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Paulo César Figueiroa Cacciatori
A DIMENSÃO CONSTITUCIONAL DA PRISÃO EM FLAGRANTE
Centro Universitário UniToledo Araçatuba
2007
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Paulo César Figueiroa Cacciatori
A DIMENSÃO CONSTITUCIONAL DA PRISÃO EM
FLAGRANTE
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito à banca examinadora do Centro Universitário Toledo, sob a orientação do Professor Doutor Antônio Scarance Fernandes.
Centro Universitário UniToledo Araçatuba
2007
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Banca Examinadora
_______________________________________ Dr. Frederico da Costa Carvalho Neto
________________________________________ Dr. José Eduardo de Almeida L. Ferreira
________________________________________ Dr. Antônio Scarance Fernandes
Araçatuba, 31 de Agosto de 2007.
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Dedicatória
Dedico ao companheirismo de Jane, esposa querida, e de minhas adoráveis filhas Larissa e Mirella, que sempre me incentivaram na conquista deste título.
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Agradecimentos
Agradeço à Instituição Toledo de Ensino que possibilitou a realização do curso de Mestrado. Em nome do professor José Sebastião de Oliveira, agradeço a dedicação dos demais professores do curso, que certamente enriqueceram o nosso conhecimento. Em especial agradeço ao profº Doutor Antônio Scarance Fernandes que permitiu a aproximação da riqueza do seu conhecimento, da beleza de sua simplicidade e humildade, valores nobres, exemplos jamais esquecidos.
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Resumo
A prisão foi e sempre será considerada o mecanismo cruel e amargo que o Estado utiliza sempre que por vontade própria o homem violar os preceitos legais que amparam os direitos da sociedade. Este trabalho tem por objetivo demonstrar que, apesar da ocorrência das violências, caracterizadas por afrontarem as normas protetoras de convivência do homem em sociedade, redundando como conseqüência no cerceamento da liberdade por meio da prisão em flagrante, na escuridão dessas agressões faz-se presente a luz do direito, que não só protege a sociedade, mas também prevê ao indiciado mecanismos de proteção que se constituem nas garantias constitucionais. Da evolução histórica da prisão em flagrante às nulidades processuais que se refletem no momento da detenção e se estendem à autuação da prisão, procuramos consignar as garantias previstas em nossa Constituição sem esquecer a interpretação doutrinária, retratando alguns aspectos do direito europeu e da América do Sul, em especial de Portugal e da Argentina. Palavras-chave: prisão, violar, direitos, liberdade, garantias.
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Abstract
Prison has always been considered the cruel and bitter mechanism used by the State that becomes present whenever man, in his own wish, violates the legal precepts that support the society rights. The present work aims to demonstrate that despite of the occurrence of violent acts, which are characterized by confronting the protective rules of the men society life, resulting in the retrenchment of the freedom by caught red-handed prison, the law is present underlying those aggressions, which not only protects the society, but also guarantee the defendant protection mechanisms, which constitute of constitutional guarantees. From the historical evolution of the caught red-handed prison to the processual annulments that reflect on the imprisonment moment and are extended to the prison notification, we seek to document the previewed guarantees in our Constitution, also considering the doctrinaire interpretation, representing some European and Latin American law aspects, especially Portugal’s and Argentina’s. Keywords: prison, violates, rights, freedom, guarantees.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................
I. ASPECTOS GERAIS DA PRISÃO EM FLAGRANTE ..........................................
1.1 Evolução histórica da prisão em flagrante ........................................................
1.1.1 Conceito ...........................................................................................................
1.1.2 A finalidade da prisão em flagrante..................................................................
1.2 Prisão em flagrante nas Constituições do Brasil ................................................
1.2.1 Constituição do Império de 1824 .....................................................................
1.2.2 Código de Processo Criminal – Lei de 29.11.1832 .........................................
1.2.3 Lei nº. 261, de 3.12.1841 – Reformas ao Código de Processo ........................
1.2.4 Regulamento nº. 120, de 31 de Janeiro de 1842 ..............................................
1.2.5 Constituição de 1891 e o Período Republicano ...............................................
1.2.6 A prisão em flagrante no Código de Processo Penal de 1941 – Decreto-Lei
nº. 3.689 – e em alterações futuras ...........................................................................
II. ASPECTOS CONTROVERTIDOS DA PRISÃO EM FLAGRANTE ..................
2.1 A prisão em flagrante e o ônus da prova ............................................................
2.2 O flagrante e os indícios .............................................................................
2.3 A prevaricação e a livre convicção no auto de prisão em flagrante ....................
2.4 A aparente incompatibilidade entre a prisão em flagrante, o princípio do
estado de inocência e os antecedentes criminais .................................................
2.4.1 O princípio do estado de inocência, o uso da proporcionalidade e a prisão
em flagrante ........................................................................................................
2.4.2 A presunção de inocência e os antecedentes criminais ...................................
III. FLAGRANTE: ESPÉCIES........................................................................................
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3.1 Espécies de flagrante .........................................................................................
3.1.1 Flagrante próprio ou real ...............................................................................
3.1.1.1 Está cometendo o crime – flagrante real ....................................................
3.1.1.2 Acaba de cometer o crime – flagrante real ................................................
3.1.2 Flagrante impróprio e presumido (ficto) ........................................................
3.1.2.1 Flagrante impróprio ......................................................................................
3.1.2.2 Flagrante presumido ou ficto .......................................................................
3.1.3 O Flagrante e o chamado “encontro” .............................................................
3.1.4 Flagrante compulsório e facultativo ...............................................................
3.1.5 Flagrante prorrogado ou retardado .................................................................
3.1.6 Flagrante preparado, forjado e esperado ........................................................
3.1.6.1 Flagrante preparado ......................................................................................
3.1.6.2 Flagrante forjado ..........................................................................................
3.1.6.3 Flagrante esperado .......................................................................................
IV. FLAGRANTE NOS DIFERENTES CRIMES .........................................................
4.1 Crimes de ação penal privada e pública condicionada .....................................
4.2 Flagrante nos crimes permanentes e habituais ..................................................
4.2.1 Crimes permanentes .........................................................................................
4.3 Crimes habituais .................................................................................................
4.5 Crimes de tóxicos ..............................................................................................
4.6 Prisão em flagrante e crimes praticados por entes jurídicos...............................
4.7 Prisão em flagrante e crimes praticados por aqueles que possuem foro
privilegiado ................................................................................................................
4.8 Prisão em flagrante e violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei nº.
11.340/06 ..................................................................................................................
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V. AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE, CAUTELAS, OBSTÁCULOS E
FORMALIDADES..................................................................................................
5.1 Auto de prisão em flagrante ...............................................................................
5.1.1 Autoridade competente para lavratura do auto de prisão em flagrante .........
5.1.2 Autoridade competente e o procedimento especial para autuação do
flagrante ..........................................................................................................
5.1.3 A prisão em flagrante do perseguido fora do distrito da culpa ......................
5.2 A valoração das provas e o convencimento para a prisão em flagrante ............
5.3 Sujeitos da prisão em flagrante ..........................................................................
5.3.1 Sujeito ativo ....................................................................................................
5.3.2 Condutor ..........................................................................................................
5.3.3 Testemunhas ....................................................................................................
5.3.4 Vítima ..............................................................................................................
5.3.5 O autuado e seu interrogatório .........................................................................
5.4 A confissão do autuado ......................................................................................
5.5 Direito à prisão especial .....................................................................................
5.6 Alterações no auto de prisão em flagrante por força da Lei Federal nº.
11.113 de 16/5/2005 ............................................................................................
5.7 Cautelas necessárias para a lavratura do auto de prisão em flagrante ................
5.7.1 Cautelas na separação do condutor, testemunhas, vítima e conduzido ...........
5.7.2 A preservação do local, a apreensão dos objetos que compõem o corpo do
delito, a recognição visuográfica e a realização dos exames periciais ...........
5.7.2.1 A preservação do local do crime ..................................................................
5.7.2.2 A apreensão dos objetos e coisas que tiverem relação com o fato
criminoso........................................................................................................
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5.7.2.3 A recognição visuográfica de local de crime ................................................
5.7.3 O atendimento ao conduzido e a realização de exames de corpo de delito .....
5.7.4 A informação preliminar sobre os direitos constitucionais do conduzido........
5.7.5 A necessidade do uso das algemas ..................................................................
5.8 Obstáculos à realização do auto de prisão em flagrante .....................................
5.8.1 Apresentação espontânea do criminoso ...........................................................
5.8.2 Imunidades parlamentares ...............................................................................
5.8.3 Infrações da competência da Lei 9.099/95 ......................................................
5.8.4 Crimes de trânsito ...........................................................................................
5.8.5 Excludentes de criminalidade .........................................................................
5.8.6 Princípio da insignificância .............................................................................
5.9 Formalidades do auto de prisão em flagrante .....................................................
5.9.1 Escrivão competente e “ad hoc”......................................................................
5.9.2 Recibo da entrega do preso - alteração do artigo 304 do CPP, Lei nº.
11.113/05 .........................................................................................................
5.9.3 Compromisso do condutor e da testemunha ....................................................
5.9.4 Ausência de testemunhas .................................................................................
5.9.5 Ordem de inquirição ........................................................................................
5.9.6 Prazo para a lavratura do auto de prisão em flagrante .....................................
5.9.7 Presença do tradutor e intérprete .....................................................................
5.9.8 A ratificação da voz de prisão e o despacho fundamentado ............................
5.9.9 A nota de culpa e o direito de informação .......................................................
5.9.10 O impedimento ou a recusa em assinar a documentação do auto de prisão
em flagrante ...................................................................................................
5.9.11 Apreensão dos objetos e valores na presença do condutor e testemunhas
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VI. AS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS E O CONTROLE JURISDICIONAL
DA PRISÃO EM FLAGRANTE .............................................................................
6.1 As garantias constitucionais da prisão em flagrante ...........................................
6.1.1 Comunicação da prisão em flagrante ao juiz competente ...............................
6.2 A assistência da família e de advogado ..............................................................
6.3 O respeito à integridade física e moral do conduzido ........................................
6.4 O direito de manter-se em silêncio .....................................................................
6.5 A caracterização do abuso de autoridade e o flagrante ......................................
6.6 O direito de não ser identificado criminalmente .................................................
6.7 O direito de ser indenizado pelo erro judiciário .................................................
6.8 A inviolabilidade do domicílio e a prisão em flagrante.......................................
6.9 O controle jurisdicional da prisão em flagrante ..................................................
6.9.1 Relaxamento da prisão .....................................................................................
6.9.1.1 Relaxamento da prisão por ato da autoridade policial ..................................
6.9.1.2 Relaxamento da prisão por ato da autoridade judiciária ...............................
6.9.2 O direito à fiança e à liberdade provisória. ......................................................
6.9.3 A liberdade provisória concedida pela autoridade policial ..............................
6.9.4 A liberdade provisória concedida pela autoridade judiciária ..........................
6.9.5 A conversão judicial da prisão em flagrante em prisão preventiva .................
6.9.6 As nulidades e a prisão em flagrante ...............................................................
CONCLUSÃO ..........................................................................................................
REFERÊNCIAS.........................................................................................................
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INTRODUÇÃO
A privação da liberdade de alguém sempre foi tema de destaque.
No Brasil, o temor das atrocidades e as prisões injustas até então previstas
no Livro V das Ordenações Filipinas foram afastadas pela Constituição Imperial de l.824.
Nessa Carta, a prisão passou a ser regulamentada e prevista no inciso X do artigo 179,
dispondo que o cerceamento da liberdade somente poderia ocorrer nos casos de flagrante
delito e por força de autorização judicial.
O pensamento garantista daqueles constituintes se refletiu em todas as
Cartas que se seguiram, as quais contiveram normas de semelhante teor:. artigo 72, §13 da
Constituição de 1891; artigo 113, inciso XXI da Constituição de 1934; artigo 122, inciso II da
Constituição de 1937; artigo 141, § 20 da Constituição de 1946; artigo 150, § 12 da
Constituição de 1967; artigo 153, § 12 da Emenda Constitucional nº. 1, de 1969 e artigo 5º,
inciso LXI da Constituição de 1988.
Nem poderia ser de outra forma, tendo em vista que a liberdade do ser
humano é o bem maior a ser preservado, no entanto poderá ser restringida quando alguém, no
gozo dessa mesma liberdade, realizar conscientemente conduta tipificada como crime. Nem
por isso a pessoa presa deixará de merecer amparo, pois se impõe ao Estado e a todos a
obediência e o respeito às garantias constitucionais previstas em favor do acusado.
O estudo sobre a “Dimensão Constitucional da prisão em flagrante” inicia-
se pelo capítulo que trata dos aspectos gerais da prisão em flagrante, no qual se encontram
descritos a evolução histórica, o conceito, a justificativa do instituto e está exposto o
pensamento garantista, que sempre o cercou e evoluiu de forma crescente desde a Carta
Imperial.
O segundo capítulo dedica-se a temas controvertidos relacionados à prisão
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em flagrante, como o ônus da prova, os indícios, a prevaricação e a livre convicção e ainda a
aparente incompatibilidade da prisão em flagrante com o princípio do estado de inocência e os
antecedentes criminais. Nesse capítulo, quanto às espécies e modalidades da prisão em
flagrante, é destacado “o encontro”, que não deve ser confundido com a previsão do inciso IV
do art. 302 do CPP.
O capítulo terceiro descreve o flagrante nos diferentes crimes, como os que
são passíveis de perseguição mediante ação penal privada e pública, os crimes permanentes e
os habituais. Neste capítulo retratam-se ainda temas interessantes, como o da prisão em
flagrante nos crimes de tóxicos, dos crimes praticados por entes jurídicos e o da prisão
originada da violência doméstica e familiar contra a mulher.
As cautelas a serem adotadas, os obstáculos a serem superados e as
formalidades a serem seguidas no auto de prisão em flagrante são examinados no capítulo
quarto. Comenta-se, ainda, sobre a valoração das provas pela autoridade e o seu
convencimento na efetivação da prisão em flagrante, as recentes alterações do modelo de
autuação, a importância da preservação do local, a recognição visuográfica, a necessidade do
uso das algemas, as excludentes de criminalidade e o princípio da insignificância.
O último capítulo foi reservado para as garantias constitucionais, dispondo-
se sobre a necessidade da comunicação ao juiz sobre a prisão do conduzido, a assistência da
família e do advogado, o direito de não ser identificado, o direito de ser indenizado pelo erro
judiciário e o direito ao silêncio.
Encerra-se o trabalho com o exame do controle da prisão em flagrante,
sendo discutidas questões sobre o relaxamento da prisão e a concessão de liberdade provisória
pelas autoridades policial e judiciária, a conversão judicial da prisão em flagrante em prisão
preventiva e as nulidades derivadas de abusos e irregularidades praticadas pela autoridade
policial e seus agentes.
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I. ASPECTOS GERAIS DA PRISÃO EM FLAGRANTE
1.1 Evolução histórica da prisão em flagrante
O cerceamento da liberdade em face de um comportamento contrário aos
bons costumes sempre foi matéria de preocupação.
Romeu Pires de Campos Barros (1982, p. 121) ensina que, no Direito
Romano, o flagrante tinha as finalidades de alcançar o testemunho público do fato punível e
de autorizar o juiz a instruir o processo ex-officio, sem as formalidades solenes da acusação.
No direito medieval, o flagrante de alguém no momento em que cometia um
crime permitia maior celeridade ao rito processual, e, por outro lado, a pena para o autor
surpreendido em flagrante era mais severa em relação ao crime por ele praticado. Com a
evolução do direito, o fato de ser alguém surpreendido em flagrante deixou de ter influência
na punição.
José Henrique Pierangelli (1983, p. 53) esclarece que durante toda a Idade
Média a prisão mereceu uma especial preocupação dos soberanos e procuradores dos
conselhos em cortes, no sentido de se evitarem as prisões ilegais e arbitrárias que privassem
um inocente de sua liberdade.
Conforme discorre o autor, nos conselhos só os juízes podiam ordenar a
captura, enquanto nas localidades onde existisse castelo, como o policiamento pertencia ao
alcaide, que, por sua vez, delegava a função ao alcaide-menor, também eles podiam prender.
Os meirinhos e corregedores, ao realizarem suas inspeções, podiam ordenar a prisão dos
suspeitos.
No século IX, buscando fixar o direito público de cada localidade, surgiram
os forais, também conhecidos como cartas pueblas ou cartas de povoação, e que mais tarde
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deram lugar às leis escritas. Constava desses forais que se a prisão não fosse ordenada pelos
juízes, alvazis ou alcaides, os presos deveriam ser a eles apresentados imediatamente após a
prisão, para que os juízes avaliassem se havia fundamento para a prisão em flagrante. Se não
houvesse, expediam a ordem de soltura.
Pelas mãos de D.Afonso III foi autorizada a Lei n° 1.264, que possibilitava
a liberdade do preso mediante a garantia firmada por fiadores de que ele compareceria
futuramente perante os juízes. Não gozavam dessa faculdade os homicidas, os autores de
feridas ou de chagas graves, os incendiários, os autores de furto manifesto, os britadores de
igrejas e outros. Mesmo para esses os juízes concediam um advogado para a garantia da
defesa.
Sem grandes alterações, o instituto da prisão passou pelas Ordenações
Afonsinas, no período de 1446 a 1520, pelas Ordenações Manoelinas, no período de 1521 a
1603 e pelas Ordenações Filipinas, que vigoraram no período de 1603 a 1830. Nestas, Felipe
I acrescentou a necessidade de três testemunhas nas querelas que resultassem em prisão.
Valdir Sznick (1995, p. 354-356) trouxe à colação a prisão em flagrante por
motivos do “clamor público”. Esse foi um comportamento que viajou no tempo, esteve
presente no direito romano, no direito canônico, no direito visigótico, no direito inglês e no
direito pátrio, trazido pelas Ordenações. O clamor público nada mais era do que o alarme das
testemunhas que presenciavam o crime e aos gritos davam a notícia do fato ocorrido. Sendo o
suspeito detido, era autuado em flagrante.
Com a vinda da Família Real de Portugal para o Brasil, mudanças
significativas ocorreram a partir do ano de 1808: foram criados, dentre outros órgãos, os
cargos de juízes, ouvidores e corregedores, com os respectivos serventuários e oficiais de
justiça.
Por força do Alvará de 15 de janeiro de 1780, determinou-se que todos os
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que haviam sido presos por ordem do Intendente Geral de Polícia ou a partir de requerimento
das partes para posterior formação de culpa fossem levados à presença dos competentes
magistrados para apreciação dos fatos e conseqüente proferimento de sentença. Estabeleceu-
se, então, a manutenção da prisão em razão da culpa ou da liberdade, independentemente de
manifestação do Intendente Geral de Polícia.
No ano de 1821, em decorrência do Decreto aprovado no dia 23 de maio,
foram determinadas providências para a garantia da liberdade individual, ordenando-se que:
a) a partir daquela data, nenhuma pessoa livre no Brasil poderia jamais ser
presa sem ordem por escrito do juiz ou magistrado criminal do território, exceto em flagrante
delito;
b) nenhum juiz ou magistrado criminal poderia expedir ordem de prisão sem
proceder à culpa formada por inquirição sumária de três testemunhas;
c) aos que se achassem presos por terem sido indicados como criminosos
fosse instaurado o devido processo legal.
Pierangelli (1983, p. 53) esclarece que antes da promulgação da
Constituição do Império foram proferidas algumas decisões, que receberam a denominação de
“Decisões do Governo”, conhecidas como legislação suplementar. Dessa forma, o imperador
legislava. Por meio da decisão n° 63, aprovada no dia 08 de março de 1824, foi determinada
punição severa aos escrivãos que protelassem o andamento dos processos de presos
miseráveis, consignando-se, ainda, na decisão n° 78, de 31 de março de 1824, que as
sentenças proferidas fossem devidamente fundamentadas.
Nas Constituições e legislações futuras do Império, nos Códigos estaduais e
no vigente Código, manteve-se essa preocupação com a prisão, sendo sempre tratada
especialmente a prisão em flagrante.1
1 Ver evolução legal e constitucional no nº. 1.2.1 e seguintes.
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1.1.1 Conceito
O termo “prisão” vem do latim aprehensio onis, que tem o significado de
apreender, de clausurar. Nos países europeus, segundo Valdir Sznick (1995, p. 351), a força
probatória negativa da expressão prisão aos poucos foi substituída por arresto, detenção,
captura, custódia. Hélio Tornaghi (1995, p. 48) dispõe que a expressão flagrante origina-se de
flagrans, flagrantis, que significa ardente, brilhante, que está a pegar fogo.
Valdir Sznick (1995, p. 351) assevera que o flagrante representa a evidência
de um fato, por ter sido visto, ouvido, testemunhado, ou, como afirma Hélio Tornaghi (1995,
p. 48), “flagrante é o que está sendo perpetrado, portanto, prender em flagrante é capturar
alguém no momento em que comete um crime”.
Romeu Pires de Campos Barros (1987, p. 118-119) pondera que o flagrante
tem como requisito conceitual a atualidade do delito relacionada à visibilidade. Para o
conhecimento do elemento físico do delito é necessário que alguém perceba a ação do agente
em todo o seu desenvolvimento, e não apenas o evento. No mesmo sentido, Aury Lopes Jr.
(2001, p. 271) preceitua que “o flagrante delito emerge da relativa certeza visual ou
presumida da autoria”.
Nesse sentido Pompeo Pezzatini (1947, p. 295) afirma que “se o flagrante é
o que arde, não poderá arder mais depois de terminada a ação delituosa, já que acabou a
labareda. Acrescenta que o pressuposto do poder de prender não é, portanto, a flagrância, mas
o ser surpreendido na flagrância, demonstrando-se a prevalência do conceito de atualidade
sobre o de visibilidade”.
O flagrante é uma das mais robustas provas do cometimento de um crime e
da autoria. Isto porque o agente é surpreendido no momento em que está cometendo o ato, ou
logo após cometê-lo, quando ainda estão presentes os seus vestígios e ainda palpita o próprio
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crime.
Apesar de ser um conhecimento próximo da verdade, é preciso que a
autoridade policial competente se convença de que não se trata apenas de um quadro montado
ou de um cenário teatral para satisfazer outros interesses.
A realização da prisão em flagrante é de responsabilidade dos órgãos de
segurança pública. As pessoas do povo têm a faculdade de prender aquele que é encontrado
praticando um crime. A prisão enfocada é uma pré-cautela. Está sustentada no periculun in
mora, ou seja, no perigo de se esvair a prova que está inserida no fato criminoso e ao seu
derredor. Ao mesmo tempo, inviabiliza a fuga do responsável e assegura, se necessário, a
futura aplicação da medida cautelar propriamente dita, com a manutenção da prisão.
1.1.2 A finalidade da prisão em flagrante
Romeu Pires de Campos Barros (1982, p. 125) declara que a prisão em
flagrante delito representa uma pronta e eficaz tutela jurídica do Estado, que exercita seu
poder de coação mediante autuação que configura verdadeira autodefesa. Esta atitude é
também permitida ao próprio ofendido e a qualquer do povo. No entendimento de Hélio
Tornaghi (1995, p. 50), “a prisão em flagrante tem a seu favor o consenso universal e
responde não ao desejo de represália, mas ao impulso natural do homem de bem, em prol da
segurança e da ordem”.
Ela assegura a existência das provas do fato criminoso, evita a fuga do
agente e impede sucessivas desordens. Como bem adverte Vicente Greco Filho (1991, p.
236), “duas são as justificativas para a existência da prisão em flagrante: a reação social
imediata à prática da infração e a captação, também imediata, da prova”.
Romeu Pires de Campos Barros (1982, p. 139) considera que o pressuposto
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do poder de captura não é a flagrância, mas a surpresa em flagrante, uma vez que isso implica
um imediato recolhimento do culpado para os fins de justiça, fazendo o Estado sentir o seu
poder de supremacia e o exemplo de sua atuação.
Hélio Tornaghi (1995, p. 48-49) ensina que a flagrância é talvez a mais
eloqüente prova da autoria de um crime e, por essa razão, o legislador não criou nenhum
obstáculo ao ato de se prender aquele que foi encontrado praticando um crime, o que dispensa
a ordem judicial nestes casos.
Acrescenta o autor que a importância da prisão em flagrante para o nosso
direito fez gerar o chamado tríplice efeito de:
a) exemplaridade: serve de advertência aos maus;
b) satisfação: restitui a transparência aos bons;
c) prestígio: restaura a confiança na lei, na ordem jurídica e na autoridade.
Não deixa de ser, conforme ensina Hélio Tornaghi (Idem, p. 7) “para o
autuado um ‘mal’, mas em relação ao Estado, ‘necessário’, no entanto, válido, tolerado
somente nos limites daquela necessidade”.
Sendo a prisão em flagrante o meio de assegurar a transparência dos
elementos probatórios, Valdir Sznick (1995, p. 351-352) pondera que “a natureza jurídica
dessa modalidade de prisão traduz-se em uma medida cautelar”. Assim, permite à Polícia
Judiciária e à Polícia científica reunir as principais provas deixadas pelo autor no momento da
execução do ato ilícito.
Realmente, não há que se considerar a prisão uma antecipação da pena, mas
sim exercício de poder de cautela, que, em um certo prazo, possibilita completar ou
acrescentar outras provas àquelas colhidas no cenário do crime, tranqüiliza a vítima, seus
familiares e as testemunhas e oferece forçosamente horas de reflexão ao indiciado.
A atuação demorada ou frustrada do Estado possibilita a fuga do criminoso,
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o que provoca temor e pavor no meio social e, em relação à investigação, dificuldades em
estabelecer vínculos entre os elementos probatórios e o autor.
1.2 Prisão em flagrante nas Constituições do Brasil
1.2.1 Constituição do Império de 1824
A força do liberalismo inspirou não só a Revolução Francesa do século
XVIII e a independência americana, como também a primeira Constituição do Brasil, em
especial no estabelecimento de um rol de direitos individuais e na separação dos poderes.
Os direitos e garantias individuais da Carta de 1824 apresentavam 35 incisos
no artigo 179. Essas normas se refletiram nas demais constituições que se seguiram, inclusive
na de 1988.
Os mecanismos protetores da prisão injusta ganharam força e foram
inseridos na Constituição do Império de 1824, merecendo amparo legal, nos seguintes incisos:
Inciso 8.° Ninguém poderá ser preso sem culpa formada, exceto nos casos declarados em lei; e nestes, dentro de 24 horas, contadas na entrada da prisão, sendo em cidades, vilas ou outras povoações próximas aos lugares da residência do juiz e nos lugares remotos, dentro de um prazo razoável que a lei marcará, atenta à extensão do território, o juiz por uma nota por ele assinada, fará constar ao réu o motivo da prisão, o nome do seu acusador, e os das testemunhas havendo-as; Inciso 9.° Ainda com culpa formada, ninguém será conduzido à prisão ou nela conservado estando já preso, se prestar fiança idônea, nos casos que a lei a admite, e em geral, nos crimes que não tiverem maior pena do que a de seis meses de prisão ou desterro para fora da comarca, poderá o réu livrar-se solto; Inciso 10.° À exceção de flagrante delito, a prisão não pode ser executada senão por ordem escrita da autoridade legítima. Se esta for arbitrária, o juiz que a deu e quem a tiver requerido serão punidos, com as penas que a lei determinar;
Neste período, advento relevante para o processo penal ocorreu com a
aprovação da Lei de 30 de agosto de 1828 que declarava os casos em que se podia proceder à
prisão por delitos, sem culpa formada.
Dispunha o parágrafo 1° do artigo 1°, da referida lei:
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Os que forem achados em flagrante delicto, entendendo-se presos em flagrante delicto, não só os que se apprehenderem commetendo o delicto, mas também os que se prenderem em fugida, indo em seu seguimento os Officiais de Justiça, ou quaesquer cidadãos, que presenciassem o facto, conduzindo-os directamente à presença do Juiz.
O artigo 2° acrescentava que, à exceção do flagrante delito, não seriam
presos os indiciados sem ordem por escrito do juiz competente, a qual lhe seria intimada no
ato da prisão, dando-se-lhes por cópia.
Com o advento dessa previsão, impediam-se finalmente as prisões injustas e
ilegais. Com os artigos 3° e 4°, da lei, procurava-se separar os presos provisórios dos
definitivos: determinava-se o registro em livros próprios destes atos, com a indicação dos
motivos da prisão, do nome do acusador e das testemunhas.
1.2.2 Código de Processo Criminal – Lei de 29.11.1832
A Constituição do Império de 1824 não só abriu as portas para a criação de
um Código Criminal, como determinou que se realizassem estudos para sua elaboração.
Na medida em que as leis esparsas eram criadas, estabeleciam-se e
fortaleciam-se os alicerces para a criação do Código Criminal. Em 16 de dezembro de 1830
foi sancionado o Código Criminal do Império e, dois anos após, no dia 29 de novembro de
1832, foi promulgado o primeiro Código de Processo Criminal. Este Código inspirou-se nos
modelos inglês e francês, afastando assim, as idéias das legislações lusitanas.
O Código do Processo Criminal, denominado de primeira instância, se
referiu claramente à prisão em flagrante, ao trazer no Capítulo III, artigo 131, a prisão sem
culpa formada e a possibilidade de esta ser executada sem a ordem escrita.
O artigo 144, no capítulo IV, tratava da formação da culpa. Dispunha que,
diante do depoimento das testemunhas, do interrogatório do indiciado delinqüente ou de
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outras informações, o juiz, ao se convencer da existência do delito e da autoria, poderia julgar
procedente a queixa ou a denúncia, por despacho nos autos. Caso não fosse possível o
livramento, o delinqüente seria obrigado a se recolher à prisão. Neste caso, dispunha o artigo
148 do mesmo capítulo que, em 24 (vinte e quatro) horas após a prisão, o juiz deveria dar
ciência ao réu do motivo da prisão, do nome do seu acusador e do nome das testemunhas.
Ainda com relação à prisão sem culpa formada, o Código de Processo
Criminal, em seu artigo 175, no Capítulo VI, deixava consignada a possibilidade da prisão,
sem formação de culpa, aos que fossem indiciados em crimes nos quais não fosse possível a
fiança. No entanto, acrescentava que esta prisão deveria ser sustentada e confirmada
pela autoridade legítima, ou seja, a autoridade competente.
1.2.3 Lei nº. 261, de 3.12.1841 – reformas ao Código de Processo
O Código de Processo Criminal, além de muito esperado, foi aplaudido e
festejado pelos operadores do direito. Entretanto, os aplausos não duraram muito, já que,
alguns anos após, em 3 de dezembro de 1841, por meio da Lei n° 261, foram introduzidas
algumas alterações, que objetivavam aumentar os poderes da Polícia. Essas alterações foram
consideradas um retrocesso, pois o modelo aprovado em 1832 era considerado moderno e
liberal.
A reforma introduziu a figura do Chefe de Polícia, que possuía poderes e
salários iguais aos dos juízes e desembargadores, inclusive com gratificação proporcional ao
trabalho.
O chefe de Polícia e seus delegados tinham o poder de conceder a fiança, de
prender e até mesmo de determinar as buscas sem a necessidade de documento escrito ou
mesmo de informação ou de prova testemunhal, apenas com a existência de indícios.
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1.2.4 Regulamento nº. 120, de 31 de janeiro de 1842
Esse regulamento procurou estabelecer alguns critérios ao excesso de poder
atribuído à Polícia. Assim, no caso da prisão dos culpados e das buscas, tratados no artigo
114, os Chefes de Polícia, Delegados e Subdelegados e Juízes de Paz somente poderiam
prender, fora dos casos de prisão em flagrante e de perseguição, diante da ordem escrita
expedida pela autoridade, conforme disposto previsto no artigo 176 do Código de Processo
Criminal, que regulava os requisitos da ordem escrita. O regulamento manteve ainda, no
artigo 149, o respeito aos presos provisórios, ao separá-los dos condenados.
Avanço significativo ocorreu com a aprovação da Lei nº. 2.033. Dentre
outras medidas, regulamentava o procedimento da prisão, dispondo, no artigo 28, a
desnecessidade da utilização de meios cruéis e degradantes em sua condução e, somente
quando necessário, determinava a utilização dos ferros, algemas ou cordas.
1.2.5 Constituição de 1891 e o Período Republicano
A Proclamação da República ensejava mudanças e, com a nova ordem,
muitos decretos foram editados. Pode-se citar em especial o Decreto n° 774, de 20 de
setembro de 1890, que aboliu as penas das galés, reduziu para 30 anos as penas e,
especificamente no artigo 3°, consignou que o tempo de prisão seria computado na execução
da pena. As alterações ressaltadas demonstravam uma significativa evolução na relação
infração-pena, resultando a prisão como meio alternativo entre os meios degradantes que até
então eram utilizados.
O conteúdo do inciso X do artigo 179 da Carta Imperial refletiu sobre todas
as demais que se seguiram, ao limitar a prisão para os casos de flagrante delito e de quando
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autorizada pela autoridade competente nos casos expressos em lei, devendo, de qualquer
forma, ser comunicada ao juiz competente imediatamente à sua execução2.
1.2.6 A prisão em flagrante no Código de Processo Penal de 1941 – Decreto-Lei nº. 3.689 – e em alterações futuras
As reformas do Código de Processo Penal, segundo o Ministro da Justiça
Francisco Campos (2004, p. 05 e 10), se adequavam aos interesses da boa administração da
Justiça. Em especial, nos casos de flagrante delito, reclamava-se um ajustamento, para buscar
maior eficácia e energia da ação repressiva do Estado.
O Código de Processo Penal de 1832 previa apenas as hipóteses de flagrante
próprio, quando o autor: a) estivesse cometendo a infração Penal; b) tivesse acabado de
cometê-la.
Esse quadro foi alterado com o vigente Código. Os argumentos da comissão
de reforma do Código de Processo Penal foram convincentes e as alterações desejadas assim
foram justificadas:
O interesse da administração da justiça não pode continuar a ser sacrificado por obsoletos escrúpulos formalísticos, que redundam em assegurar, com prejuízo da futura ação penal, a afrontosa intangibilidade de criminosos surpreendidos na atualidade ainda palpitante do crime e em circunstâncias que evidenciam sua relação com este.
Aprovadas as reformas, foram acrescidos dois incisos e assim passou a
dispor o artigo 302 do CPP:
“Considera-se em flagrante delito quem:
2 No mesmo sentido: o artigo 72, § 13 da Carta de 24 de fevereiro de 1891 – Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil; o inciso 21 do artigo 113, da Carta de 16 de julho de 1934 – Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil; inciso 11, do artigo 122, da Constituição de 10 de novembro de 1937 – Constituição dos Estados Unidos do Brasil; o § 20, do artigo 141, da Constituição de 18 de setembro de 1946 – Constituição dos Estados Unidos do Brasil; § 12, do artigo 150, da Carta de 24 de janeiro de 1967 – Constituição do Brasil; § 12, do artigo 153, da Emenda Constitucional n.° 1, de 17 de outubro de 1969 – Constituição da República Federativado Brasil; e incisos LXI, do artigo 5.° da Constituição de 05 de outubro de 1988.
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I – [...] II – [...] III – é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser o autor da infração; IV – é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.
Enquanto os primeiros incisos representam no nosso ordenamento jurídico o
verdadeiro flagrante – “flagrante próprio”, os incisos III e IV, na lição de José Frederico
Marques (1997, p. 77), são considerados “quase flagrante”, uma vez que exigem, para a
formalização da prisão, a convicção sustentada pela valoração e pela coerência das provas
apresentadas.
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II. ASPECTOS CONTROVERTIDOS DA PRISÃO EM FLAGRANTE
2.1 A prisão em flagrante e o ônus da prova
Com a ocorrência de um crime há evidente e inegável interesse na
aplicação do direito penal. A vítima ou seu representante, acompanhando o anseio da
sociedade, de pronto espera a devida punição do agente e a reparação do prejuízo resultante
do fato. O Estado, detentor do jus puniendi, assume, nos crimes de ação penal pública, do
início ao final, a responsabilidade de perseguir o agente e de restabelecer a paz social.
Todas as energias são direcionadas no sentido de - cada qual dentro do seu
âmbito de atuação - provar a verdade, a fim de que o Estado, em obediência ao princípio da
livre convicção fundamentada, profira uma decisão justa. Na lição de Mittermaier (1996, p.
59), “provar é querer, em substância, demonstrar a verdade e convencer o juiz, o qual para
decidir há mister de adquirir plena certeza”.
Os elementos de convicção de sobre a ocorrência do fato que redundou na
prisão de alguém, nos termos do artigo 302, podem chegar à autoridade policial competente
de várias formas: a) por meio de informes precisos e convincentes que revelam existir perfeita
sintonia entre as declarações da vítima, o depoimento das testemunhas e a confirmação dos
fatos pelo conduzido – há, assim, convicção necessária para a autuação da prisão em
flagrante; b) por meio de informes frágeis, pois, em virtude da omissão do condutor, deixou-
se de colher informações relevantes ou não se apresentaram testemunhas e outros meios de
prova, traduzindo dados contraditórios e confusos – a convicção deverá ser alcançada por
meio de investigação rápida mas cautelosa a fim de se decidir pela manutenção ou não da
prisão; c) por meio de informes que evidenciam a existência de um fato que não caracteriza
crime, ou, se mostram a caracterização de um crime, não evidenciam a participação do
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conduzido, o que impele a autoridade policial competente a rechaçar a medida de
cerceamento da liberdade do conduzido e preferir investigar melhor os fatos por meio do
inquérito policial – há, assim, convicção negativa bem definida.
Para a autoridade policial competente, o problema crucial surge exatamente
quando se encontra em face da situação retratada no item “b”. As falhas cometidas pelos
agentes da Segurança Pública no atendimento ao fato podem gerar um esvaziamento no
conjunto probatório e serem transferidas para a autoridade policial responsável pela análise da
prisão, exigindo dela sensibilidade e cautela, para não colocar em liberdade um criminoso
astuto, nem tampouco privar a liberdade de um inocente.
De um lado, deve-se avaliar que a prisão provisória, na preleção de Luiz
Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho (1998, p. 96), deve ser concebida como cautela,
somente cabível quando fundada em razões objetivas, indicativas de motivos concretos,
suscetíveis de autorizar a medida constritiva de liberdade.
Por outro lado, como Jorge de Figueiredo Dias (1974, p. 440) pondera, “o
argüido é indiscutivelmente, em princípio uma das pessoas que estará em melhor situação
para dar relevantes esclarecimentos sobre a matéria da notitia criminis e da acusação,
independentemente do fato de ser ou não culpado”.
Acentua, ainda Roberto Delmanto Júnior (2001, p. 122), que é no “interesse
da sua própria defesa e da sua liberdade que o preso é chamado a falar no auto de flagrante
dizendo sobre a acusação feita pelo condutor e as testemunhas”.
Scarance Fernandes (2002, p. 138) ressalta que “deve o preso ser
interrogado sob pena de ser considerado nulo o auto de prisão em flagrante. Nessa
oportunidade terá o preso possibilidade de apresentar sua versão, sem prejuízo de preferir o
silêncio constitucionalmente assegurado”.
Haveria, ainda que mitigado, um ônus do investigado de, ao prestar
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declaração, convencer a autoridade de que não deve ser preso.
José Carlos Barbosa Moreira (1999, p. 235) acentua que “existe o ônus
quando o exercício de uma faculdade é condição para se obter uma determinada situação de
vantagem ou para impedir uma situação desvantajosa”.
A nossa proposta neste estudo não é de inverter o ônus probandi, obrigação
do Estado, exercida pelo Ministério Público, nem tampouco de se induzir o conduzido a falar,
quando tem em seu favor o direito de manter-se em silêncio. No entanto, o conduzido, se
conhecer dados sobre o fato que possam ajudar na convicção da autoridade competente, deve
se manifestar, com o fim de afastar dúvidas quanto a sua inocência e de evitar a possibilidade
de privação de sua liberdade.
Certo que, em questões criminais, cabe ao Estado o ônus de reunir provas
convincentes da autoria do crime, seja consumado ou tentado, com vistas ao ajuizamento da
ação penal pública. Entretanto, não pode o suspeito ou conduzido, em razão dessa premissa
basilar, permanecer inerte diante do cerco que se forma ao seu derredor. Deve participar, se
for em seu benefício, esclarecendo seu posicionamento diante dos questionamentos
incriminadores.
Não se trata de ofender as garantias constitucionais do detido, mas, ao
contrário, de, diante das suspeitas e dúvidas em torno de determinada situação, dever a
autoridade policial buscar esclarecimentos para fortalecer o seu convencimento, ainda que,
levando o suspeito a se manifestar sobre o fato.
Por um lado, o silêncio do conduzido em seu interrogatório no auto de
prisão em flagrante traduz uma garantia que pode lhe favorecer durante a instrução do
processo, uma vez que, na dúvida, o magistrado proferirá uma sentença penal absolutória. Por
outro lado, o interesse do conduzido em se manifestar no interrogatório policial e colaborar no
esclarecimento da verdade pode servir para evidenciar a sua condição de inocente ou para
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mostrar que está amparado por uma excludente de ilicitude. O combate à acusação,
fornecendo à autoridade policial competente os detalhes de seu envolvimento, ou mesmo a
ausência deste, são os meios que irão possibilitar a manutenção do direito sagrado da
liberdade (NUCCI, 1999, p. 68)3.
2.2 O flagrante e os indícios
Provar é, antes de mais nada, estabelecer a existência da verdade. Fernando
da Costa Tourinho Filho (2003, p. 215) assevera que provas são os elementos produzidos
pelas partes ou pelo próprio juiz, com intuito de estabelecer, dentro do processo, a existência
de certos fatos. Nesse sentido é o entendimento de Paolo Tonini (2002, p. 52): tudo aquilo que
é idôneo a fornecer resultados relevantes para a decisão do juiz é fonte de prova. Da fonte
extraem-se os meios até se chegar aos elementos de prova: A credibilidade da fonte e a
idoneidade do elemento obtido possibilitam encontrar o resultado probatório. Com base neste
e nos resultados de outros meios de prova, o juiz apura o fato histórico.
A doutrina de Nicola Framarino Malatesta (2002, p. 112-144/194) considera
três aspectos essências à prova: a) o seu objeto; b) o sujeito de que emana; c) a forma.
Explica o autor que, em relação ao objeto, a prova pode ser: a) direta,
sempre que houver algo imediatamente provado; é aquela prova resultante da afirmação de ser
visto, como o testemunho, e, ainda, a confissão e o documento; b) indireta, quando não
houver o imediatamente provado, ou seja, quando for proveniente de um raciocínio ou de se
ter apenas ouvido, o que resulta no indício. 3 O autor acrescenta que “na realidade quem nega um fato está afirmando, inversamente algum outro. Quando o réu diz que não praticou o delito porque não esta no local dos fatos, está querendo dizer que estava em lugar diferente. Logo, está fazendo uma afirmação positiva contrária”. Os autores Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho (2000, p. 79), ensinam que: “Por intermédio do interrogatório – rectius, das declarações espontâneas do acusado submetido a interrogatório –, o juiz pode tomar conhecimento de notícias e elementos úteis para a descoberta da verdade. Mas não é para esta finalidade que o interrogatório está preordenado. Pode constituir fonte de prova, não meio de prova”.
-
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Kai Ambos e Fauzi Hassan Choukr (2001, p. 163-164) afirmam que o
indício, no crime, é a circunstância que a ele se liga, e que, por essa conexão, concorre para se
chegar à conclusão de que o crime foi cometido, de que o sujeito é seu autor, de que ocorreu
desse modo. Refere-se, pois, ao fato, à autoria e às circunstâncias.
Vincenzo Manzini (1949, p. 473) afirma que a Igreja deu muita importância
aos indícios em seu sistema das provas legais. Para ele, o indício é uma circunstância certa de
que se pode extrair, por indução lógica, uma conclusão acerca da existência ou inexistência de
um fato a se provar.
Já Malatesta (2002, p. 194) discorre que devemos reunir todos os indícios
possíveis: “fazei sua análise lógica e vos encontrareis sempre diante de uma premissa maior,
que tem por conteúdo um juízo específico, de causalidade; a uma premissa menor, que afirma
a existência de um sujeito particular em questão o predicado atribuído na premissa maior ao
sujeito específico”.
A força probatória do indício está em conhecer, em investigar a força da
relação específica de causalidade que nele liga o desconhecido ao conhecido.
José Frederico Marques (2000, p. 450) pondera que o indício tem como
ponto de partida um fato provado. Por essa razão, a fonte dos indícios pode ser as várias
provas diretas em que possa descansar a demonstração desse fato, como o depoimento da
testemunha, as declarações do ofendido, o interrogatório do acusado ou mesmo os exames
periciais, os quais podem trazer detalhes ou elementos indiciários.
Ao discorrer sobre a relação temporal entre os indícios e o crime, Hélio
Tornaghi (1959, p. 80) declara que os indícios podem ser anteriores, concomitantes ou
subseqüentes ao crime: a) anteriores são os atos antecedentes, preparatórios, como a compra
de uma arma, o planejamento, o preparo da fuga e a ameaça; b) concomitantes são indícios
contemporâneos do crime; os mais comuns são os gritos da vítima e os pedidos de socorro; c)
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posteriores são os vestígios materiais deixados pelo crime, como cabelo do assassino na mão
do morto, manchas de sangue na roupa do indiciado, posse da res furtiva.
Conforme lição de Vicente Greco Filho (1999, p. 209), o Código de
Processo Penal, às vezes utiliza o termo “indício” como sinônimo de elemento de prova,
direta ou indireta, e lhe dá um qualificativo, para significar maior ou menor grau de
convicção. Assim, para determinados efeitos processuais, o Código exige ora “indícios”, por
estabelecer que bastam alguns elementos de prova, ora “indícios suficientes”, entendendo
agora que os indícios devem ser razoáveis. Em outras circunstâncias exige “indícios
veementes”, ao indicar a necessidade de existir convicção consistente para determinada
situação. A prova traduziria a certeza sobre determinado fato, como dispõe o artigo 386,
inciso VI, do Código de Processo Penal.
No direito processual português, Germano Marques da Silva (1999, p. 98)
cita os artigos 327, nº. 2, e 355 e declara que não valem em julgamento quaisquer provas que
não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência e submetidas ao contraditório.
Enquanto a prova demonstra certeza que pode se espelhar na convicção do
juiz, os indícios apontam uma direção que, ao se reunirem a outros indícios, podem levar o
magistrado a uma conclusão.
Quanto à valoração da prova indiciária, Hélio Tornaghi (1959, p. 80-81)
ensina que no sistema da livre convicção não há regras preestabelecidas para a avaliação da
prova indiciária. Acrescenta que cada indício deve ser veemente e preciso e o conjunto dos
indícios deve ser concordante. No mesmo sentido é a lição de Manzini (1949, p. 485) no que
se refere à livre convicção do juiz e à força probatória dos indícios que seria igual à de
qualquer outro elemento de prova.
Maria Thereza Rocha de Assis Moura (1994, p. 80) pondera que os indícios
possuem força probante igual à de qualquer outra prova, em face da regra do livre
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convencimento, conquanto que preenchidos os requisitos de existência, validade e eficácia.
Nem sempre o fato criminoso apresentado pelo condutor à autoridade
policial representa uma certeza, de sorte que se exige, da mesma forma, cautela no exame dos
argumentos da testemunha, da vítima e dos policiais que, não raramente, valorizam
demasiadamente o sucesso da diligência, em detrimento da conduta do autuado. É certo que,
para a autuação da prisão em flagrante não se exige prova plena, sendo suficientes a
existência do crime e os indícios da autoria, bem como a aplicação do princípio da
razoabilidade pela autoridade policial. Se restar dúvida e não for um crime grave, é preferível
apurarem-se os fatos por meio do inquérito policial, para se evitar o cerceamento da liberdade.
2.3 A prevaricação e a livre convicção no auto de prisão em flagrante
Entre os crimes praticados contra a Administração Pública, a prevaricação,
crime previsto no artigo 319 do Código Penal, não deixa de ser uma preocupação para os
operadores do direito.
A objetividade jurídica do crime de prevaricação, segundo a doutrina, é a
tutela do bom funcionamento da atividade pública. Em outras palavras, é o interesse da
administração pública.
Nota-se que esse interesse tende oscilar de acordo com o comportamento da
sociedade. A estabilidade da economia permite calmaria social e, com isso, os interesses nas
questões criminais se inclinam para a preservação das garantias individuais e das liberdades
públicas. No entanto, os interesses podem ser mutáveis, e, em momentos de crise, a
mentalidade social que exige o cumprimento dessas garantias pode passar a exercer pressões
no sentido inverso daqueles direitos.
Por exemplo, os agentes da Segurança Pública, se pressionados, podem
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33
exigir das autoridades policiais mais rigor na interpretação do fato em favor do cerceamento
da liberdade, e estabelecer obstáculos ao entendimento dos princípios da proporcionalidade,
da insignificância e da intervenção mínima. Os adeptos desse pensamento acreditam que a
solução está no rigor, no temor e no exemplo pela força. Com essa pressão, são afetados os
delegados de polícia, os promotores de justiça e os representantes do Poder Judiciário, que se
vêem atacados em sua liberdade de agir e de julgar.
O tipo objetivo do crime de prevaricação pode se apresentar sob três formas:
a) quando o funcionário público retardar indevidamente ato de ofício; b) quando o funcionário
público deixar indevidamente de praticar ato de ofício; c) quando o funcionário público
praticar o ato contrário à disposição expressa da lei. Nas duas primeiras modalidades o crime
é omissivo e, na última, comissivo.
Em especial, nas questões relacionadas à prisão em flagrante, o cerne do
problema que envolve as autoridades policiais está em ela deixar indevidamente de praticar o
ato ou praticá-lo de forma contrária à disposição expressa da lei.
Pode caracterizar-se o crime de prevaricação quando a autoridade policial,
ao recepcionar as partes apresentadas pelo condutor, deixar de registrar a ocorrência policial
e, conseqüentemente, deixar de tomar as providências cabíveis.
No entanto, incluímo-nos entre os que entendem que, tomadas essas
providências, se restarem dúvidas, o fato de preferir a investigação por meio do inquérito
policial ao invés da prisão em flagrante e da conseqüente privação da liberdade, não pode
configurar conduta considerada prevaricação, pois são indispensáveis para a caracterização do
crime o dolo, enquanto tipo subjetivo, e a satisfação de interesse ou sentimento pessoal do
agente.
Como assinala Welzel (1976, p. 95),
dolo é saber e querer a realização do tipo. Dolo em sentido técnico penal é somente a vontade de ação orientada para a realização do tipo de um delito. Disto se entende
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que também existem ações não dolosas,a saber, as ações nas quais a vontade de agir não está orientada na realização do tipo de um delito, como sucede na maioria das ações da vida do cotidiano.
Para a caracterização do crime exige-se ainda um valor único, autônomo e
especial por parte da autoridade, que é satisfazer interesse ou sentimento pessoal, que,
segundo lição de Mário Sérgio Leite, (1995, p. 148), “é um estado anímico no qual se coloca a
pessoa visando suprir determinada necessidade, seja de natureza material, patrimonial ou
moral”.
Portanto, sendo as decisões da autoridade policial em preferir o inquérito em
vez da prisão calcadas no livre convencimento e com base na lei, não há que se falar no crime
de prevaricação, porque os profissionais do direito não podem se influenciar por pressões
locais ou por movimentos extremistas que buscam unicamente no rigor da aplicação do
Direito Penal solução para os problemas de criminalidade.
2.4 A aparente incompatibilidade entre a prisão em flagrante, o princípio do estado de inocência e os antecedentes criminais
2.4.1 O princípio do estado de inocência, o uso da proporcionalidade e a prisão em flagrante
No século XX, a partir dos anos 70, o pensamento garantista foi se firmando
em nosso ordenamento jurídico, a ponto de a Carta de 1988 consagrar no artigo 5º, inciso
LVII, o princípio do estado da inocência e, no inciso LXI, as modalidades de prisão, quais
sejam, em flagrante e por ordem escrita da autoridade judiciária.
Ada Pellegrini Grinover (2005, p. 548), ao comentar sobre as previsões do
artigo 5.°, incisos LVII – “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da
sentença penal condenatória” e LXI – “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por
ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente” –, da Constituição,
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discorre que a liberdade física do indivíduo constitui um dos dogmas do regime democrático,
de modo que qualquer restrição à liberdade deve ser medida extraordinária, cuja adoção deve
estar subordinada a determinados parâmetros que decorrem dos preceitos maiores da ordem
constitucional. A doutrinadora ainda defende o uso da proporcionalidade, segundo o qual uma
lei restritiva de direitos fundamentais, mesmo quando adequada e necessária, pode ser
inconstitucional se adotar cargas coativas desmedidas, desajustadas, excessivas ou
desproporcionais em relação aos resultados.
Acrescenta que o princípio da não culpabilidade assegura ao indivíduo a
proteção a qualquer medida restritiva ao direito de liberdade, devendo a medida cautelar da
prisão antecipada - modalidade da prisão provisória - estar justificada por indeclináveis e
comprovadas exigências previstas e devidamente fundamentadas.
Em suma, uma medida restritiva, como a privação da liberdade em virtude
de uma prisão em flagrante, deve ter natureza cautelar e deve obedecer aos parâmetros da
proporcionalidade.
Cândido Rangel Dinamarco (2001, p. 260), ao comentar sobre o processo
cautelar, argumenta que os provimentos cautelares representam uma conciliação entre duas
exigências geralmente contrastantes na Justiça, ou seja, a da liberdade e a da ponderação
“entre fazer logo, porém mal, e fazer bem, mas tardiamente”. Os provimentos cautelares
visam, sobretudo, a um fazimento rápido e a deixar que a Justiça intrínseca do provimento
seja resolvida mais tarde, com a necessária ponderação, nas mais precavidas formas do
processo de conhecimento sob o rito ordinário.
O processo cautelar propõe-se a conferir eficácia ao principal, logo deve
prevalecer o equilíbrio entre os males que podem ser causados ao suspeito – caso se comprove
mais tarde ser ele inocente - e a conseqüência danosa que pode advir da ausência da medida.
Comprovada a necessidade cautelar da privação da liberdade em face da
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caracterização do estado de flagrância, a Constituição, no intuito de amenizar o impacto da
medida, vista naquele momento como imprescindível, procurou cercar o preso de algumas
garantias, quais sejam, entre outras, a comunicação ao juiz e à família ou a outra pessoa por
ele indicada, do local em que se encontra preso (artigo 5º, LXII); o direito de permanecer
calado, assegurada a assistência da família e de advogado (artigo 5º, LXIV); o relaxamento
imediato da prisão ilegal pela autoridade judiciária (artigo 5º, LXV).
No que se refere ao uso do princípio da proporcionalidade, Willis Santiago
Guerra Filho (2005, p. 33-34) pondera a necessidade de se estabelecer a melhor
correspondência jurídica entre o fim a ser alcançado por uma disposição normativa e o meio
empregado. Isso significa que não se fixa o “conteúdo essencial” de direito fundamental, com
o despeito intolerável da dignidade humana. Significa também que as vantagens trazidas para
interesses da ordem superam as desvantagens para o interesse de algumas pessoas. Os
subprincípios da adequação, da exigibilidade ou indispensabilidade determinam que, dentro
do faticamente possível, o meio escolhido deve ser “adequado”, deve se mostrar “exigível”, o
que significa não haver outro igualmente eficaz, e deve ser o menos danoso aos direitos
fundamentais.
Observada a natureza cautelar da prisão e respeitados os critérios de
proporcionalidade, a prisão decorrente do flagrante está em consonância com o princípio da
presunção de inocência.
Antonio Magalhães Gomes Filho (1991, p. 7) ensina que
em princípio, a restrição da liberdade em caráter cautelar instrumental não é incompatível com a afirmação da presunção de inocência, uma vez que não é imposta como antecipação da punição, embora, em determinados casos possa sugerir certa identificação entre as qualificações de acusado e culpado, na medida em que o temor de que o réu crie obstáculos à colheita de provas pode indicar que já não é considerado inocente.
O legislador português, de forma clara e objetiva, introduziu, no artigo 193-
1 do CPP, os princípios da adequação e da proporcionalidade. Dispõe o artigo:
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As medidas de coação e de garantia patrimonial a aplicar em concreto devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
Portanto, em razão da necessidade concreta, real e efetiva, consubstanciada
no “fumus boni iuris” e no “periculum im mora”, a prisão em flagrante não afronta o princípio
constitucional do estado de inocência.
2.4.2 A presunção de inocência e os antecedentes criminais
No Estado de São Paulo, os antecedentes criminais são fornecidos pelo
Centro de Processamento de Dados – Prodesp. Estes antecedentes não devem ser confundidos
com o atestado de antecedentes criminais ou com as certidões criminais.
Enquanto o atestado de antecedentes criminais é fornecido pelo Órgão da
Segurança Pública – Delegacias de Polícia, as certidões criminais são expedidas pelo Órgão
do Poder Judiciário – Cartório Distribuidor dos Fóruns das Comarcas – e atendem a mesma
finalidade, qual seja, informar órgãos públicos, empresas, instituições e outros setores da
sociedade sobre a idoneidade do requerente. São os atos contrários à norma penal, registrados
e disponibilizados ao conhecimento público sempre que requerido pelo interessado. Já os
antecedentes criminais são de controle interno, ou seja, são os registros informando aos
Órgãos da Segurança Pública, Ministério Público e Poder Judiciário sobre a situação do
indivíduo, por exemplo, se reincidente ou não.
Sempre que a autoridade policial se convencer da materialidade e da autoria
do crime, ainda que não resulte das provas amealhadas uma certeza real, deve determinar a
formalização do indiciamento por meio do interrogatório, do preenchimento do formulário da
vida pregressa, da qualificação e da planilha de identificação criminal.
A identificação criminal retrata as informações do fato criminoso, a
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tipificação penal e os sinais e características físicas do indiciado. As cópias da identificação
criminal seguem para o Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt, na capital, que,
por sua vez, alimenta o banco de dados da Prodesp.
As informações sobre o arquivamento do inquérito policial, recebimento da
denúncia, sentença ou execução da eventual pena e seus efeitos são repassados pelo Poder
Judiciário. O acesso se faz pela inserção no sistema, por meio do número da Carteira de
Identidade, servindo a qualificação como complemento. Deste modo, haverá informações do
inquérito policial e da ação penal condenatória até a execução da pena sempre que pesquisada
a identidade do autor de um crime, mesmo que a sentença tenha transitado em julgado.
Portanto, à exceção dos processos em andamento, todas as informações
referentes àquele que já foi indiciado e processado criminalmente podem ser consultadas por
meio da pesquisa dos antecedentes criminais que necessariamente é juntada no inquérito
policial e utilizada como orientação pelas autoridades envolvidas na investigação.
A questão que surge em torno das informações contidas nos antecedentes
criminais é a sua utilização como meio de prova ou como fator influenciador de decisão sobre
a realização ou não do auto de prisão em flagrante, ou se deve ser considerada tão somente
para orientação aos Órgãos da Segurança Pública, Ministério Público e Poder Judiciário.
Não restam dúvidas de que as informações sobre os crimes praticados pelo
indivíduo constantes na pesquisa dos antecedentes criminais indicam o modus operandi e
servem como meio orientador de investigação. Todavia, jamais devem ser utilizadas como
meio de prova, uma vez que os atos passados não podem se vincular ao ato em que o
investigado foi surpreendido em uma das hipóteses do artigo 302 do Código de Processo
Penal.
Sendo o fato típico e resultando fundada suspeita da autoria, avaliado o
princípio da razoabilidade, deve a autoridade policial competente proceder à autuação da
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prisão.
Antonio Magalhães Gomes Filho (Idem, p. 63) considera que
o conceito de primariedade é objetivo, resultando da existência ou não de condenação anterior, a idéia de bons antecedentes é extremamente fluída, o que tem possibilitado a adoção de critérios jurisprudenciais extremamente largos, que incluem apreciações subjetivas a respeito da personalidade do agente e de circunstâncias do fato criminoso, estranhos à valoração da situação de perigo exigível para a decretação ou manutenção da custódia cautelar.
Tomando como base o texto constitucional, Fauzi Hassan Choukr (2001, p.
38-40) entende ser impossível reconhecer os maus antecedentes do réu com base em
Inquéritos Policiais e Processos Criminais em andamento, relacionados pelo Instituto de
Identificação da Polícia. Acrescenta que somente caracterizam tais antecedentes as
condenações transitadas em julgado. Acrescenta o autor (Idem, p. 27) que o princípio da
presunção da inocência dispõe que o acusado não deve mais ser visto como um objeto do
processo, mas sim sujeito de direitos dentro da relação processual. Portanto, os maus
antecedentes não devem ser obstáculos ao reconhecimento dos direitos previstos ao autuado,
servindo tão somente aos fins previstos no artigo 59 do Código Penal – fixação da pena – e
orientação para a investigação criminal.
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III. FLAGRANTE: ESPÉCIES
3.1 Espécies de flagrante
3.1.1 Flagrante próprio ou real
3.1.1.1 Está cometendo o crime – flagrante real
Iniciada a execução de um fato criminoso, tendo sido o autor surpreendido
no local do crime, estará caracterizada a flagrância.
Assim dispõe o artigo 302 do Código de Processo Penal, a respeito do
flagrante próprio sob a modalidade de estar cometendo o crime:
Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem: I – está cometendo a infração penal; II – [...] III – [...] IV – [...]
Salvo algumas exceções, como no crime de porte de arma, é necessário
enfatizar que os atos da cogitação e os atos preparatórios, também conhecidos como fases do
iter criminis, não configuram o crime e não possuem ainda a força de serem atos
caracterizadores do estado de flagrância.
Após a ocorrência do fato criminoso, os atos preparatórios e de cogitação
passam a ter grande importância para a corporificação da materialidade, uma vez que o
caminhar no sentido contrário, rastreando os passos do flagrado, poderá reconstruir as fases e
etapas que materializaram o pensamento e o desejo do autor.
“Estar cometendo o crime”, deve ser interpretado como o autor estar no
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local praticando atos de execução e, por isso, ser ele visualizado, ouvido e surpreendido nessa
condição.
Na Venezuela, Marco Antonio Medina Salas (2002, p. 41), declara que esta
modalidade é denominada de “flagrância em sentido estricto”.
3.1.1.2 Acaba de cometer o crime – flagrante real
O autor, satisfeito com sua conduta, prepara-se para se retirar do cenário do
crime, quando é surpreendido por populares, vítima, testemunhas ou mesmo agentes da
segurança pública. É flagrado justamente no momento em que está se retirando do local em
que consumou ou tentou o ato criminoso. É reconhecido e está levando consigo a arma do
crime ou os objetos pertencentes à vítima.
Realizando o caminho inverso será possível constatar o rastro dos seus atos.
Assim, o Código de Processo Penal define o flagrante próprio sob a
modalidade “quem acaba de cometer o crime”:
Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem: I – [...] II – acaba de cometê-la; III – [...] IV – [...]
Enquanto na primeira modalidade o autor é visto praticando o ato
criminoso, nesta é surpreendido abandonando o local, deixando características de ser ele o
agente causador. São hipóteses previstas pelo legislador que não permitem dúvidas quanto ao
estado de flagrância.
O legislador não fixou nenhum prazo com relação ao tempo que medeia a
retirada do autor do local do crime. A doutrina é unânime no sentido de que o tempo está
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focalizado no sentido lógico da ação sem que ocorra um espaçamento do qual resulte em
dúvidas quanto a sua participação no crime. Conforme ensina a doutrina, há que existir a
rigorosa imediatidade.
Nesse sentido é a lição de Heráclito Antonio Mossin (1998, p. 365),
somente ficará caracterizado o flagrante quando o agente for surpreendido imediatamente após a sua consumação. Deve haver uma rigorosa imediatidade entre o cometimento do crime e o surpreendimento de seu autor. Caso contrário deixa de haver a flagrância delitiva, não podendo o agente ser preso.
Eduardo Espínola Filho (2000, p. 390) interpreta a hipótese como:
“instantes seguintes à sua execução, os traços deixados ainda quentes”.
Se se interpretar que flagrante é o que está a queimar, a crepitar em chamas,
não restam dúvidas de que os incisos I e II do artigo 302 do CPP representam e guardam essa
certeza.
3.1.2 Flagrante impróprio e presumido (ficto)
São modalidades de quase flagrante.
3.1.2.1 Flagrante impróprio
Ocorre esta modalidade de flagrante quando o autor passa pelas duas
primeiras hipóteses e, após haver executado o crime no todo ou em parte, é visto saindo do
local e é perseguido ininterruptamente pelas testemunhas, vítima, transeuntes e agentes da
segurança pública. Após ser detido e restando comprovado, por meio da arma utilizada, de
sujeiras, de marcas, de manchas de sangue, de vestes que usava e de objetos que carregava,
tratar-se da mesma pessoa que momentos antes se encontrava no palco dos acontecimentos e
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praticou o fato criminoso, é possível autuar em flagrante o conduzido.
Segundo a doutrina, a hipótese traduz uma presunção de que nas condições
em que foi detido poderá ser o autor do crime. É preciso realizar uma construção lógica dos
atos, refazendo passo a passo a conduta do suspeito. Depois de somadas as características
específicas conclui-se pela autoria.
Esta é a previsão do artigo 302, inciso III do Código de Processo Penal:
Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem: I – [...] II – [...] III – é perseguido, logo após pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; IV – [...]
O legislador utilizou a expressão “logo após” justamente para não permitir
interpretação dúbia. Assim, se o autor foi visto saindo do local quando acabara de cometer o
crime e é preso, estará configurada a hipótese do inciso II do citado artigo. A caracterização
do inciso III ocorre quando o autor, por não ter sido detido nesse momento, obtém êxito
momentâneo na fuga, logo após haver praticado o crime no todo ou em parte, mas, em razão
da condição visual e informativa, é perseguido e detido por qualquer do povo ou mesmo pelos
agentes da segurança pública (TUCCI, 1980, p. 225)4.
Eduardo Reale Ferrari (FERRARI apud MARQUES, 2000, p. 76), ao
revisar e atualizar a obra de José Frederico Marques, traz decisão do Supremo Tribunal
Federal pela qual “iniciada a perseguição logo após o crime, sendo ela incessante nos termos
legais, não importa o tempo decorrido entre o momento do crime e a prisão de seu autor”.
4 Denominado de quase flagrante, pondera-se que a hipótese do inciso III, “se caracteriza pelas circunstâncias reveladoras de relacionamento pessoal, material e temporal entre o indigitado delinqüente e o cometimento delitivo, de um lado, e a retenção daquele, de outro: dessume-se, da conduta ou estado da pessoa, ou de armas, objetos ou papéis que esteja ela portando, no momento imediatamente posterior ao do fato criminoso, a autoria da infração penal constatada. Acrescenta o autor que em razão da ausência ocular do crime no exato instante de sua realização leva a uma presunção de autoria, o fato de ter sido detido logo após o crime”.
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3.1.2.2 Flagrante presumido ou ficto
O flagrante presumido ou ficto refere-se à hipótese em que o autor
conseguiu exaurir o crime, fugiu do local sem ser visto, mas logo depois foi encontrado
portando a arma do crime ou objetos e coisas que façam presumir ser o autor do crime, como
está no inciso IV do art. 302, do CPP:
Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem: I – [...] II – [...] III – [...] IV – é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.
Para a caracterização do flagrante ficto, é necessário que, após a fuga do
autor, vítima ou testemunhas tenham percebido o ocorrido e pessoalmente ou com a ajuda de
terceiros comuniquem à polícia, para que o órgão, por meio de diligências baseadas nas
informações colhidas, no modus operandi do agente e em sua experiência, encontre o autor.
Assim, em virtude do encontro de objetos e coisas pertencentes à vítima, ou
do fato de o conduzido estar trazendo consigo a arma que provavelmente fora utilizada na
prática da infração, é possível presumir ter sido ele o autor do crime. Há que se efetuar nessa
hipótese uma interpretação extensiva da construção lógica dos fatos ocorridos (TORNAGHI,
1995, p. 54)5.
A descoberta casual de um crime ainda desconhecido da vítima ou não
confirmado por testemunhas e, principalmente, sem ter sido informado à polícia, serve para
caracterizar o crime, mas não serve para caracterizar o estado de flagrância presumida,
5 A consagração da quase-flagrância em lei advém, portanto, não de perfeita identidade com a flagrância, mas do fato de que ela se aproxima: não torna certa a autoria, mas a faz provável; e tal como na flagrância verdadeira, também na quase-flagrância é grande a indignação dos circunstantes, o escândalo, o desassossego. E, por outro lado, a necessidade de se colherem de imediato os elementos de prova, os vestígios materiais deixados pelo fato ainda recente, antes que eles desapareçam ou se extingam.
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previsto no inciso IV do artigo 302 do CPP.
Com relação ao espaço-tempo, para que se possa legitimar a presunção, a
doutrina manifesta-se no sentido de que exista uma relação temporal pequena entre a infração
praticada e as circunstâncias em que se funda a presunção.
José Frederico Marques (2000, p. 77) ensina que “se o intervalo entre a
prática do ato delituoso e a captura não for pequeno, poderá registrar-se – como disse o
desembargador Odilon da Costa Manso – uma feliz diligência da Polícia, nunca porém, o
quase flagrante” .
Na lição de Hélio Tornaghi (1995, p. 52)
delito flagrante é o delito que está sendo cometido, o que está ardendo, queimando, pegando fogo. A exceção do inciso I, todos os demais não podem ser considerados flagrante, mas sim quase flagrante. Acrescenta, informando que na realidade a lei sabe que não há flagrante, mas as trata como se flagrante houvesse. Em outras palavras, ela finge que há flagrante.
As hipóteses de quase flagrante, previstas nos incisos III e IV do artigo 302,
foram introduzidas no Código de Processo Penal de 1941 sob a justificativa de que o interesse
da administração da justiça não podia continuar a ser sacrificado por obsoletos escrúpulos
formalísticos, que redundam em assegurar, com prejuízo da futura ação penal, na afrontosa
intangibilidade de criminosos surpreendidos na atualidade ainda palpitante do crime e em
circunstâncias que evidenciam sua relação com este.
Assim como na legislação brasileira, encontram-se nos Códigos da
Argentina (artigo 285) e Portugal (artigo 256-1e2) as mesmas hipóteses de prisão que
caracterizam o estado flagrancial.
3.1.3 O flagrante e o chamado “encontro”
Por ser a prisão uma medida constritiva e agressiva não apenas para aquele
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que a sofre, mas para a sociedade, é preciso que os aplicadores do direito, em sua aplicação,
ajam com o máximo de cautela, principalmente porque o pensamento atual é de encarar a
liberdade como regra e a prisão como exceção. Nesse sentido argumentam Kai Am