A Crise Da Saúde Pública e a utopia da saúde coletiva

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  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    Jairnilson Silva Paim

    Naomar de Almeida Filho

    A C R I S Eutopia da sade coletiva

    ISC

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    Ui H li! W CASA DA SADE

    A CRISE DASADE PBLICAE A UTOPIA DA

    SADE COLETIVA

    Y Vy VjA

    v > y v >Jairnilson Silva Paim -

    Naomar de Almeida

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    Copyright 2000 by Jairmilson Paim, Naomar dc Almeida Filho

    Depsito Legal na Biblioteca NacionalConforme Decreto n 1.825, dc 20 dc dezembro dc 1907.

    Produo Editorial: Fred Lima, Marcelo 'IVcjpn

    Reviso: Denise Coutinho j*

    *Capa: Luiz Folgueiras

    # 7 p 0 0 0 2 6 7 t f t e:da obra la* Solcil H jP .I f f l ilr Prlwird* A ilustrao reproduz detalhe c

    rauii, jairnnson oiiva, ly-ty^Almcitla filho, Naomar dc, 1952

    A crise da sade pblica c ^ttopia da sade coletiva /Jairnilson Silva Paim - Salvador, BA :

    Casa da Qualidade Editora, 2000.

    ISBN 85-85651-52-0

    Inclui bibliografia

    1. Sade pblica 2. Medicina - Filosofia I. Almeida f ilho,

    Naomar dc, 1952 II. TtuloCDD-362.1

    Todos os direitos desta edio reservados :

    Casa da Qualidade Editora

    Rua Tefilo Braga, 02 - Pituba

    CEP: 41810-300 - Salvador - BATel/Fax: 0x.x71- 452-7045/451-2023

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    COLEO SADE COLETIVA

    Direo da coleo:Naomar de Almeida Filho

    Conselho Editorial:Rita Barradas Barata

    Maurcio BarretoSebastio Loureiro

    Maria Ceclia Minayo

    Jairnilson Silva PaimGuilherme Rodrigues da Silva

    Lgia Vieira da SilvaCsar Gomes Victora

    A Coleo Sade Coletiva tem como meta difundir

    reflexes filosficas, posies tericas, abordagensmetodolgicas c conhecimento cientfico c tecnolgicoessenciais para a compreenso da realidade sanitrianacional. Atravs de textos curtos c objetivos, redigidosem linguagem clara e precisa, dirige-se principalmente

    a estudantes e profissionais de sade e reas afins.Espera-se dessa maneira subsidiar polticas, planejamentos e intervenes capazes de efetivamente melhorar a dramtica situao de sade da populao, contribuindo para reduzir a imensa dvida social da sadeem nosso pas.

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    A Teca, Marcele e

    iMauricio, pelo carinho de sempre.

    Jairnilson

    A Davi,

    o sexto filho.

    Naomar

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    SUMRIO

    Introduo 11

    Captulo 1

    Paradigmas e crises 19

    Captulo 2

    Movimentos no campo social da Sade 33

    Captulo 3

    A crise da Sade e a Nova Sade Pblica 49

    Captulo4

    Sade Coletiva: campo cientfico c

    mbito de prticas 59

    Captulo 5Novos paradigmas, novos sujeitos 73

    Captulo 6

    A utopia da Sade Coletiva 105

    Referncias Bibliogrficas 115

    Sobre os autores 125

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    INTRODUO

    Na segunda metade do sculo XX, a humanidadeexperimentou rpidas e profundas transformaes em

    todas as esferas da vida econmica, cultural, social epoltica, talvez como nunca em sua histria. Por sua

    velocidade e amplitude tais mudanas tm provocado,de um lado, uma certa perplexidade e de outro, umgrande esforo de reflexo e ao no sentido de com-

    preender e explicar o que se passa, a fim de intervirsobre a realidade. A internacionalizao da pro-

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    duo, distribuio c consumo, juntamente com o

    avano das tecnologias da informao, tem como resul

    tado a globalizao da economia e suas consequncias

    macroeconmicas: transnacionalizao empresarial,

    desterritorializao da fora de trabalho, desemprego

    estrutural, entre outras. Ao mesmo tempo, verifica-se

    um aumento das desigualdades entre os povos e os gru

    pos sociais, a ecloso de movimentos nacionalistas, aexacerbao dos conflitos tnicos, a agresso ao meio

    ambiente, a deteriorao do espao urbano, a intensifi

    cao da violncia e o desrespeito aos direitos humanos.

    No caso da sade, o debate sobre as suas relaes com

    o desenvolvimento econmico e social que marcou a

    dcada de 60 amplia-se, nos anos 70, para uma dis

    cusso sobre a extenso de cobertura dos servios. O

    reconhecimento do direito sade c a responsabilidade

    da sociedade em garantir os cuidados bsicos de sade

    possibilitam o estabelecimento do clebre lema Sade

    para Todos no Ano 2000 (SPT-2000). Busca-se, dessemodo, incorporar os avanos tecnolgicos da medicina

    c da Sade Pblica a custos compatveis, na expectati

    va de que para isso seria suficiente definir polticas,

    estratgias, prioridades e modelos de ateno, gesto e

    organizao de servios capazes de alcanar as metas

    da SPT-2000.

    Enquanto a estratgia da ateno primria sade se

    difunde a partir da Conferncia de Alma-Ata, os cen

    tros hegemnicos da economia mundial revalorizam o

    mercado como mecanismo privilegiado para a alocao

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    Introduo- 13

    de recursos e questionam a responsabilidade estatal na

    proviso de bens e servios para o atendimento de

    necessidades sociais, inclusive sade. A nova ordem

    mundial que se instaura na dcada de 80, inspirada

    no neoliberalismo, acarreta uma marcante fragilizao

    dos esforos para o enfrentamento coletivo dos proble

    mas de sade. Particularmentc nos pases de economia

    capitalista dependente, a opo pelo Estado mnimo

    e o corte nos gastos pblicos como resposta chamada

    crise fiscal do Estado cm muito comprometem o

    mbito institucional conhecido como Sade Pblica.

    Cabe aqui uma crtica quanto ao uso do termo sade

    pblica como um conceito que se refere ao campo geral

    da sade no mbito coletivo, ou seja, aos processos de

    sade-doena-sofrimento-morte na sociedade e s

    respostas sociais destinadas a lidar com tais fenmenos

    (Frenk, 1992). Como vamos esclarecer mais adiante, a

    designao Sade Pblica tem sido usada por refe

    rncia a um dos mais importantes movimentos ideo

    lgicos no campo da sade do sculo XX, justamente

    aquele que se encontra questionado em suas bases

    conceituais e prticas. No se justifica, portanto, a

    metonmia que faz equivaler a fonte de referencia ao

    objeto referido de interveno.

    Constata-se ento uma crise da Sade Pblica,

    percebida de modo diferente pelos distintos sujeitos

    atuantes neste campo social. Para a superao da

    crise, vrios aportes tm sido propostos, cada um deles

    apontando para a necessidade de novos paradigmas.

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    Assim, podemos incluir desde as iniciativas da OPS

    de reavaliar a teoria e prtica da Sade Pblica

    (PAHO 1995), at a proposio de uma Nova Sade

    Pblica como parte do movimento de renovao da

    estratgia sade para todos (Ncayiyana et al, 1995;

    WHO, 1995), e ainda a iniciativa do Banco Mundial

    de debater as prioridades na pesquisa & desenvolvi

    mento cm sade (World Bank, 1996). Em pauta,

    encontra-se a necessidade de construo de um marco

    terico-conceitual capaz de reconfigurar o campo

    social da sade, atualizando-o diante das evidncias

    de esgotamento do paradigma cientfico que sustenta

    as suas prticas.

    Os marcos de referncia da sade no mbito coletivo

    que dominaram o pensamento setorial durante mais

    de meio sculo parecem esgotados no momento atual,

    encontrando srios impasses e limitaes.

    Nesse particular, podem ser identificados alguns sinais

    de esgotamento: em toda parte, com a crescente tec-nificao da prtica mdica e a biologizao dos mode

    los conceituais, observa-se um enfraquecimento dos

    discursos sociais da sade; nos EUA, no final dos

    anos 80, um relatrio polmico do Institute of Medi

    cine intitulado The Future o f Public Health (IOM

    1988), anuncia a queda de prestgio e influncia das

    escolas de sade pblica, esvaziadas por abordagens

    individualizadoras da sade, como por exemplo o

    movimento da epidemiologia clnica; na Amrica Lati

    na, em um momento de despolitizao da cpiesto do

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    Introduo - 15

    desenvolvimento, a sade da populao tomada

    como um problema de reforma setorial, cada vez mais

    focalizado dentro da pauta mais ampla das polticas

    sociais (Paim, 1998).

    Alguns elementos de anlise deste processo podem ser

    encontrados na conjuntura poltica global. Por um

    lado, a falncia do estado de bem-estar e do modelo da

    seguridade social, determinada basicamente por umacrise fiscal, tem como contrapartida o fracasso do

    socialismo de Estado, assolado por uma crise de pro

    dutividade e de incorporao tecnolgica (Harnecker,

    2000). Por outro lado, a receita do neolibcralismo (c do

    modelo assistencial privatista total) tem alcanado

    resultados medocres no que se refere questo social,

    inclusive sade, conforme evidenciado pelo fracasso

    dos governos em cumprir as metas de Sade Para

    Todos no ano 2000. No obstante, acreditamos que

    alguns elementos epistemolgicos interdisciplinares,

    de natureza conceituai e metodolgica, estruturantes

    do campo cientfico da sade, so fundamentais para a

    compreenso e superao dos impasses que confor

    mam a crise da sade.

    Faz-se necessrio rever paradigmas e propostas de

    ao, visando a estabelecer balizamentos sobre a

    questo da sade no mbito coletivo. No caso especfi

    co da America Latina, a construo nos ltimos 20

    anos de um movimento denominado Sade Coletiva

    tem permitido um dilogo crtico e a identificao de

    contradies e acordos com a sade pblica institu-

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    cionalizada, seja na esfera tcnico-cientfico, seja no

    terreno das prticas. Em outras palavras, trata-se de

    considerar, no mbito do nosso interesse especfico,

    algumas questes. Ser que o movimento da Sade

    Coletiva pode se apresentar como um novo paradigma

    cientfico, em um sentido rigorosamente delimitado?

    Que pautas epistemolgicas, tericas, metodolgicas e

    polticas devem ser ativadas para alcanar mudanas

    paradigmticas no campo da sade? Pragmaticamente,

    que modelos de compreenso da situao de sade

    podero ser produzidos? Mais ainda, que efeitos tero

    tais transformaes sobre a retrica e a prtica no

    campo da sade?

    Neste texto, pretendemos realizar um estudo explo

    ratrio da retrica paradigmtica do campo da sade,

    consubstanciada nas redes produtoras e difusoras dos

    seus elementos ideolgicos. No Captulo 2, propomos

    definir o nosso referencial terico com o auxlio dos

    conceitos de paradigma c de campo cientfico, assina

    lando suas derivaes c aplicaes na rea da sade, a

    partir de uma perspectiva auto-reconhecida como prag-

    matista. No Captulo 3, analisaremos resumidamente

    os principais elementos de discurso dos movimentos

    ideolgicos que historicamente construram o campo

    social da sade da II Guerra Mundial at a conjunturaatual, em que se almeja uma renovao das bases da

    Sade Pblica. Para isso, propomos no Captulo 4 uma

    avaliao crtica das possibilidades de articulao desses

    movimentos a novos paradigmas cientficos capazes de

    auxiliar na superao da propalada crise da sade. No

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    Introduo - 17

    captulo seguinte, apresentamos uma tentativa de sis

    tematizao do marco conceituai da Sade Coletiva,

    em construo na Amrica Latina, situando mais particularmente as suas potencialidades de constituio de

    um conhecimento transdisciplinar. No Captulo 6, dis

    cutiremos como a transio paradigmtica poderia

    ensejar a constituio de novos sujeitos, destacando

    certos componentes polticos, estratgicos e pedaggi

    cos. Em concluso, pretendemos propor que este movi

    mento ideolgico pode melhor se articular a novos

    paradigmas cientficos capazes de abordar o objeto

    complexo sade-docna-cuidado respeitando sua his

    toricidade c integralidade.

    * * *

    Este livro resulta de consultorias realizadas junto ao

    Programa de Desenvolvimento de Recursos

    Humanos da Organizao Panamericana da Sade,

    por ambos os autores, em diferentes momentos

    entre 1991 e 2000, que resultaram em uma srie de

    trabalhos apresentados ou publicados. Somos gratos

    OPS, especialmente nas pessoas de Luiz Ruiz c

    Charles Goduc, pela oportunidade. Agradecemos a

    Jos Roberto Ferreira e Paulo Buss, da Escola

    Nacional de Sade Pblica da FIOCRUZ pelo decisivo encorajamento que tornou possvel o nosso

    envolvimento no projeto de avaliar a crise da Sade

    Pblica, seus desdobramentos e suas perspectivas.

    O processo de elaborao do texto foi realizado como

    parte do Projeto Integrado "Sade como Objeto-

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    CAPTULO 1

    PARADIGMAS E CRISES

    Observa-se cada vez mais uma ampliao do uso dotermo paradigma para tratar de qualquer tipo de

    conhecimento humano e, de um modo ainda maisalargado, para referir-se a prticas sociais de qualquernatureza. Atualmente, podemos encontrar desde umaequivalncia do paradigma ao conceito amplo decampo disciplinar, como na noo de paradigma daSade Pblica (Afif & Breslow, 1994), at um trata-

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    mento mais regionalizado de paradigma no sentido da

    mera atitude perante uma instituio, como por exem

    plo nos mltiplos usos que o termo vem adquirindo no

    campo das cincias da gesto (Serva, 1992). Em um

    nvel intermedirio, no prprio campo da sade, docu

    mentos oficiais de construo doutrinria tm feito uso

    do termo na conotao de modelo ou abordagem,

    como por exemplo a noo de paradigma da ateno

    primria sade (Nicayiyana et al, 1995). Como

    indicamos em outra oportunidade (Almeida Filho &

    Paim, 1997), trata-se de utilizao indevida de uma

    categoria cujo sentido tcnico encontra-se razoavel

    mente estabelecido no campo terico da filosofia da

    cincia, partieularmente na abordagem de crticahistrica de Thomas Kuhn (1975).

    Paradigma e campo cientfico

    Em A Estrutura das Revolues Cientficas, sua obra

    mais divulgada, Kuhn (1975) estabelece dois conjuntos

    de sentidos para o termo. Por um lado, como categoria

    epistemolgica, o paradigma constitui um instrumen

    to de abstrao, uma ferramenta auxiliar para o pen

    samento sistemtico da cincia. Neste caso, trata-se de

    uma construo destinada organizao do raciocnio,fonte de construo lgica das explicaes, firmando as

    regras elementares de uma dada sintaxe do pensamen

    to cientfico e assim tornando-se matriz para os mode

    los tericos. Por outro lado, em um sentido mais

    amplo, o paradigma constitui uma viso-de-mundo

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    Paradigmas c crises -21

    peculiar, prpria do campo social cientfico. Implica

    um conjunto de generalizaes simblicas, geral

    mente sob a forma de metforas, figuras e analogias,

    configurando-se de certo modo como a subeultura de

    uma dada comunidade cientfica.

    A teoria kuhniana do paradigma cientfico (e suas va

    riantes) rejeita claramente o sentido do senso comum

    para o termo paradigma, na acepo de padro dereferncia ou modelo a ser seguido, como por exemplo

    ao se dizer que o sistema de sade ingls o paradig

    ma da medicina social. No nvel semntico, a catego

    ria paradigma tem provocado uma grande controvrsia

    entre os filsofos da cincia (Pinch, 1982). No entanto,

    esta concepo fez avanar uma abordagem constru-

    tivista da cincia, propondo que a construo do co

    nhecimento cientfico no se d em abstrato, isolada no

    individualismo dos pesquisadores, mas sim que ocorre

    institucionalmente organizada, no seio de uma cul

    tura, dentro da linguagem. A cincia pode ento ser

    vista como social e historicamente determinada e s

    existe no interior do paradigma. No nvel da prtica, a

    cincia se realiza no contexto de instituies de pro

    duo socialmente organizadas como em qualquer

    outro campo de prtica social histrica (Minayo, 1992;

    Samaja, 1994).

    Em uma perspectiva autodenominada de ps-kuhniana,

    Rorty (1979, 1991) prope uma praxiologia para a com

    preenso da cincia, rejeitando frontalmente as tentati

    vas de tomar a cincia como uma mera construo

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    22 -A Crise da Sade Pblica

    ideolgica, mais especificamente como um instrumen

    to inevitavelmente a servio da dominao. A cincia

    somente faz sentido se entendida como prtica, uma

    prtica social que tem fundaes peculiares bem ver

    dade, mas que se exerce em um processo de dilogo c

    negociao destinado produo de um consenso

    localizado e datado, com base cm uma certa soli

    dariedade entre os atuantes da comunidade cientfi

    ca (Knorr-Cetina, 1981). Avanando na discusso

    sobre a dade retrica-prtica como forma privilegiada

    de compreenso do que a cincia produz e do que os

    cientistas fazem e propem fazer, Bhaskar (1997) abre

    um caminho interessante de argumentao: deve-se

    tratar a produo cientfica como ela concretamcnte sed, como um modo de produo, avaliado pelos seus

    processos e seus produtos.

    A produo cientfica se d num campo de foras sociais

    que pode ser compreendido como um espao multidi

    mensional de relaes em que os agentes ou grupos de

    agentes ocupam determinadas posies relativas, em

    funo de diferentes tipos de poder (Samaja, 1994).

    Nesse particular, Bourdieu (1983, 1989) contribui com

    os conceitos de capital simblico e campo cientfico,

    onde operam determinaes polticas e cientficas para

    a sua constituio. Para o autor, alm do capitaleconmico, cabe considerar no mundo social o capital

    cultural, o capital social c o capital simblico. Este lti

    mo, fundamental para a anlise do campo cientfico,

    manifesto como prestgio, reputao, fama etc., seria a

    fonte estruturante da legitimao das diferentes esp-

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    Paradigmas e crises- 23

    cies de capital. O campo cientfico constitui um campo

    social como outro qualquer, com relaes de fora e

    monoplios, lutas c estratgias, interesses e lucros. Para

    o estudo de um dado campo cientfico cumpre

    recusar a oposio abstrata entre uma anlise imanente ou

    interna, que caberia mais propriamente epistemologia e

    que restituiria a lgica segundo a qual a cincia engendra

    seus prprios problemas, c uma anlise externa, que rela

    cionaria esses problemas s condies de seu aparecimento

    (Bourdicu, 1983:126).

    No caso da anlise do desenvolvimento cientfico, para

    digmas correspondem s realizaes cientficas uni

    versalmente reconhecidas que, durante algum tempo,

    fornecem problemas e solues modelares para umacomunidade de praticantes de uma cincia (Kuhn,

    1975:13). Segundo este autor, em determinados

    momentos de crise poderiam ocorrer rupturas em

    relao aos pressupostos, conceitos c valores aceitos por

    uma comunidade cientfica, favorecendo a emergncia

    de teorias cientficas e o desenvolvimento para umadada disciplina ou campo interdisciplinar.

    Na anlise das revolues cientficas, todavia, a viso

    kuhniana privilegia as cincias naturais, reconhecendo

    o carter pr-paradigmtico das cincias sociais. Ou

    seja,enquanto, nas cincias naturais, o desenvolvimento do

    conhecimento tornou possvel a formulao de um conjun

    to de princpios e de teorias sobre a estrutura da matria que

    so aceitas sem discusso por toda a comunidade cientfica,

    conjunto que Kuhn designa por paradigma, nas cincias

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    2-t -A Crise da Sade Pblica

    sociais no h consenso paradigmtico, pelo que o debate

    tende a atravessar verticalmente todo o conhecimento

    adquirido (Santos, 2000:67).

    O paradigma dominante no campo cientfico da sade

    fundamenta-se em uma srie de pressupostos que nos

    acostumamos a chamar quase pejorativamente de

    positivismo. O positivismo mais radical considera

    que a realidade que determina o conhecimento,

    sendo possvel uma abordagem imediata do mundo,

    das coisas e dos homens (Santos, 1989). Alm disso, o

    paradigma do positivismo opera como se todos os entes

    constitussem mecanismos ou organismos, sistemas

    com determinaes fixas, condicionados pela prpria

    posio dos seus elementos. Uma verso ingnua dopositivismo ainda assola o campo da sade, principal-

    mente na sua rea de aplicao mais individualizada, a

    clnica mdica (Almeida Filho, 1997). Perante os

    processos de sade-doena-cuidado, por exemplo, a

    metfora do corpo como mecanismo (e dos seus rgos

    como peas) tem sido efetivamente muito influente naconstituio das chamadas cincias bsicas da sade

    (Castiel, 1994).

    Conhecer, entretanto, no apenas expor o mecanismo

    do objeto nas suas peas fundamentais, mas sim ser

    capaz de reencontrar a posio de cada pea, reconstruir o mecanismo e p-lo em funcionamento. No sen

    tido cartesiano original, o processo do conhecimento

    opera na direo da sntese, da remontagem do objeto

    reduzido, na tentativa de restaurar o seu funcionamen

    to. Nessa etapa, a metfora do mecanismo (Lvy, 1987)

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    Paradigmas e crises- 25

    representa a forma talvez mais simplista de dar conta

    do conhecimento como revelao do determinismo do

    objeto, porm a cincia produz metforas mais sofisti

    cadas c eficazes para explicar os seus objetos cada vez

    menos tolerantes a abordagens reducionistas. Por esse

    motivo, o paradigma mecanicista termina encontran

    do uma srie de dificuldades institucionais, polticas,

    histricas e principalmente epistemolgicas, logo

    alcanando limites na sua abordagem. O avano do

    conhecimento cientfico rompe as fronteiras impostas

    por esta forma de prtica cientfica, que assim perde a

    posio prestigiosa de fonte de legitimidade baseada

    cm uma verdade racional.

    Uma crise, novos paradigmas

    Nos diversos campos da investigao cientfica, abor

    dagens alternativas indicam uma clara insatisfao

    com o paradigma dominante, configurando uma pro

    funda crise na cincia contempornea. Fala-se em uma

    matemtica das catstrofes (Thom, 1985), em uma

    nova fsica (Powers, 1982), cm uma cincia da com

    plexidade (Morin, 1986, 1990), c em uma cincia

    ps-moderna (Santos, 1989). Prigogine & Stengers

    (1997), referem-se inclusive necessidade de uma

    nova aliana para rcarticular as bases metodolgicas

    e conceituais da Biologia. Este movimento integra-se a

    uma profunda transformao no essencial da prtica

    cientfica, no modo de construo do seu campo de

    aplicao. O que est sendo fundamentalmente ques

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

    26/126

    26 -A Crise da Sade Pblica

    tionado a organizao dos campos cientficos atravs

    de grandes estruturas abstratas, com alto potencial de

    generalizao, capazes de enquadrar e guiar todo o

    processo de referncia emprica. Nas cincias ditas

    naturais, esta tendncia revela-se pela opo cada vez

    mais predominante entre os cientistas de buscar

    micropadres de desordem e indeterminao em vez

    de se concentrar em elegantes e grandiosos modelos

    tericos baseados em uma expectativa de ordem c

    determinao.

    O campo cientfico da sade tambm passa por uma

    profunda crise epistemolgica, terica e metodolgica,

    uma crise paradigmtica, como diria Kuhn (1975). Um

    dos signos da crise paradigmtica seria, por exemplo, o

    paradoxo da planificao de sade: onde h planifi

    cao nem sempre se produzem mudanas impor

    tantes, enquanto que proliferam exemplos de intensas

    transformaes onde no se planifica.

    Uma srie de elementos epistemolgicos c metodolgicos tm sido propostos como tendncia alternativa para

    a cincia contempornea, agrupados sob o rtulo

    genrico de novo paradigma. Para designar o eixo

    principal que unificaria parcialmente as diversas con

    tribuies em direo a um paradigma cientfico alter

    nativo, parece-nos mais adequada a denominao de

    Teoria da Complexidade, conforme Morin (1990),

    Lewin (1992) e outros autores. Trata-se de uma apli

    cao generalizada da premissa de que a pesquisa cien

    tfica, ao contrrio da abordagem positivista conven-

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

    27/126

    Paradigmas e crises- 27

    cional, deve respeitar a complexidade inerente aos

    processos concretos da natureza, da sociedade e da

    histria. Nas suas verses mais aplicadas, a teoria da

    complexidade se apresenta quase como um nco-sis-

    temismo, atualizando e expandindo algumas

    proposies da teoria dos sistemas gerais que haviam

    alcanado uma certa influncia no panorama cientfico

    dos anos 50 e 60 (Buckley, 1968).

    A caracterstica mais definidora do chamado novo

    paradigma talvez seja a noo de no-linearidade, no

    sentido de rejeio da doutrina do causalismo simples

    tambm presente na abordagem convencional da

    cincia; esta perspectiva abre-se considerao de

    paradoxos, intolerveis na epistemologia conven

    cional, como por exemplo a concepo de ordem a

    partir do caos (Atlan, 1992). Alm disso, um proble

    ma terico fundamental das diversas perspectivas

    paradigmticas alternativas consiste na possibilidade

    de pensar que a realidade concreta se estrutura de

    modo descontnuo. Trata-se de uma outra maneira de

    lidar com a questo da determinao em geral,

    abrindo-se a cincia possibilidade da emergncia,

    ou seja, o engendramento do radicalmente novo

    (Castoriadis, 1978), algo que no estaria contido na

    sntese dos determinantes em potencial.

    Por outro lado, a noo de fractais parece mais til

    para o desenvolvimento de modos alternativos de pro

    duo do conhecimento cientfico cm sade. Trata-se

    de uma nova geometria, baseada na reduo das for-

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    28-/1 Crise da Sade Pblica

    mas e propriedades dos objetos ao infinito interior,

    como por exemplo na possibilidade de dividir uma

    linha em duas partes iguais, que podero por sua vez

    ser divididas, e assim sucessivamente, mantendo-se

    sempre a forma original de uma linha dividida pela

    metade. Na rea da sade, a proposta de modelos eco-

    sociais de Nancy Krieger (1994) funda-se essencial-

    mente na aplicao de uma abordagem fractal aoprocesso de construo do objeto da sade no coletivo.

    Finalmente, entre as concepes menos popularizadas

    das novas abordagens paradigmticas, situa-se a teoria

    dos conjuntos borrosos (em ingls: "fuzzy set theory)

    inicialmente proposta por Zadeh (1971). A borrosi-

    dade uma propriedade particular dos sistemas com

    plexos no que se refere natureza arbitrria dos limites

    infra-sistmicos impostos aos eventos (unidades do sis

    tema) e ao prprio sistema, cm suas relaes com os

    super sistemas (contextos) e respectivos observadores.

    Abordagem crtica das noes de limite e de preciso,essenciais teoria dos conjuntos, a lgica borrosa ques

    tiona a analtica formal da cincia moderna (Castoriadis,

    1978; Mcneill & Freiberger, 1993).

    A aplicao de tais propostas, que s vezes no parecem

    congruentes entre si, encontra-se em pleno desenvolvi

    mento, resultando em categorias epistemolgicas

    prprias (como parece ser a categoria da complexi

    dade), novos modelos tericos (como a teoria do

    caos) e novas formas lgicas de anlise (como por

    exemplo a geometria fractal e os modelos matemticos

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    Paradigmas e crises- 29

    no-linearcs). O pressuposto de base desta perspectiva

    que as abordagens da complexidade em geral seriam

    capazes de produzir novas metforas necessrias para

    compreender e superar o distanciamento entre

    mundo natural e mundo histrico, considerando sis

    temas dinmicos complexos, auto-rcgulados,

    mutantes, imprevisveis, produtores de nveis emer

    gentes de organizao (Simon, 1969; Gleick, 1987;

    Morin, 1990; Lewin, 1992; Lorcnz, 1994). Apesar do

    seu evidente potencial renovador, um exame crtico

    dessas abordagens indica um certo risco episte-

    molgico, particularmente para as cincias do social-

    histrico: trata-se da atraente possibilidade de

    matematizar todas as relaes objeto da inquiriocientfica, apresentando modelos no-lineares como

    alternativa analtica para os casos no aderentes s

    formas convencionais de explicao.

    Abusos da categoria paradigma em Sade

    Originrio do grego no sentido de mostrar ou mani

    festar, o termo paradigma foi inicialmente utilizado

    no campo da sade para orientar o desenho de planos

    de estudo que facilitassem a incorporao do ensino

    das cincias sociais, mediante variveis psico-socio-

    culturais pertinentes (Garcia, 1971). Nesta acepo

    aproxima-se da noo de modelo, representao sim

    plificada e esquemtica da realidade que retm os seus

    traos mais significativos, a exemplo do paradigma da

    histria natural da doena de Leavell-Clark (1976) ou

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    30 -A Crise da Sade Pblica

    do campo da sade (Canad, 1974). Outro exemplo

    na Sade Pblica a investigao do carter paradig

    mtico inscrito em uma norma como o Cdigo

    Sanitrio. Aps estudar os paradigmas tecnolgicos

    das trs revolues industriais, Iram (1994) identificou

    a categoriaflexibilidade tecnolgicacomo a que melhor

    traduz o Novo Cdigo Sanitrio do Estado de So

    Paulo, Brasil, correspondente terceira revoluo Tec

    nolgica do capitalismo. Alguns autores discutem

    novos paradigmas cientficos (Schwab & Syme, 1997)

    correspondentes s interdisciplinaridade e intersetoria-

    lidade ao contemplar as relaes entre sade, ambiente

    e desenvolvimento, enquanto outros tratam do para

    digma da tica da responsabilidade (Garrafa, 1995).

    Outra conotao para o termo paradigma diz

    respeito a distintos movimentos ideolgicos que se

    tm apresentado sucessivamente no campo da sade,

    tais como o Flexnerismo, a Medicina Preventiva, a

    Sade Comunitria e, mais recentemente, a Sade

    Coletiva, a Nova Sade Pblica ou o movimento da

    Promoo da Sade (Deccache, 1997). A partir de

    uma anlise crtica sobre o carter de modelo, para

    digma ou proposta disciplinar, tem-se realizado uma

    reflexo sobre os marcos terico-conceituais desen

    volvidos no mbito acadmico da Sade Pblica:sanitarista, biomdico, epidcmiolgico clssico,

    higienista preventivo, ecologista, epidemiolgico

    social, sociomdico materialismo histrico e

    sociomdico neoconservador (Arredondo, 1993).

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    Paradigmas c crises -31

    Este uso menos rigoroso do termo corresponde a umconjunto de noes, pressupostos e crenas, relativa

    mente compartilhados por um determinado segmentode sujeitos sociais, que serve de referencial para a ao.Verifica-se um certo abuso do seu emprego em anosrecentes, reduzindo-o, muitas vezes, ideia de enfoqueou abordagem. Chama-se a ateno para o fato de queas reas produtivas dispem de paradigmas para a sua

    gesto (taylorismo, fordismo, toyotismo etc.) enquantoa rea social fica oscilando entre burocratismos estataise privatizaes desastradas por lhes faltar paradigmasde gesto correspondentes (Dovvbor, 1999). Na mesmalinha, tenta-se elaborar uma conceituao de administrao pblica e identificar paradigmas para umprocesso de mudana para o Sistema nico de Sade(S, 1993).

    No campo da sade vrios documentos doutrinriostm feito uso do termo na conotao do senso comumcomo a noo de paradigma da ateno primria

    sade, de paradigma da Sade Pblica , de paradigma da administrao pblica e de paradigma dasade integral. Da a pertinncia de revisitar criticamente a obra de Kuhn:

    buscando reafirmar a investigao cientfica como uma

    prtica institucional, fundam entalm cntc baseada em umquadro de referencias, representaes, valores c atos que

    denomina de paradigma (Almeida Filho & Paim, 1997).

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    nil -V

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    CAPTULO 2

    MOVIMENTOS NO CAMPO SOCIAL DA SADE

    Terris (1992) atualiza a clssica definio de SadePblica elaborada por Winslow, na dcada de 20, nosseguintes termos: a arte e a cincia de prevenir a

    doena c a incapacidade, prolongar a vida c promovera sade fsica e mental mediante os esforos organizados da comunidade. A partir dessa concepo, oautor prescreve quatro tarefas bsicas para a teoria ca prtica de uma Nova Sade Pblica: prevenodas doenas no-infecciosas, preveno das doenas

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    34 -A Crise da Sade Pblica

    infecciosas, promoo da sade, melhoria da ateno

    medica e da reabilitao.

    Frenk (1992) considera como campo de aplicao da

    Nova Sade Pblica as condies e respostas

    assentadas nas bases cientficas das cincias biolgi

    cas, sociais e comportamentais tendo como reas de

    aplicao populaes, problemas e programas. Para

    melhor delimitar o novo campo cientfico, o autordesenvolve uma tipologia da investigao em sade,

    distinguindo os nveis de atuao individual e

    subindividual, onde se concentram a pesquisa bio-

    mdica e a pesquisa clnica, em relao ao nvel po

    pulacional que toma como objeto de anlise as

    condies (pesquisa cpidcmiolgica) e as respostas

    sociais frente aos problemas de sade (pesquisa em

    sistemas de sade - polticas de sade, organizao

    de sistemas de sade, investigao em servios e

    recursos de sade).

    Testa (1992), ao analisar as respostas sociais no campoda Sade Pblica, denomina ateno primitiva

    sade aquela adotada nos pases que dispem de

    servios diferenciados para distintos grupos sociais e

    que esto preocupados, fundamentalmente, em

    reduzir os gastos em sade organizando servios de

    segunda categoria para uma populao considerada

    inferior. A partir de uma reflexo sobre as polticas

    sociais, c buscando o redimensionamento terico da

    sade como campo de fora c de aplicao da cin

    cia, este autor e seus colaboradores (Iriart et al, 1994)

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    Movimentos no campo social da Sade -35

    reconhecem a Sade Pblica como prtica social, uma

    construo histrica portanto.

    A importante contribuio das abordagens etnogrficas

    contemporneas da prtica cientfica, especialmente no

    contexto da chamada virada hermenutica (Santos,

    1989), indica que os mbitos da prtica humana no se

    configuram a partir de uma estrutura racional de base

    normativa ou prcscritiva, nem pela vertente doxolgica(da doutrina), com o estabelecimento de objetivos

    heteroregulados, nem pelo vis epistemolgico formal.

    Em outras palavras, definies mesmo aquelas

    exaustivas e objetivas como por exemplo a definio

    Winslow-Terris , ou estruturas lgicas descritivas

    como a classificao de Frenk -, no so capazes de dar

    conta do essencial dos campos cientficos e seus respec

    tivos mbitos de prtica. Mas se as proposies das

    polticas de sade e as prescries da Sade Pblica so

    contextualizadas num campo de fora como

    podemos apreender a partir da crtica histrica de Testa

    (1992, 1995), outros sentidos e significados podem ser

    extrados dessa retrica. Por isso, antes de analisar os

    elementos discursivos das novas propostas, necessrio

    contextualizar prticas e discursos que, nos ltimos 50

    anos, vm constituindo o campo social da sade bem

    como seus efeitos sobre a estruturao dos discursosoficiais nacionais c internacionais. Antes ainda, vamos

    repassar brevemente as razes histricas dos elementos

    discursivos e pragmticos dos movimentos ideolgicos

    do campo social da sade.

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    36 -A Crise da Sade Pblica

    Antecedentes das prticas sanitrias

    A rea da sade, inevitavelmente referida ao mbitocoletivo-pblico-social, tem passado historicamente

    por sucessivos movimentos de recomposio das prti

    cas sanitrias decorrentes das distintas articulaes

    entre sociedade e Estado que definem, em cada con

    juntura, as respostas sociais s necessidades e aos

    problemas de sade. As bases doutrinrias dos discursos

    sociais sobre a sade emergem na segunda metade do

    sculo XVIII, na Europa Ocidental, em um processo

    histrico de disciplinamento dos corpos e constituio

    das intervenes sobre os sujeitos (Rosen, 1980). Por

    um lado, a Higiene, conjunto de normatizaes c pre

    ceitos a serem seguidos e aplicados em mbito indi

    vidual, produz um discurso sobre a boa sade franca

    mente circunscrito esfera moral. Por outro lado, as

    propostas de uma Poltica (ou Polcia) Mdica estabele

    cem a responsabilidade do Estado como definidor de

    polticas, leis c regulamentos referentes sade nocoletivo c como agente fiscalizador da sua aplicao

    social, remetendo os discursos e as prticas de sade

    instncia jurdico-poltica (Paim, 1986).

    No sculo seguinte, os pases europeus avanam um

    processo macrosocial da maior importncia histrica: a

    Revoluo Industrial, que produz um tremendo

    impacto sobre as condies de vida e de sade das suas

    populaes. Com a organizao da classes trabalhado

    ras e o aumento da sua participao poltica, principal

    mente nos pases que atingiram um maior desenvolvi-

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    Movimentos no campo social da Sade- 37

    mento das relaes produtivas, como Inglaterra, Frana

    e Alemanha, rapidamente incorporam-sc temas rela

    tivos sade na pauta das reivindicaes dos movi

    mentos sociais do perodo. Entre 1830 c 1880, surgem,

    nesses pases, propostas de compreenso da crise sanitria

    como fundamentalmente um processo poltico e social

    que, cm seu conjunto, receberam a denominao de

    Medicina Social (Rosen, 1980). Em sntese, postula-seque a medicina poltica aplicada no campo da sade

    individual e que a poltica nada mais que a aplicao

    da medicina no mbito social, curando-se os males da

    sociedade. A participao poltica a principal estrat

    gia de transformao da realidade de sade, na expec

    tativa de que das revolues populares deveria resultardemocracia, justia c igualdade, principais determi

    nantes da sade social. Apesar de esvaziado no plano

    poltico, o movimento da Medicina Social gera uma

    importante produo doutrinria e conceituai que

    fornece as bases para os esforos subseqentes de pen

    sar a questo da sade na sociedade (Fleury, 1985).

    Em paralelo, principalmente na Inglaterra e nos Esta

    dos Unidos, estrutura-se uma resposta a esta proble

    mtica estreitamente integrada ao do Estado na

    sade, constituindo um movimento conhecido como

    Sanitarismo (Paim, 1986). Em sua maioria funcionrios das recm-implantadas agncias oficiais de

    sade e bem-estar, os sanitaristas produzem um dis

    curso e uma prtica sobre as questes da sade basea

    dos cm aplicao de tecnologia e cm princpios de

    organizao racional para a expanso de atividades

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    38-/1 Crise da Sade Pblica

    profilticas (saneamento, imunizao e controle de

    vetores) destinadas principalmente aos pobres e setoresexcludos da populao. O advento do paradigma

    microbiano nas cincias bsicas da sade representa

    um grande reforo ao movimento sanitarista que, em

    um processo de hegemonizao, e j ento batizado

    de Sade Pblica, praticamente redefine as diretrizes

    da teoria e da prtica no campo da sade social nomundo ocidental.

    No incio do sculo XX, com o clebre Relatrio

    Flexner, descncadcia-sc nos Estados Unidos uma pro

    funda reavaliao das bases cientficas da medicina, que

    resulta na redefinio do ensino e da prtica mdica apartir de princpios tecnolgicos rigorosos. Com nfase

    no conhecimento experimental de base subindividual

    proveniente de pesquisa bsica realizada geralmente

    sobre doenas infecciosas, o modelo conceituai flexne-

    riano refora a separao entre individual c coletivo, pri

    vado e pblico, biolgico e social, curativo e preventivo(Fee, 1987). E nesse contexto que surgem as primeiras

    escolas de sade pblica contando com pesados investi

    mentos de organismos como a Fundao Rockefeller, ini

    cialmente nos Estados Unidos e em seguida cm vrios

    pases, inclusive na Amrica Latina. De fato, as refern

    cias paradigmticas do movimento da Sade Pblica no

    expressam qualquer contradio perante as bases posi

    tivistas da medicina flexneriana, conforme demonstrado

    pelo processo de seleo das demandas de subveno

    destinadas institucionalizao dos centros de formao

    de sanitaristas e epidemiologistas da poca.

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    Movim entos no campo social da Sade - 39

    Do Preventivismo Sade Comunitria

    Na dcada de 40, como conseqncia de processosexternos e internos ao campo da sade (por um lado, os

    reflexos sociais da crise econmica de 29 e, por outro

    lado, o incremento de custos devido ao aumento da

    especializao e da tecnologizao da prtica mdica)

    articula-sc nos Estados Unidos a proposta de implan

    tao de um sistema nacional de sade (Arouca, 1975).Pela ao direta do poderoso lobby das corporaes

    mdicas daquele pas, no lugar de uma reforma setorial

    da sade nos moldes da maioria dos pases europeus,

    prope-se a mudana no ensino mdico, incorporando

    uma vaga nfase na preveno. Em 1952, realiza-se em

    Colorado Springs uma reunio de representantes das

    principais escolas de medicina norte-americanas,

    ponto de partida para uma ampla reforma dos currcu

    los de cursos mdicos no sentido de inculcar uma ati

    tude preventiva nos futuros praticantes (Arouca, 1975).

    No nvel da estrutura organizacional, prope-se aabertura de departamentos de medicina preventiva

    substituindo as tradicionais ctedras de higiene,

    capazes de atuar como elementos de difuso dos con

    tedos de epidemiologia, administrao de sade e

    cincias da conduta at ento abrigados nas escolas de

    sade pblica (Garcia, 1972). O conceito de sade

    ento representado por metforas gradualistas do

    processo sade-enfermidade, que justificam con-

    ceitualmente intervenes prvias ocorrncia concre

    ta de sinais e sintomas em uma fase pr-clnica

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    40 -A Crise da Sade Pblica

    (Leavell & Clark, 1976). A prpria noo dc preveno

    radicalmente redefinida, atravs de uma ousada

    manobra semntica (ampliao de sentido pela adjeti-

    vao da preveno como primria, secundria e ter

    ciria) que termina incorporando a totalidade da prti

    ca mdica ao novo campo discursivo. Que isso tenha

    ocorrido somente no nvel da retrica indica a limitada

    pretenso transformadora do movimento em pauta,

    efetivamente preso no que Arouca (1975) com muita

    perspiccia denominou dc dilema preventivista.

    Com entusiasmo compreensvel, organismos interna

    cionais do campo da sade aderem de imediato nova

    doutrina, orquestrando uma internacionalizao da

    Medicina Preventiva j francamente como movimento

    ideolgico. Na Europa, realizam-se congressos no

    modelo Colorado Springs em Nancy (Frana), no

    mesmo ano de 1952, e em Gotemburgo (Sucia) no

    ano seguinte, patrocinados pela OMS; na Amrica

    Latina, sob o patrocnio da OPS, so organizados os

    Seminrios dc Vina dei Mar (Chile) em 1955 e de

    Tehuacn (Mxico) em 1956 (Arouca, 1975).

    O sucesso do movimento no seu pas de origem

    inegvel: a nica nao industrializada que at hoje

    no dispe de um sistema universal de assistncia

    sade justamente os Estados Unidos. Na Amrica

    Latina, apesar das expectativas e investimentos de

    organismos e fundaes internacionais, o nico efeito

    do movimento parece ser a implantao dc departa

    mentos acadmicos dc medicina preventiva em pases

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    Movimentos no campo social da Sade - 41

    que, j na dcada de 60, passavam por processos de

    reforma universitria. Na Europa Ocidental, em pases

    que dispunham de estruturas acadmicas de longa

    tradio e que no ps-guerra consolidavam sistemas

    nacionais de sade de acesso universal c hierarquiza

    dos, a proposta da Medicina Preventiva no causa

    maior impacto nem sobre o ensino nem sobre a orga

    nizao da assistncia sade (Paim, 1986).

    Os clebres anos 60 marcam nos Estados Unidos uma

    conjuntura de intensa mobilizao popular e intelectual

    em torno de importantes questes sociais, como os

    direitos humanos, a guerra do Vietn, a pobreza

    urbana e o racismo. Diversos modelos de interveno

    so testados c institucionalizados sob a forma de movi

    mentos organizados no mbito local das comunidades

    urbanas, destinados principalmentc ampliao da

    ao social nos setores de habitao, educao e sade

    (particularmente sade mental), reduzindo tenses

    sociais nos guetos das principais metrpoles norte-

    americanas (Donnangelo, 1976). No campo da sade,

    organiza-se ento o movimento da Sade Comu

    nitria, tambm conhecido como medicina comu

    nitria1, baseado na implantao de centros comu

    nitrios de sade, cm geral administrados por organi

    zaes no-lucrativas porm subsidiados pelo governofederal, destinados a efetuar aes preventivas e prestar

    cuidados bsicos de sade populao residente em

    reas geograficamente delimitadas (Desrosiers, 1996).

    1 * Esta denominao

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    42-/1 Crise da Sade Pblica

    A proposta da Sade Comunitria inegavelmente recu

    pera parte importante do arsenal discursivo da Medici

    na Preventiva, particularmente a nfase nas ento

    denominadas cincias da conduta (sociologia,

    antropologia e psicologia) aplicadas a problemas de

    sade. Entretanto, o conhecimento dos processos

    socioculturais e psicossociais destina-se no a facilitar a

    relao mdico-paciente ou a gesto institucional emsade, como no movimento precedente, mas sim a pos

    sibilitar a integrao das equipes de sade nas comu

    nidades problemticas, atravs da identificao e

    cooptao de agentes e foras sociais locais para os pro

    gramas de educao em sade. Em um certo sentido, o

    movimento da Sade Comunitria consegue colocarcm prtica alguns dos princpios preventivistas, eviden-

    temente focalizando setores sociais minoritrios e

    deixando mais uma vez intocado o mandato social da

    assistncia mdica convencional (Paim, 1986).

    Desta feita, o fracasso do movimento da Sade Comunitria, artificial c distanciado do sistema dc sade pre

    dominante no pas de origem, parece evidente.

    Desrosiers (1996) chega a ser irnico, ao comentar que

    nos Estados Unidos, dado o carter parcial e muitas

    vezes temporrio das experincias de medicina ou

    sade comunitria, restou somente a expresso (...) nolugar da sade pblica tradicional. No obstante, mais

    uma vez, organismos internacionais do campo da sade

    rapidamente incorporam o novo movimento ideolgi

    co, traduzindo o seu corpo doutrinrio para as necessi

    dades dos diferentes contextos de aplicao potencial.

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

    43/126

    Movimentos no campo social da Sade - 43

    Com o endosso da Organizao Mundial da Sade, os

    princpios destes programas comunitrios de sade

    passam a enfatizar mais a dimenso da assistncia sim

    plificada visando extenso de cobertura de servios

    para populaes at ento excludas do cuidado

    sade, principalmente em reas rurais, sendo incorpo

    rados ao discurso das agncias oficiais (secretarias,

    ministrios) de sade. Efetivamente, data de 1953 adefinio dos servios bsicos de sade da OMS,

    cobrindo as seguintes atividades: a) ateno sade da

    mulher e da criana; b) controle de doenas transmis

    sveis; c) saneamento ambiental; d) manuteno de sis

    temas de informao; e) educao em sade; e) enfer

    magem de sade pblica; f) assistncia mdica debaixo grau de complexidade (WHO, 1995a). A Reviso

    de 1963, realizada por uma comisso de especialistas j

    engajados no movimento da Sade Comunitria,

    prope incluir nesta relao a participao da popu

    lao (Ncayiyana et al, 1995).

    Na Amrica Latina, programas de sade comunitria

    so implantados principalmcntc na Colmbia, no Brasil

    e no Chile, sob o patrocnio de fundaes norte-ameri

    canas e endossados pela OPS, na expectativa de que o

    seu efeito-demonstrao pudesse influenciar positiva

    mente o desenho dos sistemas de sade no continente(Paim, 1996). Em um plano mais geral, h mais de 20

    anos (1977), a Assemblia Mundial da Sade lana a

    consigna Sade para Todos tio Ano 2000, assumindo

    uma proposta poltica de extenso da cobertura dos

    servios bsicos de sade com base em sistemas simpli-

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    44 -A Crise da Sade Pblica

    lcados dc assistncia sade (WHO, 1995a). No ano

    seguinte (1978), em Alma Ata, a Conferncia Interna

    cional sobre Ateno Primria Sade, promovida

    pela OMS, reafirma a sade como direito do homem,

    sob a responsabilidade poltica dos governos, e reconhece

    a sua determinao intersetorial (WHO, 1995). Esta

    belece tambm a Ateno Primria Sade como

    estratgia privilegiada de operacionalizao das metasda SPT-2000, implicitamente incorporando elementos

    do discurso da Sade Comunitria. Mais tarde, j na

    dcada dc 80, com o rtulo atualizado dc SILOS, Sis

    temas Locais de Sade e dentro de um modelo distri-

    talizado com base em nveis hierarquizados de

    ateno, a retrica da sade comunitria integra-se sprimeiras iniciativas de reforma setorial da sade nos

    pases subdesenvolvidos (Paim, 1998).

    A Promoo da Sade

    Em 1974, no Canad, o documento conhecido como

    Relatrio Lalonde (Dener, 1988) define as bases de um

    movimento pela Promoo da Sade, trazendo como

    consigna bsica adicionar no s anos vida mas vida

    aos anos. Estabelece o modelo do campo da sade

    composto por quatro plos: a biologia humana queinclui a maturidade e o envelhecimento, sistemas inter

    nos complexos e herana gentica; o sistema dc organi

    zao dos servios, contemplando os componentes

    recuperao, curativo c preventivo; o ambiente, que

    envolve o social, o psicolgico c o fsico; e, finalmente,

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    Movimentos no campo social da Sade - -45

    o estilo de vida,no qual podem ser considerados a par

    ticipao no emprego e riscos ocupacionais, os padres

    de consumo e os riscos das atividades de lazer. Prope

    como estratgias considerar a gravidade dos problemas

    de sade, a prioridade dos tomadores de deciso, a

    disponibilidade de solues efetivas com resultados

    mensurveis, os custos e as iniciativas federais cen

    tradas na promoo da sade, na regulao, napesquisa, na eficincia da ateno sade e no esta

    belecimento de objetivos.

    Com base nestes princpios e estratgias, c no contex

    to do que veio a se chamar de rvolution tranquile,

    implanta-se em vrias provncias do Canad uma rede

    de centros comunitrios de sade c servios sociais,

    efetivamente integrados a um sistema de medicina

    socializada, que representa uma sntese dos modelos

    de ateno precedentes. De acordo com Desrosicrs

    (1996:22), esta reforma do sistema de sade canadense

    teve como objetivos:

    reun ir os servios sociais e os servios de sade sob a autori

    dade de um mesmo ministrio chamado de Ministrio dos

    Assuntos Sociais, nos mesmos estabelecimentos em mbito

    local, os CLS C [Centros Locais de Servios Comunitrios],

    com uma equipe pluridisciplinar composta de agentes sani

    trios e sociais; favorecer uma medicina global pela prtica

    nos CLSC e atravs de laos estreitos entre clnicos c espe

    cialistas da sade pblica no mbito dos hospitais; enfim,

    assegurar uma participao importante dos cidados na

    administrao dos servios de sade.

    A Carta de Ottawa (Canad, 1986), documento oficial

    que institucionaliza o modelo canadense, define os

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    46-/1 Crise da Sade Pblica

    principais elementos discursivos do movimento da

    Promoo da Sade: a) integrao da sade como parte

    de polticas pblicas saudveis; b) atuao da comu

    nidade na gesto do sistema de sade; c) reorientao

    dos sistemas de sade; d) nfase na mudana dos esti

    los de vida. Cronologicamente, o movimento corres

    ponde ao desmantelamento do National Health

    Serviceda Inglaterra, na conjuntura do Tatcherismo, e

    reforma dos sistemas de sade e seguridade social dos

    pases escandinavos, face ao recuo da social-democra

    cia no continente europeu, o que restringe o seu poten

    cial de expanso mesmo entre os pases desenvolvidos.

    Nos Estados Unidos, na dcada de 80, desenvolvem-sc

    programas acadmicos levemente inspirados por estemovimento, sob a sigla HPDP (Health Promotion

    Disease Prevention), indicando a clara opo pela

    proposta mnima de mudana de estilo de vida por

    meio de programas de modificao de comportamen

    tos considerados de risco (como hbito de fumar, dieta,

    sedentarismo, etc.). No que se refere absoro do discurso da promoo da sade pelos organismos interna

    cionais, podemos referir o Projeto Cidades Saudveis

    da OMS, lanado com bastante publicidade em 1986

    (WHO, 1995). Vale ainda mencionar que o Banco

    Mundial, em conjunto com a Organizao Mundial da

    Sade, patrocina em 1991 uma atualizao dos princ

    pios do movimento da Promoo da Sade, nele incor

    porando a questo do desenvolvimento econmico c

    social sustentado como importante pauta extra-setorial

    para o campo da sade. Alm disso, no contexto da

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    Movim entos no campo social da Sade -47

    Conferncia Mundial pelo Meio Ambiente, promovida

    pela ONU no Rio de Janeiro e conhecida como ECO

    92, a Sade Ambiental foi definida como prioridade

    social para a promoo da sade, dentro da clebre

    Agenda 21 (WHO, 1995; 1995a).

    A essa altura, a receita neoliberal adotada pelos

    organismos financeiros internacionais e imposta aos

    pases que pretendem inserir-se na nova ordem docapitalismo mundial sobretudo depois da derrocada do

    Leste Europeu e dos impasses do socialismo real. Jus

    tamente nesse contexto a OPS promove, a partir de

    1990, um debate sobre a crise da Sade Pblica privile

    giando uma reflexo sobre os conceitos, teorias,

    metodologias, elementos explicativos, determinantes

    estruturais, repercusses operacionais e nas prticas de

    sade, e perspectivas futuras para a Sade Pblica nas

    suas relaes com o Estado c a sociedade (Ferreira,

    1992). Paralelamente, a OMS patrocina uma reflexo

    articulada sobre as bases de uma Nova Sade Pbli

    ca, organizando um conjunto de seminrios c reunies

    sobre formao avanada, liderana institucional, teoria

    c prtica cm Sade Pblica (WHO, 1995a).

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    CAPTULO 3

    A CRISE DA SADE E A NOVA SADE PBLICA

    Presentemente, diversos pases realizam reformaseconmicas, polticas e administrativas buscando assegurar algum espao na nova configurao dos mercadosmundiais. A reforma do Estado, ainda que no suficicn-temente explicitada, coloca-se na agenda poltica de go

    vernos com diferentes espectros poltico-ideolgicos e,nesse particular, emergem propostas setoriais como c ocaso da sade. Na Amrica Latina, muitas das reformasdo setor sade so apoiadas por organismos financeirosinternacionais, a exemplo do Banco Mundial, cujospressupostos c diretrizes divergem bastante dos projetos

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    50 -A Crise da Sade Pblica

    originais dc reforma sanitria (Paim, 1998). Portanto, c

    necessrio discernir os contedos substantivos de cada

    um dos projetos para que, por exemplo, seja possvelcompreender as especificidades do sistema dc sade

    canadense em comparao com o projeto Clinton para a

    atualizao do complexo de servios de sade

    estadunidense, do mesmo modo que se faz necessrio

    considerar as diferenas entre a organizao dos servios

    dc sade em Cuba, com nfase na ateno primria, c as

    propostas dc reforma setorial da Bolvia e da Colmbia.

    Respostas pragmticas podem ser visualizadas, no caso

    da Amrica Latina, atravs das propostas do Banco

    Mundial que valorizam a eficincia c a eficcia em

    detrimento da eqidade mediante polticas dc ajustemacroeconmico e, no setor sade, atravs da foca-

    lizao c da cesta bsica de servios (Banco Mundial,

    1993). Assim, muitas reformas setoriais no chegam a

    ser concebidas nem debatidas pelas escolas de sade

    pblica ou organismos assemelhados e, em certos

    casos, passam ao largo dos prprios ministrios da

    sade, sendo negociadas diretamente entre as agncias

    financeiras e a rea econmica dos governos.

    Qualquer reflexo sobre a Nova Sade Pblica que

    procure examinar, criticamente, os determinantes da

    crise da Sade Pblica, passa a ser identificada pejorativamente como assunto dc sanitaristas, isto , de esco

    las c pesquisadores do campo da sade bem como de

    funcionrios pblicos com responsabilidades operativas.

    A correlao de foras polticas e institucionais vigente

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    A crise da Sade e a "Nova Sade Pblica" -51

    mantm afastados do cenrio das reformas de vrios

    pases no s os trabalhadores do setor como especial

    mente os distintos segmentos da populao que sero

    objeto das reformas. As conquistas democrticas

    alcanadas pelos povos latino-americanos e caribenhos,

    especialmente a partir da dcada de 80, ainda no

    foram suficientes para garantir a publicizao (isto :

    controle pblico das polticas e prticas institucionais

    dos respectivos Estados) dos seus aparelhos e mesmo

    das suas burocracias.

    A linha mais pragmtica, prescritiva e intervencionista

    adotada por um painel convocado pela OMS para dis

    cutir a Nova Sade Pblica (WHO, 1995a), em con

    sonncia com as vises de representantes europeus eamericanos da Sade Pblica, no parece resolver os

    impasses identificados na regio das Amricas, particu

    larmente na Amrica Latina e Caribe. Como integram

    sistemas relativamcnte estabilizados cm que as regras

    de jogo mudam lentamentc, para eles a crise no

    estrutural e representaria apenas uma dada interpre

    tao de sanitaristas. Propem assim a agregao de

    novos temas e habilidades ao campo da Sade Pblica

    ou ao seu mbito de prticas e de instituies. Todavia,

    este enfoque pode resultar em reformas curriculares

    das respectivas escolas ou em reformas administrativasnas instituies de sade mas, seguramente, insufi

    ciente para implementar uma poltica de eqidadc,

    solidariedade e sade tal como prope a prpria OMS

    (WHO, 1995).

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    52 -A Crise da Sade Pblica

    Conseqentemcnte, as instituies acadmicas e de

    servios em sade no podem ignorar o movimento

    que se engendra em torno da formulao de uma

    poltica global de sade como componente diretivo do

    corpo doutrinrio elaborado em funo de uma pro

    posta de Renovao da Sade para Todos (RSPT).

    Desse modo, podero reatualizar suas concepes e

    prticas acerca da Sade Pblica e, simultaneamente,estaro em condies de explorar oportunidades de

    dilogo e de construo de alianas entre organizaes

    no-governamentais e organismos de governo para o

    enfrentamento dos problemas de sade. Entretanto,

    mais que dilogos e alianas, as instituies acadmicas

    e de servios podem produzir novos conceitos, teorias eprticas que, num processo de interfertilizao sero

    capazes de influir na prpria doutrina da RSPT e na

    poltica de sade a ser concebida quando se celebra 20

    anos de Alma-Ata.

    Diante das dificuldades bvias de se dispor de uma

    concepo convergente sobre a Nova Sade Pblica,

    faz-se pertinente sistematizar algumas questes pre

    liminares. Como os sujeitos que atenderam convo

    cao para este importante debate vcm o campo social

    da sade e o perfil do profissional que atuar nos dis

    tintos mbitos de ao? Que contedos devem ser privilegiados? Se o campo de conhecimento da Sade

    Pblica to amplo que no comporta um tipo nico

    de profissional para atuar nas instituies e servios,

    qual o ncleo bsico de conhecimentos e habilidades

    que dever compor o novo perfil profissional num con

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    A crise da Sade e a "Nova Sade Pblica"- 53

    texto que incorpora novos atores para o seu mbito de

    ao, exigindo capacidade de negociao, agir comu

    nicativo c administrao de conhecimentos?

    Iniciativas recentes da OPS (Paim, 1992) visando li

    derana e formao avanadas em Sade Pblica

    possibilitaram uma discusso ampliada dessa questo

    na Regio das Amricas, incluindo, portanto, o

    Canad, os EUA e os pases do Caribe. Assim, noperodo 1987-1988, proccdcu-se anlise da infraestru-

    tura privilegiando as seguintes reas crticas: polticas

    pblicas, sistemas de informao e desenvolvimento da

    epidemiologia, economia e financiamento, recursos

    humanos em sade, desenvolvimento tecnolgico e sis

    temas de servios de sade. Nos anos 1989-1990 foram

    realizados seminrios para a anlise da prestao de

    servios no que diz respeito recuperao da sade,

    preveno de doenas e promoo da sade. Final

    mente, no perodo 1991-1995, a OPS encaminhou um

    ambicioso projeto para reflexo e crtica sobre a teoria

    c a prtica da Sade Pblica,(OPS, s/d) tendo como

    referncia os textos bsicos e a reunio do Grupo de

    Consulta ocorrida cm New Orleans, em 1991, culmi

    nando com a Ia Conferncia Panamericana de Edu

    cao em Sade Pblica, realizada no Rio de Janeiro

    em 1994 (ALAESIJ 1994).

    Esta breve resenha sugere um clima estimulante de

    efervescncia terica e crtica, propiciando pautas de

    ao capazes de iniciar um processo de modernizao

    conceituai para sustentar uma nova prtica da Sade

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    54 - A Crise da Sade Pblica

    Pblica. Segundo Rodriguez (1994), para esta nova

    prtica, necessita-se de novos profissionais, capazes decumprir distintos papis, desde uma funo histrico-

    poltica de

    resgatar, do prprio processo histrico de construo

    social da sade, os conhecimentos, xitos e fracassos da

    humanidade cm sua luta pela cidadania c bem-estar at

    uma funo agregadora de valor atravs da produo e

    gesto do conhecimento cientfico-tecnolgico; desde

    uma funo de gerncia estratgica de recursos escassos e

    mediador estratgico das relaes entre as necessidades c

    problem as de sade e as decises polticas at um a funo

    de advocacy,utilizando o conhe cimento como instrum en

    to de denncia, promovendo a mobilizao crescente da

    sociedade cm demanda de realizao do seu potencial de

    sade c exerccio do direito de cidadania.

    Nessa perspectiva, as Escolas de Sade Pblica deve

    riam fortalecer o seu processo de independizacin. A

    I Conferncia Panamericana sobre Educao em

    Sade Pblica (ALAESF| 1994) props o aprofundamento do debate em torno da transformao da estru

    tura organizacional das respectivas escolas, con

    siderando a pertinncia da desvinculao administrati

    va em relao s faculdades de medicina. De fato, o

    conceito de espao transdisciplinar tende a desestru-

    turar a idia de faculdade ou escola como organizaoauto-suficiente. Da a proposta de criao de espaos

    de excelncia que, semelhana das novas organiza

    es empresariais, funcionem como "redes institiionais

    agregadoras de valor" (Rodriguez, 1994). A idia bsica

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    A crisc da Sade e a "Nova Sade Pblica"- 55

    que se desenvolvam processos de formao e capaci

    tao sistemticos, criativos e inovadores, cujos eixos

    fundamentais sero a investigao e a articulao com

    os servios de sade. A produo de lideranas setoriais

    e institucionais passa a constituir um dos propsitos

    bsicos das novas instituies acadmicas:

    Liderana setorial em sade significa a capacidade do

    setor de transfo rm ar a sade no referente bsico para a formulao de todas as outras polticas pb licas. A poltica de

    sade condicionaria, cm grande parte, no s comporta

    mentos individuais, mas tambm aes coletivas, sociais e

    polticas. A liderana institucional c defin ida como a

    capacidade que possui uma organizao de irradiar

    valores, gerar conhecimento c promover compromisso

    com esses valores, por parte da populao e de outrasorganizaes. Uma organizao lder produz diferenas

    fundamentais na comunidade (...). Capacitar-sc para a

    liderana , portanto, um produto de aquisio de novos

    valores c habilidades, como o desenvolvimento de novos

    significados da misso e da filosofia institucionais. Como

    o objetivo da liderana promover com prom issos pblicos

    com ideais bsicos, o setor ou a instituio lder se

    reconhece no s pela qualidade de suas aes, mas prin-

    cipalmcntc pelo compromisso que gera nos setores, insti

    tuies ou atores que lidera. (OPS, 1994)

    Podemos destacar, no caso do desenvolvimento da

    Sade Pblica na dcada de 90, o seu carter de movi

    mento ideolgico, seja utilizando o seu brao acadmi

    co (ALAESP por exemplo) seja acionando o seu brao

    poltico-ideolgico (OPS). Assim, a reflexo sobre as

    possibilidades de incorporao de novos paradigmas

    inscreve-se, embora no integralmente, no captulo das

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    56 -A Crise da Sade Pblica

    polticas dc sade. As inflexes produzidas no campo do

    saber encontam-se subordinadas s modificaes no

    mbito das prticas, ainda que inovaes conceituais c

    desenvolvimentos disciplinares, cientficos c tecnolgi

    cos possam afetar a formulao e a implementao de

    algumas dessas polticas. No se trata de uma determi

    nao mecnica das polticas sobre o campo mas, em

    ltima anlise, uma decisiva influncia, j que possvel conceber situaes em que produtos desse campo do

    saber exercem alteraes, ainda que parciais, sobre a

    organizao das prticas de sade.

    As modificaes do panorama poltico e social do

    mundo e da situao dc sade (principalmente a falta

    de mudanas esperadas) pem em cheque as premissas

    c previses dos antigos modelos. Ou talvez o problema

    seja mais profundo, no nvel no dos modelos c sim do

    paradigma cientfico que fundamenta esse campo de

    prtica social c tcnica.

    Frente aos elementos discursivos e extradiscursivosligados constatao de um esgotamento dos para

    digmas vigentes, desafiados pela crise da Sade

    Pblica, surgem demandas por novos paradig-

    mas(Ncayiyana et al, 1995). No particular dos ele

    mentos discursivos, cabe destacar os pressupostos de

    que o desenvolvimento da sade supe a excluso da

    doena e que a cincia e a tcnica dispem de um

    potencial inesgotvel para superar a enfermidade.

    Como elementos extradiscursivos do debate encon-

    tram-se as restries econmicas que comprometem

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    A crise da Sade e a "Nova Sade Pblica"- 57

    a capacidade do Estado suportar, a longo prazo, o

    custo crescente da ateno sade, particularmente a

    assistncia mdico-hospitalar, alm do fato de que

    esta assistncia no garante melhor nvel de bem-

    estar ou produtividade social. Reconhece-se, ainda, a

    crescente iniqidade dos determinantes da sade

    (WHO, 1995), seja no nvel singular, relativo

    qualidade do ambiente social, seja no nvel geral,referente s disparidades da distribuio de renda c

    poder entre os segmentos sociais.

    Espera-se assim que, ao se debater a reforma do setor

    sade, seja implementada uma prxis voltada para os

    determinantes de sade a partir da qual se poderia

    construir um novo paradigma da sade.

    Em concluso, urgente e necessrio discutir a

    questo da sade no terreno pblico-coletivo-social

    e as propostas de ao subscqcntes. No caso espec

    fico da Amrica Latina, a emergncia nos ltimos

    20 anos de um campo que se designou como SadeColetiva (Donnangclo, 1983) permite a identificao

    de pontos de encontro com os movimentos de reno

    vao da Sade Pblica institucionalizada, seja

    como campo cientfico, seja como mbito de prti

    cas, c mesmo como atividade profissional. Com

    efeito, as propostas de consolidao do campo da

    sade como forma de superao da chamada crise

    da Sade Pblica podem significar uma oportu

    nidade para efetivamente incorporar o complexo

    promoo-sade-doena-cuidado em uma nova

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    58 -A Crise da Sade Pblica

    perspectiva paradigmtica, mediante polticas pbli

    cas saudveis, e participao mais efetiva da sociedade

    nas questes de vida, sade, sofrimento c morte.

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    CAPTULO 4

    SADE COLETIVA: CAMPO CIENTFICO EMBITO DE PRTICAS

    Como ponto de partida, podemos entender a SadeColetiva como campo cientfico (Ribeiro, 1991), onde

    se produzem saberes e conhecimentos acerca do objetosade e onde operam distintas disciplinas que o contemplam sob vrios ngulos; e como mbito de prticas (Paim, 1992), onde se realizam aes em diferentes organizaes e instituies por diversos agentes(especializados ou no) dentro e fora do espao con-

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    60 -A Crise da Sade Pblica

    vcncionalmentc reconhecido como setor sade.

    Assumir a Sade Coletiva como um campo cientfico

    implica considerar alguns problemas para reflexo.

    Trata-se, efetivamente, de um campo novo ou de um

    novo paradigma dentro do campo da Sade Pblica?

    Quais os saberes que do suporte ao campo e, conse-

    qentemente, s prticas dos seus atores sociais?

    Quais os obstculos epistemolgicos que dificultam seu desenvolvimento cientfico? Quais os

    obstculos da prxis perante a reorganizao dos

    processos produtivos, a sociedade da informao, a

    reforma do Estado e a suas novas relaes com a

    sociedade?

    Algumas respostas provisrias sero apresentadas neste

    captulo, ainda que um aprofundamento sobre a

    temtica exija texto de maior flego.

    Originalmente, o marco conceituaf proposto para

    orientar o ensino, a pesquisa e a extenso em Sade

    Coletiva no caso brasileiro foi composto pelosseguintes pressupostos bsicos:

    a) A Sade, enquanto estado vital, setor de produo e

    campo do saber, est articulada estrutura da sociedade

    atravs das suas instncias econmica c poltico-ideolgica,

    possuindo, portanto , uma historicidade;

    b) As aes de sade (promoo, pro teo, recuperao,

    reabilitao) constituem uma prtica social c trazem con

    sigo as influncias do relacionamento dos grupos sociais;

    - Garcia (1971) define marco conceituai como a apresentao de um fenmeno ou acon

    tccimcnto a tendend o s as suas linhas ou caractersticas mais significativas, de m odo a facili

    tar um certo nvel de generalidades que o torna aplicvcl a situaes distintas dentro de uma

    rea semelhante".

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    Sade Coletiva: campo cientfico c m bito de prticas -61

    c) O objeto da Sade Coletiva con strud o nos limites do

    biolgico c do social c com preende a investigao dos

    determinantes da produo social das doenas c da organizao dos servios de sade, c o estudo da historicidade

    do saber e das prticas sobre os mesmos. Nesse sentido, o

    carter intcrdisciplinar do objeto sugere uma integrao

    no plano do conhecimento c no no plano da estratgia,

    de reunir profissionais com mltiplas formaes; (...)

    f) O conhecimento no se d pelo contato com a reali

    dade, mas pela compreenso das suas leis e pelo compro

    metimento com as foras capazes de transform-la

    (Paim, 1982:18-19).

    No obstante a adeso que tais pressupostos possam,

    ainda hoje, estimular, cabe ressaltar que o desenvolvi

    mento da Sade Coletiva, como rea do saber e campode prticas nos ltimos anos, permite recontextualizar

    alguns desses pressupostos. Assim, a definio de

    objeto acima apresentada sugere o entendimento da

    Sade Coletiva como cincia ou disciplina cientfica.

    Em um momento posterior, Fleury (1985) chega a

    definir Sade Coletiva como rea de produo deconhecimentos que tem como objeto as prticas e os

    saberes em sade, referidos ao coletivo enquanto

    campo estruturado de relaes sociais onde a doena

    adquire significao.

    Entretanto, o trabalho terico-cpistemolgicoempreendido mais rccentcmcnte aponta a Sade Cole

    tiva como um campo interdisciplinar e no propria

    mente como uma disciplina cientfica, muito menos

    uma cincia ou especialidade mdica (Ribeiro, 1991).

    Cumpre ressaltar as influncias mtuas entre esse

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    62 -A Crise da Sade Pblica

    desenvolvimento e os movimentos pela democratiza

    o das formaes sociais latino-americanas, especial-

    mente os processos de reforma sanitria desencadeados

    cm alguns pases da regio. De fato, o marco conceituai

    da Sade Coletiva, tal como vem sendo construdo a

    partir da dcada de 70, resulta, de um lado, da crtica

    aos diferentes movimentos e projetos de reforma em

    sade ocorridos nos pases capitalistas e, de outro, da

    elaborao terico-cpistcmolgica e da produo cien

    tfica, articuladas s prticas sociais.

    A constituio da Sade Coletiva, tendo cm conta os

    seus fecundos dilogos com a Sade Publica e com a

    Medicina Social, tal como vem se concretizando nas

    duas ltimas dcadas, permite uma delimitao com-prccnsivclmentc provisria desse campo de conheci

    mento e mbito de prticas. Como campo de conheci

    mento, a Sade Coletiva contribui com o estudo do

    fenmeno sade/doena cm populaes; investiga a

    produo e distribuio das doenas na sociedade como

    processos de produo e reproduo social; analisa as

    prticas de sade (processo de trabalho) na sua articu

    lao com as demais prticas sociais; procura com

    preender, enfim, as formas com que a sociedade identi

    fica suas necessidades e problemas de sade, busca sua

    explicao e se organiza para enfrent-los.Na Amrica Latina, e no Brasil em particular, realiza-

    se nas duas ltimas dcadas um trabalho de construo

    de novas teorias, enfoques e mtodos da epidemiologia

    c da planificao em sade, alm de investigaes

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    Sade Coletiva: campo cientfico c m bito de prticas -63

    concretas buscando a aplicao de mtodos das cin

    cias sociais no campo da Sade Coletiva (Canesqui,

    1997). Desse esforo de reconstruo terica, tmemergido novos objetos de conhecimento e de inter

    veno, como os casos da comunicao social em

    sade e da vigilncia em sade. Cabe referir o desen

    volvimento cientfico e tecnolgico do campo medi

    ante importantes contribuies nas reas de Epidemi-

    ologia Social (Laurell, 1994), Polticas e Prticas de

    Sade (Schraiber, 1995), Planificao em Sade

    (Testa, 1995), e Epistemologia e Metodologia em

    Sade (Samaja, 1994).

    A Sade Coletiva pode ser considerada como um

    campo de conhecimento de natureza interdisciplinarcujas disciplinas bsicas so a epidemiologia, o plane-

    jamento/administrao de sade e as cincias sociais

    em sade. Contempla o desenvolvimento de atividades

    de investigao sobre o estado sanitrio da populao,

    a natureza das polticas de sade, a relao entre os

    processos de trabalho e doenas ou agravos, bem como

    as intervenes de grupos e classes sociais sobre a

    questo sanitria (Ribeiro, 1991). So disciplinas com

    plementares do campo a estatstica, a demografia, a

    geografia, a clnica, a gentica, as cincias biomdicas

    bsicas etc. Esta rea do saber fundamenta um mbito

    de prticas transdisciplinar, multiprofissional, inter-

    institucional e transetorial.

    A Sade Coletiva envolve determinadas prticas que

    tomam como objeto as necessidades sociais de sade,

    como instrumentos de trabalho distintos saberes, disci

  • 7/24/2019 A Crise Da Sade Pblica e a utopia da sade coletiva

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    64-/1 Crise da Sade Pblica

    plinas, tecnologias materiais c no-materiais, e como

    atividades intervenes centradas nos grupos sociais e

    no ambiente, independentemente do tipo de profis

    sional e do modelo de institucionalizao. Abrange,

    portanto, um

    conjunto articulado dc prticas tcnicas, cientficas, cul

    turais, ideolgicas, polticas e econmicas, desenvolvidas

    no mbito acadmico, nas instituies de sade, nas orga

    nizaes da sociedade civil e nos institutos de pesquisa,

    informadas por distintas correntes dc pensamento resul

    tantes da adeso ou crtica aos diversos projetos dc refor

    ma em sade (Paim, 1992).

    Contudo, mais do que definies formais, a Sade

    Coletiva requer uma compreenso dos desafios no

    presente e no futuro que transcendam o campo institu

    cional e o tipo de profissional convencionalmcntc

    reconhecidos como da Sade Pblica. A possibilidade

    de redimensionar objeto, instrumentos de trabalho e

    atividades, considerando sua articulao com a totali

    dade social reabre alternativas metodolgicas c tcnicaspara pensar c atuar no campo da Sade Coletiva nesse

    trnsito para o novo milnio. Conforme destacado

    cm uma das fecundas contribuies a esse debate,

    os avanos da epidemiologia crtica, a cpistcmologia

    poltica, os novos aportes das cincias sociais, a planifi

    cao estratgica, a comunicao social e a educao

    popular tm consti tu do bases fundam entais para a elabo

    rao de novos instrumentos de docncia, investigao c

    cooperao com as organizaes c instituies da

    sociedade civil c do Estado. A prpria experincia de

    resistncia c luta cm sade por parte dc nosso povo nos

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    Sade Coletiva: campo cientfico e mbito de prticas- 65

    tem permitido encontrar cm nossa histria e cultura os

    elementos fundamentais para o avano de nosso pensa

    mento c ao(...). No somente se necessitam conhecimentos para apreender a realidade, mas tambm se deve

    realizar uma aproximao gnoseolgica distinta com vista

    a encontrar na realidade - ademais de conhecimentos -

    saberes, desejos, sentidos, projees de luta e mudana,

    que constituem tambm aspectos fundamentais da ao

    humana (Escuela de Salud Publica/OPS,1993).

    A superao do biologismo dominante, da natura

    lizao da vida social, da sua submisso Clnica e

    da sua dependncia ao modelo mdico hegemnico -

    cuja expresso institucional no mbito das universi

    dades a subordinao funcional, poltica c adminis

    trativa s faculdades de medicina - representam elementos significativos para o marco conceituai da

    Sade Coletiva. E preciso, portanto, identificar uma

    nova positividade na articulao das dimenses

    objetiva e subjetiva no campo social da sade. A

    retomada da problemtica do sujeito no significa a

    negao das estruturas, do mesmo modo que adefinio de um marco conceituai para a Sade Cole

    tiva no implica a adoo de um quadro terico de

    referncia exclusivo e excludente. Isto porque

    tanto o mundo natural, quanto o mundo social se encon

    tram determinados e em constante devir, porm sua

    diferena radica cm que no segundo o conhecimento se

    transforma cm conscincia c sentido de necessidade c

    necessidade de ao qu e encobre uma potencialidade para

    a ao; ento, necessrio pensar que para poder estudar

    o processo sade/enfermidade se requer considerar os

    sujeitos sos e enfermos no unicamente para explic-los

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    66-/1 Crise da Sade Pblica

    mas sim para comprccndc-los c conjuntamente construir

    potencialidades de ao (Granda, 1994).

    Conseqentemente, a anlise das relaes entre as

    cincias sociais, a vida cotidiana c as cincias natu

    rais, ao tempo em que examina a constituio dos

    sujeitos sociais, pode localizar essa nova positivi-

    dade, tanto na militncia sociopoltica, quanto na

    incorporao tecnolgica (Testa, 1997). A valorizaoda dimenso subjetiva das prticas de sade, das

    vivncias dos usurios e trabalhadores do setor tem

    proporcionado espaos de comunicao e dilogo

    com outros saberes c prticas abrindo novas perspec

    tivas de reflexo e de ao. A reviso crtica de algu

    mas proposies tais como campo de sade (Dever,1988), promoo da sade (Buss, 2000), vigilncia

    em sade (Mendes, 1993), confere novos sentidos

    para as reflexes sobre a Sade Coletiva no conti

    nente. O trecho a seguir ilustra as potencialidades de

    tais redefinies:

    A variedade c o carter frequentemente restrito e restritivo

    das conceptualizacs do colctivo/social no invalidam o

    fato de que as prticas sanitrias se viram constantemente

    invadidas pela necessidade de construo do social como

    objeto de anlise c como campo de interveno. Nem devem

    induzir suposio de que a vida social concreta acabe por

    tornar-se mero produto dessas opes conceituais. Elairromper, certamentc, sob outras formas, tambm no

    campo do saber, quando as malhas conceituais e sociais se

    revelarem estreitas face concretudc dos processos sociais

    (Donnangclo, 1983).

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    Sade Coletiva: campo cientifico e mbito de prticas- 67

    A discusso entre as finalidades das prticas de sade e o

    seu objeto, meios de trabalho e advidades, bem como a

    anlise das relaes tcnicas e sociais do trabalho em

    sade como via de aproximao entre os modelos assis-

    tenciais e de gesto, constituem desafios tericos e prti-

    cos para a Sade Coletiva. Isto resulta de uma ampliao

    dos objetos de interveno, a partr da noo de pre

    veno e ateno primria para os conceitos de qualidade

    de vida e promoo da sade, como observam Schraiber

    & Mcndes-Gonalves (1996) no seguinte trecho:

    a ateno primria vem progressivamente se tornando um

    complexo assistcncial qu e envolve difceis definies de tec

    nologia apropriada. No s a medicina desenvolveu-sc

    muito cm seus diagnsticos precoces e definies de riscosgentico-familiares, como epidemiologicamcntc a definio

    de situao de risco tambm se complexificou. Alm disso, a

    dimenso de aes que promovem diretamente a sade,

    mais que aes de restaurao ou preveno, tornaram a

    promoo sade um conceito a ser melhor delimitado.

    Esta noo, mal esboada nos anos 50, embora j presente

    enquanto inteno, traz novas questes para a assistncia,como por exemplo uma melhor definio do conceito de

    qualidade de vida.

    O fenmeno sade tem sido tambm concebido como

    expresso do modo de vida(estilo e condies de vida),

    capaz de explicar, juntamente com as condies de

    trabalho e do meio ambiente, o perfil epidemiolgicoda populao (Possas, 1989). O estudo da situao de

    sade, segundo condies de vida, tem privilegiado