A Definição de Mercados Relevantes no Direito Europeu e ...

744
A Definição de Mercados Relevantes no Direito Europeu e Português da Concorrência: Teoria e Prática

Transcript of A Definição de Mercados Relevantes no Direito Europeu e ...

A Definição de Mercados Relevantes no Direito Europeu e Português da Concorrência: Teoria e Prática
A Definição de Mercados Relevantes no Direito Europeu e Português da Concorrência: Teoria e Prática
Miguel Sousa Ferro Professor Auxiliar Convidado Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
2014
A DEFINIÇÃO DE MERCADOS RELEVANTES NO DIREITO EUROPEU E PORTUGUÊS DA CONCORRÊNCIA: TEORIA E PRÁTICA autor Miguel Sousa Ferro editor EDIÇÕES ALMEDINA, S.A. Rua Fernandes Tomás, nºs 76-80 3000-167 Coimbra Tel.: 239 851 904 · Fax: 239 851 901 www.almedina.net · [email protected] design de capa FBA. pré-impressão EDIÇÕES ALMEDINA, S.A. impressão e acabamento
Outubro, 2014 depósito legal
Apesar do cuidado e rigor colocados na elaboração da presente obra, devem os diplomas legais dela constantes ser sempre objecto de confirmação com as publicações oficiais. Toda a reprodução desta obra, por fotocópia ou outro qualquer processo, sem prévia autorização escrita do Editor, é ilícita e passível de procedimento judicial contra o infractor.
____________________________________________________ biblioteca nacional de portugal – catalogação na publicação
FERRO, Miguel Sousa
A definição de mercados relevantes no direito europeu e português da concorrência : teoria e prática. – (Teses de doutoramento) ISBN 978-972-40-5833-7
CDU 34(4-67UE)
NOTA PRÉVIA
Esta obra corresponde a uma versão atualizada e revista da dissertação de doutoramento apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em julho de 2013.
A dissertação foi discutida e aprovada com distinção e louvor, por unanimidade, a 2 de junho de 2014. A prova foi apreciada por um júri presidido pelo Prof. Doutor Pedro Pais de Vasconcelos e integrava a Prof. Doutora Maria Manuel Leitão Marques (Arguente), o Prof. Doutor Nuno Piçarra, o Prof. Doutor António Goucha Soares, o Prof. Doutor Eduardo Paz Ferreira, o Prof. Doutor Fernando Araújo e o Prof. Dou- tor Luís Morais (Arguente). Integrava ainda o júri o Prof. Doutor António Menezes Cordeiro, que não pôde participar nas provas por motivos de agenda. A todos renovo os meus agradecimentos, deixando uma palavra de especial reconhecimento e ami- zade ao Prof. Doutor Eduardo Paz Ferreira.
9
RESUMO
Esta obra visa identificar os conceitos e o método jurídico de definição de mer- cados relevantes no direito da concorrência. Na ausência de fontes diretas do direito, recorremos aos métodos de interpretação do direito e a processos de inferência lógica, baseados na análise da jurisprudência, em paralelo com a aná- lise da prática e de documentos administrativos.
Para o efeito, procedemos a um estudo global e tendencialmente exaustivo da jurisprudência e a um estudo por amostragem da prática decisória administrativa europeia e nacional. Analisámos mais de 800 acórdãos da jurisdição europeia, 80 acórdãos e sentenças da jurisdição nacional, 200 decisões da Comissão Euro- peia e 170 decisões das autoridades administrativas nacionais, além de algumas decisões judiciais e administrativas de outras jurisdições.
Existe um único método de definição de mercados, idêntico para todas as áreas e contextos de aplicação do direito da concorrência. Este método inspira- -se na ciência económica, mas tem uma natureza jurídica autónoma.
É necessário um método objetivo, predefinido e previsível de definição de mercados para justificar e legitimar o direito da concorrência, tanto em abstrato como na sua aplicação em casos concretos. Visa-se identificar, de modo aproxi- mado e sistemático, as pressões efetivas e imediatas à concorrência na oferta de determinado produto/serviço.
Concluímos que existe, neste domínio, uma profunda insegurança jurídica ao nível concetual e metodológico. Os conceitos dados como assentes na jurispru- dência não correspondem, de facto, aos conceitos que resultam da leitura global da jurisprudência e também não correspondem ao nosso ideal, sobretudo pela não adoção do teste SSNIP ao nível concetual.
10
A DEFINIÇÃO DE MERCADOS RELEVANTES...
O papel da definição de mercados tem sido, simultaneamente, sobrestimado e subestimado. Vimos ainda que existem várias interpretações recorrentes incor- retas deste método, no que respeita a questões específicas, e que a realidade prá- tica da definição de mercados dista muito da teoria.
Palavras-chave Concorrência; “Antitrust”; definição de mercados; mercado relevante
11
ABSTRACT
This work aims at identifying the legal concepts and method for market defini- tion under competition law. In the absence of the direct legal sources, we resort to legal interpretation methods and to processes of logical inference, based on the analysis of the case-law, in parallel with the analysis of administrative prac- tice and documents.
For this purpose, we carried out a global and tentatively exhaustive study of the case-law and a study by sample of administrative decision-making prac- tice, at the European and national level. We analysed over 800 EU judgments, 80 national judgments, 200 European Commission decisions and 170 decisions of the Portuguese administrative authorities, as well as some judicial and admi- nistrative decisions from other legal orders.
There is one single method for market definition, identical for all areas and contexts of competition law enforcement. This method is inspired in economic science, but it has an autonomous legal nature.
An objective, predefined and predictable market definition method is requi- red so as to justify and legitimize competition law, both abstractly and in its enforcement in specific cases. The goal is to identify, approximately and syste- matically, the effective and immediate competitive pressures to which the offer of a certain product/service is subject.
We concluded that there is, in this field, profound legal uncertainty, both in what concerns concepts and methodology. The concepts considered to be set- tled in the case-law do not correspond, in fact, to the concepts that are arrived at through a global interpretation of the case-law, and they also do not corres- pond to our ideal, especially due to the failure to adopt the SSNIP test at the conceptual level.
12
A DEFINIÇÃO DE MERCADOS RELEVANTES...
The role of market definition has been, simultaneously, overestimated and underestimated. We have also seen that there are several incorrect interpreta- tions of this method, in what concerns specific issues, and that the practical rea- lity of market definition is very distant from its theory.
Keywords Competition; Antitrust; market definition; relevant market
13
I. Introdução 19
II. A História da definição de mercados no direito da concorrência 31
III. A definição de mercados no direito da concorrência: enquadramento geral 247
IV. O método de definição de mercados 353
V. A prova e o controlo da definição de mercados 571
VI. As novas tendências económicas: adeus à definição de mercados? 637
VII. Conclusão 653
AG Advogado(a)-Geral ANC Autoridade Nacional de Concorrência ANC alemã Bundeskartellamt ANC australiana Australian Competition & Consumer Commission ANC britânica Office of Fair Trading ANC búlgara Commission on the Protection of Competition ANC canadiana Competition Bureau (precedido pelo Bureau of Competition
Policy) ANC checa Úad pro ochranu hospodáské soute ANC espanhola Comisión Nacional de la Competencia ANC francesa Autorité de la Concurrence (precedida pelo Conseil de la Concur-Autorité de la Concurrence (precedida pelo Conseil de la Concur-
rence) ANC húngara Gazdasági Versenyhivatal ANC irlandesa Competition Authority (An tÚdarás Iomaíochta) ANC italiana Autorità Garante della Concorrenza e del Mercato ANC lituana Konkurencijos Tarybos ANC neozelandesa Commerce Commission ANC polaca Urzqd Ochrony Konkurencij i Konsumentów ANC romena Consiliul Concurenei ARN Autoridade Reguladora Nacional ASAE Autoridade de Segurança Alimentar e Económica CAT Competition Commission Appeal Tribunal (Reino Unido) CC Conselho da Concorrência CCivil Código Civil CCP Código dos Contratos Públicos CECA Comunidade Europeia do Carvão e do Aço CLA “Critical Loss Analysis” CMVM Comissão de Mercado de Valores Mobiliários CPA Código do Procedimento Administrativo
16
A DEFINIÇÃO DE MERCADOS RELEVANTES...
CPC Código de Processo Civil CPP Código de Processo Penal CRP Constituição da República Portuguesa CSC Código das Sociedades Comerciais CVM Código dos Valores Mobiliários DGCC Direção-Geral do Comércio e Concorrência DoJ Department of Justice (Estados Unidos da América) EEE Espaço Económico Europeu EFTA Associação Europeia de Livre Comércio (“European Free Trade
Association”) E.g. Exempli gratia EM Estado-membro (da União Europeia) Estatutos da AdC Estatutos da Autoridade da Concorrência Estatuto do TJ Protocolo (nº 3) relativo ao Estatuto do TJ EUA Estados Unidos da América FERM “Full Equilibrium Relevant Market” FTC Federal Trade Commission (Estados Unidos da América) HORECA Hotelaria, Restauração e “Catering” ICN International Competition Network I&D Investigação e Desenvolvimento I.e. Id est LdC [ver Lei da Concorrência] Lei da Concorrência Lei nº 19/2012, de 8 de maio LOFTJ Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais n.r. Nota de rodapé OCDE Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico OFT Office of Fair Trading (ANC britânica) RAA Região Autónoma dos Açores RAM Região Autónoma da Madeira RGCO Regime Geral das Contraordenações (Ilícito de mera ordenação
social) Ss. Seguintes SSNIP “Small but Significant and Non transitory Increase in Price” STA Supremo Tribunal Administrativo STJ Supremo Tribunal de Justiça TC Tribunal Constitucional TCE Tratado que institui a Comunidade Europeia TCECA Tratado que institui a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço TCEE Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia TCL Tribunal do Comércio de Lisboa TCRS Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão TFUE Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia TG Tribunal Geral da União Europeia (anteriormente designado
Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias)
ABREVIATURAS
17
TJ Tribunal de Justiça da União Europeia (sentido estrito) TJL Tribunal Judicial de Lisboa TJP Tribunal Judicial do Porto TRC Tribunal da Relação de Coimbra TRE Tribunal da Relação de Évora TRG Tribunal da Relação de Guimarães TRL Tribunal da Relação de Lisboa TRP Tribunal da Relação do Porto Tribunal Tribunal de Justiça da União Europeia (sentido amplo, incluindo
TJ e TG) UE União Europeia UPP “Upward Pricing Pressure”
19
I. Introdução
Na última década, sobretudo desde a criação da Autoridade da Concorrên- cia, assistimos em Portugal a uma notável explosão do número e profundidade dos estudos sobre direito da concorrência.
Por “direito da concorrência”, entendemos, em termos gerais, o conjunto de normas que regula a atividade económica das empresas nos mercados, proibindo e sancionando práticas coletivas e unilaterais prejudiciais para o bem-estar social (acordos, práticas concertadas e decisões de associações de empresa, abusos de posição dominante e abusos de dependência económica), bem como a própria alteração da estrutura concorrencial que, previsivelmente, conduza ao mesmo resultado (controlo de concentrações), e ainda determinados tipos de interven- ções do Estado distorcivas da concorrência (auxílios de Estado)1.
Cada ordenamento jurídico tem o seu próprio direito da concorrência. No entanto, na União Europeia, verifica-se uma quase completa harmonização das
1 Nas palavras de Paz Ferreira, o direito da concorrência é “uma parte do sistema legal, tendente à fixação de normas aplicáveis ao exercício da atividade económica através de regras relativas ao estabelecimento das empresas, à comercialização dos seus produtos, às relações concorrenciais e à proteção do consumidor. Trata-se de um conjunto de leis que tem em vista a proteção do mercado contra restrições à concorrência quer imputáveis a comportamentos isolados dos sujeitos económicos, quer a comportamentos coligados de grupos de empresas, independentemente da sua forma jurídica, quer ainda ao exercício abusivo de posições de domínio por parte de uma empresa ou empresas preponderantes no mercado e, bem assim, o controlo das operações de concentração” – Paz Ferreira, 2001:474. Noutra formulação, que também omite o controlo dos auxílios de Estado (elemento específico do direito da concorrência da União Europeia): “por legislação de defesa da concorência entende-se o conjunto de leis que tem em vista a proteção do mercado contra restrições à concorrência imputáveis, quer a comportamentos isolados dos sujeitos económicos, quer a comportamentos coligados de grupos de empresas, independentemente da sua forma jurídica, quer ainda ao exercício abusivo de posição de domínio por parte de uma empresa ou empresas preponderantes no mercado e, bem assim, o controlo das operações de concentração” – Santos, Gonçalves & Leitão Marques, 2008:319. Ver ainda a breve súmula do direito europeu da concorrência em: Pitta e Cunha, 2006:139-143.
20
A DEFINIÇÃO DE MERCADOS RELEVANTES...
normas de concorrência dos diferentes Estados-membros com o direito da con- corrência instituído ao abrigo dos Tratados fundadores. Assim, sem prejuízo de algumas especificidades, é possível discutir de modo conjunto e indiferenciado, designadamente, o direito português e o direito europeu da concorrência.
Em Portugal, o direito da concorrência encontra-se reunido, em primeira linha, na Lei nº 19/2012, de 8 de maio (Lei da Concorrência)2. No ordenamento jurídico da União Europeia, o direito da concorrência decorre, primordialmente, dos artigos 101º a 109º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, bem como de diversos regulamentos de implementação.
De entre as infindáveis questões controversas suscitadas por este ramo do direito, há uma, de singular importância3, cuja análise tem, até ao presente, vindo a ser negligenciada pela doutrina jurídica nacional: a definição do mercado em causa (ou mercado relevante).
De acordo com o Tribunal Geral da União Europeia, “a definição adequada do mercado em causa é condição necessária e prévia a qualquer julgamento que incida sobre um comportamento pretensamente anticoncorrencial”4. Será mesmo verdade que toda e qualquer aplicação do direito da concorrência exige uma prévia delimitação do mercado em causa? Até que ponto a definição de mercados é necessária à pró- pria fundamentação jus-política do direito da concorrência?
Por “definição de mercados”, entendemos, em jeito introdutório, a delimitação de uma área de confronto entre as empresas, no jogo da concorrência, em termos materiais (produtos e serviços), geográficos e temporais. Esta área traduz, pelo menos até certo ponto, as pressões concorrenciais a que as empresas estão sujei- tas e que são suscetíveis de limitar o seu comportamento nos mercados. Com- preender as fronteiras do mercado torna-se, portanto, essencial para saber, por exemplo: (i) se uma empresa tem uma posição dominante que lhe confira uma especial responsabilidade e limites quantos aos comportamentos que pode ado- tar; (ii) se um acordo entre empresas abrange uma parte suficientemente ampla do mercado para poder ter nele um impacto restritivo significativo; (iii) se uma fusão entre empresas vai diminuir substancialmente a concorrência no mercado; etc. Em quantas outras situações se revela necessário delimitar o mercado rele- vante, para aplicar o direito da concorrência, e com que propósito?
Procurar compreender a definição de mercados relevantes no direito da con- corrência é, à partida, condenar-se a um exercício de expectável esquizofrenia
2 Não incluímos, portanto, no âmbito do direito da concorrência, o regime das práticas individuais restritivas do comércio, previsto atualmente no Decreto-Lei nº 166/2013, de 27 de dezembro. 3 Como se realça em Moura e Silva, 2008:583: “a definição do mercado relevante (...) é a fase que tende a suscitar maior controvérsia entre as autoridades de defesa da concorrência e as empresas objeto de investigação”. 4 Acórdão do TG de 1992/03/10, Società Italiana Vetro et al c. Comissão (T-68/89 etc.), C.J. (1992) II-1403, §159.
INTRODUÇÃO
21
intelectual. Só é possível chegar a bom porto se estivermos firmemente ancora- dos nos objetivos últimos que nos propomos. Isto, porque é um tema incrivel- mente amplo, que vive em tensão interna, quase que em permanente contradição consigo mesmo.
Desde logo, a definição de mercados é um ponto de encontro de diversos ramos do conhecimento, todos os quais trazem para a mesa perspetivas e obje- tivos diferentes que não são sempre conciliáveis.
Um gestor tenderá a partir da realidade do negócio, observada no dia a dia, e a esperar que o exercício de delimitação de mercados conduza a um resultado que corresponda, no essencial, às fronteiras dentro das quais considera que a sua empresa se degladia com outras. Se o objetivo é perceber os limites que se impõem ao comportamento das empresas no mercado, fará sentido que estes limi- tes, eminentemente subjetivos, correspondam à perceção daqueles que tomam as decisões estratégicas. E, no entanto, verifica-se, com notável frequência, que os gestores se vejam surpreendidos pela delimitação de um mercado, ao abrigo do direito da concorrência, que não corresponde à sua perceção e aos pressupos- tos com que sempre atuaram.
Um economista tende a olhar para a delimitação de mercados como um mal necessário, um instrumento imperfeito para se chegar a um fim que, idealmente, se alcançaria através de métodos diretos da aferição do poder de mercado. Para ele, o que importa é que o método de definição de mercados conduza a um resul- tado tão próximo da realidade quanto possível. Sucede, porém, que essa realidade não é alcançável de modo objetivo; ela é mensurável apenas através de modelos económicos, o que significa que, afinal, muitas vezes, o que o economista pro- cura é um método de definição de mercados que conduza a resultados, tanto quanto possível, próximos da realidade tal como prevista pela teoria económica.
Um jurista procura na definição de mercados o meio (por vezes) indispensável para enquadrar a aplicação das normas de concorrência. Vê-se confrontado com normas cujo significado e consequências não consegue descodificar sem recor- rer a esse conceito, à partida externo ao direito, que é o de “mercado”. Debate- -se com duas principais preocupações: certeza e justiça. Por um lado, precisa de um método objetivo, certo e pré-determinado de identificar o que seja um mer- cado num caso concreto, sob pena de ser impossível alcançar o nível indispen- sável de segurança jurídica. Por outro lado, precisa que esse método conduza a resultados que sejam realistas e justos, sob pena de se proibirem e sancionarem comportamentos com base em pressupostos errados, impondo um ónus injusti- ficado e desproporcional aos sujeitos do direito. E procura encontrar um ponto de equilíbrio entre estas duas exigências, com a preocupação acrescida de con- siderar que a imprevisibilidade de uma norma pode, por si só, ser geradora de profunda injustiça.
22
A DEFINIÇÃO DE MERCADOS RELEVANTES...
O jurista espera do economista que o ajude a encontrar a melhor solução prag- mática para o seu problema. O economista espera do jurista que o ouça sobre quais as reais fronteiras do mercado. E o gestor espera que o jurista e o economista reconheçam que ele é que conhece a realidade do mercado e o deixem trabalhar.
Esta é uma tese de direito. Não podemos ignorar as perspetivas dos outros ramos do conhecimento cujos ensinamentos são cruciais à compreensão desta temática, e a ciência económica, em especial, merecerá, repetidamente, a nossa atenção ao longo das páginas subsequentes (com as limitações que decorrem dos nossos parcos conhecimentos nesse domínio)5. Ao mesmo tempo, as ques- tões que nos colocamos são questões jurídicas. Assim, sem fecharmos os olhos aos problemas e expetativas dos economistas e dos gestores, ocupar-nos-emos, acima de tudo, da interpretação do direito vigente e da discussão de soluções otimizadoras do enquadramento normativo da concorrência.
Mas os problemas não acabam na interdisciplinaridade. Como alguns con- fessam, em sussurro, os economistas não sabem, verdadeiramente, o que seja um mercado. Em teoria, é fácil defini-lo. Mas identificar os contornos precisos de um mercado específico é um exercício raramente apetecível para os econo- mistas industriais, ou sequer um exercício que lhes seja natural: a identificação de um mercado relevante é uma preocupação própria do direito da concorrên- cia, não da economia6. Inevitavelmente, há opções arbitrárias – ou, no mínimo, altamente discricionárias – que têm de ser tomadas e que nos levam ao domínio dos pressupostos falíveis e das simplificações.
5 É ponto assente que se tem verificado uma crescente integração de conceitos e ensinamentos da ciência económica no direito da concorrência europeu e português, ainda que em grau variável consoante as áreas e as questões suscitadas neste ramo do direito. Neste sentido, cfr., e.g.: Morais, 2010:66-68, em que se afirma, inter alia: “we have witnessed a fundamental change in the legal methodology of EU competition law. It is a change leading to an increasing importance of economics in competition law analysis and decisions. That gradual and inconsistent incorporation of economic analysis and criteria in the process of interpretation and enforcement of EU competition law has been rather loosely referred to as the development of an effects based analysis. In short, it cor- responds to an analytical process which intrinsically combines legal methodology parameters with economic criteria or factors, while placing a major emphasis on assessment of market power of undertakings”. Ver ainda: Martinho, 2010:259-261. No entanto, como já se observava em Glassman, 1980:1155, se é verdade que “[t]he definition of the relevant product and geographic market in antitrust litigation requires the marriage of the economic and legal disciplines”, é também certo que “[t]he marriage is, at best, a troubled one, and divorce seems always imminent”. 6 A este respeito, afirmou, recentemente, Fisher: “What, then, does economic analysis have to say about market definition? In one sense, the answer is «Nothing at all». The question of what is «the» relevant market never arises in economics outside of antitrust. Moreover, (…) it is not a question that has a precise, well-defined answer” (Fisher, 2008:132). Em Kate & Niels, 2009:298, afirma-se: “it is hard to find a satisfactory description or definition [de mercado relevante] in textbooks on microeconomics or industrial organization, if the concept is mentioned at all in such readings”. E Kaplow conclui: “In the field of industrial organization economics, which devotes substantial attention to matters of market power and competition policy more generally, the concept of market redefinition [para além de um mercado de produto homogéneo] does not really exist” (Kaplow, 2010:458).
INTRODUÇÃO
23
Os juristas também não sabem o que seja um mercado7. Tipicamente, um advogado que queira aconselhar um cliente sobre a aplicação expectável de nor- mas de concorrência, recorrerá aos precedentes de definição de mercados das autoridades – administrativas e judiciais – que lhe sejam mais próximas ou rele- vantes. E só se o resultado não for conveniente à posição pretendida é que recor- rerá à teoria da definição de mercados para procurar defender uma solução de delimitação diversa. Ao adotar esta abordagem, porém, o jurista sabe que se move em areias movediças, pois nada lhe garante que as anteriores definições de mer- cado se repitam no seu caso.
Estes dois lados confrontam-se num campo de batalha que vai ganhando formas distintas ao longo das décadas, mas que nunca desaparece, enquanto as empresas procuram rumar a sua atividade económica até à calmia, por entre a tempestade de incerteza.
Hoje, é axiomático no direito da concorrência, na União Europeia, que há inú- meros contextos em que este só pode ser aplicado depois de definido o mercado relevante. Chega-se mesmo a dizer que é sempre preciso definir o mercado rele- vante. Mas nem sempre assim foi. O que prova que não é forçoso que assim seja.
Desde que se começaram a definir os mercados em causa, em casos de con- corrência, que os economistas expressaram o seu descontentamento com análises estruturais do mercado que, frequentemente, não conferem uma visão realista das verdadeiras restrições concorrenciais ao comportamento das empresas. Serão merecidas estas críticas?
E se é verdade que o tema é antigo, a sua importância ainda não parou de aumentar. Com efeito, de grosso modo, a uma primeira fase de aplicação do direito da concorrência em termos extremamente simplificados, sem defini- ção de mercados, seguiu-se uma fase de procura de um método de definição de mercados que conferisse segurança jurídica e justiça no modo como o direito era aplicado. Foi-se aperfeiçoando a teoria cada vez mais, e esse processo ainda hoje está longe de terminar8.
Ao mesmo tempo, não se pode dizer que a prática tenha seguido a evolução da teoria. Os passos de gigante dos teóricos deixaram a milhas as preocupações e possibilidades pragmáticas daqueles que aplicam o direito, sobretudo fora das
7 Como se observou em Ordover & Wall, 1989:20: “Can market definition be more than educated guesswork? There are times when that seems doubtful. There is a widespread perception that the «fact» of a market with certain specific countours is not like other facts capable of definitive proof. For example, though it may be just as difficult to prove the existence of a conspiracy as it is to prove the market, at least lawyers embark upon the former task confident that there is a «real» answer – there either was a conspiracy or there wasn’t. Market definition is different. The «inherent fuzziness» that the Supreme Court spoke about twenty-five years ago is real, and it can make lawyering very difficult”. 8 Como se observa em Morais, 2006:801: “não foi ainda consolidada uma metodologia analítica consistente de delimitação de mercados relevantes”.
24
A DEFINIÇÃO DE MERCADOS RELEVANTES...
agências especializadas. Até ao ponto em que hoje se tem de ponderar como rea- lidades eventualmente distintas a teoria doutrinária económica, a teoria admi- nistrativa e a teoria jurídica de definição de mercados, reconhecendo ainda ser possível que nenhuma delas corresponda, efetivamente, na esmagadora maioria dos casos, à prática jurídica.
Outro problema, que não podemos ignorar, é o facto de a elevada comple- xificação da teoria de definição de mercados, nas suas múltiplas dimensões, ter levado a que, na prática, o direito da concorrência para os “ricos” não seja o mesmo que para os “pobres” – para uma grande empresa, pode justificar-se o financiamento de estudos económicos, necessários a determinadas abordagens do problema da definição de mercados, que são absolutamente impossíveis na esmagadora maioria dos casos9.
Como se este cenário polimorficamente dissonante não bastasse, os últimos cinco anos viram decretar-se uma nova guerra aberta dos economistas à defi- nição de mercados. Alguns dos maiores nomes do pensamento económico do direito antitrust norte-americano propuseram, e as autoridades administrativas americanas aceitaram até certo ponto, que não é necessário definir os mercados relevantes para se aplicarem as normas de concorrência em áreas nas quais, até recentemente, essa operação era tida como indiscutivelmente indispensável. O tom das discussões do outro lado do Atlântico já chegou ao ponto de artigos que abertamente questionam se não é melhor dispensar de todo a definição de mercados. Estas novas teorias já começaram, em parte, a atravessar o Atlântico, e vieram lançar âncora, nomeadamente, num draft de orientações da Autoridade da Concorrência, submetido a consulta pública10.
Estaremos a assistir a um ponto de viragem? Apesar das orientações de âmbito geral produzidas por autoridades admi-
nistrativas, e de várias exposições sumárias deste tema na doutrina, subsistem profundas dúvidas, entre os aplicadores do direito da concorrência, sobre qual o método de definição de mercados retido no direito da concorrência. Muitas das delimitações criticáveis a que se chega acontecem, justamente, por não se terem bem presentes todos os passos e todas as questões que devem ser coloca- das quando se discutem as fronteiras do mercado. Será possível fornecer uma visão mais clara, mais sistematizada, do método de definição de mercados? Será que se pode, sequer, dizer que existe um único método?
9 Neste sentido: Idot, 2011:142. 10 E também na doutrina nacional estas vozes começam a fazer eco. Em Oliveira Pais, 2011:377-378, após a identificação de algumas das lacunas do teste SSNIP, pergunta-se: “Sendo delimitado um mercado relevante que não corresponde à realidade, não será preferível prescindirmos do teste SSNIP? Ou mesmo do conceito de mercado relevante? Não será melhor as autoridades de concorrência analisarem diretamente os efeitos das condutas empresariais no mercado?”.
INTRODUÇÃO
25
Isto dito, há que realçar que o propósito deste trabalho não é o de fornecer uma breve súmula das principais questões a ter em conta ao definir mercados. Para isso, existem inúmeras comunicações de autoridades de concorrência – que são um ponto de partida ótimo e, porventura, mesmo incontornável –, bem como inúmeros contributos doutrinários que se inspiram, largamente, naque- las comunicações.
Para que pudesse, eventualmente, resultar deste trabalho um contributo cien- tífico inovador e útil, havia que o orientar para questões que ainda não estivessem suficientemente exploradas. Ora, cedo nos apercebemos que qualquer tentativa de exposição simplificada e breve do método de definição de mercados se via inviabilizada pela necessidade de parar, a cada passo, para discutir as questões jurídicas e económicas mais prementes.
Admitimos, por isso, à partida, que a presente tese não será a fonte ideal para uma introdução à problemática da definição de mercados no direito da concor- rência. Demasiado amiúde, a discussão de um ponto específico exige conheci- mentos básicos a que só posteriormente se chega, na ordem lógica de exposição.
Não obstante, encontramos algum conforto na ideia de que um texto desta natureza não tem como público-alvo os não iniciados. Dificilmente um intérprete do direito da concorrência que queira compreender o método de definição de mercados começará o seu percurso por abrir uma tese de doutoramento sobre o tema. Assim sendo, se aos iniciados nos dirigimos, tornar-se-ão menos sérias, esperamos, as lacunas que inevitavelmente surgirão na exposição de questões específicas, por se referirem ou terem por adquiridas questões que só posterior- mente serão tratadas.
Uma grande parte da investigação na base da presente tese centra-se na juris- prudência dos tribunais europeus e dos Estados-membros europeus (e mesmo de outros Estados). Este acentuado peso da componente jurisprudencial não será, certamente, surpreendente, neste ramo do direito. É sobejamente reconhecido que, no direito da economia, só a análise da interpretação judicial permite uma visão atualizada e completa das normas vigentes11. Se tal é verdade para o direito da economia, no seu todo, ainda mais o é no que respeita, especificamente, ao direito da concorrência, no qual uma enorme parte do conteúdo normativo pro- vém de fontes jurisprudenciais interpretadoras de um regime expresso em ter- mos frequentemente sucintos e repleto de conceitos indeterminados.
Esta afirmação merece que paremos, por um momento, para esclarecer, sucin- tamente, uma importante caraterística do método seguido na presente tese. Este
11 Paz Ferreira, 2001:53: “Num domínio com a novidade e mobilidade do direito da economia, reveste-se, de facto, da maior importância a apreciação da forma como os tribunais interpretam as normas de direito económico, que é válida quer para as decisões dos tribunais administrativos, quer dos tribunais cíveis, crescentemente chamados”.
26
A DEFINIÇÃO DE MERCADOS RELEVANTES...
trabalho tem por objetivo central analisar as exigências e o método de defini- ção de mercados vigentes no direito da concorrência europeu e nacional. Para o fazer, há que interpretar as fontes relevantes do direito.
Sucede, porém, que as fontes diretas do direito têm muito pouco a dizer, expressamente, sobre a definição de mercados. Nos princípios gerais do direito poderemos, eventualmente, encontrar algum apoio, mas não nos permitem res- ponder a questões concretas sobre o método de definição de mercados. Por via de regra, há demasiada incerteza para se identificarem costumes de valor norma- tivo. Ao nível dos Tratados fundadores da União Europeia e da legislação nacio- nal (stricto sensu) encontramos apenas referências vagas à necessidade de definir os mercados relevantes nalguns contextos, muitas delas apenas implícitas.
É verdade que, em ambos os ordenamentos, encontramos princípios sobre a delimitação de mercados em atos normativos hierarquicamente inferiores. Mesmo que limitadas a áreas específicas do direito da concorrência (maxime regu- lamentos de controlo de concentrações e de isenção categorial), pode-se recor- rer a estas fontes normativas, através da analogia, para a integração das lacunas das fontes primárias. No entanto, a sua subordinação hierárquica exige a maior cautela. Não se pode presumir que o método de definição de mercados exposto nestes atos subordinados seja, forçosamente, o que deva ser aplicado na inter- pretação dos Tratados e das leis nacionais, sob pena de se atribuir à administra- ção (Comissão Europeia ou Autoridade da Concorrência), autora destes atos, o poder de interpretação autêntica da vontade do legislador.
Restam-nos as fontes indiretas (ou as fontes do conhecimento do direito): a jurisprudência e a doutrina.
Quanto à doutrina, devemos distinguir entre a económica e a jurídica. A grande maioria das fontes doutrinais sobre definição de mercados em direito
da concorrência são fontes de doutrina económica. Ora, a doutrina económica não é sequer uma fonte do conhecimento do direito12. Além disso, é fundamen- tal que se esclareça à partida: o direito da concorrência não remete para a ciência económica, cabendo a esta determinar o que seja um mercado relevante. Antes, o direito da concorrência inspira-se e baseia-se na ciência económica para definir critérios normativos de definição de mercados relevantes13. A doutrina económica
12 Cfr., e.g.: Teixeira de Sousa, 2012:133-134. 13 Neste sentido, cfr., e.g., Brunt (“One might refer to competition law as a “blend” of law and economics or as having «mixed economic-legal content». But while suggestive, such a characterization is, to a degree, misleading. It is more apt to say that economic concepts are “absorbed” or “assimilated” by the law. For it is plain that the law must be the dominant partner” – OCDE, 1996:47-48) e Potocki (“competition law is different, not only because it applies law to economics but because it grafts economic concepts onto law. (…) It issues prohibitions with reference to economic concepts; for example, it prohibits abuse of dominant position. This prohibition cannot be understood and applied only in its economic sense. Economic concepts thus become legal rules. The transmutation is essentially a political choice, a political act. (…) [A]s economic concepts have become an integral part of the rule of law, a purely
INTRODUÇÃO
27
pode discordar das opções vertidas nesses critérios normativos (assim como pode discordar da lei), mas não os pode alterar, por mera força das suas críticas (por mais acertadas que sejam). É errado, pois, que se procure identificar na doutrina económica – como tantas vezes se faz – o método “correto” de delimitar merca- dos para efeitos da aplicação do direito da concorrência14. O que se há-de encon- trar nesta doutrina, isso sim, são argumentos e instrumentos vários que devem ser ponderados pelos intérpretes do direito, na medida em que se adequem e que a sua utilização seja permitida pelo método de definição de mercados ado- tado no direito da concorrência. Além disso, encontram-se nessa doutrina, em última linha, contributos para repensar os critérios normativos vigentes (numa lógica de jure condendo). Dito de outro modo, os economistas tendem a discutir a política de concorrência, e não o direito da concorrência.
Quanto à doutrina jurídica, além de ser escassa a que se debruça em profun- didade sobre este tema (a grande maioria das abordagens são superficiais e não especializadas, feitas no contexto e de modo acessório à análise de outras maté- rias), ela padece, de modo geral, de vários vícios que lhe retiram grande parte da sua utilidade.
Primeiro, a doutrina jurídica dedica-se, frequentemente, a discutir a perspe- tiva da ciência económica sobre a delimitação de mercados, em vez de discutir o seu enquadramento jurídico.
Segundo, grande parte da doutrina discute critérios normativos de delimita- ção de mercados de outros ordenamentos jurídicos – maxime, dos Estados Uni- dos da América – como se eles fossem aplicáveis nos ordenamentos europeu e nacional (em parte, devido ao mesmo lapso de se pensar que se trata, aqui, de remeter, pura e simplesmente, para critérios extrajurídicos, da ciência económica, que seriam, portanto, homogéneos). Como veremos, há diferenças significativas, neste plano, entre os ordenamentos.
economic logic no longer applies” – OCDE, 1996:54). Recordemos ainda Bork: “Because the issues of goals and of economic means must both be faced, antitrust is necessarily a hybrid policy science, a cross between law and economics that produces a mode of reasoning somewhat different from that of either discipline alone. (…) Though its theory is not, and cannot be, nearly so highly developed as that of economics, law does have requirements that are distinctively its own” (Bork, 1993:8). Deve recusar-se, liminarmente, portanto, a ideia, amplamente difundida entre alguns economistas, de que o direito da concorrência é um “outpost of economics” (como se nota em Baker & Bresnahan, 2006:1). 14 Nas palavras de Vesterdorf, a propósito da peritagem económica no contexto dos casos de concorrência: “As análises económicas constituem, frequentemente, uma parte importante do material de prova nos processos de concorrência e podem ter um grande valor para a compreensão do contexto económico pelo Tribunal. (…) Mas – e isso é que é importante – as peritagens económicas não podem substituir a apreciação e a solução jurídicas. [A apreciação do perito económico] (…) não constitui e não pode constituir uma apreciação jurídica” – Conclusões do Juiz Vesterdorf, designado como AG, de 1991/07/10, Rhône-Poulenc et al c. Comissão (T-1/89 etc.), C.J. (1991) II-867, Capítulo E(5).
28
A DEFINIÇÃO DE MERCADOS RELEVANTES...
Por último, e acima de tudo, grande parte da doutrina jurídica incorre no erro de proceder como se o conteúdo do direito da concorrência fosse definido pelo pensamento e pela prática das autoridades administrativas (Comissão Europeia e Autoridade da Concorrência)15. A esmagadora maioria das abordagens dou- trinárias deste tema limita-se a citar orientações gerais destas autoridades e a extrair princípios de delimitação de mercados da sua prática decisória. Ora, não é a prática das autoridades administrativas que determina o que seja o direito, ou melhor, que determina a interpretação correta das normas adotadas pelo legis- lador e o modo adequado de integrar as lacunas do ordenamento jurídico. A sua análise tem imensa relevância, mas não pode reconduzir-se ao único critério, ou sequer ao critério decisivo.
Resta-nos a jurisprudência. É nesta que se encontra, em nosso entender, a fonte mais relevante para a determinação do enquadramento normativo vigente para a delimitação de mercados no âmbito da aplicação do direito da concorrên- cia, na medida em que recorre às fontes do direito (stricto sensu) e à metodologia de interpretação jurídica para chegar ao conteúdo preciso das normas e integrar as suas lacunas16. O que justifica que lhe dediquemos especial atenção.
Ao mesmo tempo, não pretendemos, naturalmente, afirmar que o direito vigente seja, forçosamente, aquele que é declarado pelos tribunais (até porque os tribunais frequentemente se contradizem). Não abdicamos da missão de inter- pretarmos, nós próprios, o conjunto de normas e princípios do ordenamento jurídico para identificarmos as normas vigentes, podendo chegar a resultados que não correspondem às conclusões das autoridades judiciais. Assim como não excluímos a possibilidade de identificar um quadro jurídico presente deficitário e de propor uma evolução normativa.
Outra dificuldade com que nos confrontámos decorre da incrível vastidão do tema. Como a definição de mercados é, pelo menos potencialmente, relevante para a grande maioria dos casos em que se aplica o direito da concorrência, o número de pronúncias de tribunais e de autoridades administrativas relevantes para a discussão do tema é, virtualmente, inesgotável. A definição de mercados é uma das questões mais litigiosas do direito da concorrência. A sua relevância horizontal leva alguns autores a sugerir que se trata, mesmo, da questão mais
15 Já se verificava este vício de raciocínio antes da publicação da Comunicação sobre Definição de Mercados – ver, e.g.: Briones Alonso, 1994 (“The concept of market and its implementation can therefore only be properly inferred from the Commission’s jurisprudence”) 16 Cfr., e.g.: Teixeira de Sousa, 2012: 136: “o direito «trabalhado» pela jurisprudência acaba por se sobrepor ao direito definido pelo legislador. A jurisprudência não é fonte de direito, mas isso não deve fazer esquecer o importante papel que ela desempenha na vida jurídica. Qualquer decisão dos tribunais – e, principalmente, dos tribunais superiores – constitui um modelo para outras decisões sobre a mesma questão de direito”. O mesmo autor cita Esser: “o juiz é livre e só está sujeito à lei – mas a lei é o que ele próprio devidamente entende como tal”.
INTRODUÇÃO
29
frequentemente discutida entre as partes em casos de concorrência17. Também a doutrina que se debruça sobre o tema (mesmo que superficialmente) é demasiado extensa para se pretender ter uma visão exaustiva. Fomos obrigados, portanto, a um exercício de síntese que, inevitavelmente, deixou de fora vários temas que se poderão mostrar relevantes em casos concretos, ou a tratar outros de modo demasiado superficial. Esforçámo-nos por encontrar uma posição de compro- misso, guiada pelos objetivos da presente tese.
Assim, procurámos ser tão exaustivos quanto possível na análise da jurispru- dência do Tribunal de Justiça da União Europeia e dos tribunais portugueses que se debruçam sobre esta matéria. Referimos jurisprudência (bem como prática decisória administrativa) de outros ordenamentos apenas na medida em que esta se mostra especialmente relevante para a discussão de alguma questão especí- fica. Quanto à prática decisória da Comissão Europeia e da AdC, foi necessário recorrer a um método de amostragem, tendo-se definido critérios para garantir, tanto quanto possível, a representatividade das decisões selecionadas (sobretudo no segundo caso)18, complementadas com a discussão de outras decisões que se mostrassem especialmente relevantes para temas específicos.
Como se sugere no título, uma das nossas preocupações centrais foi a de confrontar a teoria da definição de mercados com a sua realidade prática. É inú- til dispormos de um método teórico de definição de mercados que se aproxime da perfeição, se este for impossível de aplicar na prática, ou se for impossível de aplicar na esmagadora maioria dos casos, ou até se os aplicadores do direito o ignorarem pura e simplesmente. Não discordamos que o direito possa ter uma realidade objetiva, decorrente da correta aplicação das técnicas hermenêuticas. No entanto, também não ignoramos que o direito só existe para regular a socie- dade, e que pode ser tão ou mais relevante conhecer a realidade prática do direito, como conhecer a sua realidade teórica. Cremos, aliás, que o esforço de otimiza- ção do enquadramento normativo não pode ignorar o objetivo crucial de apro- ximar, tanto quanto possível, a realidade teórica da realidade prática, unindo a procura da equidade em abstrato ao pragmatismo da descoberta da solução justa no caso concreto. Esta é uma preocupação que nos guiou, constantemente, ao longo da investigação19.
17 Cfr., e.g.: Kaplow, 2010:439. 18 A análise da jurisprudência e prática administrativa subjacente à presente tese funda-se num levantamento realizado até ao dia 4 de junho de 2014. 19 Como já se terá tornado evidente, a presente tese foi redigida na nova ortografia. Por simplicidade de revisão, e esperando que nos seja perdoado o excesso de zelo revisionista, todo o texto foi harmonizado de acordo com a nova ortografia, mesmo em citações de textos anteriores à entrada em vigor do novo acordo.
31
II. A História da definição de mercados no direito da concorrência
II.1. A origem transatlântica da definição de mercados O direito da concorrência (“antitrust”) surgiu nos Estados Unidos da América com a adoção do Sherman Act20 em 1890 (práticas coletivas e individuais restri- tivas da concorrência) e do Clayton Act21 em 1914 (controlo de concentrações). Mas, durante várias décadas, os tribunais americanos não discutiam a definição, nem sequer referiam o conceito de mercado relevante, na sua aplicação destas normas, embora se possa considerar que a noção estava implícita em vários casos relativos a práticas de monopolização22.
Uma exceção a este quadro geral foi a opinião de um juiz num caso de 1916, que recusou que dois produtos pudessem ser incluídos no mesmo mercado rele- vante se o preço de um deles era significativamente inferior ao outro23.
Tirando aquela notável opinião, muito à frente do seu tempo, só no final dos anos 40 o problema começou efetivamente a ser discutido nos tribunais federais americanos, em termos significativos. Em 1948, no caso United States v. Colum- bia Steel Co., o Supremo Tribunal americano usou, expressamente, o conceito de mercado relevante e chamou a atenção para a dificuldade em definir regras para identificar as áreas ou os produtos que estão em concorrência entre si, não tendo adiantado qualquer princípio geral para este efeito24.
Em reação à autorização da operação de concentração em causa neste caso, que o Tribunal concluiu não violar o Sherman Act, o Congresso americano aprovou, em 1950, o Celler-Kefauver Act, alargando o âmbito do controlo de concentra-
20 EUA, Sherman Act, Ch. 647, 26 Stat. 209, codificado em 15 U.S.C. §§1–7. 21 EUA, Clayton Act, Ch. 63-212, 38 Stat. 730, codificado em 15 U.S.C. §§12–27. 22 Neste sentido: Werden, 1992:128; Turner, 1956:286-297; Upshaw, 1965:428-441. 23 Opinião do Juiz Hand em EUA, United States v. Corn Prods. Ref. Co., 234 F. 964, 975-76 (S.D.N.Y. 1916). 24 EUA, United States v. Columbia Steel Co., 334 U.S. 495, 508 (1948), p. 511.
32
A DEFINIÇÃO DE MERCADOS RELEVANTES...
ções e proibindo concentrações que reduzissem, substancialmente, a concorrên- cia “em qualquer área de comércio em qualquer secção do país”25. Esta expressão viria a ser considerada equivalente a “mercado relevante”, tendo-se assim introduzido expressamente, pela primeira vez, o conceito na legislação antitrust americana26.
Em 1953, no caso Times-Picayune Publishing Co. v. United States27, o “Supreme Court” utilizou pela primeira vez o critério da elasticidade cruzada para delimi- tar um mercado, sugerindo que a delimitação do mercado se fizesse por referên- cia à substituibilidade da perspetiva da procura, face a variações razoáveis dos preços. Dois anos depois, um comité de estudo do direito antitrust, criado pelo Procurador-Geral americano, apresentou um estudo em que foi ainda mais fundo na análise dos critérios que devem pautar a definição dos mercados relevantes28.
No famoso caso Cellophane29, que deu o nome à falácia com o mesmo nome (ver secção IV.1.3.4), em 1956, e sem prejuízo dos famosos defeitos das conclusões desta decisão, o “Supreme Court” aprofundou, significativamente, os princípios aplicáveis à delimitação de mercados, referindo-se, nomeadamente, à elasticidade cruzada da procura (a ser medida por meio de um teste de reação à variação de preços) e à existência de produtos considerados razoavelmente intersubstituíveis pela procura para a satisfação das mesmas necessidades, devendo ponderar-se o preço, caraterísticas e adaptabilidade desses produtos.
Seguiram-se vários outros acórdãos, que não foram tão longe em termos de clareza quanto a princípios aplicáveis. Pelo menos numa primeira fase, era fre- quente o controlo das delimitações de mercados pelos tribunais serem alvo de acérrimas críticas pela doutrina, por permitirem uma quase arbitrariedade na delimitação de mercados pelas autoridades30.
Estando a nossa análise focada no ordenamento jurídico da União Europeia e no ordenamento jurídico português, seria despicienda uma descrição mais aprofundada da evolução da jurisprudência americana sobre esta questão, tanto mais que esta descrição pode ser consultada numa notável obra de Werden31.
O que importa sublinhar, nesta fase introdutória, é que, em 1973, quando o Tribunal de Justiça adotou o seu primeiro acórdão sobre a questão da definição de mercados no âmbito da aplicação do direito da concorrência, não só já exis- tiam duas décadas de jurisprudência nos EUA sobre esta questão, como também
25 EUA, Celler-Kefauver Act, Ch. 1184, 64 Stat. 1125 (nossa tradução). 26 Neste sentido: Werden, 1992:129-130. 27 EUA, Times-Picayune Publishing Co. v. United States, 345 U.S. 594, 612 n.31 (1953). 28 Cfr. Werden, 1992:134-135. 29 EUA, Cellophane, 351 U.S. 400 (1956). 30 Cfr., e.g., EUA, Du Pont-General Motors, 353 U.S. 650-51 (1957); EUA, United States v. Bethlehem Steel Corp., 168 F.Supp. 576 (1958). 31 Werden, 1992:134 e ss.
A HISTÓRIA DA DEFINIÇÃO DE MERCADOS NO DIREITO DA CONCORRÊNCIA
33
já fora aprovada uma primeira versão de Orientações do DoJ sobre operações de concentração (“Merger Guidelines” de 1968) que referiam a importância de defi- nir o mercado e forneciam algumas (parcas) notas sobre como o fazer.
II.2. Súmula da História da definição de mercados no direito europeu da Concorrência II.2.1. A idade da inocência: o direito europeu da Concorrência antes da definição de mercados (1952-1973) Depois de várias décadas de repetição das “mantras” da definição de mercados, já nem ocorre à comunidade jurídica questionar a necessidade desta tarefa como passo prévio à aplicação do direito da concorrência32. A definição de mercados tornou-se uma componente essencial, estruturante do pensamento jus-concor- rencialista, de tal modo que parece ser hoje um absurdo sugerir-se a possibili- dade da aplicação do direito da concorrência a um caso concreto sem primeiro se definir o mercado relevante. Afinal de contas, como podemos analisar o impacto de um comportamento num dado mercado, sem primeiro clarificarmos qual o mercado em causa?
E, no entanto, não será inteiramente sem fundamento que um cético possa ousar questionar a necessidade desta tarefa altamente complexa e cuja teoria está frequentemente tão distante da realidade da prática administrativa e judicial. Surgiram, recentemente, por exemplo, teorias económicas que sustentam a pos- sibilidade de análise do impacto concorrencial de certas operações de concentra- ção com base em critérios que não requerem a definição de mercados. E, acima de tudo, a evidência histórica, para quem se arrisque a mergulhar nas páginas esquecidas da pré-história do direito da concorrência, prova, indubitavelmente, a possibilidade de aplicação do direito da concorrência na ausência de qualquer quadro teórico ou de quaisquer passos metodológicos determinados de delimita- ção dos mercados em causa. Desde logo, como vimos, o direito “antitrust” existiu e foi aplicado nos EUA, durante seis décadas, antes de se começar a discutir a deli- mitação do mercado relevante. Na Europa, a evolução foi comparável, com a nota acrescida do atraso temporal no desenvolvimento desta matéria, face aos EUA.
Adotado em 18 de abril de 1951, e entrado em vigor em 23 de julho de 1952, o Tratado que institui a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (adiante “TCECA”), i.e. o primeiro passo formal da integração europeia, introduziu um regime de concorrência para o setor do carvão e do aço. Desde o início, portanto, essencialmente devido a influências norte-americanas e ao pensamento ordolibe-
32 Num exercício de revisionismo histórico, chega-se a sugerir, atualmente, que a definição de mercados sempre fez parte do direito europeu da concorrência – cfr., e.g., Comissão Europeia, 2012:2: “The necessity of defining markets has been part of the competition policy of the EU from its inception”.
34
A DEFINIÇÃO DE MERCADOS RELEVANTES...
ralista da escola alemã, se decidiu que qualquer esforço de integração económica deveria ser acompanhado de normas que protegessem o livre funcionamento da concorrência nos mercados.
Este regime não tardou em ser aplicado, tendo continuado a ser aplicado pela Comissão Europeia mesmo após o termo do prazo de validade do Tratado (23 de julho de 2002), a factos anteriores àquele termo, ao abrigo das normas de suces- são das leis no tempo e do princípio da continuidade das estruturas jurídicas33.
O artigo 65º do TCECA previa um regime substantivo relativo a acordos, prá- ticas concertadas e decisões de associações de empresa essencialmente idêntico ao que ainda hoje se encontra no artigo 101º do TFUE. O mesmo se diga a res- peito do artigo 66º(7), do TCECA, e da sua relação com o artigo 102º do TFUE, relativos à proibição do abuso de posição dominante. Não existia, assim, qual- quer diferença significativa nos regimes substantivos que justificasse uma dife- rença na abordagem do Tribunal à questão da definição de mercados ao abrigo do TCECA ou ao abrigo do posterior TCEE (atual TFUE) (sem prejuízo de algumas diferenças com relevância prática, mas irrelevantes para a questão em análise34).
Até ao primeiro acórdão do TJ que discutiu o conceito de mercado relevante e a sua aplicação a um caso concreto – o caso Continental Can, em fevereiro de 1973 – o TJ já aplicara, por diversas vezes, o direito da concorrência do TCECA aos setores do carvão e do aço, sem que alguma vez tivesse discutido ou sequer suscitado o problema da delimitação dos mercados35. E se tal se pode reconduzir, em parte, a uma falta de oportunidades, não deixa de se identificar uma funda- mental diferença de opção metodológica.
É verdade que os mercados em causa nos factos subjacentes a estes primei- ros acórdãos variavam pouco, sempre contidos no âmbito relativamente restrito dos setores do carvão e do aço, reduzindo as possibilidades de variação das deli-
33 Cfr., e.g., Acórdão do TJ de 2011/03/29, ThyssenKrupp Nirosta GmbH c. Comissão (C-352/09 P), C.J. (2011) I-2359. Ver ainda: Sousa Ferro, 2008. 34 Cfr., e.g.: Whish, 2000:853-854; Roth, 2001:chapter 17; Kapteyn & Van Themaat, 1998:1207-1217. 35 Acórdão do TJ de 1955/03/21, Holanda c. Alta Autoridade CECA (6/54), C.J. (1955) 201; Acórdão do TJ de 1956/11/26, Fédération Charbonnière de Belgique c. Alta Autoridade CECA (8/55), C.J. (1956) 291; Acór- dão do TJ de 1957/03/20, Ruhr “Geitling” c. Alta Autoridade CECA (2/56), C.J. (1957) 9; Acórdão do TJ de 1958/06/21, Wirtschaftsvereinigung Eisen- und Stahlindustrie et al c. Alta Autoridade CECA (13/57), C.J. (1958) 263; Acórdão do TJ de 1958/06/26, Syndicat de la sidérurgie du Centre-Midi c. Alta Autoridade CECA (12/57), C.J. (1958) 473; Acórdão do TJ de 1959/02/04, Friedrich Stork c. Alta Autoridade CECA (1/58), C.J. (1/58) 43; Acórdão do TJ de 1959/03/20, J. Nold KG c. Alta Autoridade CECA (18/57), C.J. (1959) 89; Acórdão do TJ de 1960/07/15, Comptoirs de vente du charbon de la Ruhr et al c. Alta Autoridade CECA (36/59 e etc.), C.J. (1960) 857; Acórdão do TJ de 1962/05/18, Comptoirs de vente du charbon de la Ruhr et al c. Alta Autoridade CECA (II) (13/60), C.J. (1962) 165; Acórdão do TJ de 1962/07/12, Louis Worms c. Alta Autoridade CECA (18/60), C.J. (1962) 377; Acórdão do TJ de 1964/03/19, Sorema c. Alta Autoridade CECA (67/63), C.J. (1964) 293; Acórdão do TJ de 1964/07/15, Holanda c. Alta Autoridade CECA (66/63), C.J. (1964) 1047; e Acórdão do TJ de 1965/06/02, Sorema c. Alta Autoridade CECA (II) (36/64), C.J. (1965) 425.
A HISTÓRIA DA DEFINIÇÃO DE MERCADOS NO DIREITO DA CONCORRÊNCIA
35
mitações. Também é verdade que as extensas competências da Alta Autoridade CECA, nomeadamente de fixação de preços, alteravam, significativamente, o tipo de problemas concorrenciais que podiam surgir perante o Tribunal.
Ainda assim, é indiscutível que o Tribunal se viu confrontado com mercados cuja delimitação podia – e, de acordo com a teoria hoje dominante, porventura, deveria – ter discutido. Porquê a referência a um mercado de “sucata de ferro”36 e, noutro caso, de “sucata” em geral37? Porquê a hesitação em torno da identifica- ção de um mercado autónomo para o carvão do Ruhr38? A prova de que os casos ao abrigo do TCECA também eram suscetíveis de levar a discussões da defini- ção de mercados é que estas discussões chegaram, efetivamente, ao Tribunal, na fase final de vigência daquele Tratado39.
Neste primeiro período da aplicação do direito da concorrência europeu, de 1952 a 1973, os mercados não deixavam de ser “definidos”, em certo sentido. Sim- plesmente, esta definição parecia ser feita com uma abordagem baseada, mais ou menos, no senso comum e, acima de tudo, nunca se discutiu a necessidade de uma justificação expressa de uma delimitação do mercado.
Não obstante, não deixou o Tribunal de ensaiar maneiras de discutir estas delimitações, sobretudo em termos geográficos, referindo argumentos tais como as proveniências das vendas numa determinada região, diferenças de preços de
36 Cfr. Acórdão do TJ de 1958/06/26, Syndicat de la sidérurgie du Centre-Midi c. Alta Autoridade CECA (12/57), C.J. (1958) 473. 37 Cfr., e.g., Acórdão do TJ de 1958/06/21, Wirtschaftsvereinigung Eisen- und Stahlindustrie et al c. Alta Autoridade CECA (13/57), C.J. (1958) 263; e Decisão da Comissão de 1970/01/21, Mercado alemão da sucata (70/118/CECA). 38 Cfr., e.g., Acórdão do TJ de 1956/11/29, Fédération Charbonnière de Belgique c. Alta Autoridade CECA (8/55), C.J. (1956) 291; e Acórdão do TJ de 1957/03/20, Ruhr “Geitling” c. Alta Autoridade CECA (2/56), C.J. (1957) 9; e Acórdão do TJ de 1962/05/18, Comptoirs de vente du charbon de la Ruhr et al c. Alta Autoridade CECA (II) (13/60), C.J. (1962) 165. 39 Cfr., e.g., o Acórdão do TG de 1999/07/07, Wirtschaftsvereinigung Stahl c. Comissão (T-106/96), C.J. (1999) II-2155, maxime §§136 e 148; e o Acórdão do TG de 1999/07/07, British Steel c. Comissão (T-89/96), C.J. (1999) II-2089, maxime §83 e ss. Com interesse geral para a definição de mercados abrangidos pelo TCECA ou, mais amplamente, de mercados abrangidos por uma listagem num Tratado ou num seu anexo, a recorrente neste último caso invocou que a inclusão de um produto numa lista deste género não pode ser considerada como uma definição de mercado relevante para efeito da aplicação do direito da concor- rência, a partir do momento em que a lista em causa não foi realizada para esses efeitos (§60). In casu, o facto de o Anexo I do TCECA falar genericamente em “vigas de aço” não quer dizer que não se possam autonomizar submercados. O Tribunal não discutiu a questão, mas pareceu aceitar, implicitamente, essa ideia, ao não incluir a abordagem seguida no Anexo I como uma das razões da concordância com a definição realizada pela Comissão Europeia. A isto acresce que se adotariam, na fase final de vigência do TCECA, com base em discussões com as empresas visadas, definições de mercados mais restritas e diferentes das que haviam sido adotadas neste período inicial. Quanto ao mercado do carvão, ver, e.g., o Acórdão do TG de 2001/01/31, RJB Mining c. Comissão (T-156/98), C.J. (2001) II-337.
36
A DEFINIÇÃO DE MERCADOS RELEVANTES...
uma região para outra, a existência de barreiras tarifárias, etc40. Tais análises não surgiam, porém, como parte de um passo autónomo de raciocínio, mas sim como instrumentais à determinação de uma questão substantiva (e.g. a medida do impacto de uma determinada conduta no mercado) e constituíam uma exce- ção, além de não se estenderem à questão do mercado de produto.
Não se pense, porém, que esta simplicidade de abordagem se limitava ao Tri- bunal. No mesmo período, não se identificam, em geral, nas decisões da Comissão Europeia que aplicam o direito da concorrência, análises relevantes justificativas das delimitações de mercado, mesmo em casos de definições porventura discu- tíveis41, ou em casos de incerteza na própria definição adotada pela Comissão42.
A mudança de paradigma na aplicação do direito da concorrência, com recurso obrigatório à definição dos mercados relevantes, só ocorreu no âmbito da aplica- ção do TCEE e, ainda assim, só ao fim de alguns anos. O Tribunal aproveitou, na verdade, a primeira oportunidade que surgiu para se debruçar sobre esta pro- blemática no âmbito desse Tratado, no caso Continental Can43.
Os casos de direito da concorrência que lhe haviam sido anteriormente sub- metidos no âmbito desse Tratado eram questões prejudiciais em que esta pro- blemática não fora suscitada pelo tribunal nacional44, ou recursos de anulação de Decisões da Comissão Europeia em que a delimitação do mercado não fora ques- tionada pela partes e não se apresentava como sendo, obviamente, decisiva para a solução destes casos ao abrigo do (atual) artigo 101º do TFUE45. Não obstante,
40 Cfr. o Acórdão do TJ de 1962/05/18, Comptoirs de vente du charbon de la Ruhr et al c. Alta Autoridade CECA (II) (13/60), C.J. (1962) 165. 41 Cfr., e.g., a definição do “mercado dos aços especiais” na Decisão da Comissão de 1968/07/09, Creusot- Loire (68/960/CECA). 42 Cfr., e.g., as referências aparentemente contraditórias a mercados nacionais e a um mercado comum do mesmo produto, ou a referência genérica a um mercado de “sucata”, na Decisão da Comissão de 1970/01/21, Mercado alemão da sucata (70/118/CECA). 43 Acórdão do TJ de 1973/02/21, Continental Can c. Comissão (6/72), C.J. (1973) 215. 44 Acórdão do TJ de 1962/04/06, Gerechtshof ‘s-Gravenhage (13/61), C.J. (1962) 89; Acórdão do TJ de 1966/06/30, LTM (56/65), C.J. (1966) 337; Acórdão do TJ de 1967/12/12, Brasserie de Haecht (23/67), C.J. (1967) 525; Acórdão do TJ de 1969/02/13; Walt Wilhelm (14/68), C.J. (1969) 1; Acórdão do TJ de 1969/02/29, Parke, Davis and Co. (24/67), C.J. (1969) 81; Acórdão do TJ de 1969/07/09, Völk (5/69), C.J. (1969) 295; Acórdão do TJ de 1969/07/09, Portelange (10/69), C.J. (1969) 309; Acórdão do TJ de 1970/03/18, Bilger Söhne (43/69), C.J. (1970) 127; Acórdão do TJ de 1970/06/30, Parfums Marcel Rochas Vertriebs (1/70), C.J. (1970) 515; Acórdão do TJ de 1971/02/18, Sirena (40/70), C.J. (1971) 69; Acórdão do TJ de 1971/05/06, Cadillon (1/71), C.J. (1971) 351; Acórdão do TJ de 1971/06/08, Deutsche Grammophon (78/70), C.J. (1971) 487; Acórdão do TJ de 1973/02/06, Haecht II (48/72), C.J. (1973) 77. Note-se que, não obstante o âmbito do processo, tal como delimitado pelo tribunal nacional não incluir a delimitação dos mercados relevantes, o conceito de “mercado relevante” foi referido pelo TJ nalguns destes Acórdãos, e.g. em Sirena e Deutsche Grammophon. Mais frequente era a utilização da expressão “mercado dos produtos em questão”. 45 Acórdão do TJ de 1966/07/13, Consten & Grundig c. Comissão (56 & 58/64), C.J. (1966) 429; Acórdão do TJ de 1967/03/15, Cimenteries CBR et al c. Comissão (8 a 11/66), C.J. (1967) 93; Acórdão do TJ de 1970/07/15,
A HISTÓRIA DA DEFINIÇÃO DE MERCADOS NO DIREITO DA CONCORRÊNCIA
37
nalguns destes casos, já tinham surgido questões para as quais a delimitação do mercado poderia ter um impacto muito importante, tais como o problema da per- centagem de um mercado abrangida por um feixe de acordos46, a aplicação do critério de minimis47, a consideração da quota de mercado para efeitos de cálculo da coima48, a consideração da quota de mercado agregada para aferir do poten- cial impacto nas trocas entre Estados-membros49 ou a análise das caraterísticas do mercado em causa para identificação de práticas concertadas50.
Note-se que não foi a Comissão Europeia que decidiu adotar um método de definição de mercados. A obrigatoriedade de justificação da delimitação dos mer- cados em causa e, consequentemente, a necessidade de adoção de um método para proceder a essa delimitação, não nasceu como uma iniciativa da Adminis- tração, mas sim como uma imposição do Tribunal, em aplicação de princípios gerais, é certo, mas, acima de tudo, em reação a argumentos de privados que se
ACF Chemiefarma c. Comissão (41/69), C.J. (1970) 661; Acórdão do TJ de 1970/07/15, Buchler & Co. c. Comis- são (44/69), C.J. (1970) 733; Acórdão do TJ de 1970/07/15, Boehringer Mannheim c. Comissão (45/69), C.J. (1970) 769; Acórdão do TJ de 1971/07/14, Madeleine Muller c. Comissão (10/71), C.J. (1971) 723; Acórdão do TJ de 1971/11/25, Béguelin Import c. Comissão (22/71), C.J. (1971) 949; Acórdão do TJ de 1972/07/14, ICI c. Comissão (48/69), C.J. (1972) 619; Acórdão do TJ de 1972/07/14, Soda-Fabrik c. Commissão (46/69), C.J. (1972) 713; Acórdão do TJ de 1972/07/14, Farbenfabriken Bayer c. Comissão (51/69), C.J. (1972) 745; Acórdão do TJ de 1972/07/14, Geigy c. Comissão (52/69), C.J. (1972) 787; Acórdão do TJ de 1972/07/14, Sandoz c. Comissão (53/69), C.J. (1972) 845; Acórdão do TJ de 1972/07/14, Francolor c. Comissão (54/69), C.J. (1972) 851; Acórdão do TJ de 1972/07/14, Cassella c. Comissão (55/69), C.J. (1972) 887; Acórdão do TJ de 1972/07/14, Farbwerke Hoescht c. Comissão (56/69), C.J. (1972) 927; Acórdão do TJ de 1972/07/14, ACNA c. Comissão (57/69), C.J. (1972) 933; Acórdão do TJ de 1972/10/17, Cementhandelaren c. Comissão (8/72), C.J. (1972) 977; Acórdão do TJ de 1972/12/14, Boehringer Mannheim c. Comissão (7/72), C.J. (1972) 1281. Nos casos do cartel das matérias corantes, já encontramos implícita alguma reflexão sobre o modo de definição dos mercados relevantes. Além de referir, superficialmente, o conceito, o TJ afirmou que o mercado comunitário das “matérias corantes” era, “de facto, constituído por cinco mercados nacionais sepa- rados, com diferentes níveis de preços que não se podem explicar por diferenças de custos e encargos que recaem sobre os produtores desses países” (cfr., e.g., Acórdão do TJ de 1972/07/14, Soda-Fabrik c. Commissão (46/69), C.J. (1972) 713, §25, nossa tradução). Embora esta tomada de posição – que seguiu a orientação da Comissão – não tenha sido, explicitamente, justificada no Acórdão, foi instrumental na prova da existência de uma prática concertada neste caso. Além disso, estes casos também constituíram um exemplo de adoção de uma lógica de definição do mercado atendendo apenas à perspetiva da oferta, e ainda assim seguindo critérios nitidamente díspares dos que viriam a ser definidos anos mais tarde (cfr., e.g., Acórdão do TJ de 1972/07/14, Francolor c. Comissão (54/69), C.J. (1972) 851, §§56 e ss.). Encontra-se outro tipo de caso na área da concorrência que também não suscitou qualquer questão relativa à definição dos mercados no Acórdão do TJ de 1966/07/13, Itália c. Conselho e Comissão (32/65), C.J. (1966) 563. 46 Cfr., e.g., o Acórdão do TJ de 1967/12/12, Brasserie de Haecht (23/67), C.J. (1967) 525; e Acórdão do TJ de 1971/11/25, Béguelin Import c. Comissão (22/71), C.J. (1971) 949, §18. 47 Cfr., e.g., o Acórdão do TJ de 1971/05/06, Cadillon (1/71), C.J. (1971) 351, §9. 48 Cfr., e.g., o Acórdão do TJ de 1970/07/15, ACF Chemiefarma c. Comissão (41/69), C.J. (1970) 661, §11. 49 Cfr., e.g., o Acórdão do TJ de 1970/07/15, Buchler & Co. c. Comissão (44/69), C.J. (1970) 733, §41. 50 Cfr., e.g., o Acórdão do TJ de 1972/07/14, ICI c. Comissão (48/69), C.J. (1972) 619, §68; e o Acórdão do TJ de 1972/07/14, Soda-Fabrik c. Commissão (46/69), C.J. (1972) 713, §§22-23.
38
A DEFINIÇÃO DE MERCADOS RELEVANTES...
entendiam injustiçados pela definição de mercado adotada pela Comissão, em casos concretos. Ou seja, a definição de mercados relevantes surge no direito da concorrência europeia pela mão do Tribunal, em defesa dos direitos dos parti- culares e, em última linha, do próprio princípio do Estado de direito.
Posteriormente, a obrigatoriedade e o método de definição de mercados desenvolvidos no âmbito do TCEE passaram também a ser adotados ao abrigo do TCECA. Era a solução que se impunha, por força do princípio da unicidade da ordem jurídica europeia e da ausência de razões que justificassem diferentes interpretações dos dois tratados, neste plano. Mas isto não aconteceu de imediato.
De facto, até ao final da década de 90, continuou a verificar-se uma com- pleta omissão de discussão da definição dos mercados nas decisões da Comis- são e nos acórdãos do Tribunal adotados ao abrigo das normas de concorrência do TCECA51. As caraterísticas destes casos não levaram as empresas em causa a questionar a delimitação dos mercados, sendo notório não estar estabelecido, na prática decisória da Comissão, o imperativo de tal discussão na ausência de motivos especiais52.
Desde o final dos anos 90, já se encontra, ainda que não de forma sistemática, nas decisões de concorrência adotadas ao abrigo do TCECA uma preocupação metodológica com a definição de mercados53. No entanto, mesmo nas decisões que a incluem, a secção dedicada a esta temática preocupa-se, essencialmente, com a descrição das caraterísticas dos mercados em causa, mais do que com a
51 Decisão da Comissão de 1980/02/08, Produtos laminados no mercado alemão (80/257/CECA); Decisão da Comissão de 1990/07/18, Produtos planos de aço inoxidável laminado a frio (90/417/CECA); Decisão da Comissão de 1992/12/22, Jahrhundertvertrag & VIK-GVSt (33.151 e 33.997); Decisão da Comissão de 1994/02/16, Produtores europeus de vigas (94/215/CECA); Acórdão do TG de 1999/03/11, Thyssen Stahl c. Comissão (T-141/94), C.J. (1999) II-347; Acórdão do TG de 1999/03/11, Preussag Stahl c. Comissão (T-148/94), C.J. (1999) II-613; Acórdão do TG de 1999/03/11, British Steel c. Comissão (T-151/94), C.J. (1999) II-629; Acórdão do TG de 1999/03/11, Siderúrgica Aristrain Madrid c. Comissão (T-156/94), C.J. (1999) II-645; Acórdão do TG de 1999/03/11, Ensidesa c. Comissão (T-157/94), C.J. (1999) II-707. Não se incluíram neste elenco decisões e Acórdãos sobre autorização de acordos ou de operações de concentração. 52 No mesmo período, algumas decisões adotadas ao abrigo do TCE noutros setores, já discutiam, autonomamemente e em significativo detalhe, a definição de mercados [cfr., e.g., a Decisão da Comissão de 1994/11/30, Cimento (33.126 e 33.322)]. 53 Decisão da Comissão de 1997/11/26, Wirtschaftsvereinigung Stahl (36.069); Decisão da Comissão de 1998/01/21, Sobretaxa de liga metálica (35.814); Acórdão do TG de 2001/04/05, Thyssen Stahl et al c. Comissão (T-16/98), C.J. (2001) II-1217 (neste caso, as empresas questionaram a delimitação dos mercados, mas o Tribunal anulou a Decisão antes de precisar de se debruçar sobre esse argumento); Acórdão do TG de 2001/12/13, Krupp Thyssen Stainless et al c. Comissão (T-45/98 e T-47/98), C.J. (2001) II-3757; Acórdão do TG de 2001/12/13, Acerinox c. Comissão (T-48/98), C.J. (2001) II-3859; Decisão da Comissão de 2002/12/17, Varões para betão (37.956); Decisão da Comissão de 2006/12/20, Sobretaxa de liga metálica – Readoção (39.234); Acórdão do TG de 2009/03/31, ArcelorMittal Luxembourg et al c. Comissão (T-405/06), C.J. (2009) II-789; Acórdão do TJ de 2011/03/29, ArcelorMittal Luxembourg et al c. Comissão e Comissão c. ArcelorMittal Luxembourg et al (C-201/09 P e C-216/09 P), C.J. (2011) I-2239.
A HISTÓRIA DA DEFINIÇÃO DE MERCADOS NO DIREITO DA CONCORRÊNCIA
39
justificação da sua delimitação, e continuou a verificar-se uma tendência para a parte mais significativa das discussões da def