo,
Cardona y San-Martin-du-Canigou.” (BOURDUA, 2007, p. 217). 202
Muitas das datas que colocamos nesse momento servem mais de referência, pois há desacordo ou imprecisão
sobre muitas delas. 203
“Contrariando a pregação oficial da época, que admitia a conversão tão somente através da fé, Llull
desenvolveu um sistema filosófico, a que chamava de l’Art, por meio do qual argumentava que ninguém poderia
abandonar uma fé para abraçar outra se não fosse racionalmente convencido a fazê-lo. Em suas palavras, “non
dimittere credere pro credere, sed pro intelligere” (“não se deixa o crer pelo crer, mas pelo compreender”), fazendo
eco do pensamento escolástico de Santo Anselmo (1033 – 1109), cujo lema era “crer para compreender e não
compreender para crer”.” (VARGAS, 2009, p. 106-107).
85
posteriormente revisitados e revalorizados pelos escritores românticos catalães (Idem).
Francesc Vicenç Garcia traz marcas barrocas, tendo estudado na Universidade de Lleida, uma
das primeiras universidades europeias, situada em área catalã ainda hoje, tendo ficado
conhecido por seu personagem Rector de Vallfogona.
Sua obra ganhou grande popularidade sobretudo a partir do século XVIII, quando
mereceu inúmeras republicações. Sua fama chegou ao ponto de o Rector de
Vallfogona ter se tornado um personagem novelesco, mítico e cômico do imaginário
popular. Houve quem sustentasse que teria sido ele o autor da falsa continuação de
Dom Quixote de Avellaneda (século XVII). (VARGAS, 2009, p. 113)
Vicent Olcina (Gorga, 1731 – Roma, 1809), produziu fábulas em castelhano e poemas
em catalão e linguagem popular, com fundo moral. No seu poema La caça de lês mones (A
caça aos micos), descreve índios que caçavam micos, atraindo-os com milho. No poema
original usa o termo Índies, referindo-se às Américas, prova do que tantas vezes aprendemos
em História do Brasil, de que fomos descobertos em momento de busca de nova rota para a
Índia asiática, onde europeus buscavam as especiarias, justificando o motivo porque chamaram
nossos nativos de índios. Bonaventura Carles Aribau (Barcelona, virada do século XVIII –
XIX), escritor, jornalista e economista, acabou se envolvendo com a política e ocupou cargos
do governo. Seu poema La Pàtria, de 1833, inaugura o romantismo em língua catalã, iniciando
sua Renaixença. Em seu poema, se refere ao catalão como “língua limusina”, o que Vargas
(2009) conta ser como os catalães chamavam sua língua desde o século XVI. Llemosí, segundo
Vargas (2009, p. 115), é:
[...] inspirada em seu parentesco com o occitano e em referência a um dos dialetos
deste, falado na região de Limoges, França [...]. O novo nome convinha como
denominação unitária para a língua, sem referências geográficas que provocassem
idiossincrasias. No entanto, especialistas em literatura trovadoresca no século XIX
passaram a considerar a denominação inadequada e, nos Jogos Florais de 1867, o
perta e linguista maiorquino Marià Aguiló i Fuster (1825 – 1897) reivindicou o
resgate do nome catalão para a língua, que por sim se consolidou.
Outros nomes trazidos são Joaquin Rubió i Ors (Barcelona, 1818 – 1899), escritor do
Romantismo e da Renaixença; Víctor Balaguer (Barcelona, 1824 – Madrid, 1901), político e
divulgador de ideias liberais, defendia o independentismo catalão, e foi obrigado a se exilar na
França em 1865; sendo suas obras mais reconhecidas Lo trobador de Montserrat (1861) e
Esperances i records (1866) – “O trovador de Montserrat” e “Esperanças e lembranças”,
respectivamente. Jacint Verdaguer (Folgueroles, 1845 – Vallvidrera, 1902) se dedicou à
história patriótica, o que fica claro em seus poemas já pelo título: L’Atlàntida, Canigò, Vora La
86
mar, Flors Del Calvari. Contemporâneo de Verdaguer, ocupa um lugar primordial Joan
Maragall (Barcelona, 1860 – 1911), com títulos que dizem por si só: Cant Espiritual, El cant de
La senyera, La vaca cega, La sardana, Oda a Espanya204
, El comte Arnau, Oda nova a
Barcelona (SOBRER, 1998; VARGAS, 2009). Em Ode Nova à Barcelona, Maragall termina
com os versos: “Barcelona! I amb tos pecats, nostra! Nostra! / Barcelona nostra! La gran
encisera!”, cuja tradução seria: “Barcelona! E com todos teus pecados, nossa! Nossa! / Nossa
Barcelona! A grande feiticeira!”205
, versos que ecoam ainda hoje ao se falar de cultura e arte
em Barcelona206
. Segundo Vargas (2009, p. 119), Maragall “Entendia poesia como um
instrumento capaz de influenciar a sociedade e o poeta como um visionário de uma realidade
transcendente.”. Além disso, é um dos grandes representantes da literatura catalã modernista.
Por fim, Miquel Costa i Llobera (Pollença, 1854 – Palma de Maiorca, 1922) foi figura de forte
presença na literatura da Catalunha. “Foi proclamado Mestre em Gai Saber (1902) e era
membro correspondente da Real Academia Española, membro correspondente do Institut
d’Estudis Catalans (IEC) e membro da Casa Pia Lul-liana” (VARGAS, 2009, p. 121). Diz-se de
Llobera ser um dos clássicos da poesia catalã, “[...] responsável pela evolução da poesia catalã
moderna.” (Idem). Somam-se a eles ainda Joan Alcover, Joan Salvat-Papasseit e Bartolomeu
Rosselló-Pòrcel. O último, surpreendido pela Guerra Civil, escreve o poema A Mallorca,
durant la guerra civil, em que invoca sua terra-natal.
A Maiorca, durante a Guerra Civil
Verdejam ainda aqueles campos
e perduram aqueles arvoredos
e por sobre o mesmo azul
se recortam as montanhas.
204
Um poema crítico, com ironia do início ao fim. “It condemns the regime’s inability to listen to its people and
and its needless desire to spill blood.“ (HARRIS, 2014). O poema termina da seguinte maneira: “Não te vejo –
onde estás Espanha? / Não ouves minha voz tonitruante? / Não sabes esta língua que te fala entre risos? /
Desaprendeste de entender teus filhos? / Adeus, Espanha!” (VARGAS, 2009, p. 87). Do original: “On ets,
Espanya? – no et veig enlloc. / No sents La meva véu atronadora? / No entends aquesta llengua – que et parla entre
perills? / Has desaprès d’entendre an els teus fills? / Adéu, Espanya!” (Idem). 205
Utilizamos a tradução alemã para o poema, bem como o original catalão. Disponível em:
http://www.jbeilharz.de/katalan/maragall-ged.htm e
http://www.bcn.cat/museuhistoriaciutat/verdaguermaragall/02.html. Acessos em maio de 2019. 206
Acho curioso que Barcelona seja chamada de feiticeira, em catalão encisera (espanhol bruja), ao mesmo tempo
em que a bandeira nacional catalã é chamada de La Senyera. Acho a sonoridade bastante semelhante. Pensando na
história espanhola, volto aos tribunais da Santa Inquisição, que perseguia os infiéis, entre eles as bruxas e
feiticeiras. A Catalunha se sente perseguida pelo espanhol – ou ora é sua reivindicação pelos independentistas –,
sua capital é uma feiticeira. Essa é uma sugestão interpretativa que acho pertinente, embora contemporânea. Isto
porque há uma lenda sobre La Senyera, que remete ao século XI (987 d.C., mais precisamente). Esta lenda que diz
que as quatro listras vermelhas são os cinco dedos de um cavaleiro, que sangram sob um escudo dourado, referidos
como Els Quatre Dits de Sang. Os francos legitimaram uma soberania da Catalunha no século XI, contrastando
com a data de nascimento do Estado espanhol, que data do século XII (HARRIS, 2014). Hoje, andando pela
Catalunha, se podem ver muitas bandeiras catalãs expostas nas janelas, que representam a posição política
independentista do morador.
87
Ali as pedras invocam sempre
a chuva difícil, a chuva azul
que vem de ti, cadeia clara,
serra, prazer, claridade minha!
Sou avaro com a luz que nos olhos me resta
e que me faz estremecer quando te recordo!
Agora os jardins são como músicas
e me perturbam, me fatigam como num tédio lento.
O coração do outono já se vai
em harmonia às chaminés graciosas.
E as ervas são queimadas nas colinas de
caçada, entre sonhos de setembro
e neblinas tingidas de crepúsculo.
Minha vida se liga toda a ti,
Como de noite as chamas ao escuro. 207
(ROSSELLÓ-PÒRCEL, set 1937 apud VARGAS, 2009, p. 96).
Outra marca cultural e de expressão artística do povo catalão é a arquitetura, sendo
referência internacional principalmente devido a Barcelona, sua capital. Segundo Sobrer (1998,
p. 121), talvez os catalães tenham investido tanto na capital por não terem conseguido ainda
reconhecimento nacional próprio – de fato é impressionante a riqueza cultural barcelonesa208
.
Basta pensarmos em nomes como Antoni Gaudí i Cornet, Joan Miró i Ferrà – vitrais,
cerâmicas, ferro e marcenaria aparecem em Barcelona em muitas cores, formas e texturas sob
autoria desses nomes: dificilmente uma pessoa crescida no Ocidente não os terá ouvido na
vida209
. Outros importantes arquitetos que deixaram seu legado em Barcelona são Emili Sala i
Cortés, Lluís Domènech i Montaner e Josep Maria Jujol, contemporâneos de Gaudí. A capital
catalã em si é um museu a céu aberto, revelando ao seu visitante a riqueza e o valor que o povo
catalão dá à arte e à arquitetura210
. No caso de Barcelona, a influência do Modernismo – o
207
Do original: “A Mallorca, durant la guerra civil Verdegen encara aquells camps / i duren aquelles
arbredes / i damunt del mateix atzur / es retallen les meves mutanyes. / Allí les pedrês invoquen sempre / La pluja
difícil, La pluja blava / que vê de tu, cadena clara, / serra plaer, claror meva! / Sóc avar de la llum que em resta
dins els ulls / i em torben, em fatiguen com em um tedi lent. / El cor de La tardor ja s’hi marceix, / concertat amb
fumeres delicades. / I les herbes es cremen a turons / de cacera, entre somnis de setembre / i boires entintades de
capvespre. // Tota la meva vida es lliga a tu, / com em la nit les flames a la fosca. // Barcelona, setembre 1937”.
(apud VARGAS, 2009, p. 97). 208
Veremos mais adiante, contudo, que o forte sentimento independentista é mais atual do que todo o legado
secular da Catalunha, de forma que tal formulação não faz muito sentido ao estudar todos os aspectos do
catalanismo. 209
Na figura 2, página 88, vemos alguns detalhes das paisagens da Catalunha, com realce para o mosaico de Mirò,
Pla de l’Os (1976), na rua Nou de la Rambla, Barcelona – que mencionaremos adiante; vemos o Parque Güell com
seus bancos em mosaico e a casa de Gaudí à frente. A imagem foi retirada de um guia para turismo na Catalunha,
intitulado Rutas por Cataluña, de autoria da Generalitat de Catalunya e Agencia Catalana de Turismo (2015). O
endereço eletrônico para acesso se encontra nas referências bibliográficas e é sugerida a visita para quem quiser
saber mais sobre a rota artística na Catalunha. São inúmeras imagens detalhadas da maioria dos locais
mencionados em nosso texto. 210
Notáveis são, naturalmente, o Templo Expiatório da Sagrada Família (com a fachada da Natividade e sua
cripta), Casas Batlló, Milà, Vicens, Parque Güell e Cripta da Colônia Güell (de Gaudí); Palácio da Música Catalã,
Casa Fuster e Hospital da Santa Cruz e São Paulo (Domènech i Montaner).
88
Modernisme Català211
– (ou Art Nouveau212
) surgido na Europa a partir de fins do século XIX
é incontestável: pelos quatro cantos da cidade se vê curvas, ondulados e mosaicos em cerâmica,
vidro e ferro expostos. A cidade também é marcada pelo estilo Neogótico (GENCAT ET
AGENCIA CATALANA DE TURISMO, 2015), que não se afasta bruscamente dessa Nova
Arte na medida em que buscou reavivar a arquitetura medieval, se opondo ao classicismo
renascentista. Domènech i Montaner (2002), chegou ainda a escrever um texto intitulado Em
busca de uma arquitetura nacional, original em catalão (1878), em que questiona se a
arquitetura poderia expressar a moral (de um povo) de maneira física através da forma
arquitetônica. As questões que traz são interessantíssimas e valem alguns parágrafos.
Domènech (2002) inicia seu texto transportando o leitor numa verdadeira viagem
imagética. Primeiro nos remete para os monumentos grandiosos da Pérsia, do mundo árabe e do
Egito, e afirma que esses colossos demonstram indubitavelmente a grandeza dessas
civilizações. De fato, ao refletir, podemos dizer que a arquitetura egípcia expressava – e ainda
expressa – o poder e a riqueza, até mesmo a opulência – em que viviam os faraós com suas
pirâmides e esfinges. Ademais, sendo as pirâmides o local onde se encerrava a vida das
famílias, traz a nós resíduos de suas crenças e os valores. Os hieróglifos demonstram a erudição
e elaboração de formas de pensamento que, ao mesmo tempo, permitem a transmissão de suas
ideias, de sua religião, sua simbologia. Os templos e anfiteatros gregos, que emitem sua
compreensão de mundo, transmitem aos nossos dias sua cultura milenar; sua forma política e
do culto ao homem através de seus objetos deixados, de suas esculturas, dos papiros, dos
cuaderni, das escritas em pedras, das cerâmicas. Em Roma, suas inúmeras referências
arquitetônicas, que permeiam toda a história da cidade, permitindo que vejamos sua
antiguidade, suas influências, seus hábitos (pensemos nas termas romanas, nas catacumbas),
sua religiosidade. Sim, é inquestionável que a arquitetura expressa o espírito de um povo,
podendo mesmo ser lida, interpretada. Contam também sua história: os castelos medievais, com
seus burgos e feudos; as igrejas com as torres em riste, altas, que apontam verticalmente para o
divino. A cruz num espaço, um candelabro, todos esses objetos e materiais abrigam referências
211
Embora o Modernismo catalão não tenha uma data de início, atentamos que no ano de 1888 foi marcado em
termos artísticos pela Exposició Universal de Barcelona. 212
O estilo Art Nouveau é chamado de Modernismo na Espnha. Se expressa majoritariamente na decoração e artes
gráficas, a partir de objetos (e projetos) que buscam na simplicidade, nas formas geométricas e através das cores
envolver seu interlocutor numa atmosfera de surpresa e interesse, na medida em que une inspirações e materiais
naturais e orgânicos. Hoje ainda tem bastante presença na Europa central e Escandinávia. Famosos expoentes são
Antoni Gaudí, Hector Guimard, Émile Gallé e Gustav Klimt. É também um tipo de arte que se relaciona com o
movimento industrial e as inovações que ele traz para a sociedade. Há um retorno na valorização do artesanato,
dando-lhe, porém, uma repaginação a partir dos novos materiais disponíveis. Também novas tecnologias são
usadas na confecção de joias, tecidos e roupas, móveis, acessórios.
89
culturais que criam e recriam ideias em nós. A arquitetura é uma das maneiras em que os povos
escrevem sua história, que deixam seu legado: testemunham e comunicam sua existência.
Os museus também abrigam tais objetos artísticos, a flora e a fauna de uma nação,
pinturas que remetem ao espírito de uma época. Estudos de proporção podem ser feitos e
localizados por meio de descobertas arqueológicas, estudos matemáticos e de musicalidade,
trabalhos de harmonização cromática permitem acesso aos estudos das cores. Também casas de
personalidades eventualmente se abrem ao público, pois a configuração espacial em que uma
pessoa vive diz muito sobre ela. A arquitetura é a decoração da casa de um povo, sua nação. Os
artistas, os arquitetos, são construtores dos tesouros nacionais (DOMÈNECH I MONTANER,
2002), são tradutores e afirmam gostos e ideias. Apesar disso, para Domènech, no caso da arte
moderna, que é a filha e herdeira de todas aquelas que a antecederam; não podemos dizer que é
a manifestação de um só povo, mas de vários, pois traz em si todas as influências possíveis –
inclusive aquelas que já se tornaram híbridas, não sendo originária de nenhum povo, mas no
máximo de uma civilização. Cabe ao artista, através de sua sensibilidade, torná-la pública por
meio da técnica e de sua habilidade; no entanto, num mundo de infindáveis fluxos, uma tal arte
– única de uma nação – parece impossível.
Tudo isso Domènech diz pensando em verdade na nação espanhola, isto é, pensando nas
diferenças arquitetônicas em Espanha: a influência árabe na Andaluzia; a expressão do gótico
ou romantismo no norte. Continua dizendo que em termos de arquitetura podemos perceber
“[...] o gênio moral e materialmente sólido do galego; o valentemente cheio de fé do vasco e do
Navarro; a intensidade do catalão e o engenhoso andaluz”213
(DOMÈNECH I MONTANER,
2002, p. 75, tradução nossa). Assim, demonstra que a Espanha é constituída por povos tão
diferentes que não formam [ainda pelo menos] um só caráter arquitetônico. Da mesma forma, a
geografia e clima tão variados também influenciam no fazer arquitetônico de cada região: num
lugar que neva, os tetos devem propiciar o não acúmulo de neve; em lugares antigos e úmidos
temos a presença das ruínas e do lodo. Em termos de uma expressão espanhola fica de fato
difícil precisar um traço único, mas com relação a regiões e nações dentro da Espanha, notamos
sim características que distinguem a história e a maneira de ver o mundo por cada um deles. No
caso catalão, como dito por Domènech i Montaner (Idem), de fato uma característica marcante
é sua modernidade. Em Barcelona a internacionalidade e o cosmopolitismo tomam conta. As
cores da cidade, suas construções audaciosas e elegantes demonstram um espírito diferenciado
de outras partes da Espanha. Especificando sobre a geografia da Catalunha, afirma ser um “[...]
213
Original: “[...] el genio moral y materialmente sólido del gallego; ló valientemente lleno de fe del vasco y del
navarro; lo activo del catalán y lo ingenioso del andaluz [...]”.
90
conjunto complicado de acidentes geológicos que trazem neles a história do mundo em
pequena escala.”214
(DOMÈNECH I MONTANER, 2002, p. 76, tradução nossa). Ao fim de seu
texto, o autor defende a apropriação artística e arquitetônica de todos os povos, de todas as
heranças, a fim de construir uma arte própria, bela e boa: essa poderia ser a marca espanhola –
a reunião do melhor de cada era e de cada civilização.
Voltando para a arquitetura catalã, Antoni Gaudì, nascido em Reus, Tarragona, é a
grande marca barcelonense. São muitas as construções em que deixou seu traço tão particular.
Rico em cores, formas inesperadas que remetem à natureza, algumas peças são hoje símbolo de
Barcelona, como o famoso Lagarto no Parque Güell; este fica no espaço Plaça de La Natura,
ao centro de bancos em mosaico que lembram uma serpente colorida. O parque é patrimônio
cultural da humanidade reconhecido pela UNESCO em 1984. Na casa em que morou fica hoje
a Casa Museu Gaudí, uma das atrações do Parque Güell. Também a Basílica da Sagrada
Família, ainda em construção, é um emblema de sua versatilidade artística. Outros exemplos
são a Casa Batlló – rica em cores e vidro, cujas varandas lembram mandíbulas de tubarões. La
Pedrera ou Casa Milá também chamam atenção do visitante, com suas curvas irregulares que
parecem um rochedo, mas também de maneira harmonicamente ondulada e toda branca. Hoje
em dia pode ser visitada. Entre esses, outros nomes importantes são Torre de Bellesguard e
Casa Vicens. A arquitetura de Gaudí é um símbolo claro do cosmopolitismo barcelonês, bem
como de seus traços estéticos gerais: Barcelona é sinônimo de criatividade, vanguardismo e
estética. “[...] é impossível compreender o caráter catalão e seu gosto pelo refinamento e o
requinte estético sem falar da singularidade de obras mundialmente reconhecidas [...], marcos
culturais que traspassam o meramente arquitetônico para transcender como obras de arte
universais.”215
(GENCAT ET AGENCIA CATALANA DE TURISMO, 2015, p. 7, tradução
nossa).
214
Original: “Catalunã con todo este conjunto complicado de accidentes geológicos que hacen en ella la historia
del mundo en pequeña escala [...]”. 215
Do original: “Hoy en dia, es imposible entender el carácter catalán y su gusto por lo refinado y la exquisitez
estética sin hablar de La singularidad de obras mundialmente reconocidas como la Sagrada Família, el Palau de
La Música , el Park Güell o El Hospital de Sant Pau, hitos culturales que traspasan ló meramente arquitectónico
para trascender como obras de arte universales.” (GENCAT et AGENCIA CATALANA DE TURISMO, 2015, p.
7). As obras referidas são de autoria de Gaudí e Domènech i Montaner.
91
Figura 2 – Mosaico de paisagens de Catalunha (GENCAT ET AGENCIA CATALANA DE TURISMO,
2015, p. 5)
Apesar de muito conhecido por suas obras em Barcelona, no entanto, em Rutes per
Catalunya, são mencionados não apenas o caráter genial de Gaudí – o maior modernista catalão
–, mas também trazidos exemplos de seu trabalho no interior catalão:
Adentrando-se até o interior da Catalunha, no Povoado de Lillet, na comarca de
Berguedà, se encontram os gaudinianos Jardins Artigas; estes jardins, atravessados
pelo rio Llobregat, apresentam uma exuberante vegetação natural, na qual Gaudí se
sentia muito à vontade. Ali levou a cabo soluções imaginativas nas pontes, a caverna
artificial ou o gazebo que logo utilizou como fonte de inspiração para o resto de suas
obras, com um claro traço natural, em forma de colunas que simulam troncos, folhas
nas cúpulas e espirais de inspiração animal, para mencionar alguns exemplos.216
(GENCAT ET AGENCIA CATALANA DE TURISMO, 2015, p. 10, tradução
nossa)
Joan Miró i Ferrà, por sua vez, ficou famoso pela pintura e esculturas, mas foi também
um gravador e ceramista (GENCAT ET AGENCIA CATALANA DE TURISMO, 2015, p. 21).
Nascido em Barcelona em 1893 (MOLINA, 2015), é classificado como surrealista, mas
também flertou com a pop art, com o cubismo e com o expressionismo abstrato. Pássaros,
mulheres e estrelas estão em temas recorrentes em sua arte; que representam de forma abstrata
e simbólica tais elementos, de forma a interagir com o mundo psíquico, anímico e onírico de
seu interlocutor; em consonância com sua escola artística. Segundo Rosa Maria Malet, diretora
216
Do original: “Adentrándose hacia el interior de Cataluña, en La pobla de Lillet, en la comarca del Berguedà, se
encuentran los gaudinianos Jardins Artigas; estos jardines, atravesados por el río Llobregat, presentan uma
exuberante vegetación natural, en la que Gaudí se sentia muy a gusto. Allí llevó a cabo soluciones imaginativas en
los puentes, la cueva artificial o la glorieta que luego utilizo como fuente de inspiración para el resto de sus obras,
com um claro acento natural, em forma de columnas que simulan troncos, hojas en los capiteles y espirales de
inspiración animal, por poner algunos ejemplos.”.
92
da Fundação Joan Mirò, “Todas as fontes culturais ligadas às mitologias mediterrâneas fazem
referência à mulher, como símbolo da vida e da fertilidade; aos astros, que marcam o
transcorrer do tempo e o ciclo da vida; e aos seres alados, a meio caminho entre a essência
terrena e a divina.” (apud MOLINA, 2015). Orgulhosos, os barcelonenses também cruzam por
vezes obras do artista andando nas ruas do centro novo da capital217
. Por meio da escultura e
pintura, se firma como entidade que repercute para além dos limites de Barcelona. Ernest
Hemingway expressa seu apreço pela cultura catalã mais uma vez218
ao comprar em Paris
diretamente do pintor um de seus quadros, La Masia (1921-1922), que remete à casa de campo
de Mirò, em Mont-roig del Camp, Tarragona (MOLINA, 2015).
Mirò, embora as várias menções a sua participação em variados movimentos artísticos,
não se furta ao título de um dos grandes expoentes do surrealismo. Isto porque vive um
momento na sociedade intelectual e artística europeia que se expande naquele momento, o
início do século XX. Este movimento traz afinidades com a psicanálise lacaniana e freudiana,
na medida em que busca o aprofundamento na subjetividade humana, seu inconsciente. “A
mutabilidade do eu nos assinala a mutação imaginária, esbarrando no traço de identidade que
não se deixa apagar. O resto ineliminável na redução do eu aparece como efeito primário no
fato de que existe linguagem.” (REZENDE, 2011). Por sua vez, podemos dizer que esse
movimento artístico é o reflexo de toda a conjuntura vivida pela Europa naquele momento, que
antecede e depois vive duas Grandes Guerras. Não obstante, o movimento surrealista é
fortemente vinculado à expressão política, marcado “[...] por sua filiação ao partido comunista,
o que será mantido até a eclosão da Segunda Guerra Mundial.” (Idem, p. 67)219
. Na virada do
século, o contexto é de inovação: a cultura europeia exalava arte, técnica e ciência; com a
chegada da I GG, o mundo europeu se vê destruído, colapsado. De repente seu poder
econômico e cultural não está mais no centro do discurso hegemônico, algo nunca antes vivido
pelo europeu: um momento absolutamente turbulento, de questionamentos220
. O
217
Na rua Nou de La Rambla um mosaico circular do artista, Pla de l’Os (1976), está disposto no chão do passeio
central. Há também a escultura Mulher e Pássaro (Dona i ocell), de 22 metros de altura no Parc Joan Mirò, nas
proximidades da Plaza Espanya; além de uma peça imensa em cerâmica (9 X 5 m) datada de 1970 no Terminal B
do Aeroporto El Prat. A Fundação Joan Mirò também tem sua sede em Barcelona. (PERCORRA OS
CONTORNOS..., 2010). 218
Mencionamos no capítulo precedente que Hemingway se envolveu, como inúmeros outros intelectuais, no
movimento antifascista internacional. Ele escreveu três títulos que abordam a temática, inspirado pelos quatro anos
em que viveu na Espanha: foi voluntário durante a Guerra Civil, sendo correspondente de guerra em Madrid. Após
o fim da II GG, mudou-se para Cuba. Em 1953 ganhou o Prêmio Pulitzer de ficção e em 1954 o Prêmio Nobel de
Literatura. 219
Outros expoentes do surrealista que são fundamentais para compreensão da extensão desse movimento são
André Breton, poeta e psicanalista; Lacan – que foi médico de Picasso –; Salvador Dalí; 220
A reconstrução social e internacional é marcada assim por inúmeros movimentos, desde que expõe a queda dos
valores tradicionais. Eles passam a ser diretamente criticados. No caso da arte, além da expressão dessa
93
questionamento do Self parece consoante com esse momento, de sobrevaloração do eu, da
busca pela identidade.
Companheiro surrealista de Mirò, outro nome fundamental no movimento artístico
internacional é o de Salvador Dalí (Figueres, província de Girona, 1904). Irreverente,
incômodo, possui um método paranoico-crítico221
. Dalí tenta reproduzir em suas telas os
caminhos da construção do pensamento humano, do inconsciente, demonstra o incômodo da
existência, a inconformidade com os valores de uma sociedade que se ancora no
tradicionalismo. Dalí é exótico, ele explora a histeria, expõe em suas obras “suas fantasias
narcísicas e eróticas” (REZENDE, 2011, p. 70), sensibilizando inevitavelmente aquele que o
cruza, seja de maneira positiva ou negativa – é improvável ficar impassível frente a uma de
suas obras222
. Está, portanto, envolvido nesse momento social, no questionamento e fuga do
óbvio e do dado. Para além de ter exportado suas percepções através de sua arte, chama a
atenção do mundo para a Catalunha, local de sua origem e onde também deixou marcas na
arquitetura local. Marco de suas obras são sua esposa Gala e a paisagem de l’Empordá, em
Girona (GENCAT ET AGENCIA CATALANA DE TURISMO, 2015, p. 22). Em Portlligat se
encontra a morada do artista, hoje o Museu-teatro Dalí, com traços particulares do artista, como
caminhos labirínticos e uma pequena torre lateral coroada com ovos (imagem 3). No povoado de La
Pera encontra-se um castelo que comprou para Gala, onde só podia visitá-la sob sua autorização (Idem,
p. 23).
mentalidade no surrealismo, ela é marcada também pelo surgimento do impressionismo, expressionismo,
dadaísmo e cubismo. (REZENDE, 2011). 221
Dalí também escreveu livros, ficcionais e não-ficcionais. Um de seus livros recebeu o título Oui: the Paranoid-
Critical Revolution. Colaborou na criação de cenários de teatro e foi grande amigo do cineasta Luís Buñuel e do
poeta Federico García Lorca. 222
Entre suas obras primas estão El gran masturbador (1929), La persistencia de la memória (1931), Mercador de
esclavos con el busto evanescente de Voltaire (1940).
94
Figura 3 – Torre Del Teatre-Museu Dalí D. Julia, GENCAT ET AGENCIA CATALANA DE
TURISMO, 2015, p. 23).
Contemporâneo de Mirò e Dalí, chegamos ao nome de Pablo Ruiz Picasso (1881).
Apesar de natural de Málaga ficaria ligado eternamente às paisagens da Catalunha presentes em
suas obras223
e por ter estudado Belas Artes em Barcelona (La Llotja), ainda com 14 anos
(GENCAT ET AGENCIA CATALANA DE TURISMO, 2015, p. 19). A capital catalã abriga o
Museu Picasso, com a coleção mais importante de sua juventude; e, na fachada do Colégio de
Arquitectos, podem ser vistos três frisos de azulejos, a sua única obras ao ar livre (GENCAT
ET AGENCIA CATALANA DE TURISMO, 2015, p. 20). Seu quadro imortalizado, La
Guernica, que embora não estampe propriamente a Catalunha – já que o quadro retrata o
bombardeamento, em 1937 da cidade basca de Guernica –, é de importância inegável, na
medida em que retrata a Guerra Civil espanhola. Como está largamente catalogado, a Guerra
Civil foi um marco da repressão às nações dentro de Espanha, numa tentativa do General
Franco de homogeneizar de maneira obrigatória cultura, história e política espanholas. Tendo
vivido na Catalunha, seria inevitável que um momento tão marcante, de abalo social, não fosse
sensivelmente imortalizado e denunciado através de sua obra. La Guernica é um protesto e uma
denúncia da opressão militar por que passavam as várias nações de Espanha224
e do mundo.
223
Como Horta de Sant Joan (Terres de l’Ebre), Gósol (Pirineus), Horta de Sant Joan – a 200 km de Barcelona.
(GENCAT ET AGENCIA CATALANA DE TURISMO, 2015) 224
Suas cores, preto e branco, dão o tom do bombardeamento, a cidade virando pó. A obra é em estilo cubista,
classificado a partir de marcadas formas geométricas, sem, no entanto deixar o surrealismo devido à atmosfera
incômoda a que remete. No quadro podemos ver o touro e o cavalo, marcas espanholas. Pessoas são retratadas em
desespero: um soldado morto no chão; uma mãe que chora a morte do filho, ainda criança; uma mulher fugitiva
com a perna em evidência, dando a entender que estava ferida;uma espada quebrada poderia simbolizar a
incapacidade popular de responder a tanta violência.
95
Com tantos atrativos e com tanta história humana, a Catalunha da primeira metade do
século XX – mas principalmente Barcelona –, carrega importância histórica internacional, pois
participa da construção de uma nova forma de pensar identidade e nacionalismo, sentimento
nacional; por estar entranhada nos movimentos sociais num momento de virada cultural. Os
catalães demonstram por meio de sua presença e participação massiva num movimento de
crítica ao status quo que são distintos da Espanha do início do século XX, com uma sociedade e
política cristã e fechada, conservadora, centralizadora, limitante. São antifascistas, são
diferentes, suas próprias tradições regionais são distintas. E também por isso a repressão
durante e após a GC foi tão expressiva na Catalunha. Porque a Catalunha simboliza – e faz
questão de fazê-lo – tudo o que os conservadores rejeitam. Ainda, na medida em que o catalão
enaltece seus nomes (inter)nacionais, ele se coloca de forma inconteste no fazer político
espanhol. O catalão não quer deixar dúvidas para o mundo de que são avessos à cultura
tradicionalista e imperialista espanhola, que reprime sua expressão e evasão. Declaram
discordância ideológica, que é por excelência o motivo pelo qual querem sua autonomia: para
poderem expressar-se inteira e plenamente, para demonstrar discordância com o sistema
imposto de forma autoritária para seu povo. Naturalmente não há espaço a ser dado aos catalães
sendo os nacionalistas espanhóis os vitoriosos de sua GC. Após 1939 não há espaço para nada
catalão.
Hoje, no século XXI, após a morte de Franco e da redemocratização, o catalão
inevitavelmente associa o Estado espanhol a esse algo diverso, opressor, diverso a si, seu
inimigo. Com o restabelecimento do seu Estatuto de Autonomia, busca adquirir uma
independência política da Espanha, pois o sentimento outrora reprimido ganha espaço político e
passa a ser visto como fundamental para sobrevivência de sua expressão cultural. A tentativa
do General Franco de homogeneizar a cultura espanhola é sinônimo de retirar de si sua própria
identidade, principalmente porque sua postura política é absolutamente oposta à daquele. A
ditadura política nesse sentido apenas fortalece o sentimento de não pertencimento a algo.
Proíbe-se na ditadura a expressão livre, mas o pensamento de cada um, sua postura crítica,
mesmo com toda propaganda ideológica, se reforça diariamente por meio da constante
lembrança estampada nas fachadas da Catalunha permanecem como memória compartilhada.
Além disso, no espaço íntimo de cada família catalã força-se uma narrativa histórica que traz as
marcas da violência do Estado espanhol contra o catalão: seu caráter instrumental apenas
multiplica individualmente sua potência, o que aumenta a percepção do dissenso espanhol
versus catalão.
96
A força do Estado espanhol é weberiana, se impondo como vontade, e não construindo
poder por meio da formação de um diálogo que poderia promover uma vontade comum. A
Guerra Civil foi o exercício da força física sobre todo aquele que discordava do nacionalismo
espanhol. Sua preocupação pungente sobre o discurso difundido se dá, portanto, por saber da
fragilidade de seu próprio discurso: há que se construir uma imagem de uma Espanha una.
Reconstrói-se a história negando que a Catalunha havia algum dia sido nação independente
dentro da Espanha, discurso que é repetido ainda em nossos dias. Esperanza Aguirre, Ministra
da Educação, Cultura e do Esporte fez em outubro de 2012 um pronunciamento em que
afirmou que as crianças deveriam ser educadas de maneira a “contribuir, ler sobre a verdadeira
história, não uma história inventada pelos nacionalistas... Espanha é uma grande nação, com
três mil anos de história. Isso é o que as crianças deveriam aprender.”225
(apud HARRIS, 2014,
p. 15). Em vista do nosso estudo, fica claro que a fala do Ministra não encontra respaldo na
história oficial, mas se enquadra no conceito de reescrita a posteriori da história não apenas
espanhola, mas catalã. Não é nem verdade que a Catalunha nunca existiu sem Espanha, nem
que o Estado espanhol teria três mil anos, pois sequer tal conceito ou configuração geopolítica
existiam. Braudel (1983) também afirma que:
A costa catalã despertou para a vida marítima historicamente visível no século XI,
mas sua expansão só se iniciou dois séculos mais tarde, coincidindo com a própria
expansão de Barcelona. [...] Mas Barcelona perde a independência, após longa luta
contra João de Aragão. Com a independência, vão-se as liberdades [...]. Seguiu-se um
período de decadência quer da grande cidade quer da costa catalã, a ela intimamente
associada. Decadência que atingiu tal nível que o comércio catalão quase desapareceu
do Mediterrâneo e que o litoral do Condado foi destruído, quase sem opor resistência,
pelos corsários franceses quando das guerras entre os Valois e os Habsburgos, e, mais
tarde, pelos piratas argelinos, não menos perigosos que os anteriores e solidamente
entricheirados no desértico delta do Ebro. (p. 168-169)
Assim, em absoluto parece correta a afirmação de uma Catalunha pertencente a uma Espanha,
ainda inexistente enquanto tal, com uma história de três mil anos. Não obstante,
[...] Catalunha está cheia de espaços catalogados como patrimônios da humanidade
pela UNESCO por sua qualidade excepcional e contribuição ao legado da cultura
mundial. Mas não é só isso. Suas tradições, como a antiguíssima Patum, festa
celebrada em Berga desde o século XIV ou as impressionantes torres humanas dos
castellers, símbolo por excelência de que a união faz a força, foram reconhecidas
225
Do original: “She went on to say that the purpose of education is to teach children to “add up, read and about
true story, not history invented by nationalists... Spain is a great nation, with 3,000 years of history. This is what
children should learn.“ O discurso também pode ser conferido em notícias espanholas, por exemplo no site do
jornal El país espanhol: “La presidenta del PP de Madrid, ha defendido que la educación debe servir para que los
niños "aprendan a sumar, a leer y la historia verdadera, no la que inventan los nacionalistas". "España es una gran
nación, con 3.000 años de historia. Eso lo tienen que saber los niños", ha remachado.” (EFE-VIGO, 2012).
97
como patrimônio imaterial pela UNESCO.226
(GENCAT ET AGENCIA
CATALANA DE TURISMO, 2015, P. 13, tradução nossa)
De fato, estar na capital catalã é uma experiência estética singular. É difícil não se
maravilhar, não sentir a cultura que a cidade emana. Ela transpira internacionalidade,
modernidade, beleza. Une o antigo e o novo, desde seu Bairro Gótico, até o Observatório Fabra
– passando pelo Parque Güell, pelo Parc Del Laberint d’Horta, com sua bela fonte colorida
(Font Màgica de Montjuïc) no Parque Montjuïc. Mostra também a importância da política na
vida do catalão contemporâneo, que estende a bandeira nacional catalã – La Senyera – em suas
janelas, chamando certamente a atenção dos que ali vivem ou dos que visitam a cidade. O
catalão parece orgulhoso de seus gênios, de sua ousadia, de sua modernidade e cosmopolitismo.
O catalão é extravagante, ele sai de toda limitação e apego a uma única tradição imutável,
sendo este um traço mais vinculado ao espanhol. A capital espanhola, Madrid, a seu turno, goza
de um centro antigo com traços mais clássicos – influência do Neoclassicismo, visto no Museu
do Prado, por exemplo – e é bastante menor e inspira um ar mais burocrático do que as cidades
catalãs. Também a arquitetura moderna é bastante presente, com prédios altos, avenidas e
parques de tamanho expressivo – essa escola arquitetônica é chamada de Escola de Madrid –,
cuja predominância se deu entre os anos de 1956 a 1970 (HiSoUR, 2019). Por ser a capital
estatal, Madrid recebeu a realeza austríaca, que deixou suas heranças nas edificações no estilo
herreriano. Exemplos deste estilo são a Casa da Villa, a Ponte de Segovia e a Casa da Padaria.
Por sua vez, a chegada dos Bourbons trouxe a arquitetura francesa, estabelecendo na cidade a
influência do barroco, que pode ser reconhecido na Ponte de Toledo ou no Palácio Real de
Madrid. A Plaza Mayor, a seu turno é bastante pequena e remete à Idade Média, circundada por
pequenas vielas e ruas de pedra – como a maioria das cidades medievais, Madrid também era
uma cidade fortificada, de defesa, cercada por muros, que remontam ao século IX (Idem). O
226
Do original: “[...] Cataluña está llena de espacios catalogados como Patrimonio de la Humanidad por la Unesco
por su calidad excepcional y su aportación al legado de la cultura mundial. Pero no solo eso. También sus
tradiciones, como la antiquíssima Patum, fiesta celebrada en Berga desde el siglo XIV, o las impresionantes torres
humanas de los castellers, símbolo por excelência de que la unión hace la fuerza, han sido reconocidas como de
Patrimonio Inmaterial por La Unesco.” A título de curiosidade, as torres humanas são marca da cultura popular
catalã e está presente no romance La Bodega, de Noah Gordon. A história narra os percalços de um jovem
vinicultor na Catalunha do século XIX, durante as guerras carlistas. O autor ganhou o prêmio de Ambaixador dels
castells em 2007, por conta de seu romance, que ajudou a divulgar sobre a história e cultura catalãs. Entrando na
cultura culinária da região, os vinhos estão sempre presentes, bem como tomates. No romance, após árdua
preparação, a personagem principal consegue subir até a ponta dessa torre. Normalmente até o cume sobem
crianças, devido à habilidade, condição e constituição físicas. Castells são uma instituição cultural e esportiva
catalã muito tradicional, existindo clubes próprios para seu treinamento, que exige força, equilíbrio e trabalho de
equipe. As festas em que ocorrem são populares e normalmente lotadas. Aquele que pratica o castells é o casteller.
Na internet acham-se facilmente imagens e vídeos dos castells.
98
Hospital de la Latina, fundado ao final do século XV, a seu turno, é uma mistura de estilos: traz
características árabes e góticas. Em termos de cores, Madrid é evidentemente menos colorida,
predominando o cinza.
Por último, vale mencionar um dos grandes nomes espanhóis, o de Miguel de Cervantes
Saavedra (1517 – 1616). Sua obra prima é oportunamente associada ao gênio espanhol e, de
forma interessante o suficiente, é também tomada muitas vezes como símbolo literário na
Catalunha. Apesar disso, é interessante ressaltar que apesar de ser um autor espanhol, não se
categoriza com duas vertentes frequentemente atribuídas aos grandes nomes da literatura
espanhola, o Renascimento e o Barroco. Cervantes estaria num ponto médio entre os dois
movimentos artísticos, contendo características de ambos. A isso Arnold Hauser, um teórico da
literatura espanhola, chama de maneirismo (GONZÁLEZ, 2010). Interessante ressaltar que a
biografia de Cervantes demonstra que ele não era tampouco um espanhol médio, tendo vivido
na Itália por algum tempo. Ademais, o maneirismo se insere justamente numa crise do
renascimento espanhol, distoando deste: ele se forma a partir da coexistência de elementos
antagonistas, sendo forçosamente anticlássico ao mesmo tempo em que classicista; naturalista
ao mesmo tempo que antinaturalista; racional ao mesmo tempo que irracional (Idem). A sua
forma extravagante e provocadora, portanto, pode ser compreendita, então, como mais próxima
da percepção que o catalão tem de si mesmo, tão moderno e desafiador. Da mesma forma, há
um abandono da tradição e dos costumes rígidos exaltados pelo Renascimento, surgindo dos
escombros – das ruínas de tudo que é clássico. Ainda sobre a literatura espanhola, outras obras e
personalidades importantes são:
Essas obras e autores são: La Celestina (1499/1502), de Fernando de Rojas (1470/76?-
1541); o anônimo Lazarillo de Tormes (1552?); Don Quijote de la Mancha (1605-
1615), de Miguel de Cervantes (1547-1616); a poesia lírica (particularmente os
chamados “poemas maiores”) de frei Juan de la Cruz (1542-1591); e a poesia de Luis
de Góngora (1561-1627), particularmente, as Soledades e o Polifemo. (GONZÁLEZ,
2010, p. 130)
Outro aspecto pertinente é que a maioria desses autores, que fugiam das diretrizes
espanholas foram anexados ao Index librorum qui prohibentur [Catálogo de livros proibidos],
adotado em 1559 durate a Inquisição espanhola, e lá permaneceram até o fim da instituição, em
1834 (GONZÁLEZ, 2010). Muitos entram na nomenclatura de maneiristas. Outro nome que
chamam a atenção é o de El Greco (Doménikos Theotokópoulos), pintor de origem cretense
que viveu por muito tempo na Itália, mas cuja obra ganhou prestígio na Espanha. Suas pinturas
reúnem características bizantinas, espanholas e italianas. Também El Greco foi perseguido pelo
tribunal da Inquisição. Devemos ressaltar que na atualidade há uma discussão sobre o que foi
99
de fato a Inquisição espanhola, com um estudo mais atento dos casos, que leva a crer que foi
menos violenta do que a historiografia oficial relatava até então (KAGAN, 1998).
4.1.2. A linguagem na conformação nacional: o catalão
A linguagem é frequentemente chamada ao diálogo quando se fala de nação e
nacionalidade. Johann Gottfried Herder um dos primeiros românticos do nacionalismo, já dizia:
“Pois cada povo é um povo; ele tem sua construção nacional conforme sua língua.” (apud
ANDERSON, 2008b, p. 7-8, tradução nossa)227
. A linguagem é, portanto, dentro do que
podemos chamar de bens culturais, um dos itens de maior apreciação, divulgação e estudo no
que se refere ao nacionalismo. A linguagem permeia e transmite preconceitos, visões de
mundo, conferem identidade. Dificilmente pessoas de uma mesma nação não compartilharão
uma língua comum. Em si isso já demonstra sua importância. Por isso também, nos estudos
sociais e antropológicos surgem os estudos de comunidades linguísticas (WENDT, 2014). Ela
confere autoridade a determinadas crenças, na medida em que as estruturam e as compartilham,
disseminando-as na forma de pensamento lógico. Torna, desse modo, o pensamento possível
(SEARLE, 1995 apud WENDT, 2014). Por sua vez, na medida em que confere identidade e
subjetividade, pode também ser tratada como uma forma de poder. Nesse contexto, a
linguagem é tomada como força material, pois permite a expressão de poder e interesse de
maneira compartilhada.
Não obstante, apesar de expressar identidades compartilhadas, em si falar um idioma
não confere identidade nacional imediata a ninguém, não sendo um pressuposto sine qua non.
Pensando em tempos idos, na Idade Média, por exemplo, o Latim era a língua franca228
, que
permitia a comunicação entre todos os povos, no entanto, não era a língua nacional falada
sequer pelos povos que habitam hoje a península itálica. Embora permitisse a comunicação e
exercesse poder, na medida em que era a língua da Igreja e da Diplomacia – e posteriormente o
227
Do original: “Denn jedes Volk ist Volk; es hat seine national Bildung wie seine Sprache.” (ANDERSON, 2008,
p. 7-8). Carreras (2014, p. 118) afirma que: “El concepto de nación – por influencia de su íntimo colaborador Lluís
Duran i Ventosa, hijo del político Manuel Duran i Bas – lo toma Prat directamente prestado del Romanticismo
alemán [...]”. 228
O latim como língua viva, isto é, “[...] falada cotidianamente por grandes grupos de populações colonizadas
[....]” (STÖRIG, 2006, p. 87) tem seu fim a partir da queda do Império Romano a partir das invasões bárbaras,
principalmente as germânicas, “[....] entre os anos 500 e 600 d.C.” (Idem). Note-se, porém, que “O latim é a língua
da patrística, dos Padres da Igreja do período romano e da escolástica e da filosofia cristã da Idade Média. Tornou-
se a língua da pregação eclesiástica e da liturgia e um instrumento da autoridade papal. A primeira transmissão
radiofônica de um papa foi feita em 1931 em língua latina.” (Idem). Ademais, ainda hoje é a língua oficial do
Estado do Vaticano, embora devamos ressaltar que não existem falantes nativos do latim há mais de um século.
100
francês e ainda o inglês foram essas línguas –, o falar por si só não é caráter suficiente de
identidade229
. Apesar disso, é o meio mais usado para construção de caracteres identitários por
meio da educação, legislação, costumes, ideias sobre Deus e o mundo, do que é (in)adequado,
feio e belo; ou seja, porque transmite “religião, filosofia ciência, arte e política” (BAUER,
2008, p. 59).
Além disso, é por meio da linguagem oral que parte desses bens culturais são passados;
novamente tributando-se isso à existência e ao compartilhamento da linguagem. Bauer (2008,
p. 59) afirma ainda: “O grande instrumento dessa comunicação é a língua: ela é o instrumento
da educação e de toda a comunicação econômica e intelectual. A extensão efetiva da cultura é
marcada pela possibilidade de compreender através da linguagem.”. Isto seria o que justificaria
na Idade Moderna, por exemplo, a adoção de línguas uniformes e oficiais dentro dos Estados, a
fim de permitir a comunhão do caráter que determinado povo goza, isto é, promovendo a união
cultural dentre os nacionais.
Sem a unidade linguística, podemos inferir, não haveriam sentimentos nacionais
vinculados à língua, já que as línguas que temos hoje são elas mesmo fruto das miscigenações
culturais bastante frequentes na época dos grandes Impérios e das grandes civilizações do
Mundo Antigo: tal como não seria fácil encontrar hoje um genoma sem qualquer mistura
étnica, não há hoje uma língua que não seja derivada de outras, havendo grupos linguísticos
bastante distintos, estudados pela ciência da Linguística (STÖRIG, 2006). Apesar disso, línguas
que gozam de uma origem comum, possuem em seus falantes maternos características culturais
similares, o que também revela muito230
.
Pensemos também no caso de localidades fronteiriças, em que um ou mais Estados
estão fisicamente próximos, pode haver uma mistura étnica e populacional. Não apenas há
entre as populações mistura sanguínea, étnica, como também tais povos encontram meios de se
comunicar com o outro, por meio também da linguagem. Pensemos no caso de Brasil e
Paraguai, Brasil e Uruguai, Alemanha, Bélgica e Holanda: nessas fronteiras, quando o idioma é
parecido, muitos falam ambas as línguas; se tem, porém, uma forma muito distinta um do
outro, adota-se o idioma do povo que expressa um poderio maior – seja ele econômico,
cultural, populacional. Não obstante, as diferenças sobre os costumes podem ser mais ou menos
229
“Posso, é claro, aprender uma língua estrangeira, sem por isso me tornar membro da nação a que ela pertence,
já que a língua estrangeira nunca me submete às influências culturais do mesmo modo que a língua materna. A
cultura transmitida através da língua materna influenciou minha infância, os anos da mais intensa receptividade, e
formou meu caráter inicial; todas as impressões posteriores, tanto quanto são adotadas e adaptadas a uma
individualidade já existente, passam por uma mudança no próprio processo de adoção.” (BAUER, 2008, p. 59). 230
Vide anexo 4.
101
expressivos. Naturalmente há, porém, maior semelhança do que diferenças entre aspectos
culturais de Estados vizinhos. Apesar disso, tais diferenças existem, o que teria levado à
separação fronteiriça em primeiro lugar. Nesse sentido, podemos presumir que “[...] em geral
não há uma fusão das nações. Nesse caso, apesar da mistura do sangue, a diferença da
comunidade cultural distingue [...] as nações.” (BAUER, 2008, p. 60)231
.
Em comunidades que partilham da cultura de uma ou mais nações, muitas vezes “são
[...] influenciados pelos destinos e as peculiaridades culturais de ambas.”, dirá Bauer (2008, p.
60). No entanto, outros estudiosos demonstram que essas comunidades possuem características
tão únicas que se apresentam como uma terceira comunidade, pois não são estritamente
pertencentes a uma ou outra cultura. Este é um fenômeno que vemos muito em áreas
colonizadas, onde houve e há hibridização cultural. Aqui percebemos também a diferenciação
clara entre nacionalismo e estatismo: o último desvincula-se do primeiro na medida em que
expressa obrigações políticas comuns. Assim, nacionais e estrangeiros, embora falem a mesma
língua – ou mesmo nacionais que falam línguas diferentes – como no caso da Suíça, uma
Confederação constituída por várias etnias e com mais de um idioma oficial em cada região –;
em sendo cidadãos, possuem direitos e deveres não vinculados a uma cultura, mas a uma
instituição jurídica232
.
Cardoso de Oliveira (2000) traz outra perspectiva no que tange à linguagem e à
nacionalidade ante a perspectiva da fronteira. Antropólogo, o autor faz um estudo sobre a
relação identitária em regiões fronteiriças que traz interessantes resultados. Sua contribuição
para o estudo das identidades nos é particularmente interessante na medida em que estuda,
entre outros, o catalanismo em Barcelona e em Andorra. Embora ambas localidades
compartilhem o idioma, possuem história e território bastante distintos, além de aspectos
geográficos bastante definidos.
Barcelona é urbana há muitos séculos, como demonstrado anteriormente. Cosmopolita,
internacional, assume uma relação com a língua e identidade catalãs diferenciada de outras
comunidades catalãs, como Girona, Tarragona233
e mesmo Andorra, que apesar de não fazer
231
O texto original antecede a I GG, no entanto, ainda expressa algo que se vê facilmente ao se visitar tais
fronteiras. Hoje, também se fala muito o inglês como língua franca nessas áreas e isso é expressão do poderio
antes inglês e hoje estadunidense, segundo nossa visão. 232
“A nacionalidade formada pelo Estado, portanto, é a única a que devemos obrigações políticas. Por
conseguinte, é a única que tem direitos políticos. Os suíços são, etnologicamente, franceses, italianos ou alemães,
mas nenhuma nacionalidade tem o menor direito sobre eles, exceto a nacionalidade puramente política da Suíça.”
(LORD ACTON, 2008, p. 39). 233
“[...] em cidades “tipicamente” catalãs, como Girona ou Tarragona (portanto, mais conservadoras e
provincianas), o sentimento de catalanidade tende a ser muito mais forte; nelas não se observa indicadores
expressivos de ambivalência na afirmação da identidade, como se observa em Barcelona.” (CARDOSO DE
102
parte da Catalunha, é o único país catalão independente (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000). O
autor chama atenção para o valor que a posição geográfica fronteiriça atribui aos caracteres
étnico e nacional, na medida em que suas populações originárias ou locais buscam se
diferenciar do estrangeiro, “invasor”. Note-se que “Andorra – [país] situado entre Espanha e
França, [é] um país inteiramente “de fronteira.”” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, p. 14).
Cardoso de Oliveira coloca em seu artigo Os (dês)caminhos da identidade que embora
baseados numa cultura próxima e falantes da mesma língua, devido à sua história e aspectos
geográficos, Barcelona lida com o ser catalão de forma muito distinta dos cidadãos de
Andorra, que embora adotem a língua catalã, reivindicam sua andorraneidade. Isso ocorre
porque Andorra está localizado em território de fronteira, tendo recebido mais estrangeiros do
que possui nacionais234
. Assim, independente da língua compartilhada, as populações catalãs
espanholas, barcelonesa e os andorranos exprimem sua identidade de formas distintas. Para os
cidadãos de Andorra, o idioma catalão não expressa sua nacionalidade como para catalães
espanhóis, sendo apenas o idioma oficial falado.
Tocamos nesse momento nas questões de identidades nacionais e étnicas.
Nesse minúsculo país de fronteira, a questão crítica parece ser menos a da identidade
étnica e mais a da identidade nacional, quando a construção da identidade andorrana
fica sobreposta, por sua vez, à identidade (étnica) catalã, pois que esta é observável
tanto na Espanha e na França quanto em Andorra. Mas não são apenas catalães
espanhóis e franceses que emigram para este país. Também castelhanos, portugueses e
emigrantes de vários outros lugares da Europa procuram se estabelecer nos belos vales
dos Pirineus andorranos, tendo-se a destacar ainda a atração que a Andorra moderna e
urbana exerce nos setores de comércio, finanças e de turismo. Hoje Andorra “é uma
sociedade opulenta, plenamente imersa no mundo do consumo e do cosmopolitismo”
(D’Argemir e Pujadas, 1997, p. 95), e onde três línguas são de uso corrente: o catalão,
como idioma oficial, mais o francês e o castelhano, sendo o castelhano a principal
“lingua de interação e intercâmbio com os numerosos turistas que passam pelo país.
No contexto de Andorra, o castelhano tem um valor claramente instrumental, mais que
simbólico ou identitário (exceto para aqueles originários de zonas de fala castelhana)”
(idem, p. 3).” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, p. 14).
Andorra busca, ao contrário da Catalunha hoje, manutenção de sua identidade nacional,
na medida em que já possuem um status de nação, cuja etnicidade, porém, é sobreposta pela
identidade (étnica) catalã. Para eles, mais importante em termos de sobrevivência das tradições
de seu povo, é a sobrevivência da andorraneidade; a catalanidade parecendo algo à parte, que
não necessariamente lhes pertence ou os diferencia dos demais catalães. Assim, primam pelas
OLIVEIRA, 2000, p. 13). Isso se justifica devido ao quociente estrangeiro em Barcelona, devido ao caráter
próprio de Barcelona, de urbe às margens do Mediterrâneo durante (pelo menos de) quase um milênio. 234
“Mais de 70% da população residente [em Andorra] é estrangeira (umas 45 mil pessoas), diante dos 19.653
cidadãos do Estado[...]” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, p. 14).
103
linhagens, pelas origem, mais do que prezam as narrativas culturais e históricas. Ao contrário,
os catalães espanhóis, buscam uma identidade nacional através da reivindicação de uma
identidade étnica, que é justificada justamente numa tradição cultural distinta da espanhola.
Ainda às voltas com a identidade, Fabregat (1984, p. 150 apud CARDOSO DE
OLIVEIRA, 2000, p. 12) traz um dado que é bastante importante para nossa análise:
Barcelona é uma cidade pluricultura e poliétnica: está constituída de uma base étnica
catalã e de etnias resultantes de imigrações massivas, de maneira que à sua
complexidade socioeconômica relativa soma-se a complexidade etnocultural relativa.
Como processo, Barcelona é um conjunto de interações sociais governadas por uma
estrutura cultural comum, a urbana e a correspondente ao sistema político-
administrativo do Estado espanhol. Mas esse conjunto está formado por subconjuntos
étnicos com suas culturas específicas, cada um dos quais obedece a uma orientação de
comportamento que lhe é própria. Referimo-nos neste caso, ao modo cultural de ser de
cada etnia, à sua diferenciação interna enquanto, pelo menos, língua e folclore e,
ademais, a um modo de ser, a uma axiologia e a uma consciência histórica, isto é,
enquanto um grupo etnicamente polarizado nas ocasiões de contrastes.
Voltando para o universo espanhol, o castelhano235
é a língua oficial em todo seu
território, sendo a língua materna da maioria dos espanhóis. Em algumas regiões – dentre elas,
naturalmente temos as ditas separatistas – é também a língua dominante, apesar de ser
admitida hoje a diglossia. “A Espanha tem hoje quatro línguas oficiais: castelhano, galego,
basco e catalão/valenciano.” (VARGAS, 2009, p. 13). Esse estatuto jurídico legal só foi
concedido após o fim do Franquismo, com a Constituição espanhola de 1978236
. A
Constituição reconhece as três nacionalidades independentistas como nacionalidades históricas,
mas só admite um status de co-oficialidade a seus idiomas.
Por sua vez, o catalão (català) é uma língua falada por cerca de nove milhões de
pessoas, distribuídas pelas regiões de:
Catalunha (exceto o Val d’Aran), Franja de Ponent (uma faixa dentro de Aragão rente
à fronteira com a Catalunha), Ilhas Baleares e País Valenciano (exceto o interior); fora
da Espanha, o catalão também é falado no Principado de Andorra, onde é a única
língua oficial, no Departamento dos Pirineus Orientais na França, a chamada
235
O castelhano é ainda a língua oficial de outros dezenove países, contando com cerca de 400-450 milhões de
falantes latinos. A população hispânica ocupa ainda territórios onde não é admitido o espanhol como língua
oficial, mas cuja presença é inegável, como nos EUA. É a terceira língua mais falada no mundo, um dos seis
idiomas oficiais da ONU e a segunda língua mais estudada no mundo. (VARGAS, 2009) 236
Isso também se relaciona com a adoção do catolicismo como religião oficial, nacional, que também assegura o
emprego da língua nacional. Assim, a língua adotada se vincula com outros símbolos nacionais, auxiliando na
construção identitária nacional. Além disso, auxiliam na propagação dos valores nacionais, fidelizando seus
praticantes. (SELLIER, 2008)
104
Catalunha Norte, e na cidade de Alghero (L’Alguer em catalão) na Sardenha, Itália;
em ambos os lugares é reconhecido apenas parcialmente.237
(VARGAS, 2009, p. 14)
Tais regiões são tradicionalmente chamadas de Països Catalans, embora tal nomenclatura seja
rejeitada em algumas localidades, como Valência – que experimenta na verdade um sentimento
anti catalanista, marcando clara oposição ao movimento de unidade catalã no que se refere a
relações culturais, políticas e econômicas: embora falem catalão, gostam de chamar seu dialeto
local de valenciano e se nomearem como País Valenciano. É interessante notar que esse
fenômeno avesso se formou após o regime franquista238
(DOWLING, 2014). Ainda sobre o
catalão, Vargas (2009, p. 14) traz que: “[...] é a décima língua em número de falantes da
Europa, sendo considerado a língua minoritária mais importante do continente.”. De forma
talvez um pouco surpreendente, e que não é muito divulgada no Brasil, além do catalão e do
espanhol, em Catalunha também é falado o occitano e algum aragonês. Por sua vez, também
pequenos povoados em Aragão falam catalão239
, bem como o catalão está presente na Espanha,
Andorra, Itália, França e Ilhas Baleares (VARGAS, 2009). A questão linguística hoje esbarra
na política, uma vez que desde a ditadura franquista foi uma das principais reivindicações
históricas dos catalães – tanto é que na Constituição espanhola de 1978 é expresso que o
catalão é língua oficial e de livre uso, sendo a questão cultural de competência exclusiva da
Generalitat, o poder autônomo catalão (CARRERAS, 2017).
4.1.3. O reestabelecimento da Generalitat e o surgimento do catalanismo
Em 1898, após a perda das colônias pela Espanha, e sob influência das ideias
propagadas pela Geração de 98, a Liga Regionalista Catalã obtém sucesso nas eleições
espanholas pela primeira vez. O fato foi fortemente divulgado pela imprensa, o que provocou
237
“No País Valenciano a língua é oficialmente denominada valenciano (valencià), fato político que no entanto
não rompe com a efetiva unidade lingüística que forma com as demais regiões.” (VARGAS, 2009, p. 14) 238
Downling sugere que esse sentimento vivido pelos valencianos pode ser compreendido pela propaganda forte
durante o período franquista, que não só suprimia o catalanismo, como o denegria, alegando ser este um
movimento pan-catalanista. Isso, porém, seria falso: “[...] whilst the notion of La terra (the Land) became key in
the emergence of Catalanism, when used it always referred to Catalan land and not to that Valencia or the
Balearics.” (DOWNLING, 2014, p. 9). A reivindicação do movimento nacional catalão em termos de ampliação
territorial, em verdade, sempre foi marginal, sendo seu grande foco a autonomia da região em termos políticos.
Seu maior incômodo em relação ao centralismo espanhol é não poder expressar e viver sua crença política,a
política catalã, que se compõe e desenvolve a partir dos movimentos anarquistas e do operariado desde os
primeiros anos do século XX. 239
A relação entre a Coroa de Aragão e o Principado da Catalunha é de certa forma íntima, já que tiveram que se
unir na época em que a Espanha se constituía como Estado nacional, querendo reclamar a si todos os territórios
ibéricos.
105
um sentimento de união entre catalães de tendência esquerdista, que clamavam pela ampliação
dos poderes catalães em Espanha.
As primeiras três décadas do século XX viram a emergência e a consolidação do
nacionalismo catalão. Ademais, a Catalunha também era distinta devido à existência
de um movimento trabalhador poderoso e único, centrado no anarquismo, que batia
direta e frequentemente com o movimento nacionalista [espanhol]. As primeiras
décadas do século XX foram testemunha dessa luta entre o catalanismo e o trabalho
organizado. A rápida industrialização e modernização em um Estado retrógrafo fez
surgir o movimento regionalista ao final do século XIX. A democratização fraca levou
à emergência do movimento anarquista mais forte da história mundial. A sociedade
moderna catalã experimentou um grau excepcional de revoltas. A força militar e
policial espanhola teve papel chave na supressão desses movimentos entre 1902 e
1923.240
(DOWLING, 2014, p. 2, tradução nossa)
.
Em 1914 foi criado por Enric Prat de la Riba a Mancomunitat, que alcançou bons
resultados até o golpe de Primo de Rivera, em 1923 (HARRIS, 2014). Para de la Riba, os
catalães eram espanhóis que desejavam construir uma Espanha diferente (DOWLING, 2014), e
o fariam por meio da política. Para tanto, era impressindível que tivessem liberdade para
governarem conforme seus próprios princípios e crenças. Almejavam, portanto, autonomia e
soberania – mesmo que algo limitada – sob a forma de um autogoverno regional, quiçá possível
numa Espanha confederada. Sabendo da improbabilidade de alcance de uma confederação
espanhola, porém, pensavam que podiam sonhar ao menos com uma Espanha federalista.
Conseguiram um início: em novembro de 1932 foi eleito o primeiro Estatuto da Catalunha,
após passar pelas Cortes.
Opuseram-se ao Estatuto em princípio os espanholistas, de tendências conservadoras e
centralizadoras como Royo Villanova, Unamuno e Ortega y Gasset. Concomitantemente, o
golpe do General Sanjurjo, em setembro de 1932, acabou adiando seu estabelecimento, o que
também levou os catalanistas a aceitarem mais concessões autonômicas quanto às
reivindicações iniciais. Por fim conseguiriam o estatuto de língua cooficial para o catalão, a
competência de direito civil, administração local e regime administrativo da Catalunha para a
Generalitat (BALCELLS, 2006). Uma eleição para aceite da população catalã seria feita em
janeiro de 1934, não incluindo, contudo, o restante da Espanha. A legislação, a seu turno,
passaria, juntamente com questões municipais, a ser objeto de discussão não mais do governo
240
Do original: “The first three decades of the twentieth century saw the emergence of a powerful and unique
labour movement centred on anarchism which clashed directly and frequently with the nationalism movement.
Much of the early decades of the twentieth centry are witness to this struggle between Catalanism and organised
labour. Rapid industrialisation and modernisation in a backwards state led to the rise of the regionalist movement
in the late nineteenth century. Weak democratisation led to the emergence of the most powerful anarchist
movement in world history. Modern Catalan society has experienced an exceptional degree of upheaval. The
Spanish military and Police performed key suppressive roles between 1902 and 1923.“
106
espanhol apenas241
, mas regional – catalão. A primeira parte da década de 1930 foi marcada,
dessa maneira, por conflitos ideológicos dentro de Espanha, com atrito especial entre catalães e
espanhóis. A Guerra Civil em Espanha eclode num cenário de forte movimento social, como
forma de repressão aos levantes populares revolucionários que ocorriam nas regiões
separatistas da Espanha, originários de grupos anarquistas e do operariado, que ganhavam voz
em partidos e agremiações com alcance internacional. A própria origem da ideologia que
moldava o discurso dos rebeldes ecoava da URSS, com claros contornos leninistas. Os ativistas
clamavam que o centralismo espanhol suprimia seus direitos civis e identitários. É por isso que
o catalanismo na Catalunha passou a ser, mais do que tudo, um movimento político. É difícil
pensar sequer na cultura catalã hoje sem sua política.
Uma interpretação muito sugestiva deste catalanismo inicial é aquele que se
assemelha ao regeracionismo espanhol, o de Joaquín Costa, Lucas Mallada, os
escritores da geração do 98, os krausistas discípulos de Julián del Río – Francisco
Giner de los Ríos, Nicolás Salmerón, Gumersindo de Azcárate, Adolfo Posada – até
chegar à geração de 1914, a de José Ortega y Gasset e Manuel Azaña. Apesar de as
diferenças ideológicas serem notáveis, o regeracionismo e o catalanismo
compartilham uma mesma preocupação: a reforma do Estado da Restauração e a
mudança política, econômica, social e moral da Espanha. Neste sentido, o catalanismo
político seria a forma adotada na Catalunha do regeracionismo espanhol.242
(CARRERAS, 2017, p. 122, tradução nossa)
Por tudo isso, os embates travados na Catalunha foram ferozes, sendo a região
atacada de uma forma nunca antes vivida. Um terço das perdas humanas durante a Guerra Civil
espanhola se deram lá. A Igreja também se envolveu, na medida em que Franco subsidiava a
instituição e concedia-lhe a partir da vitória, uma oportunidade para restaurar o prestígio de que
gozava em tempos idos. A Igreja Católica passa a fazer parte, portanto, do poder da Falange e
do militarismo em Espanha. Dessa maneira, seria a Igreja Catalã que manteria vivas as
tradições e a língua catalã, permitindo a reconstrução e renascimento do catalanismo a partir da
década de 1940, ou seja, após o fim da Guerra Civil (HARRIS, 2014). O mosteiro de
241
“Había ámbitos en que la legislación y la ejecución correspondían en exclusiva al poder central y otros en la
que la ejecución (pero no la legislación) la tenia la Generalitat, como los seguros sociales y generales o el arbitraje
y la inspección laborales, mientras que la legislación social se la reservaba el poder central. Se debían traspasar a
la Generalitat los servicios de orden público, administración de justicia, administración local (con la desaparición
de los cuatro gobernadores civiles), relaciones laborales y obras públicas.” (BALCELLS, 2006, p. 733). 242
Do original: “Una interpretación muy sugestiva de este catalanismo inicial es aquella que lo asemeja al
regeneracionismo español, el de Joaquín Costa, Lucas Mallada, los escritores de la generación del 98, los
krausistas discípulos de Julián Sanz del Río – Francisco Giner de los Ríos, Nicolás Salmerón, Gumersindo de
Azcárate, Adolfo Posada – hasta llegar a la generacion de 1914, La de José Ortega y Gasset y Manuel Azaña. Si
bien las diferencias ideológicas eran notables, el regeneracionismo y el catalanismo compartían uma misma
preocupación: la reforma del Estado de la Restauración y el cambio político sería la forma que adoptó en Cataluña
el regeneracionismo español.”
107
Montserrat ocupa papel importante nesse cenário, por ter inaugurado a publicação de livros
religiosos em catalão, bem como de uma revista mensal em catalão, a Germinsàbit (1949).
Esta, por sua vez, levou à constituição de um fórum chamado Serra d’Or (1959), que seria o
principal difusor de publicações, revistas, boletins e livros que debatiam o catalanismo. “Entre
1939 e 1976, mais de 1200 livros sobre matérias religiosas foram publicados em língua catalã e
até a metade de 1940, esses eram os únicos livros publicados em catalão.”243
(DOWLING,
2014, p. 4). Em 1960 já havia uma boa produção cultural catalã e a Igreja Catalã havia ocupado
o lugar da Igreja nacional, até mesmo devido ao seu papel social na Catalunha. Isso somente foi
possível devido à pouca perseguição política à Igreja durante o período franquista (Idem).
Na arena política, embora feita clandestinamente, também houve resistência. Jordi
Pujol, prominente devido ao legado bancário do pai, exercia seu ativismo político sob a insígnia
fer país, que significa fazer o país, enxergando já os dias de fim do franquismo e da volta do
regime democrático na Espanha. Para ele, a iniciativa privada, assentada nas bases
socioideológicas seria a única capaz de garantir um futuro para a Catalunha. O fer país também
atuou junto à revista Serra d’Or e à empresa discográfica Edigsa, ambos importantes elementos
normalizadores da língua catalã. A resistência se deu, assim, por meio de uma rede de
colaboradores, que defendiam a cultura catalã (HARRIS, 2014; DOWNLING, 2014). Como
antecipado por Pujol, finda a ditadura, foram a Igreja Catalã e os pujolistas os fortes
responsáveis pelo primeiro texto sobre o reconhecimento da Catalunha como nação. A essa
altura, o movimento anarco-sindicalista catalão já havia sido há muito tempo militar e
politicamente abafado. Os valores democráticos o substituiria, até mesmo devido à mudança no
objetivo principal dos grupos reprimidos durante a ditadura: a manutenção da cultura catalã, ou
seja, sua defesa e sobrevivência, feita por meio da resistência cultural simbólica. (DOWLING,
2014), que
[...] é o uso de todos os tipos de símbolos da identidade da minoria nacional tanto na
esfera pública como privada, alinhando-se desde ações isoladas e arriscadas até
atividades que atraiam apoio maciço. Tais ações interrompem simbolicamente o
controle do estado e deixam claro que de fato existe alguma forma de
descontentamento no meio da população. No terreno privado, a resistência é
primordialmente levada adiante pela família. A língua e a cultura da minoria são
aprendidas em casa e, com frequência, só podem ser postas em prática dentro de
grupos restritos determinados pela família ou pelos laços de amizade. (GUIBERNAU,
1997, p. 114)244
243
Do original: “Between 1939 and 1976, over 1,200 books on religious subjects were published in the Catalan
language and until de mid 1940s these were the only books published in Catalan.” 244
Guibernau menciona ainda outros três tipos de ações de resistência: “ações de interferência”, “ações de elite” e
“ações de solidariedade”.
108
Pujol e alguns de seus colaboradores acabaram sendo condenados, devido ao
comprometimento político de seus membros. Por vinte anos resistiram, e foram os mesmos que,
após a morte do General Franco, no governo de transição, assumiriam a frente política.
O final da Guerra Civil, a derrota da República e a implantação da ditadura franquista
apagaram todo o rastro da época estatutária republicana e, inclusive, da etapa anterior.
Os democratas e a maior parte dos catalanistas que sobreviveram a esses anos foram
para o exílio, exterior ou interior, e até a década de 1960 não se iniciou a
recomposição de uma oposição democrática ativa e visível.245
(CARRERAS, 2017, p.
126, tradução nossa).
Em 1976, sob a tutela do rei Juan Carlos I, o presidente Adolfo Suárez promoveu a
operação reforma, que levaria à realização das primeiras eleições democráticas no próximo
ano, em julho de 1977. Para reforçar a legitimidade dos eventos políticos, Suárez convidou
Josep Tarradellas, ex presidente espanhol exilado durante o franquismo e símbolo da Segunda
República. Suárez almejava que Tarradellas ocupasse a liderança da Generalitat, iniciando um
período transitório e mais moderado, com competências modestas. Em 1978 sob o Decreto
Real 2092/1978 foi incorporada a língua catalã ao sistema de ensino e somente em 1979, após
longas discussões com o Estado espanhol passou-se à Generalitat as competências para a
“agricultura, indústria, urbanismo e comércio, saúde, cultura e trabalho.” (CARRERAS, 2017,
p. 134, tradução nossa)246
. O Estatuto foi aprovado por uma comissão mista Congresso –
Assembleia de Parlamentares em 13 de agosto de 1979 e submetido a referendo na Catalunha
em outubro daquele ano. Em janeiro de 1980, após aprovação pelo Congresso e Senado, bem
como sanção do Rei Juan Carlos, foi publicada uma versão final do Estatuto de Autonomia da
Catalunha (CARRERAS, 2017). Os marcos gerais são:
a) Reconhece a Catalunha como nacionalidade e a Generalitat como instituição na
qual se organiza seu autogoverno.
b) Estabelece a cooficialidade do catalão e do castelhano, fazendo menção do
catalão como língua própria, isto é, específica e diferenciadora do território da
Catalunha.
c) A Generalitat assime as mais amplas competências que permite a Constituição,
apurando todas as possibilidades até o limite que assinala seu artigo 149.I, no qual se
245
No original: “El final de la Guerra Civil, la derrota de la República y la implantación de la dictadura franquista
borraron todo rastro de la época estatutaria republicana e, incluso, de la etapa anterior. Los demócratas y La mayor
parte de los catalanistas que sobrevivieron a esos años pasaron al exílio, exterior o interior, y hasta la década de
1960 no se empezó a recomponer uma oposición democrática activa y visible.” 246
Como exposto no capitulo prescedente, na Constituição espanhola de 1978 consta no art. 2 o reconhecimento
do direito de autonomia das nacionalidades das regiões espanholas, permitindo-lhes a criação de instituições
políticas próprias, com as competências assinaladas, em concordância com seus Estatutos. Também as línguas
nacionais passam a ter caráter oficial, juntamente com o castelhano, caso assim estabelecer o Estatuto. Por último,
a promoção, desenvolvimento e proteção das culturas de cada comunidade autonômica passa a ser garantia
constitucional.
109
estabelecem as matérias reservadas como exclusividades do Estado. Entre as
assumidas se encontra a competência exclusiva em matéria de cultura.247
(CARRERAS, 2017, p. 136-137, tradução nossa).
A Generalitat volta, desta maneira, com mais poder do que tinha na SR, tendo sido
acolhida como uma vitória pelos catalanistas. Uma parcela passa, porém, conquistada a
autonomia, a almejar a separação do Estado espanhol. Em sua maioria eram esquerdistas e
chamados por isso de cinturão vermelho de Barcelona e cresciam a cada eleição parlamentar
catalã. Para impedir a coalisão do PSC com o PCU, os empresários encabeçam movimentos de
posição mais centralista (por meio dos partidos CiU e UCD, forças do centro) a fim de deter o
avanço da esquerda. Com uma forte mensagem catalanista, o CiU acabou tendo mais adeptos
dentro da sociedade catalã, que temia uma crise econômica, mas não queria aderir a partidos de
tendências espanholistas [estatais]. Ademais, encabeçando o CiU estava Jordi Pujol, cujo nome
era bem recebido pelos catalães. Após o desmanche do PSUC e do fim da UCD, o caminho de
Pujol estava livre para atuar conforme suas crenças, e assim o fez por 23 anos.
De 1980 a 2003 a Catalunha viveu um momento de reestabelecimento de suas
instituições, apesar de ter colateralmente trazido traços de imposição ideológica, época que foi
chamada de pujolismo. Segundo Carreras (2017), os catalães “étnicos” que não aderiam ao
catalanismo sofriam constrangimento social, sendo chamados de anticatalães e até mesmo de
traidores. Os imigrantes, seja de Espanha, seja de outros lugares, eram ditos espanholistas. Faz-
se, portanto, uma construção clara de uma identidade do tipo nós eles. Outra forma de
constrangimento ou coação para adesão ao movimento catalanista é a exigência do domínio da
língua catalã para ocupação de cargos públicos ou políticos, como diretores de escolas ou
institutos. Também os partidos políticos que não colocavam a Catalunha como prioridade eram
ditos sucursalistas248
. Dividiram-se os cidadãos da Catalunha, havendo os bons e os maus
catalães, sendo os primeiros os que observavam as regras da catalanidade (CARRERAS, 2017).
É curioso perceber que nesse momento ambas as identidades étnica e nacional se constituem de
forma muito marcada: tanto quem não participou da história quanto quem não compartilha da
cultura, principalmente considerando a questão linguística, passa a ser visto como diferente em
Catalunha. Colabora com isso também o fato de uma boa parte da classe operária na Catalunha
247
Do original: “a) Reconoce a Cataluña como nacionalidad y la Generalitat como institución en la que se
organiza su autogobierno. / b) Establecía la cooficialidad del catalán y el castellano, haciendo mención del catalán
como lengua propria, es decir, específica y deferenciadora del territorio de Cataluña. / c) La Generalitat asume las
más amplias competencias que permite la Constitución, apurando todas las posibilidades hasta el límite que señala
su artículo 149, en el que se establecen las matérias reservadas en exclusiva al Estado. Entre las asumidas se
encuentra la competência exclusiva en matéria de cultura.”. 248
Os partidos catalanistas eram CiU e ERC, que não admitiam os socialistas catalães – como o PP e o PSC. Este
acabou como um partido irmão do PSOE, que não é fortemente difundido na Catalunha.
110
ser constituída por falantes do castelhano, sugerindo um passado migratório (CARRERAS,
2017). Cardoso de Oliveira, em estudo sobre a identidade em Barcelona percebe a ambiguidade
vivida pelos catalães, que são obrigados ora a agir como minoria, ora como força nacional.
Mas se toda a relação social é uma via de mão dupla, o etnicismo vivido pelos
catalães não deixa de igualmente envolvê-los quando são levados a se assumirem
como identidade étnica — portanto, sociologicamente minoritária — diante dos
castelhanos emigrados de Madri e possuidores de certa respeitabilidade,
particularmente quando são funcionários do Estado espanhol. É quando a Catalunha,
mesmo desfrutando o regime autonômico, passa a se relacionar nos termos da
opressiva dependência secular que caracteriza sua interação com os castelhanos. [...]
essa interação catalã/castelhana é uma verdadeira antinomia que, por sua vez,
fundamenta a ideologia da catalanidad (Cardoso de Oliveira, 1995a). As
representações negativas vão colhê-los com o mesmo caráter de desconsideração
moral que vitimaram galegos, bascos e outros imigrantes regionais. Tanto estes
quanto os castelhanos chegam, em determinadas situações, a tratar os catalães com
as mais variadas formas de descortesia: quando irritados com a língua catalã, assim
se expressam: “A mim, fale-me como cristão!” ou “Os catalães falam como cães!”; e
quando politicamente indignados, interpelam: “Vocês não querem ser espanhóis!”,
ou “Vocês são uns separatistas!”. E parecem buscar explicações que, de algum
modo, possam levá-los a melhor compreender os donos do lugar, dizendo: “Os
catalães são muito egoístas e fechados!”, ou “Falam em catalão para não podermos
entendê-los!” (Esteva Fabregat, 1984, p. 102). Diante dessas inversões da etnicidade
observáveis em Barcelona, pode-se deduzir que a identidade catalã enfrenta dois
desafios: de um lado, o de sustentar o seu domínio sobre os grupos imigrantes
ingressados no território catalão; de outro, o de marcar sua soberania perante os
castelhanos, representantes reais ou simbólicos do Estado espanhol. Atuando entre
duas frentes na sustentação de sua identidade, os catalães — conforme as
circunstâncias de sua inserção no cenário interétnico — vivem a ambigüidade de sua
dupla situação: a de membros de uma sociedade anfitriã (diante das etnias
imigrantes) e a de “povo hóspede” do Estado espanhol, dominado pelos castelhanos.
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000, p. 12-13).
Percebe-se a partir disso que o catalanismo, como movimento nacionalista, tem traços
novecentistas, o que se acirra a cada investida do Estado espanhol de supressão de sua cultura,
já que também é carregada de preconceitos e concepções de uma Catalunha superior ao resto da
Espanha que não necessariamente corresponde ao cenário atual. Sobre isso discutiremos
adiante no próximo tópico – a Catalunha moderna, industrializada, rica, em oposição a uma
Espanha atrasada, agrária e pobre. Outro aspecto que remete a um anacronismo no movimento
independentista catalão é o apego à unidade cultural, que se mostra principalmente a partir das
políticas culturais e linguísticas. Não queremos com isso alegar que são aspectos irrelevantes
ou de pouco valor dentro de uma sociedade, mas que num mundo cada vez mais internacional,
pensar em culturas puras faz tanto sentido quanto falar de etnias puras. Dessa maneira, quando
há muito esforço narrativo, há um risco grande de que tal tradição seja talvez inventada,
passando a um status de mito social. Sobre a construção da narrativa catalanista sob a tutela
estatal alega Carrera:
111
[...] Os principais instrumentos de produção cultural foram os meios de comunicação,
em especial os públicos, TV3 e Catalunya Ràdio, criados na primeira legislatura de
Pujol, quando ainda não tinha maioria absoluta no Parlamento. [...] É o caso, por
exemplo, dos esportes (sobretudo do futebol, com o Barça como emblema da
Catalunha nacionalista), da informação do tempo (delimitando o território catalão até
ali onde se fala a língua catalã, os chamados <<Països Catalans>>), dos programas
infantis e de entretenimento (obsessivamente centrados na simbologia histórica e
cultural nacionalista), dos seriados melodramáticos (com uma linguagem subliminar
em torno ao que constitui o <<caráter nacional>> em uma Catalunha onde todos falam
apenas catalão, com exceções intencionais, como os guardas civis), dos programas de
humor político (em especial Polònia, pseudocrítico com os políticos, mas que faz um
constante desprezo a Espanha e contínuas provocações à monarquia)249
.
(CARRERAS, 2017, p. 157, tradução nossa).
Um aspecto muito vivo dessa richa entre Espanha e Catalunha, mencionado no trecho
anterior e que chega até nós – de fácil compreensão e acesso – é a cultura nacionalista no
futebol espanhol. Há uma rivalidade acirradíssima entre o time da coroa espanhola, o Real
Madrid250
, e o time Futbol Club Barcelona, o Barça – cujo slogan é més que un club. Quando
há um jogo entre os times nacionais, as bandeiras catalãs são hasteadas251
, hinos são entoados,
alcançando característica de uma verdadeira instituição nacional. Sendo o futebol um esporte
popular, cabe dizer que durante o franquismo o estádio era um oásis para o torcedor, onde era
permitido ser catalão. Isto dá ao time uma demarcação política e sociocultural. O time catalão é
fundado em 1899, isto é, na virada do século XIX para o XX, impulsionado pelo esforço de um
suíço que permitia a associação de estrangeiros ao clube, o que desde o primeiro clássico
favorece provocações: “Referindo-se ao primeiro clássico entre os dois clubes, que ocorreu em
13 de maio de 1902, com uma dose de ironia, um texto destaca: “Los catalanes, plagados de
249
Do original: “[...] Los principales instrumentos de producción cultural han sido los medios de comunicación, en
especial los publicos, TV3 y Catalunya Ràdio, creados en la primera legislatura de Pujol cuando aún no tenía
mayoría absoluta en el Parlament. [...] Es el caso, por ejemplo, de los deportes (sobre todo del fútbol, con el Barça
como emblema de la Cataluña nacionalista), de la información del tiempo (delimitando el território catalán hasta
allí donde se habla la lengua catalana, los llamados <<Països Catalans>>), de los programas infantiles y de
entretenimiento (obsesivamente centrados en la simbologia histórica y cultural nacionalista), de los seriales
melodramáticos (con un subliminal lenguaje en torno a lo que constituye el <<carácter nacional>> en una Cataluña
donde todos hablan solo catalán, com excepciones intencionadas como los guardias civiles), de los programas de
humor político (em especial Polònia, seudocrítico con los políticos pero que hace un constante desprecio a España
y continuas burlas a la monarquía).” 250
O time foi fundado em 1902 e se chamava apenas Madrid. Devido a vitórias constantes e de uma competição
disputada em homenagem a Sua Majestade, o rei Alfonso XIII concedeu-lhe o título de Real. (1911-1920: o
Madrid...). Disponível em: < https://www.realmadrid.com/pt/sobre-o-real-madrid/historia/futebol/1911-1920-o-
madrid-consolida-se-e-ganha-o-titulo-de-real>. Acesso: 30 de maio de 2019. Outra informação interessante é que
durante o franquismo (1950) o General Franco também fez uso ideológico do futebol, ao que se chamou
“nacional-futebolismo”. O FC Barcelona revidou com o “catalanismo futebolístico” em 1960 (RIGO et
TORRANO, 2013). 251
Somente o puderam fazer após 1975. O ato ganha mais notoriedade e significado porque durante o franquismo,
os torcedores do FC Barcelona deixaram de ondear as bandeiras espanholas. (RIGO et TORRANO, 2013).
112
extranjeros, venceran por 3-1””252
(RIGO et TORRANO, 2013, p. 195). A sociologia há
tempos estuda fenômenos de massa, sendo o futebol um deles. É um evento que reúne muitas
pessoas em prol de um objetivo comum, em que não há apelo racional, mas sim que remete a
sentimentos tribais, de competição, sobrevivência, emoção. Não supreende, portanto, que haja
tanta paixão envolvida, extrapolando para a esfera da identificação nacional. Ou se é branco253
ou se é barça: não há coexistência, pois não há arena para dois vencedores.
Por último, lembremos de La Senyera, a bandeira nacional catalã, vista sempre às
janelas dos independentistas, testemunhada por qualquer transeunte nas ruas da capital catalã,
onde há um movimento mais vivo e perceptível de reivindicação e participação sociopolítica
em termos da independência da Catalunha. Também as manifestações no dia nacional da
Catalunha, La Diada, deixa clara a forma como se resiste ao espanholismo hoje254
, a partir da
expressão nacional, reforçando sentimentos nacionalistas com formato romântico. Dessa
maneira, podemos afirmar que o catalanismo como nacionalismo se tornou um movimento
popular e, portanto, folclórico. Como disse Renan, “o erro histórico é parte da formação de uma
nação.” (apud HOBSBAWM, 1997, p. 22).
4.2. O Plebiscito, a Catalunha e a União Europeia: o Catalão, o Espanhol, o Europeu255
.
A questão que gira em torno dos últimos eventos independentistas catalães, o
Plebiscito de 2016, em que a Espanha julgou inconstitucional, tem um início bastante peculiar:
a questão da identidade. Como visto no capítulo primeiro do presente estudo, a identidade é um
dos pontos fundamentais da abordagem construtivista das Relações Internacionais, juntamente
com questões ligadas aos interesses dos atores. Alexander Wendt (2014) assume que existem
quatro manifestações da identidade, que coexistem, e por vezes se alternam devido à ausência
de fronteira clara entre elas. São elas as identidades tipo (históricas e culturais), papel
(propriedades intrínsecas [WENDT, 2014, p. 275] nas interações com os atores), coletiva (que
une características de identidades tipo e papel) e, por fim, identidade corporativa, que abrange
252
Segundo os autores, a informação consta no site oficial do Real Madrid FC. Salientam também que vários
escândalos dentro do clube levou os catalães a repudiarem o clube, que teve de mudar de escudo e nome, o que
acabou convertendo-o em um símbolo catalão. 253
O Real Madrid também é chamado de “os brancos”. 254
Carreras (2017) lembra que somente após a adesão dos partidos catalanistas às demonstrações da Diada o
movimento tomou verdadeiramente as ruas, o que se deu em 2010. 255
Título tributário de BORRELL, CARRERAS, BURNIOL E PIQUÉ (2017).
113
todas elas, mas que também concede ao ator sua agência e auxilia na compreensão e previsão
de seus comportamentos (WENDT, 2014).
Para nós é especialmente interessante em nosso estudo a que ele classifica como
identidade papel. Wendt as distingue como propriedades intrínsecas, num sentido que só
existem ou se manifestam por meio de uma contra-identidade ou um Other. Assim, os papéis
se dão através da institucionalização de características que não dependem da interação dos
atores para serem estabelecidas. Conquistadores e colonizados, dessa maneira, seriam papéis
dos atores estatais, mesmo que não se pudesse prever tal relação antes de ela se dar. A ideia que
Wendt parece trazer é de que dentro das relações, os entes se reconhecem como X ou Y, e
sabem que essa identidade é conhecida pelo Other (um pelo outro), o que repercute diretamente
na relação de alteridade entre elas. Assim, não há uma relação de causa e consequência, visto
que uma não deriva da outra: não é algo, portanto, da ordem do mecânico, mas do orgânico,
num sentido de que há uma margem para interpretação e liberdade na adesão a esses papéis,
embora não muita. Isto seria reflexo de uma estrutura fraca.
A partir da identidade corporativa ou pessoal abrem-se outros tipos. O segundo tipo
de identidade estatal, derivadas daquelas são as identidades tipo. Como o próprio vocábulo já
supõe, ela nada mais é do que uma categorização, rotulação de um grupo de peculiaridades de
um ator que lhe tornam único. Pensando numa arena internacional, algumas características
distintivas seriam, por exemplo, atitudes, valores, habilidades, linguagem, conhecimentos, um
passado comum, etc. (WENDT, 2014). Note-se que não são características físicas como
território, tipo de flora ou fauna, necessariamente: Wendt menciona pontos um pouco mais
significativos socialmente. Dizer isso é trazer traços mais particulares e interativos, como
normas e regras que, na relação entre dois ou mais atores, podem explicar mudanças nas suas
identidades de tipo, lhes dando contornos históricos e culturais.
Falar de identidades de tipo e dizê-las históricas e culturais, para além de mencionar
categorias, em nível estatal, nos orienta a pensar em regimes ou formas de Estado, isto é:
capitalistas, fascistas, monárquicos, democráticos, entre outros. É mister ressaltar que enquanto
culturais, seus conceitos também são atualizados a partir das interações, não sendo porém,
imprescindível que assim seja – atores podem atualizar seu tipo por meio da interação ou por si
só. No entanto é mais habitual que as relações entre os Estados e os novos eventos
internacionais promovam mudanças. (WENDT, 2014) A identidade da Espanha seria assim,
monárquica, capitalista e democrática – ao menos em 2019, o ano em que fazemos esse estudo.
A Catalunha, não sendo um Estado, há que enquadrar-se numa mesma categorização de
114
Espanha, pois, embora possamos atribuir a alguns partidos o atributo tipo de separatistas ou
indepentistas, essas são características que se adequam melhor ao conceito identidade papel,
aquela assumida temporariamente por uma coletividade. Isto porque ambos os tipos de
identidade, tipo e papel, concebem a identidade coletiva, constituídas num processo entre
ambas. A tipificação wendtiana nos ajuda a fazer uma melhor leitura social, sendo, portanto,
um processo absolutamente cognitivo. O próprio Wendt reconhece que as fronteiras entre as
classificações dos quatro tipos de identidade são turvos, no entanto, conseguimos sim distingui-
los separadamente. Não podemos, no entanto, acreditar que um tipo de identidade subsiste sem
os demais. Os tipos são singulares e se referem por fim ao que são os atores. Atribuir
identidade é admitir quem são os atores; de fato percebendo-os como sujeitos operantes,
agentes, dentro da arena (inter)nacional. Assim, a identidade coletiva é aquela em que ambos,
Self e Other se identificam, seja por meio de temas ou de maneira ampla. Por fim, é a
identidade papel, segundo ele, que permite que as soberanias dos Estados sejam reconhecidas e
que possuam uma igualdade – não afluindo ela da identidade corporativa.
Também Guibernau discute a questão da identidade. Guibernau é uma escolástica
de origem Catalnha e dedicou-se profundamente à problemática com a qual convive. Nesse
ínterim, a autora também se preocupa em localizar o conceito de identidade em termos sociais.
Ela diz que:
Identidades atuam como mecanismos de inclusão e exclusão social, criando limites
imaginários entre aqueles que pertencem e os que não pertencem a comunidades
específicas. Identidades são frequentemente reforçadas referindo à existência de um
inimigo comum capaz de unir as pessoas e reforçar um sentimento de comunidade
entre elas. Durante o período franquista, e também em outros períodos da história
catalã, Castela – ou por vezes a Espanha, usada como sinônimo de Castela – foi usada
como esse elemento externo contra o qual os catalães sempre lutaram. Em outras
palavras, de uma perspectiva castelhana, a Espanha foi definida como um quadrado
inflexível, dentro do qual não caberia outras formas como a triangular, a cônica ou a
romboide, as quais irremediavelmente colidiriam com os limites, definidos como
inamovíveis, de um Estado feito para servir apenas para alguns.256 (GUIBERNAU,
2004, p. 3, tradução nossa)
O ponto trazido é interessante, pois faz coro à ideia de que uma Espanha que convive
com suas identidades é possível. Existem partidários na Catalunha que defendem a manutenção
256
Do original: “Identities act as mechanisms of social inclusion and exclusion, creating imaginary limits between
those who belong and those who do not belong to specific communities. Identities are often strengthened by
referring to the existence of a common enemy capable of bringing people together and reinforcing a feeling of
community among them. During the Francoist period, and also in some other periods of Catalonia’s history,
Castile – or sometimes Spain used as a synonym of Castile – has been used as that external element against which
the Catalans have often fought. In other words, from a Castilian perspective, Spain was defined as an inflexible
square within which it was not possible to fit triangular, conical or rhomboidal pieces which irremediably collided
with the limits, defined as immovable, of a state made to suit just a few.”
115
da Catalunha em Espanha, e que esta seria a maneira mais vantajosa para todos os lados,
política, econômica e socialmente. Embora haja diferenças entre ambas as nacionalidades em
termos de linguagem, pensamento e história, estes não seriam antípodas em relação à ideia de
que catalães são também espanhóis. Isso porque a história da Espanha goza de um passado
comum com a Catalunha, havendo o compartilhamento de ideias com relação a muitos pontos,
independente de suas diferenças, isto é, não é uma diferença tão radical ao ponto de impedir o
diálogo. Outras abordagens irão defender uma reforma federalista na Constituição espanhola,
definindo melhor o que entra ou não dentro do conceito de autonomia, e o que esta autogestão
– o autogoverno – inclui ou não. O diálogo e as negociações seriam fundamentais para a
harmonia entre os dois Selves, uma vez que nem a desobediência [civil] nem a imposição de
leis solucionariam os problemas e as emoções coletivas de que cada uma delas dispõem
(BORRELL, 2017).
Percebemos, então, que a questão do catalanismo independentista espanhol hoje toma
contornos fundamentalmente políticos. Segundo Carreras (2017, p. 110), o catalanismo político
é “um movimento transversal que soube traçar um terreno comum com regras implícitas
próprias”257
, que deve ser compartilhado por todo aquele que deseje praticar política na
Catalunha, independente de sua posição política (esquerda ou direita). Carreras (2014) chega a
fazer uma tipologia dos tipos de catalanismos que existem hoje na Catalunha, sendo eles três:
um mais descentralizador e liberal; um mais regionalista e integrativo; e um mais romântico.
Todos eles retomam os movimentos culturais e cívicos ocorridos na Espanha durante o período
da Restauração e seus grandes representantes seriam, respectivamente: Almirall, Torres i Bages
e Prat de La Riba. As raízes ideológicas foram compartilhadas desde seu início desde os grupos
conservadores até os mais liberais e democráticos, que embora tivessem raízes ideológicas e
interesses sociais diferentes, confluíam na preocupação incansável de buscar na história uma
identidade coletiva diferenciada da espanhola. Negavam, porém, tanto quanto o centralismo, a
ruptura da sociedade espanhola258
. Uma possibilidade vislumbrada seria, assim, a composição
de uma confederação espanhola, da qual seus membros partilhassem da soberania estatal a
partir do exercício do autogoverno (CARRERAS, 2017).
A população catalã hoje, a respeito da questão secessionista, está dividida. Sobre
este ponto é interessante ressaltar que a população civil catalã é formada na atualidade por
257
Original: “[...] un movimiento transversal que supo trazar un terren común com unas reglas implícitas proprias
[...]”. 258
Se pensarmos nos poemas de Maragall, por exemplo, achamos odes tanto à Espanha quanto à Catalunha. O que
não se admitia, portanto, era uma visão de uma Espanha una, sem diferenças, “única, antíga, castelhanizada e
homogênea” (CARRERAS, 2017, p. 110).
116
espanhóis de diversas partes, trazidos até a região devido às oportunidades oferecidas devido a
um avanço industrial-tecnológico que remonta ao início do século passado. Hoje essa diferença
não é mais tão expressiva, devido ao próprio fato de pertencerem hoje à União Europeia. Ao
contrário da discrepância que havia entre uma Espanha oitocentista agrária e uma Catalunha
industrial, devido aos processos de integração europeia, torna a realidade compartilhada pelos
dois Selves menos conflitante: a crença de que o resto da Espanha seria camponês não é mais
uma realidade. Outra questão é da marca espanhola de pluralidade259
. Assim, existem espanhóis
de outras regiões, estrangeiros de outras localidades, europeias ou não, e catalães que se
identificam tanto com a nacionalidade espanhola como com a catalã – sendo essa divisão de
fato muito próxima dos 50%-50% (BALCELLS, 2017; BORRELL, 2017; CARDOSO DE
OLIVEIRA, 2000).
A justificativa dada à separação de Espanha pelos independentistas seria a
superioridade econômica e cultural catalã. Há uma crença social independentista, sem, porém,
qualquer embasamento empírico, de uma Catalunha independente dentro da Europa – e,
consequentemente, também como membro da UE. Defendem que a Catalunha faz um repasse
injusto de suas arrecadações para Espanha, cujo montante poderia ser revertido em benefício à
própria Catalunha. Além disso, há uma descrença geral dos catalães em relação ao que é
veiculado midiaticamente pelo governo central espanhol, acreditando antes que este lhes mente
permanentemente (BORRELL, 2017). Se sentem, dessa forma, “frustrados, enganados,
discriminados e maltratados.” (Idem, p. 38, tradução nossa) tanto pelo governo espanhol quanto
pelo Estatuto ele mesmo. Esse aspecto é muito relevante, pois é nesse embate ideológico que
atuam os políticos, sabendo que a percepção é mais importante no jogo político do que a
realidade (Idem). Essa conjunção de fatores explica o desejo pela separação catalã do Estado
espanhol por parte dos catalães independentistas. A propaganda feita pelos porta-vozes catalães
é, por isso, muito forte. Quando Junqueras, Mas e seus companheiros políticos alegam que a
Espanha rouba da Catalunha, mostrando até uma cifra – nunca comprovada –, eles afetam
diretamente a opinião pública catalã. O cálculo que apresentam, porém, é impreciso, pois
algumas variáveis importantes não entram nas contas feitas. Uma dessas variáveis é a questão
259
Inúmeros autores das Relações Internacionais das teorias do Terceiro Grande Debate ressaltam a presença da
ideia de uma “comunidade humana”, plural, ao invés de mundos cada vez mais particulares, que vão de encontro a
objetivos cooperativos em nível regional e global. Morris lembra sobre isso também uma citação pertinente de Raz
sobre o tema, que vai nesse mesmo sentido: “[...] o multiculturalismo é a melhor política para nossas sociedades; a
separação e a independência servem somente para aqueles que fracassam em viver juntos (correspondência
pessoal).” (apud MORRIS, 2005, p. 356). Concordamos com a leitura trazida por esses estudiosos, uma vez que,
conforme mencionado no capítulo teórico, acreditamos que as nações são construções que temporal e linearmente
ultrapassam os limites dos Estados.
117
da participação da Catalunha na União Europeia em caso de separação da Espanha.
Independentistas afirmam que automaticamente ou em curto prazo, a Catalunha seria
(re)conhecida internacionalmente como nação independente e poderia aderir à Comunidade
Econômica. No entanto, essa informação não tem fundamentação empírica, i.e., não há
nenhuma regra ou documentação em vigor que garanta que isso ocorreria. Borrell afirma, por
isso, em direçao inversa e de maneira taxativa que “uma das razões mais poderosas e
importantes pelas quais uma independência declarada unilateralmente não conduz a nenhuma
parte é porque implicaria a saída da Catalunha da União Europeia (UE) e, em consequência, do
euro.” (BORRELL, 2017, p. 39, tradução nossa)260
.261
Dessa maneira, os acordos tarifários
vigentes entre membros da união europeia, que facilitam tanto o escoamento do excedente
produtivo catalão, como encontra nele seu consumidor internacional mais próximo, poderiam
prejudicar a balança de pagamentos catalã, até mesmo considerando que a Espanha passaria a
ser outro Estado, que poderia impor barreiras alfandegárias – inclusive como forma de
retaliação. Não há dúvidas, ademais, de que parte da arrecadação catalã deriva de seu próprio
mercado espanhol.
Quanto à questão do esporte, da língua, e da economia; todas são frentes disputadas
por espanhóis e catalães. Independentistas afirmam que nem mesmo o time Barcelona sairia
perdendo com a secessão, pois assim como Monaco pôde permanecer na Liga Francesa,
Barcelona deveria permanecer na Liga Espanhola. Frisamos mais uma vez que tais alegações,
porém, não trazem qualquer fundamentação empírica ou jurídica, correlato ou precedente
histórico efetivo para serem afirmadas e veiculadas como verdade, e muito menos como
argumento pró-independência262
. Dito isto vale lembrar que, segundo o Conselho da Europa,
“[...] a reivindicação como nação de uma comunidade humana que se define como tal por
razões histórico-culturais-linguísticas não pressupõe o direito político a constituir-se em um
260
“[...] uma de las más poderosas e importantes razones por las cuales uma independencia declarada
unilateralmente no conduce a ninguna parte es porque implicaría la salida de Cataluña de la Unión Europea y, em
consequencia, del euro.” 261
Ainda sobre isso, Borrell (2017, p. 40) afirma que “Nada de eso es cierto. Los criterios de la ONU para la
aplicación de ese derecho no son aplicables a Cataluña, como há señalado el próprio ex secretario general de ese
organismo internacioal, Ban Ki-moon, porque no es uma colonia, ni un territorio ocupado militarmente, ni se
persigue ni discrimina a las minorias nacionales. Es bueno recordarlo, aunque no lo quieran escuchar aquellos para
los que las emociones son más importantes que las razones y los deseos más fortes que la realidad.”. Outro ponto
interessante trazido pelo autor é seu relato pessoal, de que se sente catalão, espanhol e europeu. Em adição, afirma
ainda que “Sentir identidades múltiples es parte de la construcción de um demos europeo que sugere nuestro
trágico pasado [de guerras e desunião]. El objetivo de la UE no es aumentar el número de entes soberanos, sino
compartir las soberanias existentes hasta hacerlas converger.” (Ib., p. 41). 262
Com a exceção que de fato Mônaco participa da Liga Francesa.
118
Estado.” (apud BORRELL, 2017, p. 59, tradução nossa)263
. Ressaltamos que a população
linguística catalã ocupa a parcela majoritária dos independentistas264
.
A partir das justificativas trazidas pelos independentistas, podemos afirmar,
portanto, que grande parte da dificuldade dentro da questão Espanha-Catalunha se nutre de
sentimentos. É o nacionalismo e sua profetização que dificultam o diálogo entre ambas as
partes. A Espanha não quer abrir mão de sua soberania sobre o território, e a Catalunha, se
imaginando tão distinta e tão oprimida, deseja cada vez mais emotivamente e menos
racionalmente sua separação, seu reconhecimento como nação soberana, enaltecendo assim
seus traços individuais. Ocorre que, ao contrário do que se dava “[...] em tempos idos, [em que]
o povo assumia sua identidade a partir da localidade, hierarquia e divindade.” (MORRIS, 2005,
p. 346), hoje tais reivindicações não fazem mais tanto sentido; havendo antes a defesa de
perspectivas mais globais e integracionistas, que é o que mais se aproximaria dos valores e
interesses europeus de nossos dias.
Outro discurso encontrado entre catalães independentistas em prol de Catalunha é o
securitizador. Depois de tantos interlóquios entre os Selves discutidos, a autogestão pode ser
bem compreendida como questão de segurança. Num mundo em que os governos populistas se
tornam cada vez mais populares, e num mundo em que a cientificidade perde lugar para o
destempero e crenças, sem conceções das partes não se vê outro cenário que não o de um
recrudescimento centralista e conservador para reassegurar a existência do território nacional
original. No caso catalão-espanhol, os independentistas sugerem que sem a soberania regional
a Catalunha, seus costumes, crenças, valores e interesses podem ser eventualmente subsumidos
pela Espanha, uma vez que na configuração política atual não há personalidades suficientes que
defendam os interesses catalães, pois se considera nessa visão que os interesses catalães são
diferentes daqueles dos espanhóis – a Catalunha estaria sendo governada por estrangeiros, sem
qualquer compromisso real com a defesa da individualidade catalã. Morris (2005) faz uma
provocação pertinente nesse sentido.
É verdade que se encontram ressentimentos nacionalistas contra governos estrangeiros
nos tempos antigos [caso Maria Antonieta na França, por exemplo]. Ainda assim, até
263
“Y según el Consejo de Europa, <<la reivindicación como nación de uma comunidad humana que se define
como tal por razones histórico-culturales-lingüísticas no presupone el derecho político a constituirse en un
Estado>>.” 264
Borrell (2017, p. 25) coloca que: “También existe uma estrecha relación entre grupo etnolingüistíco e
independencia. No existen datos que permitan hacer comparaciones con la situación em 2006. Pero en la
actualidad hay dos Cataluñas antagónicas. El 77,6% de los que consideran el catalán como su lengua propria
apoyaría la secesión, mientras que el 73% de aquellos que consideran que es el catellano la rechazaría. Y los que
se decantan por ambas rechazarían la indendependênciaforma más moderada (46% contra 36%).”.
119
recentemente, a maioria dos povos preferia um governo estrangeiro justo e eficiente a
um governo injusto ou ineficiente por “si mesmo”. Atualmente, praticamente ninguém
suporta ser governado por estrangeiros. (MORRIS, 2005, p. 345-346).
A partir da fala de Morris lembramos, ainda, que é muito recente em tempos
históricos o exercício do governo vinculado à etnia ou nacionalidade, sendo muito mais
habitual que se assuma a legitimidade de um governo em torno de questões de cunho
político265
. Os grandes monarcas fundadores do Estado nacional eram em verdade nobres
detentores de poder na forma de território, que herdavam, ganhavam e negociavam [suas
posses] por meio de instituições sociais como Igreja, casamento, guerra ou laços de suserania e
vassalagem. Questões diplomáticas muitas vezes eram resolvidas com um simples casamento
entre coroas e famílias, o que demonstra que a questão cultural subjacente à romantização do
nacional de fato está próxima da nostalgia, reafirmando sua ligação com a memória e com as
narrativas sociohistóricas266
.
Outra variável que acreditamos interferir na securitização da questão catalã por
parte dos independentistas é a da dificuldade de o homem do século XXI – principalmente do
final da década de 2010 – lidar com novos modelos de interconexões globais, quando
predomina o excesso informações: em grandes quantidades e com uma velocidade sem
precedentes. A sombra de passados remotos em que o subjugo das ditaduras reprimiu as
diferenças não apenas por não dar voz às minorias, mas por lhes haver calado – no caso catalão
por mais de três décadas (GC) – ainda é uma ferida aberta. Ao mesmo tempo, o fato de parecer
ser uma possibilidade um governo catalão da Catalunha mexe com um construto imaginário
que leva à exaltação do semelhante, à valoração do familiar e è defesa de valores
compartilhados. Aprofundando em uma análise individualista, admitida por Wendt e outros
teóricos críticos, podemos inferir que toda a questão do nacional remonta talvez à natureza
mais recôndida do humano. Sugerimos a partir disso que questões de segurança e de proteção
da família, do lar, do clã; advém de um inconsciente coletivo (FREUD, 2010). Em termos
freudianos, poderíamos afirmar que há no apego a uma origem nacional – a uma ideia de
maternidade: na medida em que se lida com o nascimento – um complexo edípico também em
relação às nações e aos Estados. Ângela Mucida lembra que segundo Freud, “[...] questões
advindas do mal-estar da cultura em cada momento, e [o] envelhecer em um mundo permeado
265
Morris (2005) afirma que até o século XX a norma era ser governado por estrangeiros. Vide Monarquia inglesa:
até 1917 sendo governada por uma casa germânica: os Saxe-Coburg-Gotha; hoje pelos Windsor. 266
Admitimos que a narrativa histórica é feita pelos “vencedores”.
120
pelo imperativo do novo tornou-se uma nova forma de mal-estar na cultura.” (MUCIDA, 2006,
p. 14).
O romance em torno do universo maternal é o promotor por excelência dos
conflitos íntimos humanos. Tais nódulos não são facilmente acessados pelos indivíduos, mas
mantidos em seu subconsciente. Não obstante, se manifestam na fala e nas ações do ator, bem
como na própria construção de sua identidade (FREUD, 2010; SMITH, 1991). Ora, se as
primeiras formas societárias humanas tinham propriamente o formato familiar, não parece um
absurdo trazer essa análise para nosso campo de estudos. Ainda, retomando o conceito
etimológico que anteriormente trouxemos no trabalho, de que o termo nação traz em si
elementos que remetem ao nascimento, e condensando essas reflexões e as trazendo para o
campo das ciências sociais, podemos inferir que o que confere tanto poder à ideia da nação é de
fato o vínculo afetivo promovido pelo estabelecimento de um sentimento de pertencimento que
a nação – e não o Estado – dá ao indivíduo.
A autoimagem e a representatividade de um grupo é um ponto-chave para
compreender o porquê de a soberania ser tão importante para os agentes, já que lhes insere
dentro de uma sociedade da qual desejam e acreditam fazer parte, lhes viabilizando a ação
política e social. Podemos, a partir do exposto, transitar pelos níveis de análise sem perder o
alcance analítico (WENDT, 2014). Num contexto eurocêntrico o universo familiar patriarcal
explica de forma satisfatória os complexos comportamentais de cada agente. A ordem é a
manutenção do status quo e a soberania é o falo freudiano (FREUD, 2012).
Assim, a satisfação substitutiva advinda pela sublimação ancora-se, por um lado, nos
objetos (nomeados por Freud por die Sache) que adquirem um valor social coletivo
com toda a plasticidade característica da pulsão, com todos os seus limites, e, por
outro, no contorno daquilo que é o objeto inalcansável da pulsão, a coisa, das Ding ou,
em termos lacanianos, o gozo do Outro. Existem diferentes respostas que servem de
anteparo ao gozo do Outro, e duas delas são as produções socialmente reconhecidas e
o desejo. [...] Por conseguinte, na sublimação, o objeto carrega investimentos
imaginários, culturais; e, buscando recobrir isso que não existe, ela tem íntima relação
com o impossível [...]. (MUCIDA, 2006, p. 92).
É por meio da detenção e do exercício da soberania que o estatuto de igual,
independente e poderoso será projetado para o agente social. Isso é verdade para Estados tanto
quanto para nações. Os pontos de interesse fundamental dos agentes, por sua vez, são sua
existência e expressão identitária. Estes, por sua vez, podem sim ser suprimidos dentro de um
Estado, causando o desconforto da negação de sua existência ou do impedimento de seu
fortalecimento e de sua individualidade, simbolizando sua castração. No caso catalão, é
121
inegável, assim, o papel que seus interesses e valores cumprem, mas também de sua língua e a
cultura. Ora, a linguagem é o que nos distingue de outros seres humanos (MORRIS, 2005, p.
348) e também dos animais – é o que nos torna humanos, que viabiliza a cognição. Da mesma
forma, faz sentido dizer que a linguagem é o que separa e afasta povos e ideias; pois é por meio
da linguagem que as trocas humanas são possíveis, bem como a expressão do seu desejo. Dessa
maneira, se me tolhem o direito de me expressar como quero no ambiente em que vivo, não me
sinto como parte integrante da comunidade, da mesma forma, não sou percebido como parte
dela. Para existir, é necessário que se tenha voz e que se possa falar. A reivindicação catalã por
sua soberania passa, assim, a ser uma reação esperada após o momento da castração catalã: a
Guerra Civil espanhola. Ela se estabelece no imaginário catalão como o real traumático, que
gera o sentimento de angústia e desamparo: A GC espanhola “introduz uma tentativa de fuga
que visa proteger o sujeito diante do perigo das impressões marcadas pelo trauma.” (MUCIDA,
2006, p. 208).
122
5 CONCLUSÃO
Apesar de tudo o que expusemos ao longo desse estudo, devemos nos lembrar de que a
Catalunha é uma região plural dentro de uma Espanha plural. Embora haja o ressentimento por
parte dos independentistas, não tem como ignorar as demais identidades que convivem na
Catalunha, principalmente na capital Barcelona. Embora façam plebiscitos, alardeiem declarar
sua independência, sabemos que o processo que leva à formação de um novo Estado, que se
separa de um território com soberania reconhecida internacionalmente não é tão simples quanto
seus partidários desejariam. Com todos os problemas identitários, a fim de salvaguardar o
interesse dos povos que habitam a Catalunha, o separatismo catalão não parece uma alternativa
viável. O catalanismo não possui representantes suficientes nem no Parlamento nem nas urnas,
o que torna uma possível separação ainda mais improvável. Nesse sentido concordamos com
Burniol, para quem o catalanismo passa a ser uma resposta a um neoespanholismo mal
sucedido que vem desde a época da independência de Cuba, que passa pela Renaixença, por
duas ditaduras e que fracassou em suas diversas tentativas de conjugar a Espanha num só povo
(BURNIOL, 2017).
O regime de exceção imposto pelo governo ditatorial do General Franco a toda a Espanha
no momento que segue à Guerra Civil espanhola tampouco contribuiu para essa unificação e
centralização espanhola, antes a fez recrudescer. A comunidade catalã se diz também histórica,
oprimida pelo governo de Madrid e diz buscar na independência o resgate de sua personalidade
e sua voz. Não obstante, a história em si não soluciona nenhum problema, por ser ela também
uma narrativa humana, passível a erros interpretativos e parcialismos (BURNIOL, 2017;
HOBSBAWM, 1997; PAIVA et GAVIÃO, 2019). Acreditamos que é isso que Hobsbawm quis
chamar de invenção da tradição, que Renan chamou de erro histórico; ambos sendo produto das
relações culturais que se dão e que se controem permanentemente (WENDT, 2014). Dessa
forma, confiar na memória para defender uma causa acaba se mostrando insuficiente para a
defesa de qualquer nacionalismo, pois ele não é sinônimo de benefícios e vantagens para um
povo, não implica em democracia e vai de encontro ao movimento liberal. Em verdade, dentro
do cenário que apresentamos ao longo do trabalho, a Catalunha dificilmente conseguirá bons
frutos de seus últimos intentos independentistas considerando o discurso europeu do século
XXI (CARRERAS, 2017).
Gostaríamos, a fim de avaliar a questão colocada ainda na introdução, de avaliar o
que depreendemos desse estudo. Queríamos primeiramente saber a razão da busca da
123
independencia por parte da Catalunha do Estado espanhol. Seria por que Espanha e Catalunha
constituíam dois Selves distintos? Verificamos que sim, e prova disso é que possuem línguas
históricas e culturais próprias e bem delimitadas que se relacionam como tais há cerca de um
milênio. Sua forma de lidar e se inserir nos movimentos internacionais também se deram de
maneiras diferenciadas, sendo notória uma abertura maior catalã aos diversos movimentos
artísticos, acadêmicos, religiosos, sociais e políticos internacionais. Tal comportamento fez da
região da Catalunha a mais precocemente avançada em termos industriais, além de torná-la a
mais consoante ao pensamento centro-europeu em comparação com o resto da Península
Ibérica. Esse foi um dos motivos que possivelmente levaram a uma adesão às crenças dos
movimentos nazifascistas geridos no Entre Guerras, tendo sim acirrado o movimento
nacionalista catalão, na medida em que expandiu por seus nacionais um sentimento de injustiça
e revanchismo, principalmente por parte de uma ala política mais erudita, que via nas
manifestações culturais catalães sua identidade. A dissonância ideológica levou à intolerância
político-cultural que é constantemente reconstruída dentro das próprias instituições, tanto
espanhola quanto catalã, embora esta última com mais apelo à sensibilidade e aos sentimentos
vinculados e acessados por meio da memória coletiva. Por se ver dependente do governo
central espanhol para dialogar e se expressar (inter)continentalmente, de acordo com seus
valores e interesses – e não os tendo defendidos, algumas vezes –, a Catalunha é mais sensível
às políticas que partem do governo central espanhol.
A partir da construção da alteridade Catalunha versus Espanha, estabeleceu-se
também a projeção da imagem de uma Espanha inimiga da manifestação do catalanismo
cultural, que por sua vez culminou na construção do catalanismo político. Por fim,
identificamos na Catalunha não uma identidade fraca, mas suficientemente forte e visível para
interferir na construção da política atual europeia, qual seja, de superação das fronteiras
nacionais modernas em detrimento de uma Europa compreendida como uma coletividade que
compartilha valores e interesses e que por isso defende a convivência e respeito às diferenças.
Assim, somente nossa terceira hipótese seria falseada, visto que a securitização da questão
catalã só é observada dentro dos núcleos conservadores catalães. Ora, não é verdade que o
catalanismo esteja de fato ameaçado em caso da não independência da Catalunha: ele em
verdade teria toda chance de prosperar não fossem justamente as insistentes tentativas de ver na
independência sua única alternativa de sobrevivência. Outras opções incluem saudar o
catalanismo como patrimônio regional, cultivando-o como expressão cultural via autonomia
juridicamente admita constitucionalmente pela Espanha. Com tantos atributos é improvável que
124
a Catalunha seja invisível para o mundo, especialmente num cenário globalista, com o
alargamento e maior alcance humano, tecnológico e comunicativo.
Para chegar a tais conclusões, refaremos brevemente nosso percurso, a fim de reconstruir
nossos argumentos. Colocado o problema e as hipóteses na introdução, delineamos o percurso
que faríamos, justificando o porquê de nossas opções teóricas e metodológicas. Com o objetivo
de cortejar o leitor que não é da área, fizemos uma breve retomada do estado da arte da
disciplina à qual pertence nossa pesquisa, qual seja, das Relações Internacionais. Passamos
então a trabalhar com conceitos teóricos específicos, selecionados de acordo com a pertinência
em relação à pergunta feita e consoantes com as variáveis que auxiliariam numa possível
resposta. Para entender o independentismo catalão foi necessário assim, falar sobre tradições;
costumes; fazer um estudo histórico sobre a construção (surgimento da ideia) dos Estados
Nacionais – i.e., do momento histórico e da história do pensamento em que se insere –; dando
sequência às definições de nação, nacionalismo, identidade e soberania.
No terceiro capítulo traçamos a narrativa da concepção do Estado-nacional espanhol,
abordando os movimentos ideológicos que fizeram parte da construção de Espanha e,
posteriormente, da Catalunha. Da mesma maneira como feito com os conceitos, buscamos
fontes diversas com o objetivo de confrontar as narrativas a fim de obter, na medida do
possível, um relato fidedigno que respondesse aos nossos questionamentos. Seguimos no
quarto capítulo com uma análise mais densa, abarcando dessa vez teoria e fatos, bem como
trazendo as discussões que circundam o problema, acreditando que nesse momento o leitor
tivesse maior clareza da análise proposta, uma vez tendo esclarecido anteriormente os conceitos
com os quais trabalharíamos. Ao final do capítulo quatro provocamos nosso leitor e sugerimos
uma nova abordagem para a compreensão da problemática nacional que extrapola o estudo de
caso feito, bem como instiga o pensador a desbravar novos terrenos. Com isso reafirmamos
nossa escolha teórica, demonstrando que ela ainda é atual e que ainda há caminhos a explorar.
Finalmente, trazemos as conclusões do estudo feito, que não têm a pretensão de serem
previsões, mas que denunciam a forma como algumas políticas domésticas e internacionais
vêm sendo feitas, impedindo por meio do excessivo narcisismo do agente político, o alcance de
políticas que sejam mais humanas, inclusivas, acessíveis; mas também mais benéficas e
vantajosas coletivamente. Nosso ponto se sustenta nos três níveis de análise possíveis dentro
das RI: individual, estatal e sistêmico.
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135
APÊNDICE 1:
Retomada dos últimos eventos do independentismo catalão
Em junho de 2019, Charles Puigdemont, Presidente regional catalão e líder do presente
movimento independentista, está exilado em Waterloo, na Bélgica; onde foi acolhido por um
partido separatista flamengo, simpatizante da causa catalã. Acusado de rebelião, desobediência
civil e uso indevido de recursos públicos, e sem poder retornar à sua terra, Puigdemont tem se
manifestado nos últimos tempos através de chamadas de vídeo-conferência para atuar dentro da
Catalunha267
. Puigdemont tentou concorrer às eleições do dia 26 de maio de 2019 para ocupar
uma cadeira no Parlamento europeu, o que naturalmente chegou até a Suprema Corte espanhola
e causou comoção de todas as partes envolvidas – aos catalães, aos espanhóis e aos europeus.
Também o resto do mundo acompanha o desenrolar do drama catalão-espanhol (QUITIAN,
2019).
Na eleição nacional espanhola, ocorrida em 28 de abril de 2019, o partido de Puigdemont,
o Unidos pela Catalunha (Junts per Catalunya, centro-direita) perdeu um assento no
Legislativo, enquanto o partido de seu companheiro de causa, Oriol Junqueras – Esquerda
Republicana da Catalunha, ERC – dobrou o número de assentos no Legislativo. Junqueras,
Artur Mas e mais dez líderes do movimento independentista catalão aguardam o julgamento
que deve ocorrer até o final de 2019, respondendo pelo crime de rebelião. Após o tumulto
social do Plebiscito pela independência da Catalunha, o ERC parece ter adotado um tom mais
diplomático numa negociação com o governo central da Espanha, que por sua vez viu o partido
Vox, de extrema direita, ganhar assentos no Parlamento espanhol pela primeira vez desde 1979.
Por sua vez, o PSOE obteve sua melhor marca desde 2008 (NEVES, 2019b).
José Luis Rodríguez Zapatero, Ex-presidente do governo espanhol, se manifestou a 25 de
junho de 2019 com relação à situação espanhol-catalã em entrevista à RAC1268
. Zapatero se
oferece como interlocutor das partes em busca de um apaziguamento e retomada de um
267
É desse modo que se comunica com sua equipe, discursa para a televisão catalã e participa de comícios
públicos (BIRNBAUM et BANOVIC, 2019). 268
Tanto trechos em vídeo quanto falas de Zapatero são disponibilizados em artigo de Luis B. Garcia. A entrevista
foi gravada e veiculada pela Rádio RAC1 87.7 FM de Barcelona. Foi consultada também matéria do site El País.
GARCIA, Luis B. Zapatero insta a “aprender la lección”de la sentencia del Estatut y aboga por estudiar indultos.
La Vanguardia. Barcelona, 25 jun. 2019. Disponível em: <https://bit.ly/2KCT9My>. Acesso: 25 de junho de 2019.
ZAPATERO, José Luis Rodríguez. Zapatero va parlar per telèfon amb Junqueras a la presó. Barcelona, 25 jun.
2019. Entrevista concedida a Jordi Basté. Disponível em: <https://bit.ly/2xgZvsg>. Acesso: 25 jun. 2019.
CATÀ, Josep. Zapatero aboga por “estudiar” indultos para lós presos independentistas. El País, Barcelona, 25 jun.
2019. Disponível em: <https://elpais.com/ccaa/2019/06/25/catalunya/1561455045_935329.html>. Acesso: 25 de
junho de 2019.
136
entendimento entre Espanha e Catalunha (RAC1, 2019 GARCIA, 2019; CATÀ, 2019). Para o
Ex-presidente há que se aprender com os últimos eventos, ao que afirma que o diálogo é o
único caminho, tanto para Espanha como para Catalunha. Zapatero se mostra favorável ao
estudo de um indulto aos independentistas que lideraram o Plebiscito de 2017, embora nenhum
pedido tenha sido feito por nenhuma parte. Diz também que as decisões do Judiciário devem
ser respeitadas e não devem ser confundidas com feitura de política, pois não são esferas que
atuam da mesma maneira ou que devem ter as mesmas repercussões. Os efeitos de sentenças
judiciais deveriam, por isso, ser acatadas como efetivas e definitivas, uma vez que são racionais
e que não devem se misturar com emoções. Admite ainda que o restabelecimento do diálogo
entre o governo espanhol e o catalão deve levar algum tempo, sugerindo que revisões
econômicas referentes aos Estatutos podem ser consideradas, assim como as garantias de suas
competências, as quais Madrid nunca teria se furtado a discutir (ZAPATERO, 2019). No que se
refere à independência da Catalunha, Zapatero mantém ser algo absolutamente fora de questão
(ZAPATERO apud GARCIA, 2019), pois implicaria na mudança da própria Constituição da
Espanha, o que torna o secessionismo catalão próximo do impossível, sendo esta uma medida
não apenas errada como antidemocrática ao considerarmos o todo espanhol; já que o Plebiscito
não ocorreu de maneira uniforme na Espanha ou que sequer teve participação suficiente para
sustentar a independência catalã. O Ex-governante mostrou cautela ao lidar com adjetivos tais
como golpistas, por ser um conceito escorregadio (ZAPATERO apud GARCIA, 2019);
afirmando depois que possam ser tratados talvez como presos políticos (ZAPATERO apud
CATÀ, 2019). Vale mencionar que na entrevista o ex-governante espanhol admite contato com
Junqueras e Puigdemont, embora por vezes de maneira indireta. Sobre o papel do Rei Felipe
VI, que não se manifestou sobre o Plebiscito de Outubro de 2017 e seus desenlaces, lembrou
que o papel do chefe de Estado deve ser meramente simbólico, logo que somente deveria falar
sobre isso caso pudesse efetivamente intervir em favor da resolução do conflito. Diz acreditar
na viabilidade do governo de Sánchez, pois, embora tenha que lidar com os independentistas,
que ocupam vagas parlamentares, possui também uma margem grande de assuntos que podem
gerar aproximação entre as partes. De maneira oposta, não demonstra surpresa nem apoio ao
pacto feito entre o Vox e o Ciudadanos (de Albert Rivera)269
, dizendo que mesmo que tenham
crescido em popularidade nas urnas trazem uma característica que não dura muito no fazer
269
Sobre o pacto:
CARVAJAL, Álvaro. Vox exhibe su primer acuerdo firmado con Ciudadanos para dejar evidencia a Albert
Rivera. El mundo, Madrid, 21 jun. 2019. Disponível em:
<https://www.elmundo.es/espana/2019/06/21/5d0ccb03fc6c83cd5a8b45e4.html>. Acesso: 25 de junho de 2019.
Vale dizer que ambos os partidos são anti-independentistas.
137
político: o aspecto da novidade: “Durante os dois primeiros km tudo parece legal, mas a
novidade na política dura pouco.”270
(GARCIA, 2019, Op. cit.[tradução nossa]).
Um último ponto a ser destacado é que no jornal La Vanguardia, periódico catalão, é
feita ao final da reportagem que divulga a entrevista dada por Zapatero uma enquete que até o
dia 25 de junho de 2019, 21h00min horas do horário oficial de Brasília, demonstra que mais de
60% dos leitores são desfavoráveis a um indulto aos independentistas. Isto pode indicar que há
baixa adesão ao independentismo, ao menos via insurreição a partir do Referendum.
270
Original em espanhol: “Durante los primeros kilómetros todo parece fresco, pero la novedad en política dura
muy poco”.
138
ANEXO 1
FONTE: WENDT, 2014, p. 50.
139
ANEXO 2
FONTE: DITCHBURN; MACLEAN; MACKAY, 2011, p. 130.
140
ANEXO 3
FONTE: SELLIER, 2008, p. 54.
141
ANEXO 4
FONTE: SELLIER, 2008, p. 30.
142
ANEXO 5
FONTE: DITCHBURN; MACLEAN; MACKAY, 2011, p.216.
143
ANEXO 6
FONTE: DITCHBURN; MACLEAN; MACKAY, 2011, p. 212.
144
ANEXO 7
FONTE: DITCHBURN; MACLEAN; MACKAY, 2011, p. 250.
145
ANEXO 8
FONTE: SELLIER, 2008, p. 73.