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DEMOCRACIA RACIONAL A TEORIA JURÍDICA DO LIBERALISMO EM RUI BARBOSA

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  • DEMOCRACIA RACIONAL

    A TEORIA JURDICA DO LIBERALISMO EM RUI BARBOSA

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    SUMRIO

    INTRODUO

    CAPTULO I

    O GOVERNO REPRESENTATIVO P 14

    CAPTULO II

    A TEORIA DO SUFRGIO P 47

    CAPTULO III

    O RADICALISMO LIBERAL E A DEMOCRACIA FEDERATIVA P 93

    CAPTULO IV

    DO "JURIDICISMO" DEMOCRACIA CONSERVADORA P 148

    CONCLUSO

    O LIBERALISMO DE RUI BARBOSA P 178

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    INTRODUO

    1. O objetivo deste livro a anlise do pensamento poltico-jurdico de Rui BARBOSA, uma das

    fontes principais da moderna teoria jurdica liberal brasileira, e, portanto, configurando temtica

    importante para o estudo de nossa disciplina, Teoria Jurdica Contempornea especificidade das

    relaes entre o direito e a poltica.

    Mais detidamente pretendemos analisar o pensamento de Rui BARBOSA (doravante RB) durante o

    perodo de transio da Monarquia para a Repblica, procurando contribuir para o entendimento desta

    obra no contexto poltico brasileiro. A questo das relaes do liberalismo de RB com a questo

    democrtica, a legitimidade do Estado e a sua concepo inglesa de direito o nosso referente.

    Nossa hiptese principal demonstrar, diferentemente do que afirmam a maioria dos crticos, a

    existncia em RB de uma teoria poltica, um sistema de pensamento coerente, que se define

    progressivamente face aos acontecimentos, constituindo, ao mesmo tempo, uma prtica poltica

    concreta e uma reflexo sobre a poltica. Portanto, procuramos estudar a evoluo destas idias

    polticas. Neste sentido, toda a nossa investigao histrica procura esclarecer este labirinto, e, no, ao

    contrrio, a partir de RB, explicar a histria do Brasil. Embora entendamos que muitas questes

    histricas possam ter uma nova interpretao desde uma releitura deste liberalismo.

    Outro aspecto que consideramos relevante, que justifica tambm a nossa pesquisa, embora escape aos

    nossos interesses sermos imediatistas, o fato de que a discusso sobre os limites da Monarquia e da

    Repblica, do parlamentarismo e do presidencialismo, que so hoje temas atuais no nosso pas, ter sido

    amplamente debatida, vivida e criticada por RB. Mais do que isto, ns entendemos que a sua concepo

    poltica de forma de sociedade democrtica, lendo-o desde categorias de Claude LEFORT, j superou,

    desde h muito, este debate, pois para ele, o importante a institucionalizao da democracia e no a

    forma de Estado ou regime de governo. A sua concepo do direito como direito a ser julgado num

    tribunal tambm extremamente presente.

    2. Impe-se, portanto, uma releitura histrica das dificuldades da implementao da democracia no

    Brasil. Para aprofundar esta questo ns privilegiamos, como nosso recorte, o perodo que rene as

    condies histricas e polticas nas quais nasce a teoria liberal moderna no Brasil. Este momento nico

    na histria do pas, a nosso ver, de materializou entre os dez ltimos anos da Monarquia, que precedem

    a Proclamao da Repblica em 1889, e o perodo que vai at a Constituio de 24 de fevereiro de 1891

    (embora examinemos rapidamente questes da 1a. Repblica, em data posterior, a fim de comprovar

    certos argumentos na concluso).

    Nesta fase, o Estado brasileiro, independente em 1822, fundado na herana do sistema administrativo e

    poltico portugus, vai tentar se definir como instituio poltica moderna. Trata-se de uma importante

    transio, onde os atores sociais so ultrapassados pelos acontecimentos, e os discursos comeam a ter

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    uma difuso na sociedade jamais alcanada anteriormente, ultrapassando mesmo a inteno de seus

    emissores. Pela primeira vez, notadamente, na discusso das eleies diretas e da abolio, o discurso

    poltico atingiria, muito alm do restrito espao pblico, a camadas mais profundas da sociedade.

    praticamente o nascimento da poltica moderna, e da ideologia, no Brasil.

    Esta multiplicao social do discurso poltico colocou constantemente em questo, muito mais que as

    questes enfrentadas isoladamente, a legitimidade do Estado como um todo, Esta crise de um sistema

    incapaz de responder s exigncias de autonomia de uma sociedade procura de sua identidade,

    provocou, inicialmente, a queda do imprio, para, a seguir, abalar tambm a estabilidade da Repblica.

    O Liberalismo tentou resolver esta perda de legitimidade. A anlise destas respostas assim primordial

    para a caracterizao e o entendimento da questo democrtica. O estudo deste perodo histrico

    portanto decisivo.

    3. Nosso perodo histrico delimitado, ns optamos por analisar esta problemtica a partir da obra de

    RB. Esta escolha se fundamenta no fato de que o seu pensamento e a sua ao poltica sero exemplares

    para a caracterizao do liberalismo brasileiro da poca, constituindo um dos modelos polticos liberais

    mais sofisticados j elaborados no pas.

    RB um pensador dotado de uma grande erudio, com uma slida formao humanista, baseada em

    leituras de DANTE, TACITO, TUCDES, CCERO e outros autores clssicos, dos quais ele adotou a

    dialtica argumentava (antitca) e o realismo poltico, sintetizados no ideal de uma sociedade

    repousando no respeito da lei da liberdade e da razo. De qualquer maneira, o humanismo d RB se

    desenvolveu notadamente em contato permanente com o pensamento liberal do sculo

    (TOCQUEVILLE, STUART MILL, LITTRE, COMTE, SPENCER, RENAN...), assim como face aos

    acontecimentos polticos concretos da Monarquia e da Repblica, que lhe fornecem a matria de sua

    reflexo poltica.

    RB participou diretamente em praticamente todos os acontecimentos polticos importantes da poca

    que queremos estudar. Na monarquia, como deputado liberal, engajou-se nos principais debates

    polticos, propondo inicialmente condies polticas para a obteno da legitimidade deste regime.

    Mais tarde, em razo de sua defesa intransigente da abolio e da federao, ele criticaria violentamente

    a Monarquia, contribuindo para com a Proclamao da Repblica. Na Repblica, ele faria parte do

    governo provisrio que a instituiu, tornando-se o principal redator do projeto adotado como a

    Constituio de 1891. Com a irrupo da ditadura de Floriano PEIXOTO, ele passaria para a oposio,

    postulando como condio para a legitimidade da Repblica a "legalidade e a reforma das instituies".

    RB desenvolveria tambm a clebre campanha do Habeas Corpus em defesa dos direitos individuais,

    desrespeitados pela ditadura, sendo igualmente vrias vezes candidato Presidncia do pas. Ora, ao

    lado desta intensa atividade poltica, ele elaborou constantemente textos que possuem um programa

    poltico, que constitui uma teoria liberal consistente. Tudo isto nos fornece uma idia da importncia de

    que se retrabalhe esta obra, pois ele nos contempla, em sua trajetria poltica, muito alm de um relato

    pragmtico das principais discusses, com uma monumental e ainda no suficientemente estudada

    reflexo terica.

    Desta forma, RB simultaneamente, distintamente do que proporia um WEBER, um poltico um

    terico. Frente ao acontecimento, ele procura sempre pens-lo, a partir do liberalismo, ao mesmo tempo

    que tenta hoje dar uma resposta concreta. Esta teoria liberal se origina assim do confronto de suas

    idias com o contexto poltico, sem no entanto reduzir-se a isto. Ns entendemos, em consequncia,

    que a anlise deste pensamento e de sua ao poltica til para o esclarecimento das insuficincias e

    virtudes do liberalismo face aos problemas polticos e sociais e, neste sentido, sua anlise pode

    contribuir para uma melhor compreenso dos limites da prtica democrtica.

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    A metodologia de trabalho de RB, se se pode assim denominar o seu instrumental analtico, seria

    sempre influenciada pela dialtica do humanismo clssico, preocupada com a retrica (eloqncia) a

    partir da qual ela realizava suas snteses discursivas. Esta caracterstica, aliada a uma profunda crena

    no progresso da sociedade como um todo (COMTE-SPENCER), anlise histrico-comparativa, e a

    um grande racionalismo, produziram uma metodologia que se aproxima daquela de STUART MILL.

    Neste sentido, este pensamento apresenta alguns traos daquilo que POPPER (Misria do Historicismo)

    chama "metodologia totalizante", que procura conciliar o historicismo e o naturalismo, possuindo

    portanto uma crena um tanto exagerada na cincia unitria.

    No entanto, RB no foi somente um socilogo racionalista, dominando pela perspectiva da

    predominncia absoluta do social e de sua totalidade em suas concluses, mas notadamente um terico

    voluntarista. Isto quer dizer que a partir de suas influncias liberais, ele no poderia aceitar o

    determinismo e o evolucionismo sociolgicos, sem uma participao proporcional da liberdade

    individual, e da autonomia, no desenvolvimento social.

    Este entendimento provm do fato que RB possui, como linha diretiva de raciocnio, a poltica. Assim,

    antes de ser um "cientista", ele um poltico, um democrata liberal, compromissado com a defesa do

    ideal da liberdade. A contrapartida da liberdade seria dada pela lei. Da a constatao que a democracia

    em RB uma dialtica entre a lei e a liberdade, garantida pelo poder judicirio e pela federao.

    Do mesmo modo, as respostas encontradas por RB no liberalismo seriam sempre procuradas entre os

    modelos polticos que de diziam, na poca, simultaneamente racionais e democrticos: num primeiro

    momento, o "governo representativo"; e num segundo momento, o "federalismo americano". Quanto as

    suas proposies elas seriam sempre "juridicistas", as reformas deveriam ser encaminhadas atravs de

    uma lei (interpretada com autonomia pelos tribunais). De sorte que para RB, o direito encarna, como

    para WEBER (e ainda hoje HABERMAS), uma das formas racionais de manifestao do poder. A

    teoria jurdica brasileira contempornea encontra assim em RB um dos seus fundadores.

    RB, como os humanistas, procurou um modelo poltico ideal para fundar a sua ao poltica. O governo

    racional no deixa de ser uma espcie de "bom regime", em que se oporia ao regime corrompido: no

    incio combatendo a Monarquia, depois a ditadura militar e enfim as oligarquias reacionrias. O modelo

    ideal dos humanistas do Renascimento foi aquele da repblica romana (MAQUIAVL, DANTE...), j

    para RB foram a Inglaterra e os Estados Unidos. Isto caracteriza uma diferena entre ele e os primeiros:

    a utopia de RB no pertence ao passado, mas ao presente, implicando ao Brasil na sntese a ser

    realizada no futuro. A histria do Brasil comearia com a institucionalizao de uma democracia liberal

    moderna na Repblica.

    Entretanto, a implantao liberal deveria ser gradual. A concesso da liberdade e de alguns direitos

    sociais, deveria ser feita respeitando a ordem ( a lei). Esta concepo lhe fornece, em comparao com

    o entendimento atual da democracia, como uma atitude e um valor poltico capaz de acolher o

    indeterminado (LEFORT), traos bem conservadores. Embora, e esta a sua especificidade, ela seja

    bem diferente do autoritarismo, sempre pronto a desrespeitar a lei e a liberdade.

    Este liberalismo resultante de uma tenso, jamais um sntese, da reivindicao simultnea do respeito

    lei, liberdade, ordem, razo, ao indivduo, da interveno do Estado e das concesses sociais.

    No entanto, devido ao seu aspecto pragmtico, esta obra geralmente desprezada sob o pretexto de que

    um autor preocupado com a ao, no teria interesse terico pela reflexo filosfica ou poltica.

    Portanto, ele no possuria um pensamento terico sistemtico. preciso assinalar que este ponto de

    vista quase unnime, quer seja entre os seus adversrios ou apologistas.

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    Ora, a partir desta assertativa: o pragmatismo como conduta oposta reflexo, os crticos, por sua vez,

    afirmam que RB foi somente um autor simplista, dividido confusamente, e contraditoriamente, entre

    diferentes convices, reunidas numa "retrica vazia". Os apologistas, por sua parte, postulam as

    maravilhas de sua pureza retrica, vista como uma arte de "esgrimir o verbo".

    Estas duas posturas interpretam a retrica como um discurso distante da cincia, seja negativamente

    como um discurso incoerente, no racional, seja positivamente como discurso eloqente. Desta

    maneira, ns encontramos nas leituras desta obra, apesar das divergncias, uma identidade

    metodolgica de base: o culto da cincia como teoria pura: um discurso fundado sobre a denotao

    objetiva e autosuficiente, capaz de descrever a realidade de forma neutra. A racionalidade cientfica no

    se confundiria nesta perspectiva com a retrica, menos ainda com uma atitude pragmtica. De sorte que

    a retrica de RB, que atravessa todos os seus textos, teria transformado seu pensamento num discurso

    idealista e incoerente.

    Sem pretendermos discutir a concepo contempornea da racionalidade cientfica, que alis j perdeu

    a iluso da denotao pura, ns percebemos assim uma das principais razes da incorporao desta

    obra. Pois, esta posio epistemolgica cientificista impede praticamente que se faa uma anlise

    terico-poltica da obra. Isto ocorre porque estes crticos so prisioneiros da oposio entre a teoria e a

    prxis, engendrando a oposio entre retrica e objetividade. preciso portanto ultrapassar estas

    oposies para se redescobrir o caminho da interpretao. necessrio estudar-se a retrica de RB a

    partir dos objetivos prticos e polticos que ela visa, j que a sua ao poltica ininteligvel sem que se

    considere seus discursos: existe uma ligao quase indissocivel entre a teoria e a prtica nesta obra.

    Hoje em dia, por exemplo, com as contribuies de autores como Theodor VIEHWEG, Robert

    ALEXY, na Alemanha, ou mesmo de FERRAZ JUNIOR e Lus WARAT, para se falar no Brasil,

    mesmo desnecessrio insistir em nosso argumento que recupera a importncia poltica da retrica.

    4. A nossa metodologia pretende inserir-se no ponto de vista de teoria poltica, desde uma perspectiva

    histrico-sociolgica, que procura contextualizar a obra nas quais se insere, visando compreender o

    sentido de seus principais conceitos e idias.

    Ns pretendemos analisar os textos produzidos por RB durante a Monarquia, no parlamento, quando

    ele era deputado pelo partido liberal ( 1879-84), e na imprensa entre 1884-89; e durante a Repblica,

    como vice-chefe do governo provisrio, advogado, jornalista e poltico. Estes textos sero examinados

    em funo de sua participao efetiva nos principais debates da poca: a liberdade religiosa, a

    legitimidade do partido liberal (1879), a eleio direta, a instruo pblica, a abolio da escravido, a

    federao, a questo militar, a Proclamao da Repblica e a redao da Constituio de 1891.

    Ns pensamos entretanto que estas questes devem ser analisadas, como formando um todo, que se

    ordena em torno da temtica principal desta transio histrica: "institucionalizao de um sistema

    poltico legtimo no Brasil". Inicialmente, com a tentativa de se construir um parlamentarismo moderno

    no Imprio e, em seguida, na Repblica, com a luta pela democracia constitucional.

    Este pensamento possui, para ns, como condio de inteligibilidade, o pressuposto de ser abordado, ao

    mesmo tempo, enquanto uma postura pragmtica, voltada para problemas concretos, e como postura

    terica, mais profunda, voltada compreenso poltica dos limites do liberalismo e da prpria

    democracia. Esta caracterstica desde pensamento comanda a lgica de sua enunciao; ela testemunha

    sua criatividade, sua atualidade e sua capacidade de adaptao, sem que ele perca com isto sua

    racionalidade, em razo de sua condio pragmtica. A condio de significao deste pensamento

    poltico depende de uma conjugao de seu critrio de sentido pragmtico com o seu critrio de sentido

    terico (sinttico). Assim, a compreenso desta obra deve partir da integralidade de seu projeto poltico,

    jamais de problemticas isoladas, sob pena de nos perdemos em discusses acidentais.

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    Desta maneira, nossa interpretao, se bem que colocando a obra em situao, tentar sempre pr de

    manifesto o sistema de pensamento existente nestes textos, procurando mostrar a existncia, ao lado de

    seu aspecto pragmtico, de um projeto poltico bem especficado. O signo sistema utilizado por ns

    empregado simplesmente com o sentido de que o pensamento poltico, de RB se ordena coerentemente,

    tm uma certa lgica interior, que se mantm mesmo face a distintos acontecimentos.

    No entanto, antes de aprofundamentos nossos pressupostos interpretativos, desejamos precisar que

    nosso objetivo no o de elaborar uma biografia de RB, nem discutir aspectos ntimos de sua

    personalidade, incidindo em questes morais, Ns sublinhamos igualmente que nossas consideraes

    sobre o pensamento europeu e americano que explorado por nosso autor, perante os acontecimentos

    de sua poca, se fundamentam essencialmente na sua maior parte nas interpretaes que ela suscita no

    perodo. Todavia, ns consultamos constantemente os principais autores citados, afim de

    aprofundarmos o uso que deles feito: CONSTANT, COUSIN, COMTE, STUART MILL e

    TOCQUEVILLE.

    Do mesmo modo, ns, no vemos esta obra, como o fazem a maioria de seus intrpretes, seja como um

    pensamento dividido entre vrias concepes tericas contraditrias, seja como uma sntese do

    pensamento da poca. Ns acreditamos que a sua riqueza reside na sua capacidade de conciliar e

    ultrapassar os materiais tericos sobre os quais ela se apoia, a partir dos problemas polticos que

    pretende resolver.

    O pensamento poltico brasileiros, neste momento de transio rico em divergncias e antagonismos ,

    tericos e polticos. No entanto, surpreendente notar-se que certos crticos sejam indiferentes s

    concepes polticas do perodo, em razo do privilgio dado exclusivamente aos aspectos econmicos,

    sociais ou institucionais ( que so importantes para a colocao da problemtica, porm no

    suficientes). Desta maneira, todos os debates que constituem a histria das idias desaparecem de cena

    poltica, para tornarem-se reflexos destes aspectos. Assim, toda a diversidade se apaga, geralmente, sob

    argumentos do tipo que pressupe que os homens vivendo num mesmo contexto histrico, e

    pertencendo a uma mesma classe social (ou elites para alguns), no poderiam pensar diferentemente.

    Uma outra dificuldade a concepo, sempre presente, de que o liberalismo de RB se reduz a um

    idealismo: isto , que a democracia liberal puramente formal. Esta postura crtica, que tem a sua

    origem no positivismo (COMTE), partilhada pelo autoritarismo nacionalista brasileiro e pelo

    marxismo, que a partir de evidentes divergncias polticas, sustentam que as idias de RB so uma

    imitao das idias europias, transportadas a um contexto inadequado. De sorte que, nesta tica,

    segundo a qual a democracia liberal no tem aplicao no Brasil, o discurso de RB tornar-se ou uma

    ideologia a servio das classes dominantes, ou um discurso no realista. Portanto, devemos elaborar

    uma leitura desta obra que rompa com esses preconceitos.

    A interpretao de uma obra como esta um trabalho extremamente difcil. RB produziu textos sobre

    quase todos os temas importantes de sua poca, o que torna rdua a tarefa de se encontrar a sua

    especificidade. Alm do mais, existe o fato de que a interpretao de toda obra ela mesma sem

    garantia ltima, pois isto no possvel sem que se ceda a iluso de se chegar a pretender descobrir a

    "verdadeira essncia" do sentido imprimido pelo autor nos seus textos. A riqueza da escritura provm

    justamente de sua capacidade de ser reinterpretada pelo leitor, e pela histria, pois ela ultrapassa

    constantemente aquilo que foi expressamente pensado pelo autor. O sentido de um texto se manifesta

    sempre na juno da leitura e da escritura, da teoria e da prxis, variando segundo o poder e o desejo

    que o atravessa. Da, a conscincia de nossa dificuldade em ler uma obra to profunda em ambigidade

    e silncios.

    procura da justificativa de nossa tentativa de interpretao, ns pensamos seguir um pouco a

    trajetria de LEFORT, para quem a legitimidade da interpretao nasce somente quando se recupera a

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    interrogao que uma de suas constituintes. Por isto, temos a preocupao de levantar algumas

    questes em RB a respeito da democracia. Para isto, como o faz LEFORT, lendo MAQUIAVL (Le

    Travail de L' Oeuvre Machiavel), preciso tentar-se saber aquilo do qual fala RB e a quem ele se

    dirige, e contra quem fala? Quais as identificaes que ele procuraria? necessrio igualmente

    pesquisar o sentido poltico das diferentes interpretaes que esta obra provocou, para se compreender

    as razes das divergncias desde a oposio veemente at a adeso sem reservas.

    Portanto, as diferentes interpretaes de um texto, no o so por azar, mas provm da indeterminao

    engendrada por sua interrogao. De tal sorte que nosso objetivo no aquele de encontrar o sentido

    "objetivo"da obra de RB, mas repens-la, procurando responder aos desafios que nos colocam suas

    ambigidades e seu questionamento.

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    CAPTULO I

    O GOVERNO REPRESENTATIVO

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    CAPTULO I

    O GOVERNO REPRESENTATIVO

    Neste captulo inicial, antes de analisarmos propriamente os textos de

    RB, iremos efetuar um breve balano histrico e poltico do seu contexto.

    1. LIBERALISMO E DEMOCRACIA

    1.1. A democracia uma conquista que ainda no est plenamente assegurada no Brasil, apesar dos

    grandes progressos polticos proporcionados pela redemocratizao (anistia, eleies diretas em todos

    os nveis, liberdade de imprensa, impeachment...), porque permanece gravssimo o quadro econmico-

    social do pas. A questo da democracia, tanto no plano terico como na prtica poltica, permanece

    portanto como a mais crucial.

    No plano terico, da anlise das idias, onde nos inserimos, entendemos que um dos obstculos que

    impedem uma melhor compreenso das dificuldades para a institucionalizao da democracia

    provocado justamente pela falta de uma maior nfase na investigao das origens histricas deste

    conceito e de suas ligaes com o liberalismo. Isto constitui, de certa forma, uma lacuna, porque o

    problema das relaes entre o liberalismo, o Estado e a democracia fundamental para o

    esclarecimento dos sistemas polticos, liberais e autoritrios, que atravessam a nossa histria.

    Neste sentido, percebe-se que o liberalismo, que sempre teve grandes dificuldades para conciliar seus

    postulados de liberdade poltica e de defesa dos direitos individuais com o capitalismo e a questo

    social, no Brasil, que sempre necessitou do Estado para se desenvolver, devido falta de uma sociedade

    civil organizada e sem recursos para o pleno desenvolvimento da iniciativa provada, teria, para se

    materializar, que adquirir uma feio bem complexa e singular. Assim, o Estado seria sempre decisivo

    para o desenvolvimento da economia. Devido a este fato, muitos liberais foram obrigados bem cedo,

    desde o sculo XIX, a se aliarem ao Estado, considerado essencial para a formao do mercado

    capitalista.

    Deste modo, o liberalismo brasileiro apresenta como uma de suas caractersticas a aceitao da

    interveno do Estado na economia - embora, historicamente isto no tenha sido sempre aceito sem

    restries. Nesta perspectiva, evidente que o liberalismo mais progressista, desde a Independncia e

    notadamente na Proclamao da Repblica, voltado quase que inteiramente para a construo de um

    mercado capitalista moderno, para o qual o Estado era chamado a auxiliar, no se dedicou elaborao

    de uma teoria democrtica apta a contrabalanar a dominao poltica tradicionalmente existente.

    Em outras palavras, esta situao provocou uma distoro da prtica liberal tradicional - contrria

    interveno do Estado - e uma tenso no resolvida com a questo da democracia. Pois, mesmo que

    este liberalismo concebesse o Estado como o nico rgo detentor da capacidade e da racionalidade

    necessrios para a modernizao das relaes sociais e de produo do pas, ele possua tambm um

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    princpio poltico de defesa dos direitos e garantias individuais e de autonomia da sociedade que no

    pde conviver sem problemas com a interveno do Estado. Da, a grande questo histrica do

    liberalismo brasileiro: a contradio entre de uma lado, o amor ordem e ao Estado e, de outro, a

    reivindicao da liberdade individual.

    Falar de uma maneira mais genrica do liberalismo brasileiro no portanto coisa fcil. Alm do fato

    de que ele sofreu simultaneamente influncias do liberalismo dos Estados Unidos e do liberalismo

    europeu, ingls e francs, que esto longe de formarem uma teoria homognea. O liberalismo uma

    teoria poltica e uma prxis. Ele uma doutrina, mas tambm um pensamento que se define face as

    questes concretas. A teoria liberal foi elaborada dentro de circunstncias e quadro sociais diversos.

    Desta maneira, no se pode falar do liberalismo como uma doutrina nica e uniforme, porque mesmo

    baseada universalmente na defesa da liberdade e dos direitos individuais, ela se modifica em funo do

    contexto histrico: o liberalismo se forma a partir de diferentes fontes, seja do protestantismo religioso,

    seja da materializao do mercado capitalista, seja do iluminismo, etc... determinando em cada pas

    uma combinao especfica destas influncias, engendrado por exemplo, um liberalismo com

    caractersticas preponderantemente econmicas na Inglaterra, ou polticas na Frana.

    O liberalismo brasileiro sofreu no curso do sculo XIX uma forte influncia do liberalismo doutrinrio

    francs (GUIZOT, COUSIN, CONSTANT, TOCQUEVILLE...) no plano poltico, e do liberalismo

    ingls no plano econmico. A queda da Monarquia em 1889 foi provocada, em parte, pela

    incapacidade do sistema em conciliar uma poltica exageradamente conservadora com os avanos

    econmicos e polticos exigidos por um parlamentarismo efetivo, de tipo ingls. Frente a este fracasso,

    o liberalismo mais democrtico inspirou-se, para escapar a estes impasses, quando da Proclamao da

    Repblica, no pensamento poltico federalista americano. No entanto, a democracia " americana"

    tambm no conseguiria se institucionalizar, no conseguindo preencher o "vazio" de legitimidade

    deixado pela Monarquia, permitindo uma sucesso de golpes militares.

    Para a maior parte crtica, dita "realista" (OLIVEIRA VIANNA) o insucesso da democracia republicana

    foi provocado pelo profundo idealismo de seus "pais fundadores". Estes crticos, enfatizando a

    importncia de se encontrar o "Brasil real", em detrimento do formal, ( a democracia liberal), iniciaram

    o entendimento na histria das idias da poltica nacional, de que o pensamento democrtico deste

    perodo estava "fora do lugar".

    Percebe-se ento que o liberalismo brasileiro no uma teoria pura e sem antagonismo; ele constitui

    uma forma de pensamento que se situa de uma maneira anloga em relao ao estatismo (autoritrio?) e

    defesa dos direitos individuais. Trata-se de um pensamento que possui pontos comuns com o

    conservadorismo, tradicionalismo, estatismo e a democracia, sem, no entanto, se reduzir a nenhuma

    destas concepes polticas. Existe tambm um desnvel entre suas influncias polticas e econmicas,

    o que lhe fornece uma certa ambigidade. por isto que entendemos que existe uma questo a

    propsito deste liberalismo que no foi suficientemente explicitada. Nesta perspectiva, ns tentaremos

    analisar em detalhe o liberalismo brasileiro de RB procurando compreender seus limites e suas

    virtudes, a fim de delimitarmos o seu sentido poltico.

    A discusso do pensamento liberal, bem como da democracia ( que no so de maneira alguma

    sinnimas), esteve, com raras excees, colocada como algo secundrio pela crtica poltica dos ltimos

    anos, predominantemente marxista. Contudo, na atualidade, com a constatao de que o pensamento

    marxista, centrado na defesa da igualdade, tinha provocado no mundo inteiro regimes totalitrios, que

    ignoram os direitos humanos, a questo da democracia e de suas relaes com o liberalismo reapareceu

    com toda a sua fora. Entretanto, a teoria poltica brasileira ainda no tem procurado suficientemente

    rever esta questo, como se a soluo efetiva dos problemas sociais e econmicos ( que crucial),

    dispensasse o debate sobre os direitos individuais. A prpria lei, que tem tradicionalmente a funo de

    proteger e de garantir os direitos, considerada nesta tica como apenas um apndice das elites.

  • 12

    evidente que a liberdade, os direitos individuais e a lei que os assegura tm um sentido poltico e de

    classe. Isto no pode ser negado, suficiente uma leitura das lcidas crticas de Marx no 18 Brumrio:

    o direito tem uma funo ideolgico-repressiva negativa.

    No entanto, o que interessa remarcar, na linha de pesquisa inaugurada por Claude LEFORT ( A

    Inveno Democrtica), o fato de que se, bem que s vezes insuficientes para resolver os problemas

    sociais, os direitos, e, principalmente, o direito enunciao dos direitos, tm tambm um carter

    positivo. Isto significa, com o totalitarismo nos mostra, que uma sociedade sem o respeito ao princpio

    da lei e ao princpio da liberdade, no pode ser democrtica. Pois, a sociedade democrtica justamente

    aquela capaz de acolher os conflitos, notadamente, aqueles suscitados pelas necessidades das classes

    mais pobres. Pois, sem democracia, liberdade e lei, a questo social no pode se manifestar com toda a

    sua amplitude - veja-se a quantidade infinita de conflitos de toda a espcie que apareceram no leste

    europeu com a liberdade de manifestao. O autoritarismo teve sempre um vasto campo de ao no

    Brasil devido ao desprezo histrico em relao liberdade e o respeito lei, manifestado seja pela

    direita, seja pela esquerda, seja entre os militares, seja entre os civis.

    Estes problemas foram enfrentados, e muitos deles originados, no Brasil imperial, quando a temtica da

    democracia marcou a nossa histria.

    1.2 A grande questo poltica, a partir de meados de 1870, era a discusso a respeito da legitimidade do

    Imprio. O futuro da Monarquia brasileira dependia desta resposta, A teoria poltica de RB, na sua fase

    inicial, partia do pressuposto de que somente a adoo efetiva do governo representativo, nos moldes

    do parlamentarismo ingls, poderia legitimar e manter o sistema poltico monrquico.

    O liberalismo europeu do sculo XIX, em particular o liberalismo ingls, elaborou em resposta

    discusso sobre as formas polticas, que a Revoluo francesa tinha colocado de maneira perene, a

    teoria do governo representativo.

    O liberalismo ingls, na verso utilitarista de James MILL e de Jeremias BENTHAM, afirmava que a

    discusso tradicional das formas de governo, baseada nos mritos da democracia, da aristocracia, do

    regime misto dos doutrinrios, da Repblica, deveria ser substituda por uma concepo mais realista

    da poltica, capaz de elaborar um sistema no qual o governo fosse controlado pelos representantes dos

    interesses da comunidade (os indivduos). O utilitarismo assim uma teoria voltada para a defesa do

    indivduo (inexiste qualquer preocupao social), ameaado segundo BENTHAM, pelo poder

    crescente do Estado. Trata-se de uma forma poltica, na qual os cidados devem eleger o parlamento,

    cuja maioria deveria indicar com toda independncia o governo, estando os ministros responsveis por

    seus atos perante a cmara. Este sistema obteria a sua legitimidade pela ampliao do direito de voto a

    todas as camadas sociais, procura de uma efetiva soberania popular.

    Por sua parte, na Frana, durante a Restaurao, os liberais "doutrinrios", bem que destitudos da

    coerncia inglesa quanto a seu contexto institucional (a Revoluo de 1688), queriam construir uma

    "nouvelle France", a partir de uma poltica racional, na qual o problema da governabilidade seria

    solucionado atravs da conciliao dos mritos do "ancien rgime" com o governo representativo.

    A historia da governabilidade da Europa deste perodo constituda assim, a partir de diferentes

    tendncias tericas e polticas existentes, pela luta para conquista da independncia do parlamento e

    pela extenso do sufrgio. Importantes conquistas foram obtidas nesse sentido, por exemplo na

    Inglaterra, onde sucessivas reformas eleitorais ampliaram o sufrgio ( 1832, 1867 e 1884-85), e na

    Frana, que permitiu o sufrgio universal masculino em 1848.

    No entanto, a partir dos anos 1870, uma forte onde conservadora atravessou o velho continente,

    provocada pela possibilidade de que as classes trabalhadoras, em certos pases, graas ao acesso ao

  • 13

    sufrgio, poderiam influenciar, ou, mesmo no futuro, constituir o governo. Tal hiptese dos

    trabalhadores no poder, para os crticos conservadores, poderia gerar governos "parciais", fato que

    adicionado ao seu suposto "baixo nvel cultural, engendraria governos irracionais". Com efeito, os

    movimentos operrios, originados pela industrializao, comeavam a se organizar, desenvolvendo o

    pensamento socialista e marxista, cujas crticas dominao capitalista, configuraram uma importante

    confrontao ideolgica com o liberalismo.

    Este perodo de reformas poltico-sociais provocou nas elites um retrocesso em suas prprias

    concepes a respeito do liberalismo, fazendo com que o prprio ideal supremo da liberdade,

    comeasse a ter restries morais e polticas: a plena liberdade e o exerccio da cidadania poltica

    dependeriam de qualidades morais. O conservadorismo europeu assim sempre se ops participao

    popular, tornando-se um contrapeso para o avano da democracia. Neste sentido, o final do sculo XIX

    muito rico para a teoria poltica, pois coloca os sistemas polticos europeus frente ao dilema de manter

    uma dominao tradicional e elitista perante a constatao de que no se pode mais negar a extenso

    dos direitos polticos a todos os indivduos. Tudo isto atravessado pelas profundas reformas sociais e

    tecnolgicas que a revoluo industrial provocava nos padres tradicionalistas da "belle poque".

    A problemtica do sufrgio foi o verdadeiro campo de batalha onde se definiu o sentido da democracia

    moderna. O sufrgio foi analisado brilhantemente por TOCQUEVILLE. Este autor observa, na

    "Dmocratie en Amrique", que o sufrgio universal era uma das condies para a existncia da

    democracia nos Estados Unidos. Todavia, para ele, o sufrgio poderia tambm gerar ambiguamente um

    novo tipo de despotismo: "a ditadura do nmero". Pois, ele afirma que maioria no toma

    necessariamente sempre as melhores decises; assim como, existiriam sempre minorias no

    representadas. Neste sentido, a igualdade de condies, indispensvel para a democracia, poderia ser

    tambm um perigo para a liberdade. Assim, para TOCQUEVILLE, a democracia poderia engendrar

    dois tipos de problemas distintos: a tirania da maioria e o individualismo. Esse seria provocado pela

    disssoluo dos antigos laos de solidariedade que uniam os indivduos no "ancien rgime". No

    entanto, observando o sistema poltico americano, um dos fundadores da sociologia, TOCQUEVILLE,

    percebeu tambm que a democracia engendrava igualmente, num mesmo movimento, as respostas a

    estes problemas: a descentralizao administrativa; o equilbrio dos poderes, com plena autonomia do

    judicirio; a organizao federal; a liberdade de imprensa; a liberdade de associao, etc...

    STUART MILL, que conhecia a obra de TOCQUEVILLE, enfrenta em seus textos esta temtica. Para

    ele, a soluo da questo, j que no se poderia renunciar soberania popular, seria, alm dos

    "remdios" apontados pelos francs, a promoo do desenvolvimento moral do indivduo (em particular

    dos trabalhadores). A moralidade seria ento a condio para que a igualdade produzida ela

    democratizao da sociedade no fosse incompatvel com a liberdade. Ao contrrio, embora isto nos

    parea surpreendente, para MILL, o desenvolvimento moral permitiria, sem meados, a ampliao da

    liberdade, ajudando o progresso econmico e poltico. Desta maneira, a resposta dependia da "educao

    poltica" da sociedade. Contudo, pessimista a respeito da realizao desta "moralizao", MILL

    chegaria no final de sua vida a uma concepo poltica menos democrtica ainda, sofrendo inmeras

    crticas, na qual propunha um sufrgio diferenciado, de maior valor qualitativo e numrico, para

    aqueles "intelectualmente bem dotados". Do mesmo modo, ele seria reticente sobre a concesso do

    sufrgio aos analfabetos e queles que no pagassem impostos.

    Assim, nesta poca, bem que no se possa mais negar a soberania popular, e alguns pases comeassem

    a adotar um sufrgio mais elstico, chegando mesmo em alguns casos ao sufrgio universal masculino,

    o medo da intelectualidade vitoriana e europia em relao ao sufrgio universal evidente.

    Nesta perspectiva, naturalmente, o pensamento liberal brasileiro se posicionaria sobre a questo, a

    partir de seu estado terico na Europa, readaptado s questes concretas de seu contexto histrico.

    Portanto, desde este pano de fundo terico e histrico que pretendemos analisar a poltica em RB.

  • 14

    Neste captulo, com o intuito de aprofundarmos este posicionamento poltico, iremos num primeiro

    momento, determinar o contexto onde ele se origina e manifesta, procurando resumir brevemente as

    principais matizes polticas da Monarquia e de seus partidos polticos. Para a seguir, relatar brevemente

    seu ingresso na poltica. Tudo isto como preparao para o nosso objetivo principal nesta etapa da

    pesquisa que a anlise do seu discurso sobre a "situao liberal".

    2. A CRISE POLTICA DA MONARQUIA

    O imprio brasileiro, institudo pela Constituio de 1824, depois das lutas civis, separatistas e/ou

    federalistas, que ocorreram entre 1824 e 1848, teria at 1868-70, um perodo de grande hegemonia (1).

    A partir deste perodo, caracterizado exemplarmente pelo "manifesto" do partido republicano, e pelos

    acontecimentos posteriores guerra do Paraguai, comearia o longo declnio do poder monrquico, que

    culminaria com a Proclamao da Repblica em 1889.

    O manifesto republicano de 1870 foi muito mais importante no nvel discursivo, simblico, que

    poltico, logo que ele apareceu na cena poltica brasileira, pois a maioria de seus signatrios no

    pretendia obter a Repblica pela violncia . Entretanto, ele constitui o primeiro documento importante

    que questiona, aps este perodo de "paz social", a legitimidade do Imprio.

    Durante os anos que se seguiriam, conflitos de toda espcie se multiplicariam entre o Imprio e

    diversos segmentos da sociedade, principalmente, com os novos grupos econmicos e intelectuais que

    haviam surgido. Pode-se citar como dramticos, o problema das eleies diretas, a questo militar, e a

    mais grave de todas, a exigncia da abolio da escravido. Tudo isto sem se falar dos problemas

    financeiros e das crticas de cunho republicano.

    O suporte ideolgico do sistema, que foi criticado pelo manifesto, fundava-se na conciliao dos

    parmetros de uma Monarquia constitucional com o absolutismo. A monarquia conformemente a

    "charte" outorgada pelo Imperador D. PEDRO I, em 1824, aps a dissoluo da Assemblia Nacional

    Constituinte de 1823, se queria "democrtica". Face a este fato, o manifesto afirmava:

    "Alm do vcio incurvel de origem a Charte de 1824, imposta pelo

    Prncipe, constitudo sem constituinte, pode-se ver aquilo que vale a

    Monarquia temperada, ou Monarquia representativa. Este sistema misto

    de poder uma utopia, porque formado de dois elementos

    heterogneos. um utopia ligar de maneira slida e durvel dois

    poderes distintos em sua origem, antinmicos e irreconciliveis - a

    Monarquia hereditria e a soberania nacional, o poder pela graa de

    Deus e o poder pela vontade coletiva, livre e soberana de todas os

    cidados"(2).

    Esta caracterstica da "Charte" inspirava-se, principalmente, nas Constituies europias ps-revoluo

    francesa, que foram obrigadas a contemplar simultneamente a soberania divina (monrquica),

    resumidas pela teoria da soberania racional de GUIZOT. Contudo, na "Charte", brasileira a soberania

    popular era um aspecto puramente formal, j que o Imperador D. PEDRO I tinha pretenses

    absolutistas.

    Deste modo, quem conseguiria de fato uma certa conciliao, pelo menos at esta poca, entre a

    soberania nacional e a soberania divina, criticada pelos republicanos, fora o Imperador D. PEDRO II.

    Este, admirador de LOUIS PHILIPPE e do pensamento doutrinrio francs da restaurao, graas a um

    dispositivo constitucional , inspirado em Benjamin CONSTANT, o pode moderador, engendrara uma

    arte de governo muito hbil. Este dispositivo, uma espcie de quarto poder, dava ao Monarca imensos

  • 15

    poderes, estando acima o poder judicirio e do poder legislativo, alm do fato de que o poder executivo

    tambm lhe pertencia. Contudo, o Imperador, apesar de muito conservador, a partir de leituras do

    liberalismo francs, nesse caso de GUIZOT e sobretudo de CONSTANT, no estabeleceu um regime

    desptico. Isto, porque mesmo se ele se encontrasse com plenos poderes, o Imperador soubera mesmo

    se ele se encontrasse com plenos poderes, o Imperador soubera se manter distncia dos conflitos, no

    intervindo seno nos momentos decisivos, deixando geralmente o governo nas mos do Presidente do

    conselho de ministros - funo originalmente de simples consultoria. Este cargo criado em 1847,

    tambm de inspirao francesa, redefinindo como uma espcie como uma espcie de Primeiro ministro,

    estabeleceu um regime poltico que pode ser classificado, com restries, como semi-parlamentar.

    Nesta tica, a Monarquia, permitindo uma interpretao "quase britnica" da Constituio, fornecia

    uma certa autonomia ao gabinete, mesmo que esta possibilidade no fosse legalmente prevista. O

    problema, no entanto, foi o fato de que detendo o poder moderador, o Imperador cada vez que achou

    necessrio, tomou pessoalmente as decises, destituindo arbitrariamente os gabinetes. Esta tenso entre

    a autonomia relativa do parlamento e o poder moderador, aliada excluso da sociedade das questes

    polticas, foi uma das causas preponderantes da crise de legitimidade do regime.

    Este sistema entretanto funcionou sem maiores problemas at este perodo, sem constituindo um

    excelente artifcio ideolgico, pois o carter absolutista do poder moderador e o elitismo da Monarquia

    se caracterizaria muito mais pela excluso das classes desfavorizadas das decises polticas, e pela

    manuteno da escravido, que por ter tomado medidas impopulares. Tratava-se do absolutismo

    esclarecido, ideologicamente bem delimitado, mas indiferente problemtica social.

    Este sistema ideolgico se manifestava atravs de um sofisticado jogo de imagens, que se reinviavam

    mutuamente, procurando criar nos destinatrios a sensao de participarem de um sistema poltico

    liberal moderno, quando, em realidade, sem se falar do poder moderador, o parlamento imperial era

    constitudo unicamente por representantes das elites dirigentes, pois o sistema eleitoral existente,

    censitrio e indireto, impedia uma efetiva participao popular. Os parlamentares nunca representariam,

    sem se contar os escravos, mais do que 10% da populao.

    A Monarquia era ento aparentemente uma utopia, como anunciava o manifesto, mas no fundo, ela foi

    uma pratica poltica autoritria, que governou o pais, comandando seus desejos e identificaes

    durante sessenta anos. Evidentemente que, para tal, como bem salienta Murilo de CARVALHO, ela se

    apoiou numa elite burocrtica construda para esta finalidade. Todavia, surgiriam novas foras polticas

    e econmicas progressistas, que colocaram o Imprio num dilema: implantar efetivamente um modelo

    de governo mais democrtico, instaurando neste caso, um governo autnomo e representativo, ou, em

    caso contrrio, permitir o desenvolvimento de fortes crticas, inclusive de carter republicano, que

    poderiam destru-lo.

    3. O PENSAMENTO POLTICO DA MONARQUIA

    O quadro poltico imperial apresenta desta maneira grandes afinidades com a Frana da restaurao,

    preocupada em conciliar a liberdade, grande conquista da revoluo de 1789, com a Monarquia

    hereditria. Por isto, o pensamento francs foi muito importante para a Monarquia brasileira, tendo

    mesmo atingido a supremacia na anlise poltica e filosfica. O pensamento da Monarquia

    caracterizado pelo:

    "liberalismo doutrinrio, verso francesa do liberalismo de LOCKE, que

    teve uma enorme repercusso no Imprio, onde se tornou a ideologia

    dominante nas instituies e isto durante um longo perodo do segundo

  • 16

    Reinado. Benjamin CONSTANT, Franois GUIZOT, Victor COUSIN,

    esto na origem do pensamento destes moderados que se aglutinaram em

    torno da instituio monrquica para salvar o pas da turbulncia da

    Regncia, enquanto garantia da unidade e da ordem. O tema geral do

    liberalismo doutrinrio no Brasil foi aquele da conciliao entre a ordem

    e a liberdade" (3).

    Neste perodo, predominava notadamente o ecletismo de Victor COUSIN. O ecletismo teve, graas

    preocupao poltica da Monarquia, que procurava conciliar a racionalidade e a espiritualidade

    (divindade), soberania racional (GUIZOT) e conservadorismo, amplas possibilidades de se desenvolver

    no Brasil, devido a sua interpretao de cunho psicolgico. Esta "solucionava"o problema da liberdade

    como causa e fim em si mesma (conforme o que insinuava MAINE DE BIRAN). Isto , a liberdade era

    muito mais uma questo psicolgica do que poltica. Nesta perspectiva, no difcil de se compreender

    a facilidade de sua conciliao com a ordem.

    Este pensamento estava na base da reforma do cdigo de processo penal, elaborado pelo Visconde do

    URUGUAI em 1941, que estabeleceu um vasto controle da administrao, promovendo uma rgida

    centralizao poltica e administrativa no pais, dando ao poder central o poder de nomear as funes

    burocrticas importantes, como os presidentes de provncias, os chefes de polcia e os magistrados, isto

    , tudo o que era necessrio para a existncia da Monarquia real (4).

    Com efeito, o ecletismo de Victor COUSIN consiste, como afirma Antnio PAIM, "na primeira

    corrente filosfica rigorosamente estruturada no pas, chegando a ganhar a adeso da maioria da

    intelectualidade e a manter uma situao de dominao absoluta durante os anos 40 80 do sculo

    passado". Para este autor, o ecletismo teve no Brasil trs ciclos distintos, que acompanham exatamente

    as fases de expanso, apogeu e declnio da Monarquia. O processo de formao, no que lhe concerne,

    compreende aproximadamente 15 anos entre 1833 e 1848 (sic). Durante este ciclo, existia um vivo

    debate filosfico entre naturalistas e espiritualistas, quando a soluo conciliadora do probelama da

    liberdade, defendida pelos partidrios de BIRAN e COUSIN, conquistou a maioria da elite

    intelectual"(5). O ciclo de apogeu se estenderia entre 1850 a 1880. O ciclo de declnio, por sua vez,

    comearia no momento onde se desenvolveram, simultaneamente, o incio das crticas legitimidade

    do Imprio e a difuso no pas de novas correntes de idias, at ento restritas a crculos mais fechados,

    como principalmente, o evolucionismo de SPENCER, o liberalismo de STUART MILL e o positivismo

    de COMTE. Este ltimo substituindo o problema da conciliao entre a ordem e a liberdade, pela

    conciliao entre a ordem e o progresso. Por sua parte, os leitores de STUART MILL, como RB,

    preferiam a questo: liberdade e progresso.

    Este pensamento que se contrapunha ao conservadorismo dos doutrinrios. pode ser caracterizado

    como uma espcie de positivismo (ou sociologismo) cientificista, em razo de sua nfase na construo

    de explicaes racionais para os fenmenos sociais. este positivismo que constituiria o pensamento

    mais importante deste ltimo perodo, no se identificava porm necessariamente com o positivismo

    de COMTE. Pois o comtismo mais ortodoxo, que chegou a fundar a igreja positivista do Brasil, nunca

    chegou a ter muitos adeptos, nem a influir consideravelmente na poltica, Na realidade, o comtismo se

    difundiria no pas muito mais pela verso de LITTRE que recusava, ao contrrio de LAFITTE, a obra

    religiosa de COMTE. Assim, o positivismo dominante era um saber de caractersticas metodolgicas,

    que conciliava tanto quanto fosse possvel, LITTRE com o evolucionismo de SPENCER, e em alguns

    casos com MILL, e outras posturas semelhantes, De qualquer maneira, todas estas novas formas de

    pensar a poltica se adaptaram facilmente com as idias republicanas, contribuindo para a destruio

    das bases tericas monrquicas (6).

    4. OS PARTIDOS POLTICOS

  • 17

    Os partidos polticos imperiais manifestavam a influncia destas idias. O Imprio teve, at o

    surgimento do partido republicano em 1870, dois partidos: o partido conservador e o partido liberal,

    Estes nunca foram evidentemente partidos polticos no sentido moderno da expresso, com uma ampla

    participao social (sufrgio universal) e uma racionalidade burocrtica, mas meros representantes das

    elites dominantes (7).

    Na teoria, o partido liberal seria o defensor da liberdade e da descentralizao, e o partido conservador

    da ordem e da centralizao. Mas, na prtica, estas diferenas nunca foram muito ntidas ao nvel do

    econmico, do intelectual ou mesmo do ideolgico, Ao contrrio, no foi raro o momento, em que os

    partidos desejados de obter o poder, para tal dispostos a tudo, assimilaram ideais do lado oposto,

    realizando reformas anteriormente incompatveis com o seu programa. O partido conservador, por

    exemplo, quase que inteiramente formado por escravocratas, foi aquele que finalmente elaborou a

    maioria da legislao que aboliu a escravido. todas estas contradies terminaram por destruir a

    harmonia dos partidos. No entanto , durante a fase de apogeu do Imprio, entre 1853 e 1870, quando o

    parlamento aproveitou e conseguiu manter-se distncia dos reclamos sociais, estas prticas foram

    freqentes.

    A base scio-econmica dos dois partidos era constituda principalmente por grandes proprietrios de

    terras (elite rural), sustentados por uma elite intelectual que tinha a mesma formao, obtida

    principalmente nas faculdades de direito. Uma tal elite composta sobretudo por magistrados e

    administradores, fornecia a burocracia do Imprio e a inteligncia do sistema poltico. Os fazendeiros a

    favor da interveno do Estado (centralizao), j que se dedicavam agricultura de exportao,

    pertenciam geralmente ao partido conservador. os fazendeiros produtores para o mercado interno,

    portanto favorveis a uma maior autonomia das Provncias, eram membros do partido liberal. No

    decurso dos ltimos anos do Imprio, iria surgir com mais frequncia um novo tipo de parlamentar,

    oriundo das profisses liberais e vinculado aos interesses urbanos, que iria alterar profundamente a

    rotina poltica interna dos partidos.

    O partido liberal nasceu da coalizo poltica provocada desde a abdicao de D. PEDRO I, que

    reformou a Constituio de 1824, atravs do Ato Adicional de 1834, provocando uma srie de

    importantes medidas de descentralizao. O partido conservador originou-se por sua vez, da ala

    dissidente do Partido liberal, dirigida por Bernardo PEREIRA DE VASCONCELOS, o qual, a partir de

    1837, postulou a "regresso" poltica, chegando mesmo a 12 de maio de 1840, a (re)-interpretar o Ato

    Adicional, com um sentido autoritrio e centralizador, completamente distinto daquele postulado por

    seus autores. VASCONCELOS explicava assim essa transio:

    "Eu fui liberal, a liberdade era ento nova no pas, ela estava nas

    aspiraes de todos, mas no nas leis, nem nas idias prticas; o poder

    era tudo: eu fui liberal. Hoje, entretanto, o aspecto da sociedade bem

    diferente: os princpios democrticos tudo ganharam, e muito

    comprometeram o pas; a sociedade, que ento correta o risco de

    poder, corre agora aquele da desorganizao e da anarquia. Como eu

    o fiz ento, eu quero agora servi-la, e por isso eu sou pela

    regresso"(8).

    A partir das palavras de VASCONCELOS, ficava bem claro que seu objetivo poltico era a formao

    de um sistema poltico no qual o ideal da liberdade seria substitudo pelo ideal da ordem, isto , pelo

    poder dos grandes proprietrios: o Estado patrimonialista de WEBER (FAORO). Assim, os

    conservadores brasileiros que tinham postulado a liberdade, durante a luta pela independncia do pas,

    uma vez que esta de consolidou, foram obrigados a "regressarem" politicamente, em nome da ordem,

    sob pena de serem obrigados a permitir uma maior participao popular. A lei de interpretao do Ato

  • 18

    Adicional e o cdigo de processo de 1841 concretizaram esta dominao. Os partidrios da "regresso"

    tomariam mais tarde o nome de "partido da ordem", para finalmente adotarem a denominao de

    conservadores: a influncia do pensamento francs centralizador da Restaurao era ento evidente.

    Em todo caso, a manuteno do ministrio condicionada confiana da cmara - importante conquista

    liberal de 1834 - foi mantida, nem tanto como prtica parlamentar, pois o poder moderador se

    fortalecia, mas como princpio. Desta maneira, no se pode falar de partidos, no plural, no Imprio

    antes do aparecimento do partido conservador em 1837.

    Em 1840, com a maioridade de D. PEDRO II, os dois partidos se reuniram novamente, compondo

    aquele que foi denominado ministrio da conciliao. Isto traduziam se quisermos nos expressar na

    silagem dos signos da filosofia da poca, segundo o ecletismo de Victor COUSIN, a unio da liberdade

    e da ordem. Entretanto, a maioria dos membros do partido liberal nunca aceitaria totalmente a

    conciliao, provocando a formao de trs faces na Cmara: os conservadores, os liberais e os

    moderados. Estas correntes iriam ora unir-se, ora dividir-se, conforme os contextos polticos que

    sobrevieram.

    Em 1860, os ideais liberais "autnticos" se reavivam, gerando a unio dos liberais, histricos e

    moderados, naquele que foi chamado partido liberal progressista. No seio deste partido, os liberais

    histricos, mais revolucionrios, procuraram logo atingir a hegemonia. Face a este fato, o Imperador,

    receosos, destituiu, em 1868, a pedido do comandante do exrcito (CAXIAS), o gabinete liberal de

    Zacarias de GOIS, nomeado chefe do ltimo gabinete progressista em 1866. Este acontecimento

    anulava a suposta autonomia do parlamento e demonstrava que o poder moderador era na realidade o

    centro do poder da Monarquia. A classe poltica progressista reagiu interveno do monarca. Uma das

    medidas tomadas foi a criao do "centro liberal (histrica), da ala moderada, e mesmo alguns

    conservadores, formando o novo partido liberal. Os setores ainda mais radicais fundaram o partido

    republicano em 1870.

    O novo partido liberal elaborou, frente a esta nova situao poltica, um programa que, defendendo a

    democracia e os direitos individuais, postulava as seguintes reformas:

    I - A responsabilidade do executivo frente aos atos do poder moderador;

    II - A mxima: o rei reina mas no governa;

    III - A organizao do conselho de ministros conforme a maioria do parlamento;

    IV - A descentralizao no sentido de "self-gouvernment", executando o pensamento do Ato Adicional

    em relao as provncias; fornecendo a autonomia necessria aos municpios; garantindo o direito e

    promovendo o exerccio da iniciativa individual; estimulando o esprito de associao,; restringindo, o

    mximo possvel , a interferncia da autoridade;

    V - A mxima liberdade me matria de comrcio e de indstria e por consequncia a extino dos

    privilgios e dos monoplios;

    VI - Garantias efetivas da liberdade de conscincia;

    VIII - Plena liberdade para os cidados fundarem escolas e atingirem o ensino, desenvolvendo, ao

    mesmo tempo, aquele que o Estado oferece, at que a iniciativa individual e de associao possam

    dispensar um tal cooperao;

    VIII - Independncia do poder judicirio e dos magistrados;

  • 19

    IX - Unificao da jurisdio do poder judicirio, criada pela Constituio do Imprio e por

    consequncia, a derrogao de toda a jurisdio administrativa;

    X - O conselho de Estado deve tornar-se um simples auxiliar da administrao e no mais um corpo

    poltico;

    XI - O senado temporrio, como finalidade primordial para o justo equilbrio e influncia dos dois

    ramos do poder legislativo;

    XII - Reduo dos efetivos militares em tempo de paz.

    O programa previa tambm, entre outras medidas, a reforma eleitoral, atravs da adoo da eleio

    direta; e a abolio da escravido, a qual deveria iniciar pela libertao dos futuros recm-nascidos

    (ventre-livre), seguindo-se a emancipao gradual (9). Desta maneira, propunha-se uma reformulao

    completa do sistema poltico Imperial, por meio da implementao de um efetivo sistema parlamentar

    liberal, com autonomia para o parlamento e para o judicirio, assim, como, a descentralizao

    administrativa, permitindo um maior poder de deciso e participao s Provncias e aos Municpios.

    O partido republicano, por sua parte, em seu manifesto, o qual, como ns j comentamos anteriormente,

    no via nenhuma sada para a Monarquia, pregava a Repblica como a soluo necessria. Pois, a nica

    soberania que ele dizia reconhecer era a do povo. Mas, mesmo anti-monrquico, este partido pretendia

    utilizar simplesmente "dos instrumentos pacficos da liberdade atravs de uma revoluo moral".

    Exigia-se igualmente algumas reformas polticas, a maioria indo na mesma direo das propostas feitas

    pelo partido liberal, Assim, o partido republicano defendia a adoo da federao: "no Brasil, bem antes

    da idia democrtica, a natureza se encarregou de estabelecer o princpio federativo". A frmula

    proposta era a "centralizao-desmembramento" X "descentralizao-unidade". Alm disto, o

    programa , ressaltando a necessidade da democratizao e do respeito aos direitos individuais, exigia

    como condio para a realizao das reformas, "a convocao de uma Assemblia Nacional

    Constituinte com amplas faculdades para instaurar um novo regime". Nesta perspectiva, enquanto o

    partido liberal, fiel Monarquia, pretendia efetuar ele mesmo, dentro do sistema, as reformas

    necessrias, o partido republicano reclamava uma Constituinte para a construo de um novo regime

    (10).

    O partido conservador, que chegara ao poder de 1868, permaneceu com o controle poltico durante

    cerca de dez anos, quando sofreu duras crticas por parte do partido liberal. A implementao do

    programa liberal era a reivindicao constante , sendo que a principal reclamao se dirigia ao sistema

    eleitoral, censitrio e indireto, permitindo sempre a vitria do partido no governo nas eleies. O

    sufrgio indireto era portanto uma das explicaes da longa dominao dos conservadores.

    O partido liberal apontava a ausncia de legitimidade de um gabinete que se apoiava muito mais no

    poder moderador do que no povo. O comportamento parcial do Imperador, verdadeiro fiador da poltica

    conservadora, era assim ilegtimo para os membros da ala radical liberal. Nesta perspectiva, o incidente

    que tinha provocado de sua parte o maior nmero de acusaes era o fato que o gabinete liberal, cuja

    cmara fora destituda pelo Imperador, era na poca amplamente majoritrio. O gabinete conservador

    tinha sido nomeado perante uma cmara na qual a maioria dos deputados era membro do partido

    liberal, Este acontecimento produziu uma importante ruptura simblica sobre a legitimidade do poder

    imperial, at ento inconteste, pois o presidente do conselho de ministros vinha sendo escolhido,

    conforme a boa prtica parlamentar democrtica, dentre os membros da maioria parlamentar.

    Contudo, no podemos deixar de observar, bem que esta argumentao dos liberais seja pertinente , que

    a cmara liberal linha igualmente sido dissolvida em razo de sua incapacidade de se impor aos

  • 20

    problemas polticos enfrentados, como a questo eleitoral, e, principalmente, a questo da escravido,

    que comeava a se manifestar mais concretamente. A grande fraqueza poltica do partido liberal foi

    sempre o fato que, mesmo que ele fosse o partido mais progressista do Imprio, ele era constitudo

    (assim como o conservador) em grande parte pelas elites beneficiadas pelo sistema. Isto impedia, logo

    que ele chegava ao poder, de tomar medidas liberais mais efetivas. A forte base social de carter

    conservador produziu um grave hiato entre a teoria e a prtica poltica liberal.

    Desta maneira, o partido brasileiro teve durante a sua existncia uma prtica poltica nitidamente

    conservadora. Assim, uma das causas para a dissoluo do gabinete liberal de 68 foi tambm o fato de

    que ele nada conseguiu realizar, perante a presso social e internacional, notadamente da Inglaterra,

    para ao menos se atenuar a escravido no pas. interessante ressaltar que uma vez no poder o partido

    conservador realizou efetivamente, embora de maneira restritiva, as medidas libertarias ento

    reclamadas, apropriando-se dos ideias liberais, como condio para o exerccio do poder.

    Em 1 de janeiro de 1878, o Imperador servindo-se, uma vez mais, do poder moderador, convidou o

    Visconde de SINIMBU para formar um novo gabinete liberal. Aps todos estes anos de ostracismo era

    o retorno do partido liberal ao poder. A queda do gabinete conservador fora provocada pelo sucesso da

    campanha pela eleio direta, promovida pelos liberais. Mesmo face s promessas feitas pelo partido

    conservador para estabelec-las, o Imperador entendia que aquela deveria ser realizada pelo partido que

    a tinha postulado.

    O partido liberal no poder modificava toda a paisagem poltica do pas, pois a conquista do gabinete

    significava tambm o controle da mquina eleitoral do governo e da vitria assegurada nas eleies. No

    Imprio nunca o partido que se encontrasse na oposio chegaria a ganhar uma eleio. Isto tornava a

    participao do Imperador primordial para provocar a alternncia dos partidos no poder, seja o liberal,

    seja o conservador, conforme a conjuntura poltica. Este um bom exemplo da supremacia do poder

    moderador e da impossibilidade de participao poltica por parte da sociedade, O partido liberal

    pretendia alterar esta situao, postulando a eleio direta como a nica maneira de democratizar o pas.

    todavia, por enquanto, ainda sob o sistema eleitoral indireto, o partido liberal elegeu facilmente a

    maioria da nova cmara.

    Em resumo, em 1878, aps todas as crticas elaboradas pelo partido liberal na oposio, o Imperador

    repetindo o gesto de 1868, nomeava um gabinete liberal, desta vez perante uma cmara

    majoritariamente conservadora. A misso do partido liberal era resolver a problemtica situao do

    sistema eleitoral do imprio. Uma questo de princpio porm se impunha anteriormente: era legtima a

    situao poltica de uma gabinete liberal nomeado pelo Imperador perante uma cmara no qual era

    minoritrio? Esta questo dera duplamente importante porque ela era repetida com os mesmos

    argumentos que os liberais tinham utilizados em 1868 contra os conservadores, O partido liberal

    indicou RB para respond-la.

    5. A SITUAO ATUAL

    O objetivo do discurso era justificar a situao liberal. Inicialmente RB efetuou um balano do governo

    conservador, criticando sua fala de respeito para com a moralidade administrativa e finanas pblicas,

    e, notadamente, pelos cinco anos de guerra como o Paraguai (11).

    Estas observaes feitas, RB respondendo as acusaes dos conservadores, que ironizavam o fato das

    crticas dos liberais na oposio terem cessado, quando o Imperador os chamara ao poder, afirmava

    que " a escola do regime parlamentar europeu, que os permitia resolver a questo". A Inglaterra era

    ento indiscutivelmente considerada por ele como o modelo poltico ideal para a Monarquia brasileira.

    Dito isto, foram citados, como exemplo, por ele, diversos casos do parlamentarismo ingls, onde o

    Gabinete fora nomeado sem possuir a maioria na cmara:

  • 21

    "Em 1834, governando o "Whigs", sob o ministrio de lord

    MELBOURNE, a Coroa entendendo que o gabinete, j modificado pela

    perda, alguns meses antes, de quatro de seus membros, no poderia mais,

    com a entrada, na cmara dos pares, de lord ALTHORP, chefe do

    ministrio na cmara dos comuns, oferecer garantias de estabilidades

    parlamentares, considerou esta administrao incapaz de subsistir, e a

    exonerou, chamando a lord WELLINGTON, o qual , em seu lugar,

    indicou para organiz-lo a Sir Robert PEEL.

    Entretanto, a poltica "Whigs foi, at o ltimo momento, firmemente

    sustentada, na cmara dos comuns, por uma maioria conhecida, pois a

    administrao "Tory"contava apenas com uma fraca minoria, As

    cmaras no estavam unidas, e, a dissoluo estando inevitvel, com ou

    sem seu consentimento, Robert PEEL teve de bem meditar comparando

    as vantagens e os inconvenientes das duas consequncias possveis:

    chamar imediatamente o eleitorado, ou aventurar-se na tentativa de

    demandar os meios para governar a uma maioria adversa. Robert PEEL

    se decidiria por isto: no convoca a cmara, e a dissolve"(12)

    O discurso apontava tambm o fato de que em 1852, no final do gabinete do lord RUSSEL, apesar da

    maioria "Whig"que parecia indicar o poder a lord PALMERSTON, a Coroa britnica optou pela

    indicao de um gabinete "Tory", nomeado a lord DERBY. No entanto, a questo seria esclarecida

    somente em 1858, quando DERBY aceitaria novamente organizar um ministrio, mesmo sendo

    minoria. Os debates que se seguiram, entre a possibilidade de convocao de eleies para a formao

    de uma nova cmara ou a aceitao do gabinete DERBY, demonstravam para RB, uma quase-harmonia

    de opinies entre as duas alas:

    "Para os conservadores existe a autoridade eminente de DERBY,

    segundo a qual arbitrria a pretenso de contestar o direito de

    dissoluo da Coroa, qualquer que seja a ocasio. Para os outros, eis o

    voto respeitvel de PALMERSTON. Ns reconhecemos, diz-ele, coroa,

    o direito de chamar, em qualquer ocasio que seja, da cmara dos

    comuns o pas. Pode nos parecer estmais ou menos aconselhvel de nos

    interpor a esta convocao; mas, uma vez a vontade enunciada, eu estou

    convencido que esta cmara cooper sempre, quando ela possa, com o

    governo, acelerando o momento de sua dissoluo. Ningum, diz-ele

    ainda, que tenha uma noo mnima da Constituio inglesa, no

    contradir uma tal prerrogativa, pertencendo Coroa a qualquer poca

    do ano, e em no importa qual circunstncia da administrao, de

    dissolver o parlamento, atravs da opinio dos ministros responsveis,

    to logo eles considerem oportuno faz-lo.

    (...) Eis (segundo RB) na livre Inglaterra, em vinte e quatro anos somente,

    trs exemplos da mesma coisa que seu purismo constitucional (os

    conservadores) no aprova no Brasil: trs situaes polticas alteradas

    contra as maiorias parlamentares" (13).

    Aps ter exposto estes exemplos tomados da Inglaterra, que confirmavam o poder da Coroa de

    dissolver o Gabinete, o discurso apontaria tambm casos similares ocorridos na Blgica e em outros

    pases da Europa.

  • 22

    Contudo, no inteiramente satisfeito com esta argumentao, favorvel Coroa, RB salientava que a

    legitimidade do gabinete liberal no se fundamentava no poder moderador, mas na vontade popular.

    Alm do fato de que, segundo ele, como a maioria obtida pelos conservadores era fruto do sistema de

    eleies indiretas, ela era ilegtima. Pois, no caso em que o parlamento tivesse sido eleito

    democraticamente, atravs de eleies livres, ele no concordaria com a sua dissoluo, e que a mesma

    seria "absurda, inconstitucional, criminal". Assim, ele reconhecia que na Inglaterra dos ltimos anos,

    aps, os "Bills de reforma parlamentar que haviam transformado a cmara dos comuns num efetivo

    representante do pas, a hiptese de um gabinete minoritrio na cmara seria mesmo impossvel".

    Porm, no caso brasileiro, esta situao era legtima, pois tratava-se da nomeao de um gabinete

    minoritrio perante uma cmara afastada da opinio pblica. Pois , no existindo eleies diretas, era o

    povo, ouvido pelo Imperador, aps diversas manifestaes que decidiria o retorno do partido liberal. O

    parlamento conservador era portanto ilegtimo, pois caracterizava uma maioria no representativa da

    nao. E para conformar suas afirmaes, RB citava a opinio dos conservadores e liberais sobre a

    questo:

    "Aos primeiros (os conservadores) eu lembro a autoridade conservadora

    de DECKER, estadista belga muito conhecido, Presidente do gabinete de

    30 de maro de 1858, a respeito da situao de seu pas dois anos depois,

    ele a enunciou em termos memorveis: na minha opinio, uma das

    posies mais arriscadas nas quais pode se aventurar uma pas

    constitucional a de governar com uma maioria, que se pode acusar de

    no mais representar os sentimentos e os votos nacionais

    Aos liberais, eu lembro a sentena de uma capacidade europia: 'Des

    cueils du gouvernement parlementaire', escreve PREVOST-PARADOL,

    no seu livro : "La France Nouvelle", p. 147, 'o principal a tirania de

    uma maioria legislativa, que, durante uma legislatura, cessa de

    comunicar com a opinio da maioria dos cidados. Pela palavra tirania

    ns no referimos aqui aos atos de violncia ou de opresso, mas

    simplesmente existncia de um ministrio e de uma assemblia, que

    legalmente retenha o poder, tendo j perdido o apoio e a confiana

    geral'" (14).

    A maioria parlamentar deveria ser efetivamente representativa da sociedade, sob pena de tornar-se

    ilegtima, caracterizando uma opresso que justificaria a sua destituio. A legitimidade parlamentar

    fornecida pela capacidade que ela tem de representar a soberania popular. O parlamento legtimo

    intocvel, enquanto o parlamento no-representativo deve ser dissolvido.

    O ponto seguinte a ser analisado no discurso seria o poder moderador. Neste sentido, ele procurava

    demarcar os limites da interveno da Coroa no Gabinete. Para ele, "no havia nenhuma dvida que na

    teoria liberal de governo, a Coroa era apenas a imagem de um poder, do qual a realidade ativa era o

    gabinete, porque era ao Gabinete que pertencia a autoridade, que as formas tradicionais da linguagem

    parlamentar atribuem Coroa". Mesmo na Inglaterra, pas modelo do parlamentarismo, segundo

    BAGEHOT, "o rei preside apenas as partes formais da Constituio, e o primeiro ministro as partes

    eficientes". Assim, para RB, na teoria liberal inglesa de governo:

    "Os ministros que, na fraseologia jurdica, so vistos como servidores da

    Coroa, so de fato rgos da representao nacional. O poder executivo

    provm rigorosamente da cmara popular, a qual, por funo exclusiva,

    incumbe nome-lo, mant-lo, destitu-lo. O monarca se eclipsou atrs do

    presidente do conselho, personificao dos comuns, o qual o rbitro na

    poltica e na administrao. E, no pas, onde a oposio se chamava

  • 23

    oposio de sua Majestade, o governo se diz, e realmente, o governo de

    CANNING e de PEEL, de PALMERSTON e de RUSSELL, de

    GLADSTONE e de BEACONFIED"( 15).

    Neste sentido, RB comentando a Constituio de 1824, lamentava que este ideal democrtico, a

    nomeao do poder executivo pela cmara popular, no fosse previsto na letra da lei. Pois, a nomeao

    do presidente do conselho de ministros era uma prerrogativa da Coroa, a qual para tal no se baseava

    sempres na maioria parlamentar. A constituio no previa portanto as condies necessrias para o

    funcionamento de um verdadeiro governo parlamentar, como a nomeao do gabinete pela maioria,

    cuja ausncia provocaria uma moo de censura que provocaria a sua demisso. A "Charte" de 1824

    estipulava ao contrrio que o "Imperador nomearia, e exoneraria, livremente os ministros". Assim,

    parecia que a escolha dos ministros era um privilgio da Coroa. Mas, segundo RB, esta interpretao da

    Constituio, que fazia prova de um juridicismo excessivo, poderia ser refutada se se optasse por uma

    anlise luz de seu sentido poltico, no qual o parlamento poderia reinterpretar, redefinir o sentido

    deste texto. Isto se justificaria em virtude da existncia de uma razo filosfica e de uma razo

    jurisprudencial:

    "A razo filosfica tal, que uma vez a nao representada sinceramente

    num parlamento livre, a soberania que esta instituio exprime, assumir

    uma realidade absorvente, concentrar nela toda a ao poltica, e

    fundir desde a origem o poder executivo na representao popular.

    A razo jurisprudencial tem como fonte a doutrina inglesa. L tambm a

    teoria legal, a escolha dos ministros incumbe Coroa livremente e a sua

    descrio pessoal. Entretanto, nada menos livre nada mais forado,

    nada mais fatal que esta escolha, que se deve firmar sobre a

    designao dos comuns, na qual a maioria material, poltica, e

    absolutamente impossvel de recudar" (16).

    Filiando-se a melhor tradio do parlamentarismo ingls, RB inseria-se numa hermenutica que

    pregava a importncia de se levar em considerao na interpretao da lei constitucional os aspectos

    polticos, filosficos e jurisprudenciais, que a co-constituem historicamente, rompendo com o

    legalismo primrio dominante na sua leitura. Na mesma direo, ele citava " O governo

    Representativo" de STUART MILL:

    "Segundo a Lei Constitucional, nos ensina STUART MILL, 'a Coroa

    pode recusar seu assentimento a todo ato do parlamento e nomear, ou

    manter, os ministros que ela queria, no obstante a rejeio do

    parlamento. Mas a moralidade constitucional do pas anula esses

    poderes, impedindo de os utilizar, exigindo que o chefe da administrao

    seja virtualmente nomeado pela cmara dos comuns, fazendo assim desta

    corporao a verdadeira soberana do Estado'" (17).

    O direito constitucional, tanto no Brasil, quanto na Inglaterra, deveria assim ser intepretado a partir dos

    princpios do parlamentarismo democrtico, no se reduzindo de nenhuma forma ao texto legal.

    Portanto, para RB, os arts. 98 e 101 da Constituio de 1824, que autorizavam a nomeao dos

    ministros pelo Imperador, eram uma simples "homenagem ao papel simblico da Coroa". A adoo de

    todos esses princpios do sistema parlamentar ingls desmascararia a crena segundo a qual o

    Imperador tinha o direito de intervir no governo, na verdade direito exclusivo da nao. O

    parlamentarismo. com plena autonomia da cmara para interpretar a Constituio e poder indicar o

    chefe do gabinete, era ento a condio "sine qua non" para a existncia da democracia.

  • 24

    Na concluso de seu discurso, aps ter-se explicitado a adeso democracia liberal inglesa, indicava

    as reformas que deveriam ser providenciadas pela nova legislatura. A principal delas era evidentemente

    a reforma eleitoral, condio para que se permitesse sociedade escolher uma cmara que a

    representasse efetivamente. As reformas deveriam ser realizadas atravs da legislao ordinria, por

    meio do parlamento, sem que se recorrese ao complexo sistema de reforma constitucional previsto na

    "Charte" (ns aprofundaremos esta questo no prximo captulo).

    As demais reformas pregadas eram a reforma do ensino, o desenvolvimento de fundos agrcolas, a

    implantao da autonomia municipal, e a mais importante de todas, depois da reforma eleitoral, a

    descentralizao administrativa, para a obteno da autonomia provincial. O discurso acentuava

    igualmente a necessidade da extino da guarda nacional; fazer-se do voluntariado a nica base do

    exrcito; e ampliar-se a imigrao e o direito liberdade religiosa. Estas reformas que resumiam o

    programa poltico de RB, no eram para ele:

    "O perigo, a anarquia, a runa: elas so, ao contrrio, a preservao da

    autoridade, a pacificao das almas, o cimento de nosso futuro

    constitucional. Elas evitaro a revoluo, popularizando, e consolidando,

    portanto, a Monarquia representativa, reduzindo a uma ideologia

    impotente as aspiraes republicanas. Elas so os nervos, a estabilidade

    e a honra das instituies livres " (18).

    Nesta perspectiva, RB era ainda um monarquista, postulando, com seu projeto de reformas, que no

    diferia fundamentalmente neste momento daquele do partido liberal, a Monarquia representativa, como

    condio para a legitimidade e existncia do Imprio. Assim, mesmo efetuando uma espcie de

    ultimatum ao governo imperial, no se tratava de um programa revolucionrio, contentando-se com

    conquistas parciais da liberdade, as quais tornariam "mais prxima e inevitvel o surgimento da

    liberdade total". Pois , para RB:

    "Quando inaugurada uma liberdade parcial com o comum acordo da

    escola radical e das outras escolas, no a escola radical que faz a

    concesso; mas ao contrrio, ela que a recebe. A filosofa diferente da

    poltica; a condio da poltica ser prtica, ou no ser nada. A poltica

    radical aspira ao pleno e completo gozo da liberdade; mas ela caminha

    nesse sentido conquistando sucessivamente as liberdades possveis. Ela

    radical, porque ela pretende tudo, e no se fatigar antes de obt-lo

    integralmente; mas ela no tem a esperana de tudo reformar de uma s

    vez, nem a estupidez de rejeitar reformas incompletas, que podem

    facilitar a reforma definitiva"(19).

    Naturalmente, este tipo de radicalismo poltico, propondo reformas graduais, que caracterizam uma

    certa maturidade poltica, apresenta fortes traos conservadores, como o receio de mudanas bruscas e

    da anarquia, comuns no liberalismo da poca. isto, todavia, no nos parece suficiente para classific-lo

    como um discurso idealista ou meramente ideolgico. Nesta tica, a nova hermenutica constitucional

    proposta por RB, voltada para a realizao de seu projeto poltico, dando prioridade reforma eleitoral,

    era coerente com esta postura.

    Este projeto indicava Monarquia o caminho a seguir para a democratizao do pas e para a

    justificao do sistema, e mesmo se ele no fizesse ainda da abolio da escravido uma medida

    urgente, pois deveria ser encaminhada somente depois da soluo do problema das eleies, era, na

    poca, uma teoria de governo vivel e legtima.

  • 25

    Nesta linha de idias, esta proposta de reforma da Monarquia pode ser caracterizada como uma postura

    liberal bem moderada e pragmtica: a diferena entre a filosofia radical, que defendia a necessidade

    premente da implantao dos ideais liberais, e a poltica, arte da conciliao e das conquistas graduais,

    delimitada. RB um poltico, no um filsofo.

    Em breves palavras, neste discurso sobre a situao liberal as influncias terico-polticas mais

    importantes foram o liberalismo ingls, os direitos e garantias individuais da Revoluo francesa

    (transmitidos pelo pai), as instituies americanas de STORY, o federalismo de TOCQUEVILLE e a

    metodologia positivista de COMTE (que aprofundaremos mais tarde).

    Nesta perspectiva, o pensamento britnico, notadamente de BAGEHOT, MACAULAY, WILLIAM

    GLADSTONE e STUART MILL, foi a maior fonte de inspirao de RB. A maior contribuio, ao

    menos, a respeito do parlamentarismo e do sistema eleitoral, foi a de MILL. Este autor foi fundamental

    para a a gerao liberal radical, desejosa de encontrar novas bases tericas para efetuar suas crticas ao

    pensamento doutrinrio e conservador da Monarquia, em razo da atualidade de sua teoria de governo

    frente aos problemas do liberalismo da poca, Pois MILL era uma espcie de sntese crtica do

    utilitarismo, que dominava o pensamento ingls, ao mesmo tempo que dialogava independentemente

    com SPENCER e COMTE, sempre procurando enfatizar a importncia da liberdade na teoria poltica e

    social, que comeava a ser menosprezada pelo determinismo sociolgico do positivismo.

    Assim, MILL contribuiu para a concepo poltica de RB que postulava a liberdade individual e a

    modernizao do pas contra o binmio ordem-liberdade dos doutrinrios (conservadores), e a

    autonomia do homem contra o binmio ordem-progresso dos positivistas. Para isto, ele defendia o

    parlamentarismo ingls como condio de desenvolvimento econmico, social e individual do cidado.

  • 26

    CAPTULO I - NOTAS

    (1) Sobre as questes polticas no Imprio, pode-se consultar, entre outros:

    - Jos Murilo de CARVALHO, "A Construo da Ordem. A Elite Poltica Imperial", editora Campus,

    Rio de Janeiro, 1980;

    - OLIVEIRA LIMA, "O Imprio Brasileiro", nova edio, UNB, Braslia, 1986;

    - Srgio BUARQUE DE HOLANDA, "O Brasil Monrquico, tomo II, 5 volumes, DIFEL, So Paulo,

    3a. ed., 1983.

    - Raymundo FAORO, "Os Donos do Poder", 2 vol., 7a. d., GLOBO, Rio de Janeiro, 1987;

    (2) Cf. "O manifesto do Partido Republicano "in "A Idia Republicana no Brasil. Textos e

    Documentos:, editora Alfa-Omega. So Paulo, 1973, p. 40;

    (3) Sobre o pensamento doutrinrio no Brasil, ver: Ubiratan de MACEDO. "Os modelos do

    Liberalismo no Brasil", So Paulo, 1986;

    (4) Sobe o Visconde do URUGUAI, ver: Ubiratam de MACEDO, "O Visconde do Uruguai e o

    Liberalismo Doutrinrio no Imprio" in "As Idias Polticas no Brasil", editora Convvio, So Paulo,

    1979. pp. 193-232;

    (5) Cf. Antonio PAIM, "O Estudo do Pensamento Filosfico Brasileiro", editora Tempo Brasileiro, Rio

    de Janeiro, 1979, pp.33-34;

    (6) Sobre o positivismo no Brasil, ver: Ivan LINS, "Histria do Positivismo no Brasil", Cia Editora

    Nacional, So Paulo, 1967;

    (7) Sobre os partidos polticos ver:

    - Afonso ARINOS DE MELO FRANCO, "Histria e Teoria dos Partidos Polticos no Brasil", editora

    Alfa-Omega, So Paulo, 1980.

    - Murilo de CARVALHO, op. cit.;

    - OLIVEIRA LIMA, op. cit.;

    (8) Cit. por Afonso ARINOS, op. cit.; a determinao da data de 1837 como fundamental para a

    configurao do sistema de partidos tambm proposta por ARINOS;

    (9) Sobre esta questo, ver OLIVEIRA LIMA, op. cit ., pp. 44 e seg.;

    (10) Cf. O Manifesto do Partido Republicano, op. cit., pp. 39-63. Existiriam tambm outras

    manifestaes republicanas importantes, que se sucedera, ao primeiro, como aquela de 1873, em Itu,

    So Paulo;

    (11) Cf. "A situao Liberal", discurso pronunciado por RB, a 17 de maro de 1878, na cmara dos

    deputados do Imprio, publicado no VOL. VI, Tomo I, 1879, OCRB, FCRB, Rio de Janeiro, pp. 63-

    166;

    (12) Cf. RB, OCRB, VOL. VI, Tomo I, pp. 69-70;

  • 27

    (13) idem, pp. 71-72;

    (14) idem, p. 76;

    (15) idem, p. 107;

    (16) idem, pp. 108-109;

    (17) idem, p. 108;

    (18) idem, p.154;

    (19) idem, p. 155;

  • 28

    CAPTULO II

    A TEORIA DO SUFRGIO

  • 29

    CAPTULO II

    A TEORIA DO SUFRGIO

    1. O SISTEMA ELEITORAL DO IMPRIO

    1.1. O Brasil era um pas formalmente liberal, dominado por uma Monarquia baseada na mo de obra

    escrava, que, carente de legitimidade, necessitava reformar o seu sistema poltico.

    Deste modo, percebe-se facilmente porque o sistema de eleio direta adotado, a 7 de janeiro de l881,

    provocou enormes debates no parlamento liberal a partir de 1879, portanto tema exemplar para a

    anlise dos limites e possibilidades da existncia da cidadania e da democracia no pas. A adoo do

    sistema de governo representativo implicava na reforma do sistema eleitoral do Imprio.

    Nesta tica, RB pronunciaria diversos discursos sobre o sufrgio, em diferentes momentos histricos,

    em distintas condies polticas, e mesmo tericas. As condies enunciativas destas falas, as quais

    constituem o seu sentido, variaram, desta maneira, intensamente. Porm, - esta a nossa idia, - sem

    desprezarmos esta condio pragmtica de sentido, existiu sempre uma coerncia na evoluo de seu

    pensamento sobre o sufrgio.

    O primeiro destes discursos foi pronunciado na Bahia em 1874, quando o partido liberal estava na

    oposio. Nesta ocasio, ento simples membro do partido, procurando candidatar-se a candidato

    dentro de seus quadros, ele efetuou com grande desenvoltura, um eloqente exerccio retrico,

    procurando igualmente, demonstrar uma certa erudio e produzir fortes crticas Monarquia. Como

    veremos a seguir, entendemos que neste discurso, j havia alm destas caractersticas de adeso aos

    ideais do partido liberal, uma certa postura terica maior.

    O segundo discurso seria enunciado, j enquanto deputado liberal, desejoso de mostrar servios ao

    partido e subir nos seus quadros, quando ele deveria justificar, a necessidade de aprovao do projeto

    SINIMBU. Neste discurso, ele aproveitaria para estabelecer as bases tericas de seu pensamento sobre

    o sufrgio, elaborando uma fala na qual o poder do saber, aparece como condio de legitimidade do

    prprio exerccio do poder e da cidadania.

    O terceiro discurso seria pronunciado, por sua vez, j em defesa do projeto por ele elaborado, a pedido

    de SARAIVA, no qual se faz concesses em relao s exigncias feitas nos discursos anteriores, face

    a necessidade de se lutar pela aprovao do projeto, atravs da conciliao com a dissidncia liberal.

    1.2. O sistema eleitoral adotado pelo Imprio era o das eleies indiretas, estabelecido no captulo IV,

    da Constituio de 1824, composto pelos arts. 90 e 97.

    O art. 90, alm da eleio indireta, estabelecia dois tipos de eleitores: os eleitores paroquiais,

    constitudos pela massa dos cidados ativos, que elegia os eleitores de provncia; e os eleitores

    provinciais que elegiam os deputados de provncia e os gerais (da nao).

    Existia assim um sistema eleitoral baseado em dois nveis diferentes de eleitores:

    a) Um primeiro nvel, que era constitudo pelo eleitor paroquial, que participava somente da eleio

    primria , e simplesmente escolhia o eleitor com maisculas que iria, por sua parte, votar efetivamente

    no representante da provncia e da nao. para se participar d