A dimensão dialética da inclusão / exclusão no encontro com a...

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1 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Departamento de Psicologia A dimensão dialética da inclusão / exclusão no encontro com a deficiência Trabalho de conclusão de curso como requisito parcial para a obtenção do título de psicóloga Autora: Claudia Marques Comaru Orientadora: Mariângela da Silva Monteiro Professoras da banca de defesa: Ester Arantes e Maria Euchares Motta 27 de novembro de 2006

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Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Departamento de Psicologia

A dimensão dialética da inclusão / exclusão no encontro com a deficiência Trabalho de conclusão de curso como requisito parcial

para a obtenção do título de psicóloga

Autora: Claudia Marques Comaru

Orientadora: Mariângela da Silva Monteiro

Professoras da banca de defesa: Ester Arantes e Maria Euchares Motta

27 de novembro de 2006

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A dimensão dialética da inclusão/exclusão no encontro com a deficiência

Resumo O presente estudo visa compreender os mecanismos de exclusão e inclusão das pessoas

com deficiência na sociedade. Partindo da ótica da exclusão como um fenômeno social,

procura-se apreender o significado simbólico do termo, tendo como principal aliada a

História. O conceito de exclusão, cujo sinônimo referia-se inicialmente a questões

econômicas, tem seu sentido deslocado para conteúdos simbólicos e subjetivos, tais

como poder e controle. Os movimentos de inclusão das pessoas com deficiência visam

garantir-lhes os direitos do cidadão. Inúmeros documentos oficiais foram elaborados,

em diversos países, com a intenção de expressar a necessidade de melhores condições

de vida para essas pessoas, nos âmbitos legal e social. Em paralelo a isto, pretende-se

apresentar a dialética inclusão/exclusão, apontando para uma problematização do tema.

A partir do cotidiano da deficiência, vivido em dois estágios durante a formação de

psicóloga, e da dialética encontrada em tais práticas, busca-se a compreensão da

realidade vivida pelas pessoas deficientes. A análise histórica, via compreensão das

representações sociais da deficiência ao longo dos tempos, e dos movimentos

excludentes e includentes gerados pela sociedade, viabiliza pensar em novos modos de

apreender a vivência destas pessoas calcadas em suas próprias experiências. Neste

momento, cabe às instituições o dever de propagar concepções que quebrem com o

paradigma estabelecido até então, promovendo às pessoas com deficiência condições

dignas de viver em sociedade.

Palavras-chave: Dialética inclusão/exclusão – inclusão - deficiência

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Parecer sobre o Trabalho de Conclusão de Curso de Claudia Marques Comaru Título: A dimensão dialética da inclusão/exclusão no encontro com a deficiência O estudo desenvolvido por Claudia é resultado de sua busca em responder questões que a acompanharam desde as primeiras inserções no campo de práticas em Psicologia. Do estranhamento à conduta reflexiva, Claudia foi fazendo o caminho para a compreensão das relações sociais envolvidas nos processos de exclusão/ inclusão daqueles que encontrou num atendimento educacional para pessoas com deficiência. Através de uma abordagem crítica, a autora traz uma dimensão histórica para a análise dos fatos. Adotando uma perspectiva dialética, o tema é explorado de forma clara, com uma linguagem bem estruturada e coesa em seus propósitos. As referências teóricas são relevantes para a compreensão do texto, que se apresenta bem fundamentado. Em uma abordagem qualitativa de pesquisa, o estudo tem caráter interdisciplinar, aliando conhecimentos da Psicologia com outras áreas, tais como: a Sociologia, a Antropologia, a Pedagogia. Cabe ressaltar que a escrita do estudo não deixa de fora o sentimento e o compromisso ético e político de Claudia com a questão da inclusão daqueles que, institucionalizados, estão segregados. Trata-se de um estudo que aponta reflexões e caminhos para a atuação do psicólogo engajado, em especial, na luta por direitos humanos. Acredito que, assim como foi para Claudia, o trabalho possa contribuir para a formação de outros alunos e psicólogos comprometidos na constituição de uma sociedade mais igualitária e, portanto, menos excludente. Mariângela da Silva Monteiro Prof. Orientador

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Sumário Introdução ........................................................................................................... 5

I. As marcas da experiência .............................................................................. 7

II. Um breve histórico sobre a inclusão/exclusão social .................................. 12

2.1 - As faces da exclusão .................................................................................... 12

2.2 - A exclusão regulada pelo controle social ................................................... 18

2.3 - A resistência chamada inclusão .................................................................. 20

III. Excepcional? Deficiente? Portador de necessidades especiais? –

o sujeito frente à sociedade ........................................................................ 28

3.1 - As representações da deficiência ao longo da História .............................. 28

3.2 - A marca da diferença: o estigma ................................................................ 34

IV. Um novo paradigma para as instituições ................................................. 40

4.1 - A realidade das instituições hoje ................................................................ 40

4.2 - Inclusão: Uma questão de Direitos Humanos ............................................ 46

Conclusão .......................................................................................................... 52 Referências Bibliográficas ............................................................................... 53

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Introdução

A temática sobre a qual irei me debruçar no presente estudo provém das

experiências vividas na atuação junto a pessoas com deficiência. Fascinada pela

oportunidade de conhecer diferentes realidades em que o psicólogo pudesse atuar,

procurei uma instituição em que pudesse exercer o primeiro estágio. Logo após esta

experiência, iniciei um segundo estágio ainda nesta área, em outra escola. Estes

momentos abriram as portas para novas indagações.

Um estágio foi seguido de outro, diferente e com novas questões a despertar. A

principal delas se referia às propostas de inclusão que emergiam na mídia e nas escolas.

No entanto, as propostas se encontravam a milhas da realidade que vivenciava nos dois

estágios, desembocando em uma prática oposta à filosofia da inclusão.

A partir desses estágios, o interesse pelo tema aumentou progressivamente.

Participei de eventos, mostras de filmes sobre a deficiência; queria me aproximar do

outro, de modo a compreender um pouco mais de sua realidade sem a interferência de

terceiros. Nestes momentos notei a relevância desta discussão para a Educação, a

Psicologia, a Sociologia e para a sociedade em geral. A freqüência com que o tema é

colocado em debate atualmente aponta a emergência de uma mobilização que modifique

a realidade na qual vivem muitos brasileiros que possuem deficiência física ou mental.

A impossibilidade de freqüentar uma escola regular priva o sujeito da convivência com

as diferenças, aspecto fundamental para o desenvolvimento humano.

A escolha pelo tema surgiu da experiência vivida nos estágios, aliada ao desejo

de estudar um tema que permitisse reflexões psicossociais, inter-relacionando a

Psicologia com as relações sócio-culturais.

Eis um incômodo que, creio, foi um dos múltiplos fatores que motivaram o

estudo: grande parte do arcabouço teórico sobre a deficiência foi construída sem a

participação dos atores principais da cena. Interpretações são realizadas, conclusões

tomadas, e o sujeito deficiente permanece intacto, imóvel em seu lugar de não-lugar.

Percebo que tal mecanismo é encontrado em outras áreas do conhecimento, não

somente quanto à deficiência, porém considerando que é o objeto pelo qual discorro as

considerações a seguir; é sobre este que se voltam minhas preocupações.

Os questionamentos oriundos das “experiências de campo” finalmente

encontraram meios de serem elaborados. As conexões estabelecidas a partir da reflexão

sobre as experiências vividas, aliadas ao diálogo com os autores que trataram do tema,

possibilitarão preparar um campo fértil para futuras ações nesta área do conhecimento.

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De modo a explorar as experiências que despertaram o estudo aqui descrito, no

capítulo 1 relato as impressões e as sensações vivenciadas na relação1 com os sujeitos

deficientes. Pretendo com isso apresentar o campo do qual elaboro as reflexões, visto

que a minha fala traz consigo um lugar ocupado nas relações estabelecidas com o outro.

Assim, o estudo parte das minhas experiências de campo em que, ao lidar com o outro,

me fez pensar a deficiência, meus próprios limites, assim como as dinâmicas

institucionais. A experiência é, portanto, elemento mobilizador que move este estudo,

por isso início por ele.

Após apresentar a experiência vivida, no capítulo 2 estabeleço um diálogo com

autores que descrevem teorias acerca da exclusão social em todos os tempos; descrevo

movimentos que lutaram pelos direitos da pessoa deficiente, que podem ser

considerados como movimentos em defesa da inclusão. Apesar de apresentados

separadamente – para fins didáticos – a dialética exclusão/inclusão permanece presente

nas ações da sociedade; uma luta contínua que indica a persistência na construção de

uma sociedade capaz de viabilizar oportunidades a todos.

Visando aliar novamente a teoria à prática, descrevo as representações sociais da

deficiência ao longo dos séculos; revelando atitudes e crenças sobre o sujeito deficiente.

Aliado às narrativas das representações do deficiente, o confrontamento com o diferente

e a marca do estigma são os temas trabalhados no capítulo 3.

Por fim, apresento no capítulo 4 a realidade das instituições perante a

deficiência; aponto caminhos que vêm sendo trilhados na construção de uma sociedade

fiel à ideologia da inclusão. Na verdade, o ideal que almejo crê na construção de uma

sociedade em que não fosse necessário pensar na idéia de inclusão. Como, entretanto,

“ao pisar os pés no chão” percebo que os fatos são bem diferentes do ideal sonhado,

mantenho acesa a motivação que move a saga rumo a realidades distintas, singulares e

significativas para cada sujeito.

1 Percebo que só é possível mudar a realidade excludente nos dias atuais com o estabelecimento da relação; caso contrário, manteremos uma dinâmica hierarquizada liderada pelos ditos “normais”.

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1. As marcas da experiência

Se continua nos interessando ficcionar o passado, é para nos

dotarmos de uma contra-memória, de uma memória que não

confirma o presente, mas que o inquieta; que não nos enraíza

no presente, mas que nos separa dele. O que nos interessa é

uma memória que atue contra o presente, contra a seguridade

do presente.

Jorge Larrosa e Carlos Skliar2

No primeiro contato com a escola na qual iria estagiar, a diretora demonstrou

interesse que eu trabalhasse como auxiliar em uma sala que atendia alunos com

Autismo. A surpresa foi grande, pois desconhecia o assunto da deficiência tão como as

teorias acerca do Autismo. O desconhecimento acerca da realidade da deficiência, ao

lado dos exemplos de situações complicadas vividas por colegas que atuaram na área,

realçavam ainda mais o temor frente à diferença.

A escola localizava-se na zona sul do Rio de Janeiro, voltada à população de

baixa renda. Sua filosofia visava à inclusão de pessoas deficientes, ainda que possuísse

classes especiais - dentre elas a que estagiei. O discurso da escola acerca da inclusão

referia-se à capacitação profissional, através de convênios com instituições do bairro. A

distância entre o ideal da inclusão e a prática educacional era refletida, então, nas

atitudes para com os alunos.

Imaginei, portanto, a primeira cena a minha espera: entrar na sala onde se

encontravam os alunos, todos virados para a parede. Nenhum contato, nenhuma

comunicação. Na época, o pouco que conhecia do Autismo era suficiente - no meu

ingênuo entender - para despender considerações acerca da síndrome. O senso comum

destaca o aspecto da falha na comunicação, com a imagem clássica do sujeito mudo

balançando-se para frente e para trás. O encontro com o diferente, tão ameaçador e

temido, estava prestes a acontecer. O temor proveniente do estranhamento beirava o

medo de sofrer alguma agressão, ao lado do receio da perda de controle. O que fazer? O

que esperar? Foram as perguntas que pairavam no ar a espera de respostas. O cotidiano

tratou de ensinar-me dia após dia, a lidar com as diferenças, e antes de tudo, com a

estranheza. Aos pouco ia me tornando uma informada, como destaca Goffman, ao se

referir àqueles que vivem cotidianamente com os estigmatizados.

2 LARROSA, J., SKLIAR, C. Babilônios somos. A modo de apresentação. In: Larrosa, J., Skliar, C. (orgs.). (2001). Habitantes de Babel – políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica. p. 7.

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Para minha surpresa, a turma era composta não somente por alunos com

Autismo, como também Síndrome de Down e Retardo. Podemos observar na afirmação

da diretora sobre a “turma de autistas” o fenômeno totalizante da doença, quando todos

os alunos são classificados como autistas, apesar de portarem outras síndromes. Talvez

o rótulo Autismo carregasse o significado da necessidade de cuidados especiais. Mesmo

assim, o discurso da escola (e muitas vezes a ausência dele) renegava a turma,

deixando-a em segundo plano.

O espaço em que a turma se localizava – uma salinha escondida no terceiro

andar da casa, no pátio onde todas as crianças brincavam no recreio – demonstrava

claramente a postura da escola com essa turma. Na hora do recreio, alguns alunos da

turma interagiam com os alunos que não possuíam comprometimento: através de

brincadeiras conhecidas por todos. A relação estabelecida entre os alunos, deficientes e

não-deficientes, me comoveu. Para quem apostaria assistir a gozações por parte das

crianças das outras turmas, ter presenciado cenas de colaboração e compreensão foi

gratificante.

A ausência de metodologia que auxiliasse o trabalho foi motivo de preocupações

e indagações acerca da prática e de suas possíveis implicações. Seria a minha atitude

ética? – pensava. Assim, me encontrava não em uma brecha pedagógica, mas sim em

um abismo de descaso por parte do corpo escolar. Felizmente, acreditávamos que os

entraves impostos pela instituição não impediam o exercício de uma prática na escola.

Passamos então a criar modos de lidar, meios de nos comunicar dentro da turma. E a

partir do momento em que ampliamos os horizontes, criando possibilidades, recebemos

respostas. Tais respostas viabilizaram um espaço de troca através de brinquedos, tintas,

brincadeiras.

Descobri e pude adentrar outros mundos: um menino que chama a minha

atenção beliscando, um que imprime as mãos no papel, um que demonstra que quer que

eu jogue bola com ele, um que ri muito fazendo embaixadinhas, uma menina que ri ao

dançar músicas da Xuxa. O interesse por viajar através desses mundos me trouxe

valiosos aprendizados ao tempo em que apurou minha compreensão sobre o outro.

Conhecer implica um movimento duplo: querer conhecer o outro, se permitir ser

conhecido. E na dialética tecida por nós foi possível compreender a importância da

inclusão destes indivíduos na esfera de seres humanos, pois até mesmo nesta esfera eles

são comumente excluídos. Aprendi com eles parte do ofício de ser psicóloga.

Com a saída de muitos alunos por conta da idade, a escola decidiu fechar a

turma. As famílias, apreensivas na dúvida de para onde levar os filhos, procuravam

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outras escolas que os aceitassem, sendo muitas vezes a escola especial a solução.

Porém, a escola especial geralmente possuía alto valor de mensalidade, que as famílias

da escola onde estagiei não podiam pagar. A aceitação de uma pessoa com necessidades

especiais custa caro.

Posteriormente, comecei a estagiar em uma escola especial, também localizada

na zona sul do Rio de Janeiro, porém voltada para classe de alta renda. A escola era

destinada a pessoas com Autismo, em que as turmas eram divididas por faixa etária e/ou

grau de comprometimento. Uma escola com boa infra-estrutura e metodologia

específica: o oposto do que havia vivenciado até então. Fui alocada em uma sala onde

trabalhei como auxiliar juntamente com outras duas profissionais – uma segunda

auxiliar e a professora da turma. A sala, igualmente àquela da instituição anterior,

encontrava-se escondida se comparada às demais. Em geral, o grau de

comprometimento dos alunos desta turma era mais severo que o dos alunos com os

quais estive na escola anterior; talvez esse o motivo do meu receio no início, pois

acreditara “ter o terreno já conhecido”. Todos os seres humanos, singulares e únicos,

possuem liberdade suficiente para refazer-se, recriar-se. Até o momento em que a

aproximação do outro, com seus preconceitos e expectativas, provoca a rigidez dos seus

pares.

Apesar da boa infra-estrutura da escola, com uma aparência bonita e atraente, a

sala de aula não suportava o elevado número de alunos; isso prejudicava o trabalho, e

estressava tanto a nós quanto aos alunos, que praticavam pouca atividade física durante

todo o dia. A impressão de vê-los presos à instituição me acometeu durante todo o

período de estágio. A exclusão que sofriam dentro da própria instituição era marcante.

Certa vez soube que existia a prática de passear com eles pelo bairro, porém a direção

deixou de estimular esses passeios. Em outro momento, contaram que ao pedirem para

que a turma usufruisse a área externa da escola, onde se encontravam brinquedos e

bancos ao ar livre, ouviram a resposta de que eles não poderiam descer por serem feios,

prejudicando assim a boa imagem da escola. A lógica do lucro se fazia presente a todo o

momento em todas as práticas desta escola. Os alunos eram garantia de dinheiro certo e

a manutenção deles, presos e disciplinados (como os “corpos dóceis” remetendo

novamente a Foucault) garantiria a continuação do processo que visa incluir para

excluir.

Em outro momento, ouvi que a imagem da turma em que eu trabalhava indicada

ser esta a pior turma da escola, que despendia mais trabalho. A afirmação ecoou nos

meus ouvidos durante todo o período de estágio; questionava-me do porquê dessa

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afirmação e se os profissionais que diziam isso haviam trabalhado na turma ou se

proclamavam suas verdades sem conhecimento de causa. Um clima de rejeição

mantinha a distância os sujeitos daquela turma, que por um momento me fez acreditar

que sua permanência na escola respondia a seu valor financeiro.

Na contramão da dinâmica que existia na instituição, à medida que convivia com

eles assistia a desconstrução de todos os meus pré-conceitos, um a um. As noções de

“progresso” e “retrocesso”, comuns nas avaliações, ainda faziam parte do meu

vocabulário, porém seguidos fielmente pelo questionamento. Da mesma forma que os

conceitos (como também diagnósticos) tentam apreender o fenômeno, encerram e

limitam sua potência. Como descreverei nos próximos capítulos, os conceitos são

ferramenta eficaz no diagnóstico e apreensão do fenômeno deficiência. Porém, uma

interpretação possível da conceituação encerra nesta um fim em si mesma. O conceito

torna-se uma instância inquestionável. Além da conceituação, a prática da descrição do

comportamento de cada aluno – própria dos relatórios periódicos – em que se enfatizava

as estereotipias, impedia a compreensão da totalidade do indivíduo e das suas relações

com o mundo. Ainda na temática da função totalizante do conceito, trago um exemplo

vivenciado por mim e que apresenta claramente o explicitado há pouco. Um aluno

costumava nos beliscar e arranhar com freqüência. Porém, eu fiquei doente e passei um

tempo afastada da escola; ao retornar, comentei com a psicóloga da instituição acerca do

comportamento do aluno; se ele ainda estava arranhando. Porém, o aluno estava ao lado

dela, e ao ouvir meu questionamento, pôs-se a me arranhar. Percebo ter considerado que

ele não ouvisse por um momento. Eis que ele veio em minha direção e arranhou, como

se dissesse: não sou surdo!

O reconhecimento desses sujeitos não somente como alunos, mas também como

cidadãos que possuem direitos e merecem respeito, é fundamental para que possamos

alimentar a sociedade com valores que respeitem a diversidade da espécie humana. Para

muitos, enxergá-los significa estar frente a seus próprios limites, difíceis de ultrapassar.

Um dos grandes aprendizados consiste em conceber a diferença como inerente à espécie

humana, sendo o deficiente parte do espectro de diferenças que carregamos entre nós.

Algumas diferenças são perceptíveis a nossa visão, outras não. Não pretendo com isso

minimizar a questão da discriminação do deficiente, mas avistar uma dentre muitas

possibilidades de enxergar o mesmo objeto.

Pude perceber como os valores depositados nos alunos determinaram a maneira

de como lidavam com eles e o modo deles se expressarem. O atestado da incapacidade

era carregado por cada um, mantidos à margem dos incluídos da escola. De acordo com

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a profecia auto-realizadora, teoria difundida em Psicologia Social, fica evidente sua

aplicação neste contexto. A teoria em questão “consiste na exibição de um padrão de

comportamentos que, guiado por esquemas, faz com que a pessoa alvo deste

comportamento seja influenciada por ele e responda de forma coerente com as

expectativas” (Rodrigues, Assmar & Jablonski, 2002, p. 82). Deste modo, as poucas

expectativas destinadas aos alunos eram respondidas à altura.

Após essas experiências, carregando as marcas e reflexões que trouxe de cada

uma delas, conheci a filosofia da inclusão. A resistência por parte de alguns

profissionais de assimilar esta filosofia demonstra a negação de uma questão anterior, a

diversidade humana. Por outro lado, a prática da inclusão não garantia a inclusão das

pessoas deficientes. As relações institucionais eram decisivas para reverter o curso dos

processos excludentes. Assim, as marcas “falam” de incansáveis tentativas de

resistência contra incansáveis tentativas de assujeitamento.

O objetivo deste estudo é problematizar as categorias de inclusão e exclusão

através de pesquisa bibliográfica, aproximando a discussão para a seara da deficiência

de acordo com as experiências dos estágios realizados. Como principal foco de reflexão

aponto a dialética das duas categorias presentes nas relações sociais com vistas a

apresentar a realidade tal como a vivemos. Priorizar um aspecto em detrimento do outro

omitiria conteúdos fundamentais da análise em questão.

O desafio que enfrento ao produzir este trabalho, no entanto, consiste em

produzi-lo da prática à teoria. A partir da prática vivenciada e do conteúdo do que

equivaleria ao “diário de campo” utilizado na pesquisa exploratória, no qual escrevia as

impressões e os percalços do dia-a-dia nas instituições, pude levantar as reflexões

presentes com exemplos vivenciados no cotidiano do trabalho. Portanto, embaso tais

questões emergentes nos autores que problematizam a dialética inclusão/exclusão.

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2. Um breve histórico sobre a inclusão/exclusão social

Será que aquilo que a gente vê é mesmo aquilo que a gente vê?

Ou a gente vê não o que olha, mas a relação com aquilo que

olha? Se for assim, quando se olha alguém ou alguma coisa,

olha-se também para dentro de si mesmo.

Luiz Eduardo Soares3

2.1 – As faces da exclusão

Com o objetivo de iniciar uma reflexão acerca dos mecanismos de

inclusão/exclusão frente àqueles que possuam alguma necessidade especial, pretendo

apresentar as principais referências sobre a exclusão e inclusão social através dos

tempos. A crença de que a sapiência do passado nos munirá de ferramentas capazes de

melhor compreender as dinâmicas existentes no presente permitirá uma análise ao

mesmo tempo micro e macro da temática estudada.

As sociedades criam mecanismos capazes de manipular a parcela da população

que escapa à regra da normalidade, instaurada e mantida pelo tecido social. Desde

práticas revestidas pelas boas intenções calcadas no assistencialismo e na caridade, até

aquelas que visam a proteção da sociedade da doença e da patologia, a exclusão se

apresenta como objetivo maior. Em um sentido oposto, a partir da década de 90 o

movimento de inclusão ganha espaço, questionando as práticas excludentes através da

proposta de uma sociedade inclusiva, em que todos tenham seus direitos garantidos

como cidadãos. Todavia, o encantamento provocado pela filosofia da inclusão

igualmente é passível de reproduzir a exclusão através de uma prática insuficiente

sustentada por “aparências” como, por exemplo, a inclusão de um aluno com

necessidades especiais em uma classe regular de ensino sem o mínimo de suporte para

seu desenvolvimento como estudante.

Como superar essa realidade? – é a pergunta que emerge e clama por resposta.

Talvez não haja uma única saída, visto que a solução se apresenta por meio de práticas

cientes da dialética existente entre as duas instâncias que à primeira vista parecem

opostas. Acredito no manejo da inclusão/exclusão como uma prática acima de tudo

ética, tendo em vista as raízes do povo brasileiro, marcado desde seu nascimento por

tais nuances.

3 SOARES, L. E., MV BILL, ATHAYDE, C. (2005). Cabeça de porco. Objetiva. Rio de Janeiro. p.172.

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Antes de nos atermos às apropriações do termo exclusão, voltemos aos

significados do termo, designados por Ribeiro (1999). Desde sua definição no

Dicionário de Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, em que a exclusão é

definida como “o ato pelo qual alguém é privado ou excluído de determinadas funções”,

é possível perceber os limites conceituais que permeiam todas as análises posteriores.

Na composição da palavra, o prefixo “ex” denota separação e corte. Conclui-se que, no

social, o excluído é colocado para fora de um sistema que impede qualquer tentativa de

relação. Os excluídos querem entrar no sistema enquanto os incluídos vivem sob eterna

vigilância, na ameaça de serem os excluídos amanhã.

A categoria exclusão responde a uma demanda criada a partir da segregação de

certas populações, por razões diversas. Acredita-se que o termo surgiu na França a partir

da década de 50, na tentativa de explicar o aumento do contingente populacional que se

encontrava fora do sistema laboral. Portanto, as abordagens utilizadas para compreender

a exclusão correlacionavam a categoria à pobreza, desemprego, desescolarização,

trazendo à tona a necessidade de questionar a abrangência da categoria no que concerne

a explicar tais fenômenos sociais.

O cenário mundial da época, no período pós-Segunda Guerra, possibilitou a

utilização do termo marginalidade a fim de dar conta dos problemas sociais emergentes.

O crescimento da população latino-americana na periferia do espaço urbano favoreceu a

denominação de marginais aos seus habitantes. A variedade de significados que o termo

apresentou a partir de então aponta para múltiplas áreas. Inicialmente, algumas

abordagens focavam a questão ecológica quanto ao distanciamento destas regiões ao

acesso dos serviços comunitários como esgoto e saneamento; outras se voltavam para os

conteúdos psicológicos de dependência e não-pertencimento, expressão das dificuldades

sofridas no processo de marginalização que desembocariam em uma crise quanto à

identidade cultural; por fim consideraram a marginalidade como uma conseqüência

natural do atraso do desenvolvimento econômico em países subdesenvolvidos.

Segundo a interpretação sociológica, a marginalidade pode ser vista por duas

perspectivas: o estruturalismo funcionalista e o estruturalismo histórico. No primeiro, a

marginalidade corresponde a não-adequação do indivíduo ao todo social cuja

assimilação se processa através de adequações que visem a integração sem que o social

seja modificado; o ponto de vista histórico concebe a assimilação dos contingentes

populacionais como um processo turbulento, apoiado na crença de que o surgimento das

parcelas marginais nas cidades seria um fenômeno inerente ao sistema capitalista

(Maiolino & Mancebo, 2005). Embora as perspectivas citadas impossibilitem qualquer

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questionamento – e possível reformulação - sobre o meio que exclui, ambas são

comumente utilizadas nas discussões atuais. O desafio consiste na mobilização dos

indivíduos contra a naturalização dos aspectos aparentemente estruturais da sociedade.

A exclusão torna-se invisível aos nossos olhos burgueses,

ferindo os ideais humanistas e solidários com nossos

semelhantes. Esta é a marca mais visível dos processos de

exclusão deste milênio, no qual a capacidade de espantar-se e

indignar-se são perdidas por parte da sociedade. 4

O livro Lês Exclus5, de René Lenoir, é considerado como um marco inicial ao

introduzir o termo “exclusão” nas análises da época. Como principais fatores

catalisadores deste processo estavam: o ritmo acelerado do processo de urbanização, a

uniformização do sistema escolar e as desigualdades de renda. Assim, a exclusão pode

ser vista como um fenômeno presente em grande parte da população mundial em

conseqüência do cenário econômico vigente, em que os debates econômicos e políticos

traziam a luta de classes e desigualdade como conceitos-chave (Schnapper apud

Wanderley, 2002).

A exclusão social nos anos 70 denunciava a dinâmica excludente no âmbito

cultural e simbólico, apresentando ainda o teor das discussões centradas na pobreza

(Ribeiro apud Oliveira, 1997). Outros autores denominam a exclusão como “a nova

questão social”; uma questão multifacetada emergente do contexto social da época.

A contribuição de autores norte-americanos colaborou para reforçar a idéia da

pobreza como sinônimo de migração, no caso brasileiro do Nordeste para o Sudeste. A

migração, portanto, seria a causa dos problemas sociais existentes, como o aumento da

mendicância e delinqüência, dentre outros. Na luta pela sobrevivência todos os

competidores, assim como em um jogo, teriam iguais condições de vencer. Aqueles

mais preparados venceriam, ocupando os melhores lugares. Os perdedores - os mais

pobres – tenderiam a cair de posição, alocando-se em zonas periféricas de desordem

social e moral.

4 Citação extraída de trabalho intitulado “A inclusão excludente de crianças ‘anormais’ em classes regulares no contexto brasileiro” apresentado no III Encontro da ABRAPSO-Rio pelo grupo Devir Criança, da Universidade Federal Fluminense, em novembro de 2004, p.4. 5 RENOIR, L. Lês Exclus. Paris, Lê Seuil, 1974.

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A exclusão passou a integrar os debates políticos dos anos 90, pautada na

relação direta com a condição social dos indivíduos excluídos. No entanto, a análise da

exclusão a partir de realidades como desemprego e pobreza deve ser diferenciada

daquela pautada nos processos históricos fundantes da categoria que graduam as faces

da exclusão na realidade. Oliveira (apud Ribeiro, 1999) igualmente reforça as

contradições existentes, em que o conceito perde sua forma original. Assim, concebe

que as interpretações se complementam. A concepção causal antidualista

complementaria uma reflexão ética e política que irá repensar o modo que estamos

construindo nossa sociedade.

É inegável a importância da herança histórica que fortemente encaminha o curso

dos acontecimentos. Todavia, a justificativa da exclusão pautada nos fatos sociais de

uma sociedade pode, por vezes, tender ao determinismo social. A pretensão de uma

análise do fenômeno aqui estudado consiste em aliar diferentes saberes em prol da

construção de um corpo de conhecimento que fuja de “tendeciosidades”.

Paugam (2002) trata do termo desqualificação, mostrando que a exclusão

caminha no sentido contrário ao da integração social. Ao Estado caberia a adoção de

políticas a fim de garantir a coesão social. Tais políticas, no entanto, apresentam-se

geralmente como de cunho assistencialista, reforçando a atitude caritativa para com

aqueles que necessitam de auxílio. A pobreza deixaria de se vincular à questão da renda

para ser classificada como a ausência de assistência social. Eis um exemplo do processo

estigmatizante que perdura até os dias atuais; onde os sujeitos desqualificados merecem,

por conta de seu estado de descrédito, o recebimento de bem feitorias. O processo de

desqualificação pelo qual alguns indivíduos passam é acompanhado da perda dos

vínculos familiares, visto que o confrontamento com as figuras emocionalmente

importantes neste momento de fragilidade traz enorme angústia e vergonha.

O movimento responsável por desviar o foco das análises na pobreza contou

com Gaujelac e Leonetti (1994) 6, que refletem sobre a desinserção. Os aspectos

objetivos da desinserção são analisados ao lado dos aspectos subjetivos, de ordem

simbólica. A definição dos “fora de norma” é regida pela sociedade a partir de seu

sistema de valores.

Com o objetivo de caracterizar aqueles que sofrem uma ruptura de

pertencimento e vínculo social, Castel (apud Wanderley, 2002) discorre sobre a

desafiliação. Aqui, a ênfase dada incide sobre ausência de vínculo ligado à rede

6 Citado por WANDERLEY, M. (2002)

1616

estrutural, que possui sentido. O autor discorda do uso do termo exclusão pela

generalidade com a qual é utilizado, da mesma forma em que desconfia do peso e valor

que a categoria de análise possui. Deve-se ter o cuidado necessário ao classificar os

processos, a fim de evitar concepções paradoxais e incoerentes. Segundo Julien Freund

(1993):

A noção de exclusão está tendo o destino da maior parte dos

termos consagrados atualmente pela mediocridade das modas

intelectuais e universitárias. Alguns consideram que está

saturada de sentido, de ‘non sens’ e de contra-senso; (...) A

leitura da imprensa é particularmente instrutiva desse ponto de

vista, pois, ela é mais do que o espelho de nossa sociedade

(apud Wanderley, 2002, p.17).

Os atores do processo de ruptura do vínculo social e, portanto, da exclusão, são

as pessoas idosas, os deficientes, os desadaptados sociais, as minorias étnicas ou de cor,

desempregados e jovens que não estão inseridos no mercado de trabalho, enfim, todos

os sujeitos que em algum momento vêem-se impossibilitados de atuar na sociedade por

uma imposição da própria sociedade em que vivem.

As tentativas de dominação de segmentos excluídos da teia social se repetem no

decorrer dos anos no Brasil. Em todas as épocas da história, conceitos que dessem conta

dos processos sociais excludentes foram elaborados. A noção de exclusão social aparece

no Brasil nas produções de Hélio Jaguaribe nos anos 80, em que o fim do “milagre

econômico” é visto como o disparo de formas perversas da desigualdade econômica.

Segundo Sposati (apud Wanderley 2002), a discriminação no Brasil é de âmbito

econômico, cultural, político e étnico, culminando por fim na exclusão propriamente

dita. Tal processo atinge a coletividade através da pobreza, discriminação,

subalternidade, não eqüidade, não acessibilidade, não representação pública. Na

realidade brasileira atual a população é incumbida a lutar pela cidadania, que de forma

ilusória lhe é intrinsecamente conferida.

A partir dos anos 80, as reflexões passaram a considerar a questão da

democracia, da falência das políticas sociais, dos movimentos e lutas sociais. Na obra

de Santos (apud Veras 2002), as relações entre espaço e cidadania no Brasil são

analisadas. O terceiro mundo, segundo o autor, possui “não cidadãos” por ter adentrado

na sociedade de consumo, na mercantilização e monetarização; portanto, o espaço

1717

ocupado pelo indivíduo na sociedade será determinante para a construção da cidadania.

A realidade brasileira contraria a máxima citada, pois a precariedade de serviços

públicos básicos obriga o deslocamento de parcela da população à procura do mínimo

de assistência na área da Saúde e Educação.

Santos (apud Veras 2002) considera o tema da desigualdade social

preocupando–se em diferir a esfera socioeconômica, na qual Marx seria o grande

teórico, da esfera sócio-cultural, relacionada às questões simbólicas e morais, em que a

exclusão seria o cerne das discussões despertadas por Foucault. O conceito de diferença

é trazido para explicar os desviantes da norma, construindo assim a estrada rumo à

exclusão. Contudo, as relações sociais podem ser confrontadas com a noção de Estado –

Estado Providência ou Estado Mínimo. Dessa forma, as diferentes visões sobre as

relações sociais podem ser tanto universalistas quanto diferencialistas, combatendo a

exclusão ou desigualdade de acordo com a relação mantida com a diferença.

A pobreza muitas vezes é concebida como sinônimo de exclusão. Atualmente,

no entanto, apresenta um espectro amplo que pode variar da ausência de direitos básicos

à discriminação. A renda deixa de ser o fator determinante na dinâmica da pobreza. Do

mesmo modo, o poder de representação e ação do cidadão, quando impedido, demonstra

a exclusão social na ótica de um perigo à democracia.

Nascimento (apud Ribeiro, 1999) conclui que a Sociologia propõe a reflexão

sobre a exclusão em uma tentativa de apontar a perda do “direito de ter direitos” (p.44),

a intolerância quanto à diferença e a perda dos direitos outorgados pelo Estado de bem-

estar social. Igualmente denuncia a mercantilização da cidadania (ser cidadão) pela

impossibilidade de manter trocas pela moeda corrente.

A exclusão, segundo Sawaia (apud Veras 2002), não deve ser pensada como

uma fatalidade, e sim como produto das contradições do capitalismo. Vivenciar o

paradoxo apresentado é a saída para perceber as contradições existentes no agir. É do

interesse dos “guardiões da ordem” que os seres passivos da exclusão, os excluídos,

desmotivados a buscar meios de serem incluídos, não atuem na promoção de

oportunidades. Em lugar disso, assumam as dificuldades próprias de estarem juntos.

Segundo Ribeiro (1999) “o uso da categoria pode implicar a aceitação da ordem que

exclui, uma vez que a luta pela inclusão é também uma luta para manter a sociedade que

produz a exclusão” (p.43).

1818

2.2 - A exclusão regulada pelo controle social

A estrutura social - dotada do poder que lhe confere o direito de direcionar a

vida em sociedade - seleciona e submete os indivíduos à norma instaurada. A submissão

imposta aos indivíduos é destrinchada por Foucault, afetando o corpo teórico das

Ciências Sociais de forma a instaurar uma outra compreensão voltada para as relações

presentes na sociedade – relações essencialmente permeadas pelo poder.

Foucault (2004) descreve o mecanismo da disciplina imposta aos corpos em

meados do século XVII. O corpo, descoberto como instrumento de controle, passa a ser

manipulado conforme as intenções de aumento das forças convenientes à máquina. O

sentido de docilidade recai sobre a capacidade de submissão de um objeto como o

corpo. O controle imposto sobre o corpo atua em cada parte, minuciosamente. A

economia dos movimentos e a atenção quanto à rapidez dos gestos visa a eficácia. O

acompanhamento e intervenção em cada processo são mais importantes que a atuação

sob o “produto final”.

Assim, as modalidades de coerção do corpo chamadas disciplinas, existiram

durante a História nas instituições escolar, hospitalar e militar. No entanto, o manejo da

disciplina atuava de modo diferente ao da escravidão, sendo esta uma apropriação

violenta dos corpos. Na disciplina, a relação estabelecida com o corpo o garante como

objeto e aliado. O poder do corpo é dissociado de forma a este ser eficiente na

habilidade desejada ao mesmo tempo em que imobiliza a potência advinda desse

investimento.

A manutenção da disciplina se garantia através das técnicas que incidiam sobre

os detalhes. A “disciplina do minúsculo” (Foucault, 2004, p. 120) atuava nas

instituições visando a normatização do comportamento dos indivíduos. A importância

da minúcia que incidia nos regulamentos, inspeções, no controle do corpo e das

atividades revelavam o modelo de homem esperado.

A Ciência ocupou uma posição decisiva na criação de métodos para a detecção

de anomalias visando à profilaxia. Os testes psicométricos foram – e são até hoje

utilizados – em diferentes instituições com o intuito de apontar os indivíduos que

escapem à normalidade. Esta seria uma maneira de proporcionar visibilidade suficiente

ao que se encontrava invisível. Tendo em vista a naturalização produzida pelo convívio

neste contexto, os movimentos contrários a tal tendência são suprimidos e seus atores

tomam uma postura de resignação.

1919

O controle social apresenta-se como o meio mais eficaz para discriminar os

sujeitos de acordo com suas capacidades. Vemos que as categorias exclusão e inclusão

apresentam-se como naturalizadas, mesmo possuindo sentidos opostos. Para apresentar

essa contradição, Foucault apresenta os exemplos necessários para confirmar esta

máxima: dois grandes surtos – de lepra e peste – que assolaram as cidades européias na

Idade Média exemplificam a maneira com que lidavam com os indivíduos doentes

objetivando o controle da epidemia. No caso da lepra, o meio encontrado pelas

autoridades previa excluir os doentes da área física da cidade, evitando a contaminação.

A imagem da cidade partida pretendia “proteger” a população saudável das mazelas. 7

Portanto, as separações estabelecidas nas instituições carregam consigo duas

funções; uma real e outra ideal. Segundo Foucault, real por modificarem fisicamente o

espaço, ideal devido os valores intrínsecos a tais categorias e divisões.

Entretanto, o controle incide sobre o espaço e em paralelo sobre a atividade, em

que o tempo é controlado, estabelecendo uma seqüência rígida de ações que devem ser

seguidas. A docilidade existe em cada movimento esperado para que a atividade seja

plenamente efetuada. A macro e microfísica do poder, denominados por Foucault,

incidem sobre um corpo manipulado tal qual um objeto; que tem suas capacidades

repartidas enquanto suas forças são canalizadas para um determinado fim.

A história brasileira, por sua vez, contém capítulos reveladores que reforçam

uma interpretação favorável à idéia do Brasil como depósito do excedente. Segundo

Lobo (1997), na época do descobrimento do Brasil, Portugal destinava aqueles sujeitos

indesejados em sua terra natal para as terras brasileiras. Com isso, nossas terras além de

consideradas “terras de ninguém”, tornaram-se o destino das pessoas transviadas e

trangressoras da norma. De modo a instaurar a ordem no Brasil, foram criados

mecanismos de controle através das instituições, das visitas inquisitoriais e das

iniciativas da caridade como as Santas Casas de Misericórdia.

Contudo, a sociedade brasileira desde sua formação teve o destino traçado: um

povo permanentemente em dívida com seus senhores que, instituídos do dever de

regular os modos de vida segundo regras arbitrárias, instauram modelos inalcançáveis

de normalidade. A chegada da família real portuguesa inicia um processo que, aliado à

influência do saber médico em iminência no Brasil, dispara o movimento higienista. O

movimento da segunda metade do século XIX visava a educação das famílias da época

seguindo preceitos médicos que orientavam quanto à boa conduta e os bons hábitos. 7 Considerações extraídas do trabalho “A inclusão excludente de crianças ‘anormais’ em classes regulares no contexto brasileiro” apresentado no III Encontro da ABRAPSO-Rio pelo grupo Devir Criança, da Universidade Federal Fluminense, em novembro de 2004.

2020

A supressão da individualidade dos sujeitos em prol da homogeneização

demonstra a origem de práticas vigentes no trato com pessoas com necessidades

especiais. O controle imposto sobre estes os mantêm imobilizados perante o poder do

saber institucional.

2.3 – A resistência chamada inclusão

Nas últimas décadas, inúmeras e significativas têm sido as reflexões acerca da

inclusão de pessoas com deficiência na sociedade. A inclusão do diferente tornou-se o

ponto central das discussões sobre a deficiência em todo o mundo.

A tendência atual mostra a democratização do debate sobre o tema restrito

anteriormente às instituições especializadas ou eventos da área, e agora difundido por

todos os espectros da sociedade, ganhando espaço inclusive na mídia visual e escrita.

Parcelas da sociedade vêm promovendo encontros que viabilizem a promoção de

políticas que incluam a pessoa com deficiência nas ações promovidas pelos governos.

A Declaração dos Direitos da Criança, elaborada em 1959 pela Organização das

Nações Unidas, enuncia a igualdade de todas as crianças como iguais e detentoras de

direitos independentemente de raça, cor, etnia, língua, credo, origem nacional ou social.

Restabelecendo a Declaração de Genebra, datada de 1924, reitera em seu Princípio 5o:

“à criança incapacitada física, mental ou socialmente serão proporcionados o

tratamento, a educação, e os cuidados especiais exigidos pela sua situação peculiar”. 8

No entanto, seu caráter universal é contraposto ao que se apresenta em um de

seus artigos. A distinção estabelecida quanto aos deficientes aparece através do corte

que separa os normais dos anormais, em um caminho contrário à ideologia defendida.

Qual a finalidade de separar “textualmente” as crianças que possuam alguma

dificuldade aparente, seja cognitiva ou motora? Porventura, a inexistência de tal

indagação seja flagrante da imagem que possuem do sujeito deficiente.

Nos anos 70, a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, aprovada na

Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, conceitua o termo deficiente:

8 Texto retirado do site http://www.saci.org.br/?modulo=akemi&parametro=11273&s=documentos, acessado em 17 de outubro às 16:54hs.

2121

O termo "pessoas deficientes" refere-se a qualquer pessoa

incapaz de assegurar por si mesma, total ou parcialmente, as

necessidades de uma vida individual ou social normal, em

decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas

capacidades físicas ou mentais. 9

A Declaração enfatiza a condição humana das pessoas com necessidades

especiais, gozando estas dos mesmos direitos de seus concidadãos. Ressalta ainda a

desaprovação ao tratamento diferenciado que possa ser destinado ao deficiente por parte

de sua família ou das instituições especializadas nas quais o indivíduo convive.

O marco inicial do movimento em prol da inclusão pode ser considerado a

criação do Ano Internacional das Pessoas Deficientes (AIPD) em 1981, pela

Organização das Nações Unidas, em que a noção de sociedade inclusiva permeou o

pensamento da época. Em seguida foi instaurada, de 1983 a 1992, a Década das Nações

Unidas para Pessoas Portadoras de Deficiência. Neste período, os pilares ideológicos,

éticos e políticos foram erigidos, garantindo aos próximos eventos a possibilidade de

avançar nos ideais inclusivos.

O crescimento da criança com necessidades especiais na sociedade implica

pensar em seu futuro ingresso no mercado de trabalho. Com tal intuito, foi convocada a

69° reunião da Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho, em 1983,

a fim de elaborar os princípios que delimitassem os principais objetivos nesta seara. De

forma a esclarecer o perfil do sujeito para o qual se voltava pelos preceitos descritos,

prediz-se como “todas as pessoas cujas possibilidades de obter e conservar um emprego

adequado e de progredir no mesmo fiquem substancialmente reduzidas devido a uma

deficiência de caráter físico ou mental devidamente comprovada” (Artigo1)10.

A reabilitação do deficiente ao mercado de trabalho tem como principal objetivo

a permanência do sujeito no emprego, assim como a integração à sociedade. No entanto,

o artigo 4 adverte quanto à tomada de medidas “especiais” a favor do deficiente; de

modo que não sejam interpretadas pelos demais como discriminação às avessas.

Ainda em 1983, a Declaração de Cave Hill prossegue com a reflexão acerca da

sociedade como um espaço de livre acesso para o deficiente. Promulgada durante o

Programa Regional de Capacitação de Líderes, da Organização Mundial de Pessoas

9 Texto retirado do site http://www.saci.org.br/?modulo=akemi&parametro=11273&s=documentos, acessado em 17 de outubro às 16:54hs. 10 Texto retirado do site http://www.saci.org.br/?modulo=akemi&parametro=11273&s=documentos, acessado em 17 de outubro às 16:54hs.

2222

com Deficiência, a Declaração apresenta disposições que defendem o deficiente como

um sujeito igual a todos os demais, não havendo qualquer disposição em hierarquia que

os coloque em posição inferior. Referente à vida em sociedade, é igualmente defendida

a quebra de barreiras que possam inviabilizar sua acessibilidade. O deficiente deve,

segundo o proposto, ter seu poder de ação maximizado de forma a atuar plenamente no

meio social. A prioridade das autoridades governamentais deve se voltar ao atendimento

às necessidades básicas do indivíduo, tais como: serviços básicos de prevenção e

detecção precoce, atenção médica e reabilitação, ajuda técnica e equipamentos

necessários, organização de movimentos de pessoas com deficiência, assim como a

coleta de dados e informação sobre a incidência e distribuição das diferentes

deficiências.

Na área da Educação, a Declaração Mundial Sobre Educação Para Todos, fruto

da Conferência Mundial Sobre Educação para Todos realizada na Tailândia em 1990,

foi decisiva para futuras práticas inclusivas. Com a preocupação de mobilizar a todos, e

cientes do poder das mídias na divulgação da informação, o apoio destas instâncias

constitui-se como de grande valia. As diferentes categorias profissionais são da mesma

forma convocadas a participar, ressaltando para isso a importância da capacitação. O

objetivo da Declaração consiste em satisfazer as necessidades básicas da aprendizagem

de todas as crianças, jovens e adultos.

No ano seguinte, foi realizado um encontro reunindo 39 delegados de países das

Américas, além de representantes civis com necessidades especiais, dentre crianças,

jovens, profissionais de diversas categorias e representantes governamentais. Juntos,

escreveram a Declaração de Manágua que preconiza os aspectos ideais a serem

seguidos, conclamando toda a sociedade a seguir rumo a este fim. Dentre os

pressupostos ideais presentes, está a crença em uma sociedade defensora de valores

como eqüidade e justiça; promotora de interdependência e aberta à diversidade. Outro

aspecto relevante do documento refere-se à cautela necessária na formulação de leis;

evitando se possível aquelas específicas para os deficientes. Ainda com relação à

elaboração das leis, a participação de pessoas deficientes e de suas famílias é também

defendida. Quanto aos investimentos na área social, defende-se a mesma relevância

destinada às políticas econômicas.

Em 1994, na Espanha, ocorreu a Conferência Mundial sobre Necessidades

Educativas Especiais, uma conferência de repercussão internacional que gerou a

Declaração de Salamanca. Fruto da Assembléia Geral que uniu 88 países e 25

organizações internacionais, o documento aponta a necessidade de criar mecanismos

2323

que garantam a inclusão de pessoas com deficiência na sociedade através da Educação.

Além de reafirmar o direito de todos à educação, independente de suas diferenças, a

Declaração enfatiza que a educação de pessoas com algum tipo de deficiência seja parte

integrante do sistema educativo. De modo a indicar a população-alvo das políticas

planejadas, a Declaração esclarece:

Independentemente de suas condições físicas, intelectuais,

sociais, emocionais, lingüísticas ou outras (...) crianças

deficientes e superdotadas, crianças que vivem nas ruas e que

trabalham, crianças de origem remota ou de população

nômade, crianças pertencentes a minorias lingüísticas, étnicas

ou culturais, e crianças de outros inferiorizados ou

marginalizados (p. 130).11

A idéia defendida sustenta que toda criança com qualquer tipo de necessidade

deve estar matriculada na escola, trazendo à tona o conceito de escola inclusiva, ou seja,

a escola capaz de receber e educar a todos, inclusive aqueles mais comprometidos seja

do ponto de vista físico, intelectual, sensorial ou emocional. O protótipo de sociedade

que a escola apresenta a seus alunos possibilita o confrontamento com situações

adversas, bem como acontece na vida em sociedade. À escola caberá um papel de

suporte nas dificuldades que podem ser enfrentadas.

No Brasil dos anos 90, uma mobilização popular envolvendo diversos setores da

sociedade – legislativo, judiciário e civil – se organiza em defesa da infância e

adolescência, formulando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em uma

verdadeira luta pelos Direitos Humanos. A visão vanguardista da legislação serviu de

modelo para outros países da América Latina. Este momento representa um marco para

a história brasileira, quando se propõe uma nova leitura da legislação voltada para a

infância e adolescência baseada na doutrina das Nações Unidas. Durante os anos

anteriores, em que vigorou o Código de Menores, as críticas se voltavam para a

arbitrariedade da legislação, que permitia aos juristas a tomadas de decisões com cunho

subjetivo.

Em 1996 foi elaborada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira

(LDB), que descreve em um capítulo os preceitos acerca da chamada Educação

11 Texto retirado da Declaração anexada ao final do livro Educação Inclusiva - Direitos humanos na escola. Ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.

2424

Especial. A inclusão seria, portanto, a filosofia que permeia os preceitos do capítulo da

LDB. Nela, os artigos apontam os deveres dos Estados a fim de promover a Educação

para todas as crianças que possuam algum tipo de comprometimento. A proposta se

estende a todos os segmentos de ensino, visando unificar a Educação Brasileira com

uma filosofia inclusiva.

Pude presenciar momentos em que algumas questões oriundas da LDB foram

foco de discussão entre educadores, dentre as quais: a capacitação de professores e a

recomendação pela matrícula de crianças com necessidades especiais na rede regular de

ensino. Quanto à capacitação, discute-se acerca da sua validade, tendo em vista que a

criança não deve ser diferenciada das demais pelo educador. Da mesma forma, o

comprometimento da criança não demandaria um comportamento específico por parte

do professor, já que em sua vida comum ela não convive com pessoas capacitadas a

lidar com ela. Quanto à matrícula destas crianças, a expressão “preferencialmente na

rede regular de ensino” indica preocupação com a integração das pessoas deficientes,

embora a questão seja tratada como uma opção e não como obrigatoriedade. Alguns

educadores afirmam não ser possível promover uma educação de qualidade quando a

escola não possui infra-estrutura que facilite a acessibilidade.

Atualmente a LDB nos coloca diante de uma conjuntura político/social que

aponta para a urgência em transformar em prática social o discurso oficial, instaurado

nas leis, da Educação como direito de todos. Contudo, transformar em prática social o

ideal da Educação para todos supõe que a escola ocupe o lugar de foco da problemática,

outrora ocupado pelo educando. A escola que deve se transformar para atender as

crianças com necessidades especiais, e não o contrário.

A cultura do saber do século XXI passa por uma revolução que acelera a

atualização das informações, mudando os processos de escolarização. Este novo modo

de educar e de acessar o mundo deve ser disponibilizado igualmente aos deficientes. Por

último, não devemos esquecer a importância da mídia na transmissão do conhecimento,

considerando seu grande alcance em todas as classes sociais. Uma escola inclusiva,

portanto, deverá desempenhar o papel de facilitadora no encontro do sujeito com o

mundo.

Por parte dos profissionais da área da deficiência, pode-se perceber que a sua

prática por vezes reforça a crença no fenômeno da deficiência como puramente

individual, dado que o aluno “portaria” a patologia ou deficiência. Além disso, o termo

“portador” se mostra totalmente inadequado considerando que não portamos

necessidades ou deficiências: nós sentimos ou temos necessidades ou deficiências. No

2525

entanto, a tendência teórica atual tem sido a de analisar a deficiência como um

fenômeno não só biológico, mas fundamentalmente social, portanto dependente do

contexto histórico e cultural no qual o sujeito está inserido.

A Educação vem apresentando avanços principalmente nas grandes cidades.

Porém, a falta de infra-estrutura, a ausência de capacitação de professores, de recursos

pedagógico e técnico, e de uma equipe multidisciplinar, faz da inclusão uma filosofia

eficiente somente na teoria na maioria das cidades brasileiras. Relembrando as bases da

filosofia inclusiva, “deve-se lembrar, sempre, que o princípio fundamental da sociedade

inclusiva é o de que todas as pessoas com deficiência devem ter suas necessidades

especiais atendidas. É no atendimento das diversidades que se encontra a democracia”

(Maciel, 2000, p.54).

A reformulação da escola deve contemplar, antes da questão técnica, a questão

dos valores, das atitudes. Os profissionais devem compreender que a inclusão escolar é

a segunda etapa da inclusão social. A desconstrução do preconceito é o primeiro passo

para que a integração aluno-professor e aluno-aluno possa se efetivar. Alunos e

professores devem ser instruídos sobre a deficiência, de modo que possam aceitar as

diferenças exercendo a cidadania.

No fim dos anos 90, a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as

Formas de Discriminação contra as Pessoas com Deficiência produziu a Declaração da

Guatemala, que apresenta as condições necessárias a uma vida digna para os

deficientes, visando sua integração na sociedade. Assim, consideram como

discriminação contra a pessoa com deficiência:

Toda diferenciação, exclusão ou restrição baseada em

deficiência, antecedente de deficiência, conseqüência de

deficiência anterior ou percepção de deficiência presente ou

passada, que tenha o efeito ou propósito de impedir ou anular o

reconhecimento, gozo ou exercício por parte das pessoas

portadoras de deficiência de seus direitos humanos e suas

liberdades fundamentais.12

No entanto, a Declaração contém uma ressalva logo após a descrição

apresentada acima, esclarecendo que nos casos de prioridade dada à área da deficiência

12 Texto retirado do site http://www.saci.org.br/?modulo=akemi&parametro=11273&s=documentos, acessado em 17 de outubro às 16:54hs.

2626

pelos Estados na elaboração de políticas e práticas, estas não constituem como ato

discriminatório. Segundo o documento, a prioridade destinada aos deficientes não

impedirá a busca pela igualdade de direitos assim como não limitará a escolha dos

indivíduos de não aceitar a referida preferência.

Em 2002, a Conferência da Rede Ibero-Americana de Organizações Não-

Governamentais de Pessoas com Deficiência e suas Famílias culminou na Declaração

de Caracas. Nas considerações iniciais da Declaração se aponta a estreita relação entre a

deficiência e a pobreza. Segundo dados da instituição inglesa Disability Awareness, em

qualquer parte do mundo as pessoas deficientes ocuparão os níveis de renda abaixo da

pobreza. Como exemplo, na Grã-Bretanha uma pessoa deficiente tem duas vezes mais

chances de ser desempregada que qualquer outro grupo (Werneck, 2002). Novamente a

pobreza ocupa status importante, como um grande obstáculo que impede a chegada à

sonhada inclusão. A visibilidade evidenciada da pobreza por um lado obscurece a

responsabilidade que recai às autoridades, na medida em que devem viabilizar as

mínimas condições de vida a seus cidadãos, independentemente da renda que possuem.

O atendimento do Estado às necessidades básicas da população através da rede pública

nos aproximaria do respeito aos Direitos Humanos.

De modo a marcar a luta pelos direitos das pessoas com deficiência, o dia 3 de

Dezembro foi escolhido como o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, na

Assembléia Geral das Nações Unidas de 1992. A existência de uma data comemorativa

como esta expressa a necessidade de promover uma mobilização a ser efetuada

lentamente, a cada ano. Porém, questiono-me quanto à representação da data. A

inclusão dos deficientes a partir de um momento pontual a ser lembrado anualmente não

produziria o efeito inverso? Por que novamente separar um grupo já excluído e

estigmatizado por tanto tempo?

O Governo, por sua vez, tem procurado intervir através de ações e programas

capazes de minimizar os efeitos excludentes. Porém, como já observado pela população

brasileira, muitos projetos permanecem somente no papel, não encontrando meios e

verba para serem concretizados. Outras ações são desintegradas ou dirigidas a grupos

privilegiados reforçando, assim, a exclusão. A cada novo Governo, muitas ações em

andamento param ao mesmo tempo em que se planejam outras de acordo com a

filosofia do partido governante. Mesmo nos municípios, não existem ações integradas

que reforcem uma política de inclusão em defesa da acessibilidade, saúde e cultura.

Segundo Maciel (2000), o modelo único de gestão vem facilitando a exclusão

das pessoas com deficiência dos serviços básicos garantidos ao cidadão em todas as

2727

áreas da assistência social. Na área da saúde, a falta de infra-estrutura nos locais de

atendimento impede o rápido acesso ao mesmo tempo que o número insuficiente de

profissionais e materiais - como órteses e próteses - leva muitos pacientes a aguardarem

na fila de espera por tempo indeterminado, prejudicando o tratamento; a área social

recebe pouca verba dos governos, impossibilitando a ação nas comunidades; já na área

do trabalho, ainda são poucas as empresas que incentivam a contratação de pessoas com

deficiência, e quando contratam pagam salários inferiores aos do restante dos

empregados.

A desmarginalização deve entrar em pauta na elaboração de políticas públicas

que visem a educação para todos. Uma sociedade inclusiva é aquela que se compromete

com todas as minorias, não somente com as pessoas com necessidades especiais. Ao

lado da questão social, a inclusão apresenta uma face de ordem econômica ao oferecer

às pessoas com deficiência a oportunidade de ser um cidadão produtivo, participante do

sistema que compartilha.

O início do século XXI possibilitou a reavaliação dos esforços despendidos nos

inúmeros eventos realizados na área da deficiência. Em todos eles, pôde-se perceber o

desejo de mudar a sociedade em que vivemos através de práticas inclusivas não só do

deficiente, como de todos que se encontram estigmatizados, portanto excluídos a

espaços limitados de ação. Grandes foram os avanços na área da deficiência; ao tempo

em que foi possível vislumbrar o longo caminho a ser percorrido rumo a construção de

uma sociedade justa para todos. Contudo, a realidade igualmente nos mostra que muitos

ainda resistem a aceitar a proposta inclusiva, ou por vezes a entendem erroneamente,

reforçando ainda mais o ambiente propício à exclusão. Para a inclusão se realizar não é

suficiente “estar dentro” da instituição, é preciso haver relação.

Cabe neste momento nos afastarmos das teorias e tratados produzidos acerca da

inclusão/exclusão e nos aproximarmos do sujeito com deficiência. Dos rótulos impostos

às recorrentes tentativas de aprisionamento, tentarei apresentar parte das experiências

vividas por aquelas pessoas que trazem em seus corpos a história de suas vidas.

2828

3. Excepcional? Deficiente? Portador de necessidades especiais? - o sujeito frente à

sociedade

Mas vocês, não são videntes clássicos, vocês são cegos porque

atualmente, vivemos em mundo que perdeu a visão. A

televisão nos propõe imagens prontas e não sabemos mais vê-

las, não vemos mais nada porque perdemos o olhar interior,

perdemos o distanciamento. Em outras palavras, vivemos em

uma espécie de cegueira generalizada.

Eugen Bavcar13

3.1 - As representações da deficiência ao longo da História

O olhar voltado para a deficiência se transmuta nas mais variadas formas desde

os primórdios da sociedade. A partir de cenas ocorridas ao longo dos séculos será

possível contemplar os movimentos realizados, assim como os discursos e condutas que

se voltaram “para” e “sobre” o deficiente. Para que esta análise se concretize, a visão

histórica tomará o pano de fundo das reflexões propostas.

Dentre as contribuições da Psicologia Social, a Teoria das Representações

Sociais se apresenta capaz de engendrar significações a partir do discurso de uma dada

época da História. Assim, pode ser contemplada por dois enfoques distintos. Um deles

aponta para a força da ideologia que contaminaria o discurso vigente da época, seja pela

Igreja, Estado ou determinado estrato social. A segunda possibilidade desloca o foco de

atenção para o sujeito e sua capacidade de criar novos conceitos a partir do vigente.

A representação social permite que conceitos estranhos aos sujeitos, como a

deficiência, possam ser assimilados; é a legitimação do senso comum. A estranheza

experimentada pelos sujeitos advém da falta de convivência com a realidade em

questão. Em outras vezes, as categorias criadas pela Ciência ou órgãos oficiais são de

difícil compreensão por parte da sociedade. Daí a necessidade de elaborar meios de

assimilar a informação de alguma maneira. O conflito inovação-tradição que se

estabelece é então elaborado por Sá (1988):

13 Depoimento traduzido para o português, extraído do documentário “Janela da Alma”. Direção: João Jardim e Walter Carvalho. Produção: Flávio R. Tambellini. Roteiro: João Jardim. Intérpretes: José Saramago, Wim Wenders, Hermeto Pascal e outros. Rio de Janeiro: Copacabana filmes, 2002. 1. DVD (73min).

2929

No entanto, era nosso propósito compreender a inovação mais

do que a tradição, uma vida social em construção mais do que

uma pré-estabelecida (...), pois estamos lidando com um

conhecimento cujo objetivo é recriar a realidade (apud Paixão,

1996, p. 229).

Maciel (2000) aponta que quando falamos de deficiência, o desconhecimento do

tema por parte da sociedade amplia o fenômeno que se torna mais complexo e difícil de

assimilar. O estigma que marca as pessoas com deficiência, incapacitando-os e

deixando-os em segundo plano, precisa ser superado. Todavia, considerando a realidade

social brasileira, quando a deficiência se encontra em um contexto de pobreza, a

situação é agravada.

Como mencionado no capítulo anterior, os fatos sociais são importantes na

análise das relações que se estabelecem no presente. Dessa forma, a teoria das

representações sociais, assim como o estudo genealógico de Foucault e as contribuições

históricas de Goffman são imprescindíveis se necessito de instrumentos que permitam

elaborar as realidades de exclusão na sociedade em que vivemos.

A partir da atividade do trabalho, os homens conhecem as leis que regem o

mundo, convivem em comunidade, lidando com limites e aperfeiçoando o

conhecimento de si e da teia social. Dessa forma, a inserção do sujeito na esfera social a

partir de sua atuação (ou não atuação) pelo trabalho irá conferi-lo um certo lugar com

status referente a sua capacidade (ou incapacidade) de inserir-se nas relações de

produção.

Um comportamento comum às primeiras sociedades perante as incapacidades do

homem consistia em extingui-los, garantindo assim a permanência daqueles aptos a

exercerem a atividades visando o sustento e defesa do coletivo (Guhur, 1992) 14. Os

escolhidos e marcados pela incapacidade eram os velhos, as crianças que nascessem

malformadas ou franzinas, os doentes, e todos aqueles que não tivessem condições

físicas de colaborar nas tarefas.

As diferenças carregadas nos corpos eram temidas, pois desconhecidas. Como o

homem não podia controlar tais forças misteriosas, provindas da natureza, restavam o

temor e conseqüente esforço por afastá-las e aniquilá-las. Mais tarde, porém, com o

surgimento da sociedade de classes, o lugar do transcendente outrora ocupado pela

natureza passa a ser ocupado pela religião. Ao homem coube o alívio de ter seus anseios

14 Citado por PAIXÃO (1996).

3030

acerca dos fenômenos físicos e humanos explicados. Nos mitos gregos vemos a ação

direta dos deuses na vida dos homens, determinando inclusive as virtudes e mazelas.

Como no mito de Hefesto, filho de Hera, em que ao tentar socorrer a mãe que brigava

com Zeus, é jogado por este no espaço vazio. Ao cair na ilha de Lemmos ficou aleijado

passando a sofrer gozações dos irmãos imortais (Brandão apud Paixão, 1996). O ato de

sacrificar os incapacitados passava a ser legal, apoiando-se a partir de então na máxima

da virtude; devem ser eliminados os que não receberam as bênçãos dos deuses.

A transição para a era feudal trouxe transformações nas atitudes para com os

deficientes. Valores como caridade, compaixão e tolerância passaram a vigorar nos

discursos marcados principalmente pela influência do Cristianismo. A imagem dos

homens como filhos de Deus - portanto irmãos - possibilitou a aparente aceitação

daqueles até então massacrados. Estes começam a ocupar a mesma categoria dos pobres

e miseráveis, dignos de caridade e tolerância. Alguns moravam com suas famílias

enquanto outros perambulavam pela cidade à procura de abrigo em aldeias que os

adotavam como meio de afastar maldições e feitiços. Ao lado disso, também eram

responsáveis pela diversão nas festas dos nobres. Ao bobo da corte, figura

representativa da era medieval, restava muitas vezes esta função por conta de sua

deficiência física ou mental. Rodin (1911) narra a sua angústia frente a busca do belo na

Arte, inspirado na figura do bobo:

O que comumente se chama feio na Natureza pode tornar-se de

grande beleza na Arte.

No domínio das coisas reais, chama-se feio ao que é

deformado; ao que não é saudável; ao que é contrário à

regularidade, sinal e condição de saúde e força. Um corcunda é

feio. Uma pessoa de pernas tortas é feia. Um pobre em

andrajos é feio.

Feias, ainda, são a alma e a conduta do homem imoral, do

viciado e criminoso, do homem anormal que faz mal à

sociedade; feia é a alma do parricida, do traidor, dos

ambiciosos sem escrúpulos.

E é legítimo que criaturas e objetos, dos quais só se espera o

mal, sejam designados por um epíteto odioso.

Mas, quando um grande artista, ou um grande escritor, se

apossa de um desses tipos de “feiúra”, instantaneamente ele o

transfigura. Com um aceno de sua vara mágica, transforma-o

em beleza: isso é alquimia, é magia. Quando Velázquez pinta

3131

Sebastián, o anão de Filipe IV, empresta ao bobo um olhar tão

emocionante que nele lemos, imediatamente, o segredo

doloroso desse homem deformado, forçado, para sobreviver, a

alienar sua dignidade humana, a tornar-se um joguete, uma

bugiganga viva. E quanto mais pungente o martírio da

consciência alojada nesse corpo monstruoso, mais bela é a obra

do artista.

É que, em Arte, só é belo o que tem caráter.

O caráter é a verdade intensa de qualquer espetáculo natural,

bonito ou feio; e pode também ser chamada de verdade dual:

pois é uma verdade interior traduzida pela verdade exterior. O

caráter é a alma, o sentimento e a idéia expressos pelos traços

de um rosto, pelos gestos e ações de um ser humano, pelas

cores de um céu, pela linha de um horizonte.

Em Arte, é feio somente aquilo que é sem caráter, isto é, o que

não oferece verdade alguma, seja exterior ou interior.

Em Arte, feio é o que é falso, artificial, o que procura ser

atraente ou belo, ao invés de expressivo, o que é afetado e

precioso, o que sorri sem motivo, o que é pretensioso sem

razão, o que estufa o peito e se empertiga sem motivo, tudo a

que falta alma e verdade, tudo o que se resume a um desfile de

beleza e graça, tudo o que mente (Rodin apud Jobim, 2000,

p.23).

O fragmento trazido demonstra a insatisfação do artista perante a banalização

remetida à figura do deficiente e sua conseqüente exclusão do mundo da Arte em favor

da preservação do status do belo. Ao contestar a conceituação da beleza, Rodin

oportuniza reflexão outra, propondo uma nova leitura da representação da beleza

pautada no conceito de caráter. O valor estético da obra é então desconstruído,

possibilitando a criação de um ethus pautado em valores individuais.

Ao lado da prática de utilizar monstros15 em festas, estes eram também atrações

de circo durante todo o século XIX. Com os espetáculos, os monstros enriqueciam os

donos de circo com a exibição de suas anormalidades. No filme “Homem Elefante”

(1970) pode-se observar uma realidade que demonstra o tom sádico de um circo de

15 Termo citado por LOBO (1997) a partir da análise genealógica das diversas categorias relativas aos deficientes, indicados por médicos do XIX no Brasil, dentre elas as clássicas diferenciações entre o louco e a idiotia, o demente e o idiota; o primeiro caso diferencia a possibilidade de evolução de uma situação fadada ao fracasso, enquanto o segundo baseia-se em uma ótica temporal em que se compara a existência de memórias do passado com a estagnação. Essas categorias carregam pesado fardo estigmatizante tendo em vista que em todas se destaca a transgressão à norma social.

3232

monstros. David Lynch, um médico anatomista encontra em um circo de horrores

Merrick, um homem totalmente deformado que é utilizado como atração do circo

sofrendo maus tratos. A fim de resgatar a dignidade que ainda restava neste homem,

assim como a possibilidade de estudar sua anomalia, Dr. Treves retira Merrick do circo,

levando-o para um hospital. A partir deste fato, a trama revela a reação da sociedade à

chegada de Merrick; a alta classe londrina que o via com medo e receio percebe a

humanidade do sujeito, momento chave em que sua dignidade começa a ser

conquistada. Em paralelo a este movimento, Dr. Treves questiona a própria atitude ao

“livrar” Merrick do circo, deslocando-o para uma realidade igualmente cerceada:

convenções da alta burguesia e invasivas sessões médicas. Novamente a linha tênue que

divide o campo da inserção/desinserção, do normal/anormal. E, além disso, as atitudes

tomadas pelos atores sociais frente a tais ambigüidades.

No Brasil do século XX, as práticas eugenistas adentraram as instituições

propagando seus ideais referentes ao controle da população, fosse através da procriação

ou da vacinação. O movimento que teve início ainda no século XIX buscava controlar

os degenerados – estes vistos como um risco à saúde da elite. Pautados na teoria da

hereditariedade, os médicos eugenistas referiam aos anormais o risco de uma prole

defeituosa. Assim, a esterilização dos degenerados era vista como uma saída (Lobo,

1997).

Antes de discutir as questões relativas à normalidade/anormalidade, dialogo com

Canguilhem (1990), que enunciou os conceitos de saúde e doença. Sobre estas, o autor

descreve:

A doença passa a ser uma experiência de inovação positiva do

ser vivo e não apenas um fato diminutivo ou multiplicativo. O

conteúdo do estado patológico não pode ser deduzido – exceto

pela diferença de formato – do conteúdo da saúde: a doença

não é uma variação da dimensão da saúde; ela é uma nova

dimensão de vida (p.149).

Sob este aspecto, a deficiência pode ser vista como uma nova forma de vida, em

que o sujeito reaprende a viver consigo mesmo e com o mundo. Novas normas são

estabelecidas no organismo de forma a promover a adaptação do novo corpo ao

ambiente. Assim, as experiências do sujeito possibilitarão a aprendizagem e o

conhecimento sobre o próprio corpo.

3333

Amaral (1995) referindo-se a Canguilhem (1990) indica que o autor designa

norma como “aquilo que não se inclina nem para esquerda nem para a direita” (p.31).

Contudo, usualmente vemos a confusão que se estabelece, referindo à norma a noção de

estado ideal e habitual do organismo. O autor da mesma forma afirma que o termo

anormal não designa patologia, já que esta provém de pathos, que significa sentimento

de sofrimento e impotência. Na análise de um certo conceito, deve-se levar em

consideração o contexto histórico a partir do qual nasce o termo.

Voltando às considerações acerca dos deficientes através dos tempos, o

Cristianismo alcançou as atitudes e valores dos homens influenciando

consideravelmente as conclusões acerca da deficiência. Na esfera dos valores ao mesmo

tempo em que a caridade levava os cristãos a se voltarem aos deficientes com bons

olhos, passava a dúvida sobre a existência de alma nesses sujeitos, visto que não

possuíam virtude. Esse argumento levou ao início da prática de exorcismos e

flagelações, de modo a expulsar o demônio de seus corpos. No lugar do extermínio, a

prática do castigo passa a ser utilizada.

A ambivalência no tratamento para com os deficientes persiste durante toda a

Era Feudal. Com as crises que culminaram na decadência da estrutura feudal, novas

relações se estabeleceram com o capitalismo, que engatinhava como novo sistema

econômico.

Até os dias de hoje a deficiência é representada como um desvio. A existência de

um modelo que deve ser alcançado é a base de toda a sociedade. Conseqüentemente

nem todos conseguem alcançar tão alto patamar. É neste caso que o desvio se dá. É

nadando contra a corrente que os sujeitos afrontam a norma até então instaurada.

Afrontam e criam novas normas que eles mesmos se esforçarão por seguir, em um ciclo

ininterrupto que permeia a vida em sociedade.

Uma leitura desse processo deve contemplar a relação do homem com a cultura

resistindo ao psicologismo e sociologismo. Ambas as óticas se apóiam em paradigmas

opostos, não permitindo o diálogo com possibilidades menos radicais. Dalio (apud

Paixão, 1995) concebe o caráter social do corpo, com a existência de modelos prescritos

pela sociedade, que o prescrevem desde a esfera mental até a física.

O deficiente é marcado assim pela falta, pela ausência de atributos, pela

incapacidade. A reação advinda de tal reconhecimento seria a exclusão, através de

mecanismos descritos a seguir.

3434

3.2 - A marca da diferença: o estigma

Localizar a exclusão é um trabalho em vão. Segundo Skliar (1999), “as

fronteiras da exclusão aparecem, desaparecem e voltam a aparecer, se multiplicam, se

disfarçam: seus limites se ampliam, mudam de cor, de corpo, de nome e de linguagem”

(p.15). Os deficientes, como participantes da grande rede que envolve os seres

humanos, tecem as significações sobre os outros e sobre si mesmos; tecem e são tecidos

por elas. Movida pela crença de que só é possível nadar contra a corrente imerso nesta,

pretendo mergulhar no oceano da exclusão e de suas diversas facetas a fim de avistar

modos de lidar com as mesmas.

O contexto no qual vivemos - a era da globalização, da aldeia global - trouxe

como marcante característica a massificação. E o que é a massificação senão a anulação

das diferenças? Múltiplas razões justificam a prática citada, sendo a principal delas a

aceitação. Contudo, como sublinha o autor mencionado acima, onde encontramos os

sujeitos que não se encaixam no projeto que visa a massificação?

Por que estranhamos o diferente deficiente? Skliar (1999) prefere pensar na

“alteridade deficiente”, um produto fabricado pelo sistema, que venderia uma hipotética

ilusão de inclusão em que os deficientes são criados e ao mesmo tempo excluídos pelo

mesmo sistema. A questão da alteridade deficiente seria como o carro-chefe da luta de

todas aquelas populações marginalizadas. Daí o motivo de priorizarmos uma análise

sócio-econômica que perpasse pelos diversos modos de exclusão, evitando priorizar

algumas às custas de outras. A alteridade deficiente é pilar necessário, visto que mantém

os incluídos e excluídos em seu devido lugar. Afirmamos a nossa normalidade sob a

anormalidade do outro. No entanto, o discurso criado não incide somente sobre os

deficientes, e sim sobre todos nós, que convivemos e somos afetados pela realidade a

qual compartilhamos.

O mecanismo responsável por manter a ordem social através da exclusão é

destrinchado por Goffman (1975), que tece conceitos relativos ao estigma. O termo foi

criado pelos gregos na tentativa de demonstrar através de marcas impostas aos corpos

dos sujeitos aqueles possuidores de características rejeitadas pela sociedade, tais como

abominações no corpo, crenças, paixões, vícios, questões relativas à raça, nação ou

religião.

Os sinais impostos aos corpos eram produzidos por cortes ou fogo, e pretendiam

transmitir a mensagem de que o sujeito era, por exemplo, um escravo ou criminoso.

Tais marcas produziam reações discriminatórias, indicando que as pessoas

3535

estigmatizadas não mereciam permanecer no convívio social. Logo, os diferentes

saberes se apropriaram do conceito, cada qual destinando sua interpretação própria. A

Igreja considerava as marcas do estigma como sinais de graça divina, enquanto a

Medicina acreditava serem indícios de distúrbio físico. O fato curioso reside na

inexistência de definição para o termo estigma na época. Nos tempos atuais, o

Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda, define o termo

estigma como cicatriz, sinal, ao passo que estigmatizada é a pessoa censurada e

condenada.

De forma a facilitar o convívio social, os seres humanos se categorizam uns aos

outros. A categorização nos serve como um atalho, sendo acessado rapidamente quando

precisamos identificar alguém. De modo a aprofundar esta questão, Goffman (1975)

apresenta dois tipos de identidade: a identidade social virtual e a identidade social real.

O primeiro tipo se refere às expectativas que dispensamos aos sujeitos com os quais

convivemos, enquanto o segundo diz respeito aos atributos que o sujeito realmente

demonstra possuir.

Na seara da deficiência, tais aspectos se intercalam no decorrer da convivência

com o deficiente. Ao lidarmos com ele criamos expectativas quanto as suas capacidades

e possibilidades. Quando nossas expectativas são satisfeitas, sentimos orgulho com o

outro, porém mais com nós mesmos por termos conseguido enxergar além da aparente

impossibilidade; quando não satisfeitas, porém, nos questionamos do porquê,

sobrecarregando o deficiente com as nossas expectativas frustradas sem antes

pensarmos na validade das mesmas para o próprio sujeito deficiente. Certa vez, pude

escutar um relato de uma professora sobre a dificuldade que as crianças com Síndrome

de Down enfrentam na aquisição da linguagem. Acreditamos que estas crianças

naturalmente apresentem facilidade com a expressão verbal, e ignoramos o longo

caminho percorrido por elas para adquirir a linguagem e finalmente conseguirem se

comunicar. Fica claro então a dissonância existente entre a identidade social virtual e

identidade social real.

Goffman (1975) define três realidades acerca do estigma que podemos

igualmente estender à temática da deficiência: quando o estigma é congênito, ou seja, o

sujeito já nasce com a marca do estigma; quando a comunidade envolve o indivíduo

estigmatizado em uma bolha; e quando o estigma marca o sujeito em uma fase mais

avançada.

Quando o sujeito já nasce com o estigma, sua socialização destinará

ensinamentos que mostram a normalidade - lugar que ele não ocupa. Na ambigüidade

3636

entre o ensinado e o vivido, o sujeito se constituirá tecendo sua própria identidade.

Paralelo a isso, este mesmo sujeito que cresce com o estigma, pode porventura ser

protegido pela comunidade que o cerca. Muitas famílias criam verdadeiras bolhas e

mantém os seus dentro delas, no temor da rejeição e das experiências traumáticas que

possam ser experimentadas.

Ao contrário deste processo, existem aqueles sujeitos que sofrem com o estigma

ou percebem-se em condição estigmatizante em uma idade mais avançada. Neste caso,

podem contar com a colaboração de pessoas que convivem com o mesmo estigma; daí a

formação de grupos de ajuda mútua, em que experiências são compartilhadas e a

melhora do bem estar do estigmatizado virá do apoio e identificação com outras

pessoas, o que pode torná-lo mais forte frente suas dificuldades. Ao se confrontar com

semelhantes que possuem a mesma condição, o indivíduo reconhece no outro as

características que designam seu estigma ao tempo em que procuram diferenças em

diversos casos. Tal reconhecimento da deficiência do outro provoca uma ambivalência

em que momentos de aceitação e negação coexistem.

No entanto, não é só a visibilidade do estigma que promove a evitação. A

simples percepção é capaz de dispará-la. Como bem sinaliza Quintão (2005), ao

evitarmos olhar um deficiente negamos o reconhecimento do outro como sujeito. Existe

então, segundo Goffman (1975), a questão de possibilitar o conhecimento,

intrusibilidade ou foco de percepção. Um dos caminhos do estigma indica as

estereotipias, quando normatizamos características que moldam o comportamento do

sujeito. Porém, a gradação do estigma varia de acordo com o nível de intimidade

estabelecido com o indivíduo; quando maior a intimidade menores serão as

possibilidades de que o estigma seja conferido. Assim, o estigma provém da esfera

pública em que não se estabelece um vínculo com o indivíduo. É percebido que o

contato freqüente com o estigmatizado atenua o traço marcante que fora destinado

outrora, até que se torne, devido a seu conhecimento, um “normal”.

Ao lado da visibilidade, porém, caminha seu antônimo. A invisibilidade se

apresenta como conseqüência do processo de estigmatização. Soares (2005) já apontava

que ao olharmos para o outro à luz de um estigma, projetamos nele as nossas

expectativas, nossa intolerância, tornando-o finalmente invisível. E ao transformarmos o

outro em invisível, esfacelamos sua individualidade em prol das etiquetas e categorias

estigmatizantes.

De modo a demonstrar o teor totalitário do estigma, Goffman (idem) exemplifica

o caso clássico de como podemos lidar com um sujeito com deficiência visual, com

3737

quem alteramos a voz ao falar, quando sua deficiência na verdade afeta sua capacidade

visual. A representação da deficiência neste caso engloba o indivíduo por inteiro,

afetando todas as suas funções. Retomo o exemplo dado no capítulo 1, em que concebi

que a deficiência mental do adolescente tivesse incapacitado-o a compreender o que

falava a seu respeito. Imediatamente, como em um ato de resistência, ele expressa logo

o que eu perguntava, como se dissesse que não era surdo e compreendera o que havia

dito.

Goffman (1975) distingue duas faces do sujeito estigmatizado: o desacreditado e

o desacreditável. A variação entre os dois pólos dependerá novamente das expectativas

depositadas no estigmatizado. No primeiro pólo a característica que diferencia o sujeito

é evidente e sabidamente percebida por todos. Quando a característica não possui

tamanha evidência, porém pode ser descoberta a qualquer momento, trata-se então de

um sujeito desacreditável.

As diversas deficiências - sejam elas de natureza mental ou física - trazem

consigo traços característicos passíveis de serem percebidos. Assim, o sinal visível

facilitaria a categorização do sujeito, seguido de uma mudança de comportamento para

com o mesmo. Nas relações sociais, percebe-se que quanto mais aparente for seu

estigma - desacreditado segundo Goffman (idem) - mais delicado será seu processo de

inserção. Enquanto que um estigma disfarçado - portanto desacreditável – possibilitaria

uma maior gama de relações. Podemos concluir, sobretudo, que um sujeito

desacreditável possui “potencial” para tornar-se desacreditado. Por outro lado, o

encobrimento da deficiência em uma relação estaria sempre permeado pelo risco de as

informações serem descobertas.

As conceituações acerca do estigma são também representações sociais. A

conceituação por sua vez constitui-se em uma ação delicada tendo em vista que

comumente:

Construímos uma teoria do estigma, uma ideologia para

explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela

representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade

baseada em outras diferenças (...) Utilizamos termos

específicos de estigma como aleijado, bastardo, retardado, em

nosso discurso diário como fonte de metáfora e representação,

de maneira característica, sem pensar no seu significado

original (Goffman, 1975, p. 15).

3838

A prática da conceituação pretende abarcar o fenômeno em questão. Sabemos,

porém, que se constitui apenas em uma tentativa perante a impossibilidade de precisar

em palavras um mundo de sensações e percepções tão adversas e por vezes ambíguas.

Para fins didáticos, entretanto, a conceituação é um instrumento útil no estudo da

deficiência; tanto na definição do diagnóstico quanto na elaboração de estratégias e

programas de atendimento.

Segundo o tratado “International Classification of Impairments, Disabilities and

Handicaps: a manual for classification relating to the consequences of disease” da

World Health Organization16 (1980), os termos relativos aos deficientes são disabilities,

handicaps e impairment. Na versão do documento em português, os conceitos

equivalem à incapacidade, desvantagem e deficiência. No Brasil, o debate conceitual

prossegue com a reformulação dos termos relativos a designar as pessoas com

deficiência. Ao invés dos termos excepcional e deficiente, jargões amplamente

utilizados no discurso de anos anteriores, outros termos vêm sendo propostos, como:

portador de necessidades especiais e pessoas com deficiência.

Skliar (1999) esclarece que a discussão sobre a denominação nada mais é que

um debate de eufemismos sem finalidade, já que tais debates não implicam em mudança

de práticas: modificam-se os nomes, permanecem as práticas excludentes. Mesmo

assim, assumo o incômodo ao pensar em como me referir ao foco do estudo aqui

proposto (a palavra em negrito indica que a palavra objeto neste momento de reflexões

conceituais incitaria reflexões outras!).

As pessoas com deficiência são desde cedo marcados e pressionados a aprender

dentro de suas limitações, de forma a buscar meios de existir. Frente à pressão do meio

que deposita expectativas e especulações, o estigmatizado experimenta o afastamento

social como uma saída para a insegurança vivida; o receio da reação do outro normal.

A família da pessoa com deficiência passa a portar a doença, tornando-se

estigmatizada também; necessitando igualmente de orientação e apoio, visto que

viabilizará a inserção dos seus na sociedade. As diferentes deficiências provocam

comportamentos e reações diversas; os deficientes físicos, por terem sua deficiência

visível (os desacreditados) incitam reações mais imediatas. Ao passo em que a

deficiência mental e auditiva passa desapercebida em um primeiro momento

(desacreditáveis).

Alguns momentos sociais apontam condutas que fogem aos preceitos da prática

inclusiva. Na escola, por exemplo, as pessoas com deficiência pode ser alvo de piadas e 16 Citado por AMARAL (1995)

3939

gozações, sendo encaminhada então para uma escola de pessoas “da sua espécie”,

mostrando que é melhor permanecer dentre iguais. Através deste comportamento,

mostra-se também que a ação do deficiente no mundo é de baixo alcance. Perante um

sistema que visa manter a ordem social através do controle da normalidade, o deficiente

percebe-se em constante vigilância. O olhar que incide sobre o deficiente o amedronta, e

por vezes o incita a provar sua normalidade na busca por reconhecimento.

O documentário “Janela da Alma”, cujo depoimento apresentou o presente

capítulo, discorre sobre a representação da perda de visão, em que o espectro varia da

miopia à cegueira total. A partir da célebre afirmação “o olho é a janela da alma” - que

inclusive intitula o documentário - os entrevistados relatam suas experiências de vida

permeadas pela diferença eu-outro na esfera visual.

Através das imagens apresentadas na película é possível conhecer outro mundo;

um mundo que inicialmente pode causar um certo estranhamento aos videntes, mas que

ao longo do documentário é tomado de sentido. Imagens desfocadas ou próximas

demais do objeto focado ilustram outras vias do olhar. Apoiando-me no relato de Wim

Wenders sobre sua experiência de usar óculos, diz que “os óculos dão enquadramento

(...) sem os óculos vemos demais (...) a visão é mais seletiva com os óculos”.

Percebemos então que “ver demais” pode ser um desconforto para alguns. E por que

não permitirmos isso? Por que não permitirmos diferentes modos de olhar, de perceber,

de ser? Oliver Sacks complementa afirmando que “podemos ver com os olhos da

mente”. A partir da imaginação, independente dos nervos ópticos, um outro mundo

pode ser criado. Um mundo não menos pautado em princípios éticos, que contemplem

as diferenças e as dificuldades de cada um.

Seguimos rumo ao quarto e último capítulo, quando tento indicar possibilidades

no âmbito da esfera que mantém um contato mais direto com o deficiente e, portanto, o

que eu concebo como de maior importância: as instituições. Eis a instância promotora

dos discursos os quais discutimos nos capítulos anteriores. Finalmente aliaremos a

teoria a um planejamento da prática!

4040

4. Um novo paradigma para as instituições

O lugar no mundo dos outros deficientes tem sido

permanentemente relacionado e confundido com seu lugar

institucional, e seu lugar institucional foi freqüentemente

profanado pela perversidade de pensá-lo todo nos termos

estreitos de inclusão/exclusão.

Carlos Skliar17

4.1 - A realidade das instituições hoje

Após as análises realizadas nos capítulos anteriores, questiono se o leitor não se

pergunta que saídas podem ser encontradas para mudar a realidade em que vivemos no

que se refere às atitudes para com os deficientes. Como explicitado no capítulo anterior,

muitos foram os avanços na área da deficiência. Porém, a realidade encontrada no

interior das instituições indica a deturpação destes ideais. As ações para com os

deficientes permanecem alicerçadas nos valores da caridade, compaixão, revestidas

atualmente do termo solidariedade, que teria a função de naturalizar e neutralizar o

estranhamento proveniente do encontro com esses sujeitos.

A sociedade do século XXI assiste perplexa à inversão de valores perpetuados

por ela mesma. A ineficácia das macropolíticas que regem a vida em sociedade levou os

expectadores à estática atitude de perplexidade e comodismo. O capitalismo, como

sistema sócio-econômico vigente, colaborou em parte na manutenção do status quo,

onde os excluídos permanecem em seu lugar devido a mecanismos de apreensão e

apropriação dos sujeitos.

Ainda sobre o contexto sócio-econômico em que vivemos, Skliar (1999)

destaca:

A ofensiva neoliberal pode ser caracterizada, ao mesmo tempo,

como uma nova pedagogia de exclusão e de inclusão, que

instala mais uma vez a perversão da idéia de existência de uma

17 SKLIAR, C. B. (1999). A invenção e a exclusão da alteridade deficiente a partir dos significados da

normalidade. Educação & Realidade, v.24, n. 2. p. 15.

4141

fronteira, que separa hipotéticos excluídos de hipotéticos

incluídos, de acordo com sua capacidade ou incapacidade

individual de permanecer dentro ou fora das instituições, de

seu saber, poder, ter, ser, etc (p.24).

Somos confrontados, diariamente, com discursos que trazem em si deveres a ser

cumpridos. Somos assim levados a segui-los sem prévio questionamento da ação. Uma

tentativa de solucionar as questões emergentes quando falamos sobre a deficiência é a

criação de leis. Porém, o aparato legal não vem garantindo os efeitos esperados pelo

fato de necessitar do amparo de uma rede que deveria funcionar conjuntamente. Além

disso, a mobilização da sociedade ao lado do planejamento sobre os possíveis reflexos

políticos, econômicos e institucionais é necessária para que a legislação se efetue de

forma plena (Quintão, 2005).

No tocante às Ciências, sigo o caminho de Werneck (2000) que, ao discorrer

acerca dos entraves nesta área do conhecimento, responsabiliza os sujeitos

pesquisadores em lugar da Ciência, pois produto final.

A inoperância da saúde brasileira discrimina a parcela da população mais pobre.

Considerando que grande parte dos deficientes se encontra nesta camada social18,

concluímos que o Estado deve mudanças não somente aos deficientes, como à

sociedade em geral. O fenômeno da hiperespecialização transformou a instituição

hospitalar em uma loja de consertos em que cada área consertaria uma peça específica.

Assim, o cardiologista trataria o coração do paciente, o ortopedista as articulações. A

questão que se esconde sob a aparente obviedade da afirmação acima revela a carência

do olhar sistêmico que poderia permear o agir médico, aliando os dados referentes à

saúde ou doença da parte específica em detrimento do estado global do paciente.

O tratamento oferecido pelos profissionais da saúde, principalmente médicos,

incide sobre as limitações do paciente, com ausência de explicações acerca do que

acomete o sujeito. A dificuldade de “leigalizar” a doença, através da utilização de

termos do entendimento do paciente, afasta o saber do médico da vivência da doença

por parte do paciente, como dificulta a inserção do sujeito na sociedade. A hegemonia

do olhar que enxerga incapacidades não estimulará o paciente a cuidar de si mesmo,

visto a incompreensão da realidade de sua doença. No âmbito da deficiência,

presenciamos ainda a negação de profissionais a atualizar os conhecimentos referentes à

deficiência por não considerarem tais informações como de grande relevância. E se 18 Dados acerca desta afirmação serão apresentados posteriormente.

4242

fecham, contudo, em seu suposto saber que responde melhor a seus anseios. A partir

dessa ótica, muitos profissionais se orientam por teorias rígidas e inflexíveis, como a

noção de progresso, muito utilizada para avaliar o fenômeno da deficiência. Acerca do

progresso, Werneck (2000) esclarece:

Mas se a humanidade passou séculos sem enxergar o mundo

dos animais invisíveis, como os micróbios, e eles estavam lá,

quem garante que dominemos todas as formas de medir o

progresso humano? E quem garante sabermos o que é

progresso? E quem garante que devemos confiar no que já

sabemos? (p. 196)

Ao questionar o status que a noção de progresso ocupa atualmente, a autora

propõe ao mesmo tempo a reformulação do conceito e seu posicionamento em um novo

lugar, um lugar de incerteza, de mudança. Ressalto, portanto, a existência de

profissionais que vêm buscando quebrar o paradigma médico apresentado, e estes sim,

são os sinais de que dias melhores virão.

A presença maciça da medicalização nas práticas atuais para com o deficiente é

ainda reavaliada por Skliar (1999). O fenômeno ultrapassou as barreiras da Saúde e

adentrou a Educação, a Psicologia e áreas afins. Assim, também ampliaria seu poder de

ação a outras dimensões do sujeito que não o orgânico; incidiria também sobre sua vida

cotidiana, suas escolhas, ditando a norma. Em escolas e nos estágios realizados, pude

perceber a rotina da medicalização. O medicamento tornou-se a solução para todos os

problemas, desviando o foco da relação estabelecida, que necessitaria de mudanças.

Outra forma de controle, certamente. Observei uma situação de um aluno que perante a

queixa de agressividade foi levado a tomar medicamentos que reduziam suas funções. O

sujeito passou então a um estado de letargia tal, que parecia estar em slow motion

constante.

Os meios de comunicação por sua vez têm considerável responsabilidade na

efetivação da integração ao possibilitar a visibilidade aos deficientes na mídia. Seja por

meio de reportagens, novelas e propagandas a questão da deficiência pode vir à tona,

gerando novos questionamentos com relação a atitudes, direitos e deveres de todos os

cidadãos acerca desta temática. Amaral (1995) relembra algumas sugestões propostas

4343

pela ONU para a inserção do deficiente na mídia19. Como principais pontos, destaco:

a)promover imagens que representem a aproximação do deficiente da sociedade,

visando a tornar familiar sua presença, considerando o incômodo natural que surge

destas relações; b)propagar terminologias de caráter descritivo, evitando os aspectos

valorativos, de modo a evitar os estereótipos; c)não esconder as dificuldades pelas quais

os deficientes passam, desde que sejam apresentadas de forma a não destacar os

conteúdos emocionais referentes a estas situações. Nestes, incluo a necessidade de

apontar a deficiência como assunto digno de divulgação. Como mostra a jornalista

Claudia Werneck (2000), as redações dos jornais e revistas atendem a demanda de

publicações geradoras de polêmica; esta é a linguagem da mídia de início do século

XXI. Como polemizar a questão da deficiência não é tarefa difícil - visto a exposição da

representação social do deficiente frente à sociedade – resta a motivação para buscar

meios de propagar as informações da área, direcionando-as para o público alvo.

No meio empresarial, encontra-se garantida a inserção da pessoa com

deficiência no mercado de trabalho desde 1991, quando foram propostas cotas de vagas

proporcionais ao número de funcionários da empresa. Ao lado disso, a noção de

Responsabilidade Social estimula empresas a aceitarem a contratação de pessoas com

deficiência pelo fato de com isso melhorar sua imagem, sendo reconhecidas como

“empresa cidadã” ou “empresa ética” ao mesmo tempo em que recebem redução de

impostos. A imagem da empresa é, portanto, construída pela via da solidariedade. E

novamente o ciclo do estereótipo do deficiente como “pobrezinho” se retroalimenta.

Considerando que a redução dos impostos não será desvinculada da Responsabilidade

Social – visto que esta é uma expressão do sistema econômico vigente - mostra-se

necessário compreender as representações que inspiram as práticas. Ao invés de nos

atermos à imagem do que inclui, pensemos no sujeito incluído.

Outro tipo de instituição que recebe os excluídos são as Organizações Não-

Governamentais, sustentadas geralmente pela comunidade através de doações, são

imbuídas novamente do véu da solidariedade. Os governos destinam verba para estes

projetos, no entanto o atraso compromete a manutenção da instituição. Quando a verba

finalmente é recebida pela instituição, percebe-se a insuficiência de se sustentar por ela.

A última, porém não menos importante instituição a ser citada é a escola, aquela

em que as questões acerca da Educação Especial despertaram questionamentos abertos

ao debate. Esta é a área com a qual pude estabelecer o primeiro contato com relação à

19 Sugestões provenientes de uma reunião da Organização das Nações Unidas realizada em 1982.

4444

deficiência. É possível perceber que os questionamentos provenientes da experiência

vivida ressoaram por muito tempo e vem sendo destrinchados no presente estudo.

O projeto da Educação Inclusiva, elaborado pelo Governo brasileiro, traz em seu

texto significativas mudanças para a nossa sociedade. Entretanto, as críticas recaem

sobre a viabilidade da proposta. Como já comentado, a presença do deficiente em sala

de aula, compartilhando o espaço físico com alunos sem deficiência, não garante sua

real inclusão da mesma forma que não colaborará na construção de valores calcados em

princípios éticos. Porém, como ressalta Amaral (1995), quem sabe à primeira vista este

não seja o início de uma busca maior de saber sobre questão da deficiência.

A inclusão corre o risco de banalização nos dias atuais, com a ausência de

reflexão em seu pólo oposto, a exclusão social. Assim, um movimento possível

considera que quem exclui são os outros, revestindo os que defendem a inclusão com

áurea nobre; reconhecidos pela sociedade. Contudo, a realidade aponta que a sociedade

resiste a aceitar a proposta inclusiva, ou por vezes a entende erroneamente, reforçando

ainda mais o ambiente propício à exclusão. Para a inclusão se realizar não é suficiente

“estar dentro” da instituição, é preciso haver relação. Acerca da criação da rede pública

de ensino, em que também se formaram mecanismos excludentes, Lobo (2000) ressalva:

O crescimento da rede pública de ensino regular, ainda que

insuficiente para absorver toda a população infantil, apenas

acelerou o processo de seleção das crianças, cujo objetivo não

foi propriamente a inclusão dos inadaptados em outro espaço

escolar, mas a sua simples exclusão da escola (p.110).

A criação da Escola Especial, como visto, visou a diminuição do número de

alunos nas escolas regulares. Segundo a autora, a justificativa apresentava na verdade

um desejo de eliminar os deficientes das escolas. Os dias atuais apontam as Escolas

Especiais como resguardo da deficiência; a proteção necessária para que o mundo não

os incomode e imponha dificuldades. O discurso geralmente provém de escolas

regulares que não aceitam crianças deficientes; argumento utilizado por muitos

educadores ao sugerir aos pais de alunos que assim o façam.

Por outro lado, existem aqueles educadores que questionam as instituições

especiais, dentre eles Skliar (1999). De acordo com o pensamento do autor, a inserção

do deficiente nestas instituições viabilizaria a omissão do sujeito; oprimindo o que na

4545

verdade serviria para dar asas. O aprisionamento do sujeito agiria como reflexo de

fatores diversos. A compreensão da questão da deficiência não deve ser considerada

pelo fator biológico; está atravessada por conteúdos culturais, históricos, políticos e

econômicos.

A política de Educação Inclusiva não prevê espaço para escolas especiais, tendo

em vista que estas segregam ao invés de incluir. Por outro lado, o trabalho que tais

instituições vêm desenvolvendo assiste a uma parcela da população que não recebe a

atenção do Estado (Silva, 2005).

Veiga-Neto (2001) aponta que a mudança institucional prevê a revisão das

dificuldades enfrentadas com a proposta inclusiva, através da revisão dos conceitos que

sustentam discursos e práticas. Tal revisão visa a desnaturalização e desconstrução dos

conceitos, marcados por aspectos sócio-históricos. A visão equivocada do fenômeno da

inclusão como composta por relações de causa-efeito é questionada pelo autor que,

inspirado em Deleuze (1988), acrescenta que “se trata, aqui, de intrincadas e poderosas

relações de causalidade imanente” (p.110). Assim, exemplifica que a dificuldade de

ensinar em classes inclusivas não se refere às diferenças cognitivas dos alunos, e sim à

divisão em classes que, na pretensão de instaurar a norma, separa normais e anormais,

marcando fortemente suas diferenças.

Ainda no questionamento dos conceitos, Veiga-Neto (2005) questiona as

significações que permeiam os termos diferença, desigualdade, igualdade, diversidade;

palavras-chave nas políticas públicas e nos discursos acerca da inclusão. A confusão

encontra-se presente na tentativa de, ao valorizar a diversidade como um objetivo,

equiparar diferença e desigualdade como sinônimos. Através do equívoco, se expressa a

idéia de equalizar as diferenças. E, realmente, ao mesmo tempo em que queremos a

igualdade (de direitos e oportunidades) queremos que as diferenças individuais sejam

respeitadas. Porém, a noção da escola inclusiva como uma “escola para todos” precisa

igualmente de questionamento acerca das implicações. Caso contrário, defenderemos

uma escola aberta a todos, contanto que todos tornem-se iguais dentro dela – o

fenômeno da homogeneização aplicada às instituições. O autor ressignifica a escola

inclusiva ao calcá-la na responsabilidade de traduzir diferentes culturas, respeitando e

lidando com as diferenças de cada sujeito.

4646

4.2 - Inclusão: Uma questão de Direitos Humanos

A luta pela dignidade do sujeito – com deficiência ou não – aproxima a temática

da inclusão dos Direitos Humanos. De forma a clarificar a relação proposta,

apresentarei o modelo de Desenvolvimento Inclusivo, elaborado pela Equipe

Deficiência e Desenvolvimento Inclusivo, da Região da América Latina e Caribe do

Banco Mundial, coordenado por Rosangela Bieler e Catalina Devandas Aguilar.

A partir da constatação da ineficácia dos modelos propostos até hoje na geração

de bem-estar e qualidade de vida à população, e devido à grande parcela de excludentes

produzidos pelas políticas públicas até então elaboradas, foi criado um novo modelo que

pretende estender-se a todos os espectros da população, pretendendo viabilizar o aparato

social à inclusão. O objetivo do modelo consiste em desconstruir a disposição

compartimentada dos diferentes setores sociais através da convergência de esforços no

conceito de Desenvolvimento Inclusivo, que permearia todos os segmentos da

sociedade visando o atendimento às necessidades humanas.

O cerne do modelo, portanto, encontra-se na elaboração de políticas públicas;

que devem contemplar a inclusão sob a ótica dos Direitos Humanos. A filosofia da

inclusão colaborará na elaboração de meios de reverter o conhecimento acerca da

diversidade na melhoria e criação de políticas públicas. A definição do modelo de

Desenvolvimento Inclusivo segundo Bieler (2005) segue abaixo:

Entendemos por ‘desenvolvimento inclusivo’ a concepção e

implementação de ações e políticas para o desenvolvimento

sócio-econômico e humano que procuram a liberdade, a

igualdade de oportunidades e direitos para todas as pessoas,

independentemente do seu status social, seu gênero, idade,

condição física ou mental, sua raça, religião, opção sexual, etc.,

em equilíbrio com o seu meio ambiente (p.2).

As especificidades provenientes das diferenças entre os estratos da sociedade são

compreendidas como um valor e, principalmente, um direito. A proposta toma o

caminho contrário ao de condutas comuns na área da deficiência, em que a justificativa

da exclusão recai sobre a diferença.

4747

Ao lado da discussão de cunho valorativo, a realidade sócio-econômica dos

países em desenvolvimento – dentre eles o Brasil – acentua as dificuldades dos

deficientes. Estimativas presentes no documento do Banco Mundial (2005) apontam que

as pessoas com deficiência contabilizam 600 milhões no mundo todo. Integrante do

bloco de países em desenvolvimento, o Brasil conta com 14,5% de sua população com

deficiência (dados do IBGE). Destes, 27% vive em pobreza extrema enquanto 53% são

pobres (Censo de 2000). Os dados possibilitam afirmar que a pobreza possui papel

significativo na realidade da deficiência.

O modelo preconiza a prevenção como uma estratégia de inclusão. Mecanismos

de intervenção através da prevenção interfeririam diretamente no contexto propício à

deficiência relacionada à pobreza. A escassez de recursos, assim como fatores como

violência urbana, conflitos armados, desastres naturais, dentre outros, seriam aspectos

em que as políticas poderiam se pautar.

O principal meio de possibilitar uma vida digna às pessoas deficientes que

vivem na linha da pobreza consiste em eliminar as barreiras que bloqueiem o acesso aos

direitos do cidadão. Os programas voltados para a área da deficiência não atingiram a

maior parte da população constituindo-se, portanto, no reforço da exclusão. A partir da

atitude dos gestores de elaborarem suas políticas a população como um todo, não será

mais preciso repensar movimentos com as ilhas de excluídos remanescentes.

Uma saída encontrada pelos gestores do Banco Mundial é avistada nos

princípios do “desenho universal”. Este se refere a noção da acessibilidade aos

deficientes, seja em qual área for. Acerca do design das construções, por exemplo,

argumenta-se que o custo das modificações sobre uma construção já existente são

onerosos perante a inserção do “desenho universal” ainda na planta do projeto.

O economista do Banco Mundial Robert Metts (2004), em histórico preparado

para a reunião sobre a pesquisa de deficiências e desenvolvimento, na sede do Banco

Mundial, esclarece certos pontos no tocante da pesquisa sobre a deficiência, apontando

como aspecto principal a discussão acerca da deficiência como uma questão de

desenvolvimento. Ao longo do documento, apresenta dois modelos de classificação de

deficientes, calcados em naturezas distintas, o ICIDH e CIF20, que pautaram pesquisas

que avaliam aspectos da deficiência, como prevalência da população deficiente em

20 A “International Classification for Impairments, Disabilities and Handicaps” (ICIDH) foi elaborada nos anos 80 a fim de aliar os aspectos ambientais, pessoais e sociais na análise da deficiência. Enquanto a “Classificação Internacional de Funcionalidade, Deficiência e Saúde” (CIF) foi adotada em substituição à Classificação anteriormente citada. Nas pesquisas acerca da deficiência, as duas Classificações – criadas pela Organização Mundial de Saúde - são utilizadas.

4848

países classificados segundo indicadores do Índice de Desenvolvimento Humano, perda

de PIB proveniente da falta de atendimento ao deficiente, dentre outros.

Metts (2004) reforça a necessidade de que as políticas enfoquem temas como:

estratégias de restauração e reabilitação física; políticas de inclusão e estratégias

afirmativas para a inclusão de pessoas com deficiência nas principais atividades de

saúde, educação, recreação, bem como nas principais atividades vocacionais e cívicas; e

esforços sistemáticos para a remoção e prevenção de barreiras arquitetônicas.

Ao nos depararmos com as necessidades expostas pelos gestores responsáveis

pela elaboração de políticas públicas, resta-nos uma última questão: E onde a Psicologia

se implica neste processo?

Silva (2005) nos mostra a ligação da Psicologia com os Direitos Humanos. Tal

ligação é estabelecida por meio das idéias e ações oriundas dos psicólogos engajados

nas Comissões de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia. E é nessa

dinâmica que a temática dos Direitos Humanos se fez presente: seja assistindo a

inoperância do Estado na assistência aos direitos do cidadão ou à ação do Estado que,

justificando-a como garantia de direito, viola o direito em si.

Por muito tempo os psicólogos não admitiam a discussão de assuntos políticos

ao lado dos temas da Psicologia, almejando assim alcançarem o patamar da

neutralidade, sem posicionamentos. E hoje, tratar de Direitos Humanos é trazer a

política para compreender a prática profissional, exigindo uma postura por parte do

psicólogo. O exercício desse ofício incomoda aqueles que se esforçam por manter “a

ordem”, e segundo o autor, uma prática profissional que não incomode a ninguém é

uma prática conivente à norma instituída.

É notório que qualquer violação aos Direitos Humanos implica sofrimento

mental por parte do indivíduo. A noção de sofrimento mental utilizada pelo autor tem

sua origem nas relações institucionais operacionalizadas pelas agências do Estado que

impõem mal-estar ao indivíduo. Assim, a via através da qual a Psicologia se apresenta

como chave-mestra das dinâmicas estabelecidas foi encontrada.

Ainda na base das idéias, a Psicologia tem enorme responsabilidade quanto às

ideologias que desperta em detrimento de um saber produzido empiricamente. Sabemos

que qualquer teoria não é produzida descolada do seu contexto cultural; ela é localizada

em um espaço e responde a uma demanda. Portanto, as teorias podem ser posicionadas

política e ideologicamente. Daí a importância da análise por parte da Psicologia dos

contextos sociais e dos processos de produção de identidade, como também de suas

4949

possíveis conseqüências. Para tanto, é preciso que nos debrucemos sobre a questão dos

Direitos Humanos sob a ótica da Psicologia, enquanto práxis e saber.

Mais importante do que julgar atitudes é preciso que reavaliemos nossa postura

como psicólogos; avaliar a questão da Inclusão sobre as mais variadas perspectivas a

fim de que não sejamos tendenciosos e possamos difundir uma conduta acima de tudo

ética.

O ponto de partida para a análise dessa questão é a própria Psicologia e seu

papel como promotora dos Direitos Humanos, como da sua violação. No início da sua

prática, a Psicologia foi agente de exclusão social, quando no trabalho de Nina

Rodrigues justificava e reiterava o racismo ao questionar a capacidade cognitiva dos

afro-brasileiros. E no contraponto desta posição, a Psicologia de hoje se vê

comprometida com grupos minoritários, reafirmando a identidade e “sustentando

legitimamente a diferença” (Silva, 2005, p. 27). Sobre a postura de especialistas perante

a resistência cultural de grupos minoritários21, Skliar (1999) denuncia:

Porém, também, essas narrativas estão sendo observadas, à

distância, com suspeita e receio. Muitos especialistas se

interrogam, ainda, se aquilo que está ali é uma língua, uma

cultura. Enquanto se perguntam a si mesmos, olhando para a

ponta de seus pés, se excluem a si mesmos de conhecer aos

outros, de viver com os outros, de escutar aos outros. Excluem

aos outros. Assim se profanam as línguas e as culturas da

alteridade: acreditando que aquilo que tem sobrevivido a todas

as formas imagináveis de controle, invenção e exclusão desde

a normalidade, simplesmente, não existe (p.27).

Considerar a dialética inclusão/exclusão como uma luta intercultural, quando a

possibilidade de convivência entre culturas não é impossível, aponta uma saída para

compreender os conflitos que se apresentam. Neste aspecto, a deficiência dispensa

particularidades, visto como um fenômeno singular de um sujeito imerso na rede de

significações que a cultura produz.

Voltando a contemplar a dinâmica social em que o deficiente está inserido,

Amaral (1995) defende a integração, sem que para isso a deficiência seja posicionada

21 A citação se refere à população surda, porém a dinâmica de exclusão do outro pode se fazer presente em quaisquer relações estabelecidas com grupos minoritários.

5050

no centro da existência do sujeito. Para isso, descreve quatro níveis que permeariam o

processo de inclusão; são eles: integração física, redução da distância funcional,

integração social stricto sensu, e por último a integração social lato sensu.

No primeiro nível, a integração se daria pela aproximação física dos deficientes

da sociedade. No entanto, como já mencionado anteriormente, estar ao lado de não

garantiria uma genuína integração, visto a importância da relação no questionamento e

possível mudança de atitude. A integração restrita ao âmbito físico pode realçar os

estereótipos e preconceitos acerca da pessoa deficiente. Somente um movimento

atitudinal por parte da pessoa não-deficiente que, insatisfeita com os discursos prontos

acerca da deficiência, se coloca disposta a construir um discurso próprio oriundo da

experiência que pode ser vivida.

O segundo nível contempla uma aproximação funcional do deficiente, em que se

visa a igualdade de oportunidades. No entanto, a disposição de oportunidades não prevê

o encontro do deficiente com a sociedade; possibilidades são viabilizadas, porém cada

um de um lado. Mesmo já mencionado, é válido retornar: a construção de uma

sociedade em que todos possam viver dignamente implica a ação coletiva. Na união das

forças de todos os sujeitos o sonho de uma sociedade justa – em que a idéia da inclusão

não seja mais necessária – pode ser concretizado.

A integração social stricto sensu prioriza a comunicação entre os sujeitos, em

que a idéia de integração se aproxima de seu ideal. De acordo com Amaral (1995), este

nível conduz à redução do sentimento de isolamento vivida pelo sujeito deficiente. No

entanto, as relações estabelecidas podem ser verticais no tocante de sua finalidade;

permeadas pela idéia do poder, tais relações aprisionam o sujeito ao contrapor suas

incapacidades às capacidades dos demais sujeitos.

Por fim, o quarto nível de integração, a integração social lacto sensu, incita a

necessidade de união de esforços na elaboração de um sistema de apoio envolvendo

todos as esferas da sociedade. A partir de ações em todos os âmbitos: na economia,

política, em ações estruturais, arquitetônicas, de planejamento e gestão até as

reformulações das relações cotidianas.

Se for possível nadar na contramão do conceito primeiro de “instituição”, que as

instituições de hoje apresentem arestas mais flexíveis, que possam ser reformuladas e

trocadas de lugar. A Psicologia, assim como seus profissionais, devem promover que os

deficientes se tornem inteiros em relação a si mesmos, e não em relação a parâmetros

externos. Devemos promover seu posicionamento no mundo, como sujeitos que são,

detentores de saber e de experiências vividas - pois cabe a eles, por excelência, discorrer

5151

sobre as dificuldades que enfrentam e as possibilidades que avistam. Retomando por

fim à idéia da rede, acredito que a ação integrada das diversas áreas do saber -

comprometidas com a construção de novos valores e parâmetros acerca da deficiência -

abrirá horizontes outros; ressignificando conceitos, refazendo fazeres.

5252

Conclusão

A partir da experiência este estudo começou, e na experiência desembocará. O

caminho aparentemente inverso, da vivência de campo à teoria, trouxe implicações que

variaram do estranhamento inicial à compreensão e aprofundamento das questões acerca

da deficiência. A percepção da diferença mobilizou a curiosidade e a vontade de

continuar a atuar na área. O confrontamento com práticas excludentes inspirou-me na

busca por meios de transcender a realidade que se apresentava.

As teorias sociológicas acerca da exclusão, que tendiam a associá-la à pobreza,

contemplavam os fenômenos sociais com as lentes que sua natureza teórica permitia.

Partimos então da esfera macro, onde mecanismos de aceitação e negação eram

calcados em aspectos de status social e renda, para a análise do micro, das relações

interpessoais, em que o status se referia às questões da norma e da diferença. Em

paralelo à elaboração dos conceitos capazes de explicar o fenômeno da exclusão,

surgiam movimentos de pessoas interessadas em quebrar com as dinâmicas expressas

por estes conceitos, propondo modificações estruturais em prol de uma sociedade

inclusiva.

As instituições sociais, promotoras de discursos e práticas que colaboram para a

formação moral e ética da sociedade, são o foco das propostas inclusivas. Percebe-se

que atualmente grande parte das instituições, moldadas sob formas arcaicas, perpetuam

a imagem do deficiente como merecedor de caridade e bem-feitorias sob a justificativa

de sua condição “inferior” a nossa, “normais” que somos. Porém, tais atitudes que

compartilhamos são alimentadas pelas diversas instâncias da sociedade, cada uma a sua

forma, como também por cada um de nós, responsáveis pela realidade de exclusão que

presenciamos hoje.

Considerando que o alicerce das práticas institucionais vigentes se encontra na

elaboração de leis e políticas públicas, a elaboração de um modelo que considere a

inclusão sua natureza antes que seu fim, promoverá a construção de uma sociedade

cujos valores e práticas produzam novos meios de lidar, através do respeito e da

oportunidade de direitos, com todas as diferenças.

5353

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Tambellini. Roteiro: João Jardim. Intérpretes: José Saramago, Wim Wenders, Hermeto

Pascal e outros. Rio de Janeiro: Copacabana filmes, 2002. 1. DVD (73min).