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ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 537 A DOUTRINA DA SEGURANÇA NACIONAL: JUSTIFICAÇÃO DO GOVERNO MILITAR E PERSEGUIÇÃO DO “INIMIGO” LA DOCTRINE DE LA SECURITE NATIONALE: LA JUSTIFICATION DU GOUVERNEMENT MILITAIRE ET LA POURSUITE DE L' «ENNEMI» Mauricio Mesurini da Costa * Leandro Dirschnabel ** Resumo: O objetivo geral do trabalho será analisar, do ponto de vista jurídico-formal, o movimento político inaugurado no Brasil em 1964 e sua relação com um conceito chave para o regime: a segurança nacional. A Escola Superior de Guerra, por meio da doutrina da segurança nacional, concebeu um amplo conceito abarcando temas políticos, econômicos, sociais e de segurança. Esse largo e indiscutível conceito de segurança nacional serviu tanto para legitimar o governo militar como para construir um estatuto jurídico especial de perseguição e anulação do “inimigo” do regime, entendido como “inimigo” na própria Nação. O ato institucional n. º 5, a Emenda de 1969 e as leis de segurança nacional funcionaram como mecanismos jurídicos de uma exceção à legalidade constitucional e de uma suposta legalidade destinada àquele que contestasse o regime militar, ou seja, a própria segurança nacional. Palavras-chave: 1. Segurança nacional; 2. ESG; 3. Atos institucionais; 4. Ditadura militar. Compte-rendu: L’objectif général de ce travail sera d’analyser, du point de vue juridique -formel, le mouvement politique inauguré au Brésil en 1964 et sa relation avec le concept clé pour le régime : la sécurité nationale. L’École Supérieure de Guerre, à travers de la doctrine de sécurité nationale, a conçu un ample concept contenant des thèmes politiques, economiques, sociaux et de sécurité. Ce large et indiscutable concept de sécurité nationale a servi soit pour légitimer le gouvernement militaire soit pour construire un statut juridique spécial de persécution et annulation de l’ « ennemi » du régime, entendu comme « ennemi » dans la propre Nation. L’acte institutionnel nº 5, l’amendement constitutionnel de 1969 et les lois de sécurité nationale ont fonctionné comme des mécanismes juridiques d’une exception à légalité constitutionelle et d’une suposée légalité destinée à celui qui contestait le régime militaire, c’est-à-dire, la propre sécurité nationale. Mots-clés: 1. Sécurité Nationale; 2. École Supérieure de Guerre; 3. Actes institutionnels; 4. Ditacture Militire * (autor) Mestre em Direito pela UFSC. Professor de Teoria Geral do Estado e Ciência Política e Direito Administrativo (Faculdade Cenecista de Joinville/FCJ). Advogado. [email protected]. http://lattes.cnpq.br/0335501481453253. ** (co-autor) Acadêmico de Direito (3º ano). Faculdade Cenecista de Joinville/FCJ. [email protected]

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ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 537

A DOUTRINA DA SEGURANÇA NACIONAL: JUSTIFICAÇÃO DO GOVERNO

MILITAR E PERSEGUIÇÃO DO “INIMIGO”

LA DOCTRINE DE LA SECURITE NATIONALE: LA JUSTIFICATION DU

GOUVERNEMENT MILITAIRE ET LA POURSUITE DE L' «ENNEMI»

Mauricio Mesurini da Costa*

Leandro Dirschnabel **

Resumo: O objetivo geral do trabalho será analisar, do ponto de vista jurídico-formal, o movimento político

inaugurado no Brasil em 1964 e sua relação com um conceito chave para o regime: a segurança nacional. A

Escola Superior de Guerra, por meio da doutrina da segurança nacional, concebeu um amplo conceito abarcando

temas políticos, econômicos, sociais e de segurança. Esse largo e indiscutível conceito de segurança nacional

serviu tanto para legitimar o governo militar como para construir um estatuto jurídico especial de perseguição e

anulação do “inimigo” do regime, entendido como “inimigo” na própria Nação. O ato institucional n.º 5, a

Emenda de 1969 e as leis de segurança nacional funcionaram como mecanismos jurídicos de uma exceção à

legalidade constitucional e de uma suposta legalidade destinada àquele que contestasse o regime militar, ou seja,

a própria segurança nacional.

Palavras-chave: 1. Segurança nacional; 2. ESG; 3. Atos institucionais; 4. Ditadura militar.

Compte-rendu: L’objectif général de ce travail sera d’analyser, du point de vue juridique-formel, le mouvement

politique inauguré au Brésil en 1964 et sa relation avec le concept clé pour le régime : la sécurité nationale.

L’École Supérieure de Guerre, à travers de la doctrine de sécurité nationale, a conçu un ample concept contenant

des thèmes politiques, economiques, sociaux et de sécurité. Ce large et indiscutable concept de sécurité nationale

a servi soit pour légitimer le gouvernement militaire soit pour construire un statut juridique spécial de

persécution et annulation de l’ « ennemi » du régime, entendu comme « ennemi » dans la propre Nation. L’acte

institutionnel nº 5, l’amendement constitutionnel de 1969 et les lois de sécurité nationale ont fonctionné comme

des mécanismes juridiques d’une exception à légalité constitutionelle et d’une suposée légalité destinée à celui

qui contestait le régime militaire, c’est-à-dire, la propre sécurité nationale.

Mots-clés: 1. Sécurité Nationale; 2. École Supérieure de Guerre; 3. Actes institutionnels; 4. Ditacture Militire

* (autor) Mestre em Direito pela UFSC. Professor de Teoria Geral do Estado e Ciência Política e Direito

Administrativo (Faculdade Cenecista de Joinville/FCJ). Advogado. [email protected].

http://lattes.cnpq.br/0335501481453253. **

(co-autor) Acadêmico de Direito (3º ano). Faculdade Cenecista de Joinville/FCJ.

[email protected]

A DOUTRINA DA SEGURANÇA NACIONAL: JUSTIFICAÇÃO DO GOVERNO MILITAR E

PERSEGUIÇÃO DO “INIMIGO”

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INTRODUÇÃO

Este trabalho é fruto do grupo de estudos “Estados autoritários” realizado em 2009 na

Faculdade Cenecista de Joinville e busca analisar o evento político inaugurado em 1964 que é

sem sombra de dúvidas um dos pontos mais importantes da história política moderna do

Brasil. Ademais, foi um evento que marcou substancialmente as instituições e o imaginário

político e jurídico brasileiro.1 Desta forma, é de fundamental importância investigar esse

movimento visando compreender sua mecânica.

O tema em apreço é de extrema relevância para o país, haja vista a importância em

resgatar a última interrupção da democracia com o objetivo de compreender os mecanismos

jurídicos que legitimaram2 um longo período de regime militar3, nomeadamente a estrutura

jurídica destinada a absorver o “inimigo”.4

O objetivo geral do trabalho será analisar o “processo revolucionário” inaugurado no

Brasil em 1964. Os objetivos específicos consistem em investigar o estatuto jurídico dos atos

revolucionários (atos institucionais) e a relação entre a Constituição de 1967, o ato

institucional n.º 5 e a Emenda de 69. Também, será de fundamental importância compulsar

alguns conceitos concebidos pela ESG, tais como “segurança nacional” e “guerra

revolucionária comunista”. O trabalho procura compreender o processo de legitimação do

regime militar, bem como o mecanismo jurídico-formal de construção da “legalidade do

inimigo”, uma estrutura que propiciou, mesmo que tacitamente, assassinatos e torturas por

todo o país.

1. Advertência metodológica

O objetivo dessa investigação é fazer uma análise formal sobre a estrutura jurídica do

regime militar, sem olvidar lançar um olhar crítico sobre os mecanismos jurídicos da época.

Para tanto, é necessário adotar algumas posturas metodológicas.5

1 Sobre a permanência da ditadura nas instituições e no imaginário jurídico e político nacional, vide O que resta

da ditadura: a exceção brasileira. (Orgs.) Edson Telles e Vladimir Safatle. São Paulo: Boitempo, 2010.

2 O termo legitimar está sendo utilizado aqui no sentido de promover uma legalidade formal ao golpe.

3 Longe de adotar um eufemismo, este trabalho usou o termo “regime militar” ao invés do usual termo “ditadura

militar”. O conceito ditadura, como todo tipo ideal, possui características próprias que transcendem ao mero uso

da força. Aproximar o regime militar brasileiro a um conceito de ditadura tão somente por conta dos assassinatos

e torturas ocorridos à época, cremos que é um erro conceitual. O nascimento do conceito de ditadura remete à

Roma antiga quando se nomeava um cônsul como ditador com poderes extraordinários para estabilizar a ordem

ante uma grave crise. Tais poderes eram limitados no tempo e também materialmente, conforme Rousseau, o

ditador podia fazer as leis calarem, mas jamais falarem (ROUSSEAU, 2009). O conceito de ditadura mudou com

o tempo, principalmente com Carl Schmitt ao conceber a ditadura comissária e a ditadura soberana, também

como tipos ideais (SCHMITT, 1986). No entanto, acreditamos que nenhum desses conceitos de ditadura são

adequados para analisar o regime militar brasileiro, pois o movimento militar de 64 e seu extenso governo possui

características próprias que impossibilitam uma aproximação ao conceito científico de ditadura. Sobre o conceito

de ditadura, vide BOBBIO, Norberto.Teoria geral da política. A filosofia política e as lições dos clássicos.

(Org.) Michelangelo Bovero. Trad. Daniela Beccaria Versiani. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.

4 O termo inimigo não será utilizado nos exatos termos schmittinianos, até porque não é tão simples a

aproximação entre o regime militar e os conceitos de Carl Schmitt. Durante o regime militar brasileiro, o inimigo

era todo aquele que se colocasse como um empecilho à institucionalização dos ideais da “Revolução vitoriosa”

quer fossem integrantes dos movimentos de esquerda contrarevolucionários (VPR, MR-8, etc.) ou políticos,

jornalistas, juristas, estudantes e professores que se insurgissem contra o governo e a segurança nacional,

concebida pela ESG como um amplo conceito abrangendo elementos políticos, econômicos, sociais e de

segurança. Doravante, quando esse trabalho citar o termo inimigo, será nesses termos que deverá ser

compreendido.

5 Para uma melhor compreensão da metodologia da historiografia jurídica, vide COSTA, Pietro. Soberania,

representação, democracia: ensaio de história do pensamento jurídico. Trad. Alexander Rodrigues de Castro

et al. Curitiba: Juruá, 2011.

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É necessário pré-compreender a história como um processo não linear e contínuo, mas

marcado por rupturas (FONSECA, 2010, p.154). Conforme Skinner, “[...] as

descontinuidades são, com freqüência, não menos surpreendentes: valores petrificados, num

momento, dissolvem-se no ar, no momento seguinte” (1999, p. 90). O historiador deve

respeitar a autonomia da história e libertar a história do presente. A história possui uma

racionalidade própria que deve ser considerada a partir de seus próprios interesses e conflitos.

A função do historiador não é organizar a história atribuindo a ela um sentido harmônico e

lógico, “projetando no passado as categorias mentais e sociais do presente, fazendo do devir

histórico um processo de preparação da atualidade” (HESPANHA apud FONSECA, 2010,

p.154).

A estratégia progressista, muito utilizada na historiografia jurídica tradicional, no

sentido de que o direito de agora consiste no coroamento de um modelo superior e racional

sedimentado harmoniosamente durante os anos, deve ser evitada. O agora não é melhor nem

pior que o ontem, pois cada época é feita de luzes e trevas. Conforme Hespanha, o direito

pode ter uma continuidade textual, mas jamais semântica (HESPANHA, 2005, p. 21-34).

A historiografia jurídica deve sair em busca dos sentidos originais e promover uma

leitura densa das fontes. O trabalho historiográfico se transforma em um trabalho de

restauração visando reencontrar o passado, recuperar a estranheza e não a familiaridade. O

historiador do direito tem que se pautar pela autonomia do passado e desconfiar das aparentes

continuidades. Jamais utilizar a história do direito como recurso de legitimação de institutos

jurídicos do presente (HESPANHA, 2005, p. 69-70; FONSECA, 2010, passim).

A partir dessas posturas metodológicas, o regime militar brasileiro pós-64 será analisado

com o objetivo de empreender um mergulho crítico no pensamento de uma época de grande

importância para as instituições políticas e jurídicas do Brasil. Ademais, o presente trabalho

também vai empreender uma historiografia conceitual, ao analisar a funcionalidade política

do conceito de “segurança nacional”.

Ao se trabalhar com a história das ideias corre-se o risco de atribuir a causa dos eventos

políticos às ideias políticas. Ou seja, partir da premissa de que as ações políticas são sempre

motivadas pelos princípios teóricos usados para racionalizá-las. Fazer história das

ideias/conceitos não é se debruçar em textos canônicos, mas investigar a linguagem jurídica e

política, constantemente em transformação, em que as sociedades dialogam com si mesmas

(POCOCK apud SKINNER, 1999, p. 85).

Muito embora os conceitos jurídico-políticos não sejam necessariamente a causa dos

fatos históricos, mas muitas vezes a racionalização ou a legitimação dos acontecimentos, eles

ajudam a delimitar os limites de compreensão da história (SKINNER, 1999, p. 86). É nesse

sentido que o conceito de segurança nacional será abordado.

Conforme Skinner:

[...] o que é possível fazer em política é geralmente limitado pelo que é possível

legitimar. O que se pode esperar legitimar, contudo, depende de que cursos de ação

podem-se plausivelmente alcançar sob princípios normativos existentes. Mas isto

implica que, mesmo que seus princípios professados nunca operem como seus

motivos, mas apenas como racionalizações de seu comportamento, eles não obstante

vão ajudá-lo a moldar e limitar quais linhas de ação você pode seguir com êxito.

Portanto, não podemos deixar de invocar a presença desses princípios se desejamos

explicar por que certas políticas são escolhidas em determinadas épocas e são então

articuladas e seguidas de maneiras específicas.

É premente estudar o regime militar brasileiro tendo como o objetivo maior resgatar a

memória histórica, retratando que o presente ainda está maculado por um pensamento e por

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PERSEGUIÇÃO DO “INIMIGO”

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estruturas herdadas de um regime que adotou a força e não o consenso como a estratégia de

governo. Encontrar e sobretudo desvendar o passado é a melhor estratégia para libertar o

presente, fazendo com que seus atores encontrem, por si, alternativas próprias aos seus

desafios (SKINNER, 1999).

Por fim, fica desde já registrado que em nenhum momento se pretende acusar qualquer

dos nomes doravante citados como “apoiadores” do regime militar e de eventuais abusos nos

“porões”. Como mencionado, é um trabalho científico que procura compreender o regime

militar de 1964 e não apontar aqueles que foram a favor ou contra o regime.

2. Anotações sobre a “Revolução de 1964”

Compulsando formalmente o regime jurídico inaugurado após a “revolução” de 1964,6

é possível sustentar que o movimento passou por duas fases distintas: uma restauradora e

outra instituidora ou renovadora.7

Convém mencionar que as fases da “revolução” se alteram a partir da classe militar no

poder. Inicialmente a “revolução” foi conduzida pela classe militar dita “moderada”. Na

segunda fase da “revolução” a classe militar que passa a deter o poder político foi a conhecida

“linha dura”.8

Por meio do AI-1 o movimento de 1964 foi “legitimado” política e juridicamente como

uma “autêntica revolução”, como não poderia ser diferente. Foi utilizado esse mecanismo

jurídico-político (“revolução”), pois o principal inimigo - pelo menos o seu símbolo -, era o

próprio Presidente da República, o Sr. João Goulart.

6 O tema do movimento de 1964 é complexo até quanto à sua data de eclosão. Alguns entendem que o

movimento ocorreu no dia 31.03.1964, outros entendem, com ares jocosos, que ocorreu em 01.04.1964. É

importante registrar que o objeto desse trabalho não é investigar a natureza política do movimento (se Revolução

ou se Golpe de Estado). Os termos revolução e golpe de Estado estão longe se serem conceitos isentos. Quem é a

favor de um movimento político, por óbvio, vai se filiar ao discurso da revolução; quem é contra, ao de golpe de

Estado. Até mesmo a famosa Revolução Francesa pode ser vista como um golpe de Estado. Diante desta disputa

conceitual ideológica e tendo em vista a análise formal desse trabalho, será utilizada a nomenclatura dos atos

institucionais, ou seja, o termo “revolução”, que será manejado com aspas visando retratar a linguagem dos AI´s.

Como o intuito desta investigação é analisar o regime militar do ponto de vista jurídico-formal, cremos que tal

postura é mais coerente com os objetivos do trabalho. Sobre as diferenças entre “revolução” e golpe de Estado,

vide BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1974.

7 Ferreira Filho entende que a “revolução” de 1964 passou por duas fases distintas. Originalmente restauradora

(AI-1) e posteriormente renovadora (Atos institucionais 2 e 3, nomeadamente com o AI-4) (1972, passim). A

nova fase decorre de segmentos militares contrários a intervenção “cirúrgica” e que acreditavam que as Forças

Armadas tinham uma missão política, de matriz positivista, destinada a guiar o país à grandeza (progresso) por

meio do desenvolvimento da ordem. Essa concepção será de fundamental importância para a formação da

técnoburocracia militar. No entanto, analisando alguns atos normativos da época, é possível desconstruir essa

visão e entender que o movimento, desde 1964, já visava à reestruturação política, jurídica e econômica do país.

Por exemplo, o Decreto 1/66 que institui a nova moeda, o “cruzeiro novo”. Acompanhando os muitos decretos-

leis do período, nota-se sem muito esforço que a “Revolução de 1964” foi muito mais que uma

“contrarevolução” para salvar a democracia. O evento político inaugurado em 1964 não tinha apenas propósitos

políticos, ele dá início a inúmeras alterações nas estruturas econômicas e institucionais do país. A “Revolução de

1964” foi também uma “revolução” econômica e institucional.

8 É importante mencionar que o regime ou ditadura militar não foi um movimento político exclusivo dos

militares. Houve um relevante apoio de setores da sociedade civil, nomeadamente da classe-média e da classe

empresarial. Também, não faltaram “canetas civis” para tentar legitimar o golpe. Nesse sentido, vide TELLES

JUNIOR, Goffredo. A democracia e o Brasil: uma doutrina para a revolução de março. São Paulo: RT.

1965.

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Tal conclusão resta clara ao se analisar o manifesto do General Mourão Filho, da 4ª

Região Militar (31.03.1964)9

Para muitas fileiras militares, nomeadamente na doutrina da ESG, o que ocorria no

Brasil naquela época era o estabelecimento das bases para uma “revolução comunista”.10

Portanto, a “revolução redentora” foi justificada como uma espécie de “contrarevolução

democrática”, em oposição à tentativa de “revolução comunista”, está sim - segundo o

discurso militar - destinada a abolir a democracia e seus mais “sagrados” princípios.

Do ponto de vista formal, em uma primeira fase, a “revolução de 1964” possuiu um

perfil mais restaurador ou saneador no sentido de manter a democracia, “afastando pessoas

sem alterar o regime”.

Dessa forma, o movimento foi batizado como uma “contrarevolução”.

Era claro, então, que o regime estabelecido pela Constituição de 1946 vivia seus últimos

dias. Ou Goulart e seus aliados a violavam, para estabelecer uma ditadura socializante; ou os

setores e ele hostis, para salvaguardar a democracia, tinha de violar a sua letra, ao menos. [...]

Prevaleceu entre as lideranças revolucionárias a idéia de que era preciso realizar uma

intervenção saneadora antes de se voltar ao processo político normal. [...] a depuração

indispensável para assegurar o bom funcionamento das instituições democráticas (FERREIRA

FILHO, 1984, p. 14; 16-17).11

Visando “salvar a democracia”, a “revolução” adquire vida e é inaugurada

juridicamente pelo Ato Institucional n.º 1, que inclusive torna vago o cargo de Presidente da

República.12 Houve a preocupação em definir o movimento como uma autêntica “revolução”

com apoio da nação.13 O apelo à nação foi utilizado como recurso simbólico de legitimação e

para evidenciar que a “revolução” encarnava o poder constituinte originário - “legitima-se por

si mesma” - e doravante seria a principal fonte material do Direito, não respeitando qualquer

limite. Conforme Sieyès, “uma nação nunca sai do estado de natureza” (1997, p. 96).14

9 “O senhor presidente da República, que ostensivamente se nega a cumprir seus deveres constitucionais,

tornando-se, ele mesmo, chefe de governo comunista, não merece ser havido como guardião da Lei Magna e,

portanto, a de ser afastado do poder de que abusa, para, de acordo com a lei, operar-se sua sucessão, mantida a

ordem jurídica” (BONAVIDES; AMARAL 2009, p. 905).

10 “[...]. Por duas vezes foi tentada a comunização do País e por duas vezes os brasileiros repudiaram tal

tentativa, 1935 e 1964, sem falar nas experiências de guerrilhas urbana e rural dos anos sessenta e setenta”.

(In. Escola Superior de Guerra. Complementos da Doutrina, 1981, p. 150)

11 É possível encontrar nesse trecho, não que o autor tenha querido isso, certa dose da teoria política de

Maquiavel. A presença de um dilema (últimos dias da Carta de 1946 a sua inevitável violação) e a necessitá

(uma ação política guiada pelo resultado, independente de limites morais e jurídicos, pois era necessário agir

para salvar a democracia, mesmo que esse agir violasse a Constituição) (AMES, 2002, p. 104-112).

12 Atribui-se ao jurista mineiro Francisco Campos a redação de dito ato institucional (RAMALHETE, 1974, p.

100).

13 Também na doutrina da ESG é possível encontrar a Nação como a responsável pela luta contrarevolucionária

(ação-resposta) e as Forças Armadas apenas como um dos elementos dessa luta, episodicamente o mais

importante. (In. Escola Superior de Guerra. Complementos da Doutrina, 1981, p. 157)

14 É possível extrair da análise do texto do preâmbulo do AI-1 muitos elementos do pensamento do Abade

Sieyès. Nesse sentido segue alguns excertos visando proporcionar tal comparação. “A nação existe antes de

tudo, ela é a origem de tudo [...]. A Constituição não é obra do poder constituído, mas do poder constituinte.

[...] A nação é tudo o que ela pode ser somente pelo que ela é. [...] A vontade nacional, ao contrário, só precisa

de sua realidade para ser sempre legal: ela é a origem de toda legalidade. Não só uma nação não está

submetida a uma Constituição, como ela não pode estar, ela não deve estar [...]. Uma nação nunca sai do

estado de natureza e, em meio a tantos perigos, todas as maneiras possíveis de expressar sua vontade nunca são

demais. Repetindo: uma nação é independente de qualquer formalização positiva, basta que sua vontade

apareça para que todo o direito político cesse, como se estivesse diante da fonte e do mestre supremo de todo o

direito positivo”. (SIEYÈS, 1997, p. 94-96).

A DOUTRINA DA SEGURANÇA NACIONAL: JUSTIFICAÇÃO DO GOVERNO MILITAR E

PERSEGUIÇÃO DO “INIMIGO”

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O objetivo restaurador da “revolução” aparece quando se afirma no AI-1 que a

“revolução” procurava evitar um governo voltado à “bolchevização”, bem como restaurar a

ordem econômica e financeira do país saneando o bolsão comunista impregnado na cúpula do

governo federal. Outrossim, o objetivo restaurador ou saneador da “revolução” configurava-

se pela manutenção da Carta de 1946, ainda.15

Quanto à faceta renovadora da “revolução” de 1964, se inicia claramente após o AI-4,

mas já no AI-1 é possível encontrar certos vestígios de que a “revolução” apenas estava se

iniciando.16 Tal fase instituidora (renovadora) fica clara no discurso de Castelo Branco na

Escola Superior de Guerra:

Com uma Constituição vulnerável a qualquer tipo de crise (1946) [...] a Nação vinha a

muito inquietada entre as alternativas inelutáveis da anarquia e da ditadura. E a Revolução

eliminou uma e evitou a outra. Por que não se completar agora a institucionalização da

Revolução? (apud FERREIRA FILHO, 1984, p. 20).

A “revolução” tinha evitado a “anarquia” supostamente gerada pelo governo Jango e a

consequente instauração da “ditadura do proletariado”, mas apenas isso não bastava. A fala de

Castelo Branco é emblemática ao afirmar que a Carta de 1946 já não servia para o país,17

tornando-se necessária uma nova ordem constitucional que institucionalizasse os ideais do

movimento. O AI-4 abre as portas para uma nova fase da “revolução” convocando uma

“constituinte congressual”.18

As revoluções, ao se aparelharem do poder político central, partem para a concepção de

um direito transitório iniciando um processo de ruptura com a ordem jurídica anterior visando

à construção de uma nova ordem (RAMALHETE, 1974, p. 98). Esse mecanismo, no caso da

“revolução de 1964”, começa incisivamente com o AI-4 quando este ato declara a

insuficiência da Carta anterior e a necessidade de uma nova Constituição. Não obstante, como

já mencionado, é possível extrair já no AI-1 certa vontade de instituir um novo modelo.

A Carta de 1967 tinha como premissa política a idéia de que a única forma de cumprir

com os objetivos da “revolução vitoriosa” seria por meio de um governo autoritário e

centralizador, ou seja, o resgate de um conceito comum no pensamento político brasileiro: o

“autoritarismo instrumental”.19 Suas características básicas eram: 1. Centralização política na

15 O fato de manter a Carta de 1946 demonstra que ela estava vigente, ainda, por uma concessão do poder

revolucionário, deixando claro que quem concede, pode retirar.

16 “O Ato lnstitucional que é hoje editado pelos Comandantes em Chefe do Exército, da Marinha e da

Aeronáutica, em nome da ‘revolução’ que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação, na sua quase totalidade,

destina-se a assegurar ao nôvo govêrno a ser instituído os meios indispensáveis à obra da reconstrução

econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os

graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da

nossa Pátria”. Grifo acrescentado

17 Tal afirmação deságua no interessante debate envolvendo força normativa da constituição e alterações

político-sociais. No momento histórico analisado, os “fatores reais do poder” venceram a “folha de papel”. Nesse

sentido, vide LASSALLE, Ferdinand. O que é uma Constituição. Trad. Hiltomar Martins Oliveira: Belo

Horizonte, Ed. Líder, 2004,

18 Por que uma nova Constituição? É possível elencar os seguintes motivos: 1. Questão política:

institucionalizar os ideais da “Revolução vitoriosa” e “normalizar” a vida política; Questão internacional:

constitucionalizar o país tendo em vista a imagem do Brasil “lá fora”, como um Estado que tinha uma Carta

promulgada; Questão econômica: não é bom para o país, principalmente economicamente, estar em “revolução”.

Uma Carta traz estabilidade política e segurança jurídica, condições vitais para a economia; Questão

administrativa: em 25 de fevereiro de 1967 é expedido o Decreto-lei 200 que organiza a administração pública

federal e estabelece diretrizes para a reforma administrativa (concepção de uma nova estrutura burocrática).

19 Sobre a visão autoritária da política e do Estado, vide MESURINI, Mauricio Costa; DISCHNABEL, Leandro

e tal. A democracia antiliberal de Francisco Campos. In. Anais do II Seminário Nacional Sociologia e Política

– UFPR. (http://www.seminariosociologiapolitica.ufpr.br/paginas/anais/1.html)

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União; 2. Esvaziamento da autonomia dos Estados; 3. Centralização no Executivo, inclusive

com poderes de legislar formando uma tecnocracia legiferante; 4. O Legislativo como um

órgão de controle e não de governo (que a partir de 1969 nem de controle será mais).20 5. Um

presidencialismo onde o Presidente era eleito por um colégio eleitoral (art. 76) e o colégio era

composto por membros do Congresso Nacional e delegados das assembléias estaduais.21

Demonstrando a faceta renovadora ou instituidora dessa fase, logo após a Carta de 1967

é expedido o Decreto-lei 200/67 que reestrutura a burocracia administrativa federal. Tal

reforma administrativa vem a consagrar um novo modelo voltado ao fortalecimento da

Administração Pública indireta (descentralização), bem como a uma nova racionalidade

burocrática mais próxima dos mecanismos de gestão da esfera privada, muito embora,

paradoxalmente, foram concebidos à época muitos instrumentos de intervenção do Estado na

economia.22

3. O regime jurídico dos atos institucionais

O poder político que “dormia” em sua potência é despertado pelo Ato Institucional n.º 1

(09.04.1964). Daquele dia em diante o Brasil foi governado por atos de exceção denominados

atos institucionais (atos revolucionários visando institucionalizar a “revolução”).

Iniciado o movimento de 1964, a “revolução” será a fonte material primária do direito,

promovendo-se centralidade normativa em dois atos23: o ato institucional e o ato

complementar.24

O ato institucional consistia em “manifestações do poder constituinte originário.

Criam, assim, a ordem jurídica sem estarem fundados nela. Na verdade, atos de outorga

constitucional” (FERREIRA FILHO, 1984, p. 720).

Já os atos complementares “não são de natureza constitucional. Equivalem a leis

complementares” (FERREIRA FILHO, 1984, p. 721). Os atos complementares eram atos

expedidos via poder regulamentar, inclusive muitos acabavam figurando como verdadeiros

regulamentos autônomos, inovando no ordenamento jurídico.

Segundo Meirelles, os atos institucionais e os atos complementares “adotados pelo

governo Revolucionário de março de 1964”, representam “Emendas Constitucionais

20 Essa visão do Poder Legislativo como um órgão apenas de controle também pode ser encontrada em Ferreira

Filho (1972, p. 98 ss).

21 Essa concepção também é muito próxima daquela defendida por Ferreira Filho (1972, p. 80-96)

22 Sobre o Decreto-lei 200, vide PESSOA, Robertônio Santos. Constitucionalismo, Estado e direito

administrativo no Brasil. In. Interesse Público. ano 11, n.º 53. Jan/fev 2009. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p.

151-180. Sobre a construção desse modelo administrativo que perdura até nossos dias, vide BERCOVICI,

Gilberto. “O direito constitucional passa, o direito administrativo permanece”: a persistência da estrutura

administrativa de 1967. In. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. (Orgs). Edson Teles e Vladimir

Safatle. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 77-90.

23 Conforme Ramalhete, a terminologia “ato” foi infeliz, tendo em vista sua proximidade ao Direito

Administrativo, consequentemente, guarda certa distância em relação aos atos legislativos. (RAMALHETE,

1974, p. 100). Há que se questionar se realmente a terminologia foi infeliz ou foi proposital visando demonstrar

que o regime político seria definido muito mais por uma burocracia administrativa legiferante do que pelo Poder

Legislativo.

24 Poderia se questionar a legitimidade desses atos normativos revolucionário. Como será visto alhures, os atos

em comento legitimam-se por si mesmos, pois são produtos do poder constituinte da nação, manifestado por

meio do rompante revolucionário. Tal legitimidade também é afirmada pela efetividade dos atos na medida em

que a força revolucionária garante sua aplicabilidade. Nesse sentido: “[...] quanto à formação do Direito pelas

revoluções e apenas em uma certa medida, convenço-me de que ao menos nestas circunstâncias o Poder, desde

que exercido com efetividade, é que legitima o Direito que surge das revoluções” (RAMALHETE, 1974, p. 97).

Ou seja, legitimavam-se (no sentido de serem obrigatórios), a partir do recurso alegórico da revolução e,

sobretudo, pelo recurso da força.

A DOUTRINA DA SEGURANÇA NACIONAL: JUSTIFICAÇÃO DO GOVERNO MILITAR E

PERSEGUIÇÃO DO “INIMIGO”

544

anômalas, por provirem de contingências político-militares que alteraram o processo normal

de reforma da Constituição” (MEIRELLES, 1966, p. 186).

Portanto, para Ferreira Filho, representavam manifestações do poder constituinte

originário e para Meirelles representavam atos de mutação constitucional, ou seja, atos

decorrentes do poder constituinte derivado.25 Não obstante a diferença de concepções, ambos

concebiam os atos institucionais enquanto normas jurídicas de natureza constitucional.

4. A Escola Superior de Guerra e o conceito de segurança nacional26

A Escola Superior de Guerra (ESG) foi criada pelo Decreto-lei 4.130/42 com o objetivo

de promover aos oficiais superiores das Forças Armadas um curso de Alto Comando voltado

às “questões referentes ao emprego das Grandes Unidades estratégicas e à direção da

guerra”, nos moldes da National War College norteamericana. A ESG era subordinada ao

Estado-Maior das Forças Armadas, comandada por um oficial-general. Porém, com o passar

dos anos a ESG passou a desenvolver uma doutrina que transcendeu aos limites da guerra e

passou a tratar de temas políticos, econômicos e administrativos que marcaram a vida

nacional, nomeadamente pós-64. Conforme Ferreira, “a tarefa prioritária seria formar elites

para a solução dos problemas do País, em tempo de paz” (1979, p. 250). Após o governo de

exceção pós-64, a ESG vai realizar um domínio no mínimo indireto sobre o governo,

doutrinando os principais agentes da burocracia do regime militar (civis e militares).27

A ESG promovia cursos voltados tanto para militares como para civis. Todos os alunos

eram escolhidos pelo comando da ESG . Essa abertura aos civis tinha como objetivo, entre

outros, disseminar a doutrina da “escola”. A ESG não era uma universidade, pois longe de

permitir o debate crítico, tinha como objetivo doutrinar o pensamento a partir de princípios

militares. O espírito militar de comando e hierarquia eram os fundamentos pedagógicos da

ESG (FERREIRA, 1979, p. 251).

Também, haja vista os propósitos desse trabalho, é fundamental considerar o ethos

militar da escola, onde se exclui a noção de conflito como algo inerente à sociedade. Ou seja,

no que tange aos princípios ou linhas de ação, a discordância era vista como resultado de

forças antagônicas ao grupo e, portanto, patológicas.

[...] a ação divergente não como sintoma ou de mero desajustamento entre o

indivíduo e as tarefas a ele cominadas, ou entre ele as chefias imediatadas (sic), mas

25 A concepção de Meirelles parece ser equivocada. Não há como sustentar os atos institucionais como atos de

reforma ou mutação constitucional, pois o fundamento político que os justifica (“revolução”) é completamente

diverso no fundamento político da Constituição à época (Assembléia Constituinte de 1946). A noção de “emenda

constitucional anômala” não possui fundamento jurídico-constitucional. As emendas constitucionais, como

processos de mutação constitucional, fundam-se na mesma fonte política (o poder constituinte), são

manifestações do poder constituinte derivado de reforma. Assim, as emendas à Carta de 1946 deveriam decorrer

do poder constituinte manifestado quando da edição dessa Carta, ou seja, deveriam seguir os procedimentos de

emenda previstos na Constituição de 1946. Nada consta nessa Constituição a respeito de reforma constitucional

por via de atos institucionais decorrentes de um poder revolucionário.

26 Convém registrar que durante o Estado Novo de Vargas o conceito de segurança nacional já tinha sido usado

para perseguir os inimigos do regime, inclusive com a criação do Tribunal de Segurança Nacional. Conforme já

mencionado, durante o regime militar é possível detectar um encontro de pensamentos autoritários, no entanto, o

conceito de segurança nacional concebido pós-64 parece ser mais amplo do que aquele dos anos 30.

27 “É por ser um partido funcional, isto é, um grupo social com espírito e vocação de formular a ação estatal,

que a ESG se tornou objeto de pesquisas acadêmicas e de críticas dos meios civis; é que a partir de 1964,

tentando preencher o vazio de poder, até certo ponto expressão de uma crise pedagógica nacional, em primeiro

lugar, e da progressiva desarticulação de alguns poucos grupos sociais com idênticos espíritos e vocações

estatais, ela se tornou - ao nível dos grupos sociais legalmente institucionalizados -, o único que tinha um

projeto (talvez só dela conhecido) e tentou impô-lo ao Governo, e por seu intermédio, à Nação” (FERREIRA,

1979, p. 253).

ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 545

como comportamento desviado, cujo objetivo último é solapar a unidade grupal e

destruir a coesão institucional (FERREIRA, 1979, p. 252).

Esse entendimento do conflito como algo patológico à sociedade vai ser de importância

capital para o entendimento do regime militar de governo, pois os temas da política,

absorvidos pelo conceito de segurança nacional, foram concebidos como verdades que não

poderiam ser contestadas, pois a contestação era vista como uma patologia social. Somado a

isso, haja vista a amplitude do conceito de segurança nacional, a crítica política, econômica ou

administrativa era facilmente assimilada como um perigo à segurança nacional, sendo assim,

o crítico se transformava em um “inimigo” da Nação.

Dessa forma, conforme Seabra Fagundes, o conceito de segurança nacional era

demasiado dúctil a ponto de ampliar de forma excessivamente discricionária os poderes do

Estado, nomeadamente da administração e dos órgãos de repressão, deixando ao arbítrio do

governo a definição do tipo de manifestação da sociedade civil, com isso, a definição do

“inimigo”.

[...] conceitos que podem abranger, pela dutibilidade de exegese, um sem-número de

comportamentos e atitudes divergentes do pensamento governamental. [...] é

bem de ver como, pela elasticidade da sua configuração, se enseja a elasticidade

da repressão. Pelo menos em sua face administrativa, isto é, policial ou militar.

Também a inspiração em uma ideologia, noção marcante da atuação em termos de

guerra revolucionária, comporta um tal elastério no juízo dos agentes do poder de

polícia que qualquer desordem de rua - o conflito interno mais elementar - pode

capitular-se como delito contra a segurança nacional. Uma passeata proibida, com

reação dos manifestantes, é logo tachada de guerrilha urbana (SEABRA

FAGUNDES, 1974, p. 95). (Grifo acrescentado)

Aliado a esse ethos, também é importante enfatizar a visão digamos institucionalista da

ESG. Partindo de uma concepção hobbesiana de Estado e sujeito, a ESG parti da existência de

valores sociais permanentes; esses valores eram transcendentes ao indivíduo e sedimentados

com a evolução social. Tais valores espelhavam a Nação, está última vista como “‘de caráter

permanente e fundamental’, ‘realidade viva e estuante que se vale do Estado como

instrumento institucional para alcançar seus objetivos’” (apud FERREIRA, 1979, p. 258). A

doutrina esguiana não tinha como fim o homem (ser abstrato), mas a Nação enquanto um fato

histórico concreto, detentora de valores sociais supraindividuais e permanentes (FERREIRA,

1979, P. 259).

Partindo da disciplina militar, na guerra há um dever de obediência à diretriz

fundamental da ação. Pela lei da guerra, os atos de oposição deveriam ser combatidos. Sendo

assim, a crítica a qualquer “valor social” era entendida como uma perigosa oposição à Nação,

devendo ser anulada, se necessário, por mecanismos de guerra.

Conceitos fundamentais do período foram concebidos e disseminados por meio da ESG,

tais como “segurança nacional”, “desenvolvimento”, “democracia” e “guerra revolucionária

comunista”. Notadamente à segurança nacional, nesse artigo procura-se demonstrar que ela

foi entendida e absorvida, não sem resistências, como um conceito chave para o regime, pois

procurou abarcar diversos e novos significados.28

28 Sobre o conceito de segurança nacional na Carta de 1967, vide o REXT/STF 62731 onde se trava um

interessante debate em torno do referido conceito, com o claro objetivo de limitar seu significado. O objeto da

demanda era a possibilidade de usar o decreto-lei, com base na segurança nacional, para tratar de um tema

referente às locações. É interessante notar os argumentos do Procurador Geral da República buscando sintetizar

no conceito de segurança nacional elementos de direito público e privado.

A DOUTRINA DA SEGURANÇA NACIONAL: JUSTIFICAÇÃO DO GOVERNO MILITAR E

PERSEGUIÇÃO DO “INIMIGO”

546

Não é incomum encontrar textos jurídicos da época citando a doutrina da ESG. Nesse

sentido, o artigo de Hubert Vernon L. Nowill (O decreto-lei em matéria de segurança

nacional) traz à colação um conceito de segurança nacional concebido pela ESG. Em seguida,

o autor do artigo cita Ferreira Filho no sentido de afirmar que no conceito de segurança

nacional da ESG “cabia toda a política, isto é, toda aquela orientação geral que o governo

imprime à sociedade, em vista da realização do bem comum, ou de uma visão determinada e

precisa deste. Tudo o que afeta a essa realização, portanto, afeta à segurança nacional”

(FERREIRA FILHO apud NOWILL, 1974, p. 81).

Ao encontro da concepção de Ferreira Filho, é possível encontrar na doutrina da ESG

um conceito de segurança nacional que transcende a esfera militar, abarcando a esfera política

e econômica. Nesse sentido disse Castelo Branco “Compreende, por assim dizer, a defesa

global das instituições, incorporando, por isso, os aspectos psicossociais, a preservação do

desenvolvimento e da estabilidade política interna”; [...] (apud ESG-2, 1981, p. 207). (Grifo

acrescentado)

Na mesma linha segue alguns excertos da doutrina da ESG onde se depreende a

extensão do conceito de segurança nacional e sua relação com o desenvolvimento:

“Segurança e Desenvolvimento Nacionais merecem, pois, neste ponto, uma análise

de suas ligações. [...] os dois conceitos são interligados, interdependentes e a

prioridade, ora de um, ora de outro, será função da conjuntura que se está vivendo.

Tudo vai depender das circunstâncias, dos objetivos a atingir, dos óbices a vencer,

das ações a realizar e dos recursos de que se dispõe. [...] Inseparáveis os dois

conceitos, contidos ambos, como situação, no Bem Comum, depreende-se que seu

próprio estudo diferenciado resulta de uma abstração metodológica, ditada por

motivos didáticos. [...] as repercussões serão sempre globais, isto é, uma ação

voltada ao Desenvolvimento repercutirá, normalmente, sobre a Segurança e vice-

versa” (ESG-2, 1981, p. 207; 208).

Também, o festejado administrativista Hely Lopes Meirelles adere ao amplo e aberto

conceito esguiano em conferência apresentada na própria ESG e denominada “Poder de

polícia e segurança nacional”.29

Ao dissertar sobre o poder de polícia (elemento essencial do

Direito Administrativo e de fundamental importância para o uso e gozo dos direitos

individuais), o autor trata tal poder administrativo como um mecanismo de “frenagem para

deter abusos do direito individual”, instrumento que procura limitar a “atividade dos

particulares que se revelar contrária, nociva ou inconveniente ao bem-estar social e à

segurança nacional” (MEIRELLES, 1972, p. 03).30

29 Sobre a participação de juristas em regimes autoritários no Brasil, vide SEELAENDER, Airton Cerqueira

Leite. Juristas e ditaduras: uma leitura brasileira. In. História do direito em perspectiva. Do antigo regime à

modernidade. (Orgs) Ricardo Marcelo Fonseca e Airton Cerqueira Leite Seelaender. Curitiba: Juruá, 2010, p.

415-432.

30 Impende mencionar que o autor, em seu manual de Direito Administrativo, quando tratou do poder de polícia,

em nenhum momento trouxe à colação o conceito de segurança nacional. Nesse sentido, “O conceito de poder

de polícia, embora não esteja expresso em lei, nos é dado pela doutrina, com ligeiras diferenças de palavras,

que, no fundo, traduzem a mesma idéia: faculdade discricionária da Administração Pública de restringir e

condicionar o uso e o gôzo dos direitos individuais, especialmente os de propriedade, em benefício do bem-estar

geral” (MEIRELLES, 1966, p. 94). Na mesma obra, o administrativista enumera os principais setores de polícia,

sem em nenhum momento mencionar um “setor de segurança nacional”. “[...] vejamos os principais setores de

atuação da polícia administrativa. [...] Com esse objetivo veremos: a) polícia de costumes; b) polícia dos

logradouros e veículos públicos; c) polícia sanitária; d) polícia da atmosfera; e) polícia das plantas e animais

nocivos; f) polícia das construções; g) polícia funerária; h) polícia dos pesos e medidas; i)polícia de trânsito e

tráfego” (MEIRELLES, 1966, p. 106).

ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 547

É imperioso registrar como o autor se utiliza de conceitos esguianos, se alinhado

expressamente ao conceito da ESG, bem como assimila o interesse público à segurança

nacional. Muito embora extensa, se faz necessária a transcrição das palavras de Meirelles:

Objeto e Finalidade do Poder de Polícia - O objeto do poder de polícia

administrativa é todo bem, direito ou atividade individual que possa afetar a

coletividade ou por em risco a segurança nacional, exigindo, por isso mesmo,

regulamentação, controle e contenção pelo Poder Público. Com esse propósito a

Administração pode condicionar o exercício de direitos individuais, pode delimitar a

execução de atividades, como pode condicionar o uso de bens que afetem a

vizinhança ou a coletividade em geral, ou contrariem a ordem constitucional

estabelecida ou se oponham aos objetivos permanentes da Nação. [...] Nesse

interesse superior da comunidade entram não só os valores materiais como

também o patrimônio moral e espiritual do povo, expresso na tradição, nas

instituições e nas aspirações nacionais da maioria que sustenta o regime político

adotado e consagrado na Constituição e na ordem jurídica vigente. Desde que ocorra

um interesse público relevante, justifica-se o exercício do poder de polícia da

Administração para a contenção de atividades particulares anti-sociais ou

prejudiciais à segurança nacional. Com a ampliação do campo de incidência do

poder de polícia, que se iniciou com a necessidade de proteger os habitantes das

cidades romanas - «polis», gerando o termo «politia», que nos deu o vernáculo

polícia - chegamos hoje a utilizar esse poder para a preservação da segurança

nacional, que é em última análise, a situação de tranqüilidade e garantia que o

Estado oferece ao indivíduo e à coletividade, para a consecução dos objetivos do

cidadão e da Nação em geral. [...] A conceituação doutrinária de segurança

nacional vem basicamente de estudos da Escola Superior de Guerra, através de

seus dirigentes e do seu Corpo Permanente de Professores. O inegável é que essa

doutrina é uma formulação das Forças Armadas, consideradas pela Constituição

da República «essenciais à execução da polícia de segurança nacional» e destinadas

«à defesa da Pátria e à garantia dos poderes constituídos, da lei e da ordem» (art.

91). Se assim é, devemos ouvir inicialmente os mais categorizados

representantes das Forças Armadas que já definiram, conceituaram ou

explicaram a segurança nacional. [...] Outro culto representante das Forças

Armadas, o Gen. Golbery do Couto e Silva, afirma que «no amplo quadro da

Política Nacional, o Desenvolvimento e a Segurança intimamente se entrosam,

reciprocamente se condicionam e acentuadamente se interdependem, chegando

mesmo, por vezes, a se confundir numa faixa de recobrimento» (in «Planeja- mento

Estratégico»). [...] Porém, correta e completa conceituação se nos afigura a

elaborada pela Escola Superior de Guerra, segundo a qual: Segurança nacional

é o grau relativo de garantia que, através de ações políticas, econômicas,

psicossociais e militares, o Estado proporciona, em determinada época, à Nação

que jurisdiciona, para a consecução ou manutenção dos objetivos nacionais, a

despeito dos antagonismos ou pressões existentes ou potenciais (MEIRELLES, 1972,

p. 5; 6; 10). (Grifo acrescentado)

No entanto, e isso é essencial que seja dito, nem todos da classe jurídica se alinharam

com esse conceito deveras “elástico” e muitas vezes o fundamento de uma legalidade (ou

aparência de legalidade) nos casos de combate ao “inimigo”. Sendo assim, se faz necessária a

transcrição da crítica de Miguel Seabra Fagundes, em plena ditadura militar.

Acresce notar que a segurança nacional só tem sentido enquanto se reflete, nas suas

conseqüências, como um fator de tranquilidade e paz para todos. Se ela existe como

um aparato de medidas em múltiplos setores (econômico, social, policial, etc.), mas

sem que daí resulte um clima de tranqüilidade subjetiva para cada um na

comunidade, então será algo de falso pelo desajuste entre o que os responsáveis

imediatos por ela realizam e os reflexos desse trabalho sobre os que dela dependem,

para a vida em condições satisfatórias, como integrantes da comunidade brasileira. A

segurança não existe como uma abstração, isto é, por si e para si, porém, como

instrumento para o bem coletivo. E este, na sua abrangência de toda a

coletividade, diz não apenas com aqueles que governam e com os que os

A DOUTRINA DA SEGURANÇA NACIONAL: JUSTIFICAÇÃO DO GOVERNO MILITAR E

PERSEGUIÇÃO DO “INIMIGO”

548

apóiam, senão também com os que contestam o Governo, mas nem por isso

deixam de ser sujeitos ativos do direito à legalidade e, por conseguinte,

destinatários do bem coletivo, em proporção e como próprio (SEABRA

FAGUNDES, 1974, p. 97). (Grifo acrescentado)

Portanto, é possível concluir que o conceito de segurança nacional, formatado no

interior da ESG, foi muito além de um mero conceito de defesa do território. Pretendeu-se

com o conceito de segurança nacional absorver diversos significados, muitos deles

originariamente afetos à política, à economia e à gestão estatal. Com isso, foi construído um

conceito de grande importância para justificar a classe militar como a elite dirigente, bem

como de outorgar ao Chefe do Executivo um relevante poder de expedir decretos-lei. Como

exemplo é possível mencionar o Decreto-lei 200/67 (Reforma administrativa) - diploma esse

até hoje vigente onde constam importantes conceitos ao Direito Administrativo - editado com

fundamento no artigo 9º, §2º do AI-4.31

Também, como será visto nos próximos itens, a segurança nacional funcionou como o

elemento de “unidade política” e eliminação da crítica (oposição).

5. Técnicas constitucionais liberais vs. Modernas técnicas de objeção

política (“guerra revolucionária”)

Feita a análise formal sobre o arsenal jurídico à época para “legitimar” o rompimento

com a democracia, bem como a construção conceitual da segurança nacional abarcando

elementos não só de defesa como de governo, se faz necessário compulsar os mecanismos

jurídicos construídos para anular o “inimigo”.

À época muito se discutia a respeito das técnicas liberais para conter as modernas

técnicas de objeção política, nomeadamente a “guerra revolucionária comunista”.

Esta concepção de guerra revolucionária foi recepcionada e divulgada no Brasil por

meio da Escola Superior de Guerra (ESG). Segundo a doutrina da ESG, após a 1ª Guerra

Mundial os soviéticos criaram o Movimento Comunista Internacional (MCI) visando levar ao

mundo a revolução socialista teorizada por Lênin, Marx e Engels. Dessa forma, surgia no

mundo uma nova modalidade de guerra, com inéditos meios ideológicos e militares (In.

Escola Superior de Guerra. Complementos da Doutrina, 1981, p. 148;151-153).

No seio da contestação subversiva, emergiu um novo estilo de ação: a Guerra

Revolucionária. Acentua Ferreira Filho que esta inovação foi desenvolvida aos moldes

trilhados por Mao-Tsé-Tung, Che Guevara, entre outros, com inspiração na doutrina marxista

(FERREIRA FILHO, 1972).

Na doutrina da ESG, a guerra revolucionária comunista tinha métodos próprios e novos,

almejava o poder buscando o domínio físico e psicológico ensejando um progressivo e

permanente controle sobre a Nação. Apresentava características fundamentais e

inconfundíveis: subversiva, universal, permanente, psicológica e total.

Subversiva porque buscava a deterioração da superestrutura capitalista e da sociedade

por meio da destruição da moral, da disciplina e da religião (ESG, 1981, p. 152).

Universal porque pretendia se infiltrar em todas as instituições e países possíveis. “[...]

no entendimento de Stalin, por ter como alvo conquista de todos os países ainda não-

comunistas e a manutenção dos já conquistados” (ESG, 1981, p. 152).

31 Art 9º - O Presidente da República, na forma do art. 30 do Ato institucional nº 2, de 27de outubro de 1965,

poderá baixar Atos Complementares, bem como decretos-leis sobre matéria de segurança nacional até 15 de

março de 1967. (Grifo acrescentado)

ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 549

Permanente na medida em que se flexibiliza sem interrupção, variando os métodos

conforme o momento apropriado, “conforme concebia Lenine, por não parar de agir; por

aproveitar até os aparentes recessos para a reformulação de novos planos e táticas (ESG,

1981, p. 152)”.

Psicológica tendo em vista estar direcionada, também, para o controle da mente das

pessoas. (ESG, 1981, p. 152-153).

Total, pois voltada para a absorção integral do indivíduo e pela colonização de todas as

esferas da vida (ESG, 1981, p. 153).

Outra característica importante que deve ser colocada em relevo era o fato de que a

guerra revolucionária comunista contava com o apoio de partidos políticos de outros países

(ESG, 1981, p. 156; 158).

Na doutrina da ESG, a Nação brasileira já tinha repudiado tentativas de “comunização”

do país (1935 e 196432), porém, o Brasil não estava imune à guerra revolucionária comunista

(GRC). Portanto, para proteger a democracia e todos os caros valores que a GRC ameaçava,

era necessário conceber uma ação-resposta eficaz (ESG, 1981, p. 150).

Essa ação-resposta era de responsabilidade de toda a nação e as forças armadas eram

apenas um dos elementos dessa contraofensiva. Segundo a doutrina da ESG, algumas medidas

deveriam ser adotadas:

- Estimular o desenvolvimento para combater as injustiças sociais e as desigualdades entre os

homens.

- Realizar eficiente ação psicológica associada ao correto emprego da comunicação social,

objetivando a afirmação democrática e o fortalecimento moral da sociedade.

- Aprimorar, continuamente, a educação política, a eficiência administrativa e o combate à

corrupção.

- Elaborar e aplicar legislação adequada à prevenção e ao combate à subversão.

- Pôr em execução esses planos de forma agressiva e contínua (ESG, 1981, p. 157).

(Grifo acrescentado)

Nessa linha, qual seria a legislação adequada para conter a GRC?

Ferreira Filho, em sua obra A democracia possível (1972), discorre sobre a inadequação

das cláusulas de estabilização constitucional (Estado de Sítio) para conter a moderna “guerra

revolucionária”. Para tanto, visando resguardar o Estado de Direito, o autor propõe a criação

de uma legalidade especial.33

O sistema de direitos individuais pressupõe normalidade política e social. É próprio do

pensamento liberal que em circunstâncias extraordinárias os meios normais de contenção e

manutenção da ordem se apresentem insuficientes, tornando-se necessária a criação de meios

jurídicos extraordinários. Por isso, as Cartas previam uma legalidade de exceção (Estado de

sítio). No entanto, essa legalidade de exceção era incapaz de conter a guerra revolucionária,

32 A referência a 1964 afirma a ideia, no pensamento da ESG, de que naquela época o Brasil sofria de iminente

ameaça comunista. Portanto, a “revolução” de 1964 foi a alternativa salvadora e inevitável.

33 Impende deixar registrado que em nenhum momento estamos levantando qualquer relação entre o jurista

Manoel Gonçalves Ferreira Filho e o famigerado Ato institucional n.º 5. Inclusive, a proposta de legalidade

especial de Ferreira Filho possuía instrumentos garantistas que o AI-5 expressamente proibia (ex. apreciação

judicial).

A DOUTRINA DA SEGURANÇA NACIONAL: JUSTIFICAÇÃO DO GOVERNO MILITAR E

PERSEGUIÇÃO DO “INIMIGO”

550

identificada pelo autor como uma contestação ilegítima e violenta contra a democracia

(FERREIRA FILHO, 1972).34

A tradicional legalidade de exceção (Estado de sítio) fora concebida para conter a

guerra interna e não a guerra revolucionária, está última: subversiva, universal e

permanente.35

No entanto na prática, dizia Ferreira Filho que alguns governos, para conter a guerra

revolucionária - ante a inadequação do estado de sítio -, optavam por medidas ilegais. Assim,

o Estado passava a se tornam, também, um “fora da lei”, paradoxalmente, para manter a lei.

Tal comportamento estatal, segundo o autor, seria inconcebível em um Estado de Direito.

De outra banda, outros governos insistiam na legalidade do Estado de sítio, restringindo

os direitos individuais de todos. Tal estratégia seria injusta e inadequada. Injusta porque a

guerra revolucionária era produto de uma minoria. Inadequada, pois cerceava a maioria e isso

poderia fazer com que ela fosse cooptada pela minoria revolucionária, causando hostilidade

pelo governo e simpatia pelos revolucionários, justificando a violência pela violência

(FERREIRA FILHO, 1972, p. 74).

Diante desse impasse e para manter o espírito do Estado de Direito, Ferreira Filho

propunha uma legalidade especial para os casos de anormalidade política, ou seja, para os

suspeitos por guerra revolucionária (“estatuto de combate a subversão”). Um sistema jurídico

especial, que derrogasse o sistema geral ao caso concreto, absorvendo apenas “aqueles que

fossem fundada e razoavelmente suspeitos de atividade revolucionária, onde quer que

estivessem” (FERREIRA FILHO, 1972, p. 75).

No entanto, dentro da perspectiva de Ferreira Filho, essa legalidade especial deveria ser

cercada de garantias, inclusive de apreciação judicial.36

Ao contrário do teorizado por Ferreira Filho, é importante mencionar que o AI-5

expressamente afastava a apreciação judicial (art. 11) e impedia a impetração de habeas

corpus quando de prisões com fundamento naquele ato institucional. Sob a égide do AI-5, a

prisão do “inimigo” era uma prisão de natureza policial, sem apreciação judicial.

Sendo assim, ante a necessidade de uma legislação especial para o caso de “guerra

revolucionário comunista”, em 1968 foi editado o ato institucional n.º 5, vigente até 1978. Tal

ato institucional - em grande parte fundado na ideia de segurança nacional e pelo imaginário

militar de repulsa a qualquer forma de contestação - somado a leis se segurança nacional,

formou-se o estatuto jurídico do inimigo.

6. Exceção da legalidade e legalidade da exceção

34 Contrariando esse pensamento e dissertando sobre o uso legítimo da força frente a governos ilegítimos,

inclusive como um direito fundamental, vide SAFATLE, Vladimir.“Do uso da violência contra o Estado

ilegal”. O que resta da ditadura: a exceção brasileira. (Orgs). Edson Teles e Vladimir Safatle. São Paulo:

Boitempo, 2010, p. 237-252.

35 Note que as características da guerra revolucionária são antagônicas às características do Estado de sítio, pois

este deve ser limitado no tempo e no espaço.

36 Para o autor, a decisão sobre o suspeito recairia em altas autoridades, responsáveis em caso de abuso. Denota-

se que a decisão consistia em um ato administrativo.36 Essas autoridades deveriam justificar perante o judiciário

a “razoabilidade da aplicação do estatuto de combate à subversão, em cada caso, sofrendo, se abusiva a

aplicação, a punição merecida”. Visando garantir o Estado de Direito, o autor propunha um dispositivo de

controle judicial do ato administrativo que determinava a aplicação do “estatuto de combate à subversão”. No

caso de suspeitos (prisão provisória), a prisão deveria ser comunicada ao juiz para apreciar a legalidade. A

eventual manutenção da prisão, com o aval do judiciário, só poderia ocorrer se demonstrada com provas mais

concretas a atividade subversiva (FERREIRA FILHO, 1972, p. 75-76).

ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 551

A Constituição é promulgada em 24 de janeiro de 1967. Porém, a “chama do poder

constituinte revolucionário” não tinha se apagado. O poder jamais desapareceu em sua

potência e em 13 de dezembro de 1968 é editado o Ato Institucional n.º 5 que altera em parte

a Carta de 1967. Com o advento do AI-5 surge no Brasil uma situação jurídica sem

precedentes: um paralelismo constitucional, pois tal ato funcionou como exceção à

Constituição de 67 e como a “lei do inimigo”, ou seja, a aparente legalidade do sistema de

morte criado no Brasil.

A “revolução” de 1964 trouxe um fato curioso à história das revoluções brasileiras. O

Direito transitório da “revolução” sobreviveu à implantação da nova ordem jurídica,

coexistindo com ela e em alguns momentos a ela se sobrepondo (RAMALHETE, 1974, p.

98).

As razões formais do AI-5 constam de seu preâmbulo:

CONSIDERANDO que a revolução brasileira de 31 de março de 1964 teve,

conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e

propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um

sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na

liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às

ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção,” [...].

CONSIDERANDO que, assim, se torna imperiosa a adoção de medidas que

impeçam sejam frustrados os ideais superiores da revolução, preservando a ordem, a

segurança, a tranqüilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia

política e social do País comprometidos por processos subversivos e de guerra

revolucionária; [...] CONSIDERANDO que todos esses fatos perturbadores da

ordem são contrários aos ideais e à consolidação do Movimento de março de 1964,

obrigando os que por ele se responsabilizaram e juraram defendê-lo, a adotarem as

providências necessárias, que evitem sua destruição, [...].

O AI-5 trazia vários dispositivos contrários à Carta de 1967 e explicitamente manteve e

modificou a Constituição. Nesse sentido: “Art 1º - São mantidas a Constituição de 24 de

janeiro de 1967 e as Constituições estaduais, com as modificações constantes deste Ato

Institucional”.37

O fato de manter a Carta de 1967 não deve ser visto de maneira ingênua. Quando diz

mantém retrata que a Constituição ainda estava em vigência apenas e tão somente porque o

AI-5 assim referendou, retratando que a vigência da Carta de 1967 era uma concessão do

poder revolucionário, ainda desperto. Lembrando que os atos institucionais tinham natureza

jurídica de norma constitucional originária e em alguns casos eram superiores

37 Art 2º - O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias

Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando

os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República. § 1º - Decretado o recesso

parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as matérias e exercer as

atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios. Art 3º - O Presidente da República,

no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na

Constituição. Art 4º - No interesse de preservar a “revolução”, o Presidente da República, ouvido o Conselho de

Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de

quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais. Art 6º -

Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, bem

como a de exercício em funções por prazo certo. § 1º - O Presidente da República poderá mediante decreto,

demitir, remover, aposentar ou pôr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas neste artigo. Art

7º - O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de

sítio e prorrogá-lo, fixando o respectivo prazo. Art 10 - Fica suspensa a garantia de habeas corpus , nos casos de

crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. Art 11 -

Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus

Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.

A DOUTRINA DA SEGURANÇA NACIONAL: JUSTIFICAÇÃO DO GOVERNO MILITAR E

PERSEGUIÇÃO DO “INIMIGO”

552

normativamente à Constituição. Na prática, o fundamento de validade da Constituição de

1967 residia no AI-5 que por sua vez se amparava no poder revolucionário.

Após a Constituição de 1967 acreditava-se que o país voltaria à legalidade

constitucional, não mais vivendo à sombra dos atos institucionais. O AI-5 rompeu com essa

aparente “tranquilidade”. Como toda revolução precisa de um inimigo, nada mais conveniente

do que instaurar dois regimes de legalidade: um para o “amigo” e outro para o “inimigo”. As

revoluções se alimentam de seus inimigos, assim como Saturno de seus filhos.

O AI-5 foi muito mais que uma legislação especial, ele funcionou como o fundamento

normativo do regime. Ao “constitucionalizar” a perseguição ao inimigo ele mantinha viva a

“revolução”, portanto, alimentava todo um sistema de legalidade de exceção (atos

institucionais). O AI-5 funcionava como a síntese da “revolução redentora” na medida em que

negava seus inimigos, criados pela própria revolução.38

Em 17.10.1969, com base no Art. 1º, §2º do AI-5, a Junta Militar que governava o país

naquela época (Comando da Marinha, Exército e Aeronáutica), resolve emendar a

Constituição de 1967. É “promulgada” a Emenda Constitucional de 1969.39

Conforme Ferreira Filho, “Quase nada se conhece a respeito da elaboração dessa

Emenda” (FERREIRA FILHO. 1984, p. 33). No entanto, é possível sustentar, entre outros

motivos, que ela tinha uma função jurídica e política de grande importância. Ao reconhecer o

AI-5, a emenda de 69 afirmava que o “poder constituinte da revolução vitoriosa” não tinha

se exaurido. Também, mantinha a vigência da principal norma de combate ao inimigo,

afirmando a “revolução”.

Havia à época uma discussão sobre eventual antinomia normativa entre a Carta de 1967

e os atos institucionais.40 A Emenda de 1969 afirma a vigência da Carta de 1967, bem como

do AI-5 e demais atos institucionais.41 Assim sendo, quando a emenda constitucional

38 As revoluções são pródigas em construir e destruir seus inimigos por meio de um direito excepcional. Até

mesmo a libertária Revolução Francesa utilizou de tal metodologia revendo o direito penal liberal nascente

(Beccaria) e concebendo o “despotismo da liberdade” (Robespierre e Marat). O antigo crime de lesa majestade,

um dos artifícios de proteção do monarca no ancien regime, foi “transfigurado” para o crime contra a segurança

do Estado a tal ponto de se afastar garantias básicas como interrogatório e provas testemunhais. Tal

transfiguração, momentânea, justificava-se em nome da liberdade. Como disse Marat, “É pela violência que

deve se estabelecer a liberdade e chegou o momento de organizar momentaneamente o despotismo da liberdade

para acabar com o despotismo dos reis” (apud DAL RI JUNIOR, 2010, p. 134).

39 Segundo o AI-5 (art. 2º, §1º), caso o Legislativo estivesse em recesso, o Executivo poderia legislar sobre toda

e qualquer matéria de competência da União. Uma das competências da União era emendar a Constituição. Com

base no artigo 2º do AI-5, é decretado o Ato Complementar (na mesma data do AI-5, 13.12.1968), colocando o

Congresso Nacional em recesso. Assim nasce a Emenda de 1969 que alguns autores entendem como outra

Constituição.

40 Tal situação pode ser constatada no artigo publicado em setembro de 1968 (ou seja, antes da edição do AI-5),

onde o autor questiona o regime constitucional da época confrontando a Constituição de 1967 e os atos

institucionais. “[...] de duas uma: ou esta Nação reingressou no leito da Constituição, no império da legalidade,

ou nele não ingressou. Se ingressou, as medidas excepcionais não prevalecem, porque seria ofensa à própria

cultura jurídica do País admiti-lo. Se não entrou, então a situação é diferente. Falemos na linguagem clara, não

digamos que o País se encontra em regime constitucional. Tenhamos a firmeza de proclamar que subsiste o

regime discricionário. Não é possível pretender estabelecer a convivência ou a existência simultânea do regime

constitucional, internamente traduzido numa Constituição nova, e a manutenção de atos discricionários baixados,

por seus fundamentos e por sua natureza, para uma fase de transição. [...] Não é verdade que a Constituição haja

consagrado, explícita ou implicitamente, as normas dos atos institucionais e complementares, para que estes,

como tais, subsistam” (MARINHO, 1968, p. 179-180).

41 Emenda constitucional de 1969. Art. 182. Continuam em vigor o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de

1968, e os demais Atos posteriormente baixados. Parágrafo único. O Presidente da República, ouvido o

Conselho de Segurança Nacional, poderá decretar a cessação da vigência de qualquer dêsses Atos ou dos seus

dispositivos que forem considerados desnecessários.

ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 553

recepcionou o AI-5 (que tinha natureza constitucional), acabou por gerar um paralelismo

constitucional: uma Constituição para a normalidade política e uma “Constituição” para a

anormalidade política. A Emenda de 69 reforçou a validade do AI-5, possibilitando a norma

de exceção à Constituição de 67, que por sua vez era a principal norma de perseguição do

inimigo.

O AI-5 ofertava um tratamento diferenciado ao suposto “inimigo”, entre eles a

suspensão da garantia do habeas corpus, bem como a exclusão de apreciação judicial dos atos

administrativos fundados no referido ato institucional (respectivamente, artigos 10 e 11).

Do ponto de vista jurídico, o AI-5 - como todo ato institucional tinha uma estatura

normativa de natureza constitucional originária - vige como uma “Constituição” paralela à

Carta de 1967. O AI-5 figurava como uma norma constitucional especial, derrogando as

garantias da Constituição de 1967 para determinadas circunstâncias.

Importante mencionar que a finalidade e a base conceitual do AI-5 era a segurança

nacional. Como visto, o conceito esguiano de segurança nacional, aceito por grande parte da

doutrina jurídica à época, abarcou elementos da política, da economia e da gestão

administrativa. Aliado a isso, o pensamento dominante à época, sobretudo da burocracia civil

e militar, era no sentido de encarar a crítica como um conflito e este era considerado uma

patologia social. Dessa forma, havia um risco iminente de ser considerado “inimigo do

regime” ante a uma manifestação ou crítica ao governo militar. E como visto, aos inimigos, a

exceção constitucional.

O AI-5 representava uma “Carta” voltada à anormalidade, afastando garantias, pois os

direitos individuais não se compatibilizariam, segundo o discurso militar, com o anormal.

Portanto, um canal jurídico aberto para absorver o “inimigo”, conceito este deveras abstrato e

volúvel, conforme a canção, “Quem é o inimigo? Quem é você?” Dessa forma, o AI-5 tinha

uma imensa força simbólica, pois funcionava como a “espada de Dâmocles” sob a cabeça dos

cidadãos.

Além do AI-5, ou como acessório a ele, existiam leis especiais fundadas naquela noção

de “segurança nacional”.

O decreto-lei 898/69 estabelece a “Lei” de Segurança Nacional, crimes contra à ordem

política e social, seu processo e julgamento. A lei de segurança nacional foi outorgada com

base no artigo 1º do Ato Institucional nº 12 combinado com o parágrafo 1º do artigo 2º do Ato

Institucional nº 5.42

Esse decreto-lei perdurou durante nove anos, residia em seu âmago sanções rígidas, de

detenção à morte. As punições perpassavam o âmbito externo (guerra declarada), atingindo

assim, a economia, a política e vida administrativa do Brasil.

A segurança nacional era responsabilidade de todos43, abrangia tanto pessoas físicas

quanto jurídicas. Vinculavam até crimes cometidos no estrangeiro, que produziram ou

deveriam produzir, mesmo que parcialmente resultados no território nacional.

O Estado, para assegurar a independência, soberania e não-intervenção estrangeira ou

interna, deturpa o conceito de segurança nacional, e atribui o termo “inimigo” para as mais

42 Art 2º - O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias

Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando

os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República.

§ 1º - Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica autorizado a legislar em todas as

matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou na Lei Orgânica dos Municípios

43 Art. 1º. Decreto-lei 898/69

A DOUTRINA DA SEGURANÇA NACIONAL: JUSTIFICAÇÃO DO GOVERNO MILITAR E

PERSEGUIÇÃO DO “INIMIGO”

554

variadas intenções e ações. Marcado assim pela banalização de alguns tipos penais, tipos

exclusivamente econômicos, políticos ou administrativos. O decreto tipifica crimes e

respectivas sanções, procedimentos e julgamentos cujas penas são de detenção, reclusão,

caráter perpétuo e à morte.

O “inimigo” existe, sem rosto ou corpo. Com este propósito, surgindo após o AI-5, a

“Lei” de Segurança Nacional malsina sua essência, o intuito do “legislador executivo” foi

maximizar taxativamente as penalidades e cercear as liberdades individuais, tudo em nome da

elástica segurança nacional. Neste contexto, vários crimes eram configurados e enquadrados

contra a segurança nacional. Dentre eles: a) Divulgar notícia falsa, tendenciosa ou fato

verdadeiro deturpado; b) impedir ou dificultar o funcionamento de serviços essenciais; c)

promover greve com a finalidade de coagir qualquer dos poderes da república ou cessarem os

funcionários públicos coletivamente, os serviços a seu cargo; d) Assaltar, roubar ou depredar

estabelecimento de crédito; e) Perturbar, mediante o emprego de vias de fato, ameaças,

tumultos ou arruidos, sessões legislativas, judiciárias ou conferências internacionais,

realizadas no Brasil; f) Reorganizar ou tentar reorganizar de fato ou de direito, ainda que sob

falso nome ou forma simulada, partido político ou associação, dissolvidos por fôrça de

disposição legal ou de decisão judicial, ou que exerça atividades prejudiciais ou perigosas à

segurança nacional, ou fazê-lo funcionar, nas mesmas condições, quando legalmente

suspenso. Constituíam igualmente crimes contra a segurança nacional as ameaças

subversivas, psicológicas ou paramilitares, que tenham como nascedouro o inimigo interno.

44

O processo e julgamento propriamente dito (cap. III) dos crimes previstos nesta lei

ficavam sujeitos ao “foro militar”, independentemente se o acusado era militar ou civil.

Durante as investigações poderia o indiciado ser preso por (30) trinta dias, sendo prorrogado

uma vez por solicitação fundamentada. Ademais, o indiciado poderia ficar incomunicável por

(10) dias, para averiguações policiais (art. 59, §1º).45 A discricionariedade atinge o Conselho

de Justiça46, que poderia (faculdade):

[...] a) dar ao fato definição jurídica diversa da que constar na denúncia, ainda que

em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave, desde que aquela definição haja

sido formulada pelo Ministério Público, em alegações escritas e a defesa tenha tido

oportunidade de examiná-la;

b) proferir sentença condenatória por fato articulado na denúncia, não obstante haver

o Ministério Público opinado pela absolvição, bem como reconhecer circunstância

agravante não argüida, mas referida, na narração do fato criminoso, na denúncia. [...]

É imperioso mencionar que todos os atos administrativos (civis ou militares) expedidos

com base nos atos institucionais não poderiam ser jurisdicionalizados, ou seja, não poderiam

ser levados à apreciação judicial. 47 Portanto, para o inimigo, não havia a garantia do controle

judicial.

44 Neste sentido, (RC 1274, Relator(a): Min. CORDEIRO GUERRA, SEGUNDA TURMA, julgado em

03/04/1979, DJ 04-05-1979 PP-03517 EMENT VOL-01130-01 PP-00069)

45 Esse prazo de incomunicabilidade, somado à proibição de impetração de habeas corpus, propiciou em muitos

casos a ocorrência de desrespeito a direitos humanos, nomeadamente a torturas e até assassinatos. O indiciado

incomunicável ficava em um “limbo” jurídico, uma zona de indefinição propícia para quem pretendia violar

direitos humanos.

46 Vide art. 72.

47 Emenda constitucional de 1969. Art. 181. Ficam aprovados e excluídos de apreciação judicial os atos

praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964, assim como: I - os atos do Govêrno

Federal, com base nos Atos Institucionais e nos Atos Complementares e seus efeitos, bem como todos os atos

ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 555

Como visto, liberdades fundamentais valiam apenas em condições de

normalidade. O AI-5, enquanto exceção à legalidade constitucional e a

Lei de segurança nacional, enquanto a legalidade da exceção, foram a

proposta institucional de resguardar a segurança nacional e isso

implicava em manter intacto o projeto político, econômico e

administrativo do governo militar. Com essas normas excepcionais,

criticar o governo era o primeiro e grande passo para a troca de status,

de cidadão a inimigo.

CONCLUSÃO

O singelo objetivo deste trabalho foi trazer à tona um debate que precisa ser inserido na

academia jurídica brasileira. Após o movimento militar de 1964, os atos institucionais foram

concebidos com normas superiores decorrentes do poder constituinte originário

“revolucionário”. Portanto, normas de natureza constitucional. No discurso oficial, a

“revolução” de 1964 passou por uma primeira fase saneadora-restauradora (AI-1 e AI-2) e

foi justificada como uma “contrarevolução” visando manter a Carta de 1946 e seu modelo

democrático que estava em perigo por força do comunismo. Após, passou por uma nova fase

renovadora-instituidora (pós 1966, com o AI-4). O objetivo foi além do inicial de 1964. Com

o AI-4 é reaberto o processo revolucionário visando à fundação de um novo modelo de

democracia, uma nova proposta econômica e burocrática (Decreto-lei 200/67).

Houve um grande protagonismo da ESG durante o regime militar, principalmente no

treinamento da burocracia estatal, bem como ao construir conceitos nucleares para o governo,

nomeadamente a “guerra revolucionária comunista”. Também a “segurança nacional”, de

vital importância e em grande parte assimilada pelos juristas à época, foi concebida como um

conceito abrangente, absorvendo em seu interior elementos que transcenderam a esfera

militar, alcançando a política, a economia e a administração do Estado.

O conceito de segurança nacional teve dupla funcionalidade, pois graças a sua

abrangência serviu para justificar a classe militar como a mais apta ao governo, bem como

para justificar a perseguição àquele que se mostrasse perigoso à nação (“subversivo”). Uma

vez existindo um conceito amplo de segurança nacional, qualquer crítica ao governo, a

economia e a administração era facilmente assimilada como um atentado à segurança

nacional, nesse caso, o cidadão passava a ser o inimigo absorvido por uma legalidade de

exceção.

Ante a incapacidade da Carta de 1967 em fundar um governo forte para conter a ameaça

à unidade política e à ordem social democrática, ou seja, ante a inépcia da Constituição de

1967 em institucionalizar os ideais de “revolução” frente aos levantes sociais contra o regime

militar e principalmente para conter a dita “guerra revolucionária comunista”, é expedido o

AI-5 com toda a sua força autoritária. Com o AI-5 – afirmado pela Emenda de 1969 – somado

à lei de segurança nacional, foi instituído um paralelismo constitucional. Existia uma Carta

voltada à normalidade (Carta de 1967) e outra à anormalidade (AI-5). A Constituição do

amigo e a “Constituição” do “inimigo”.

dos Ministros Militares e seus efeitos, quando no exercício temporário da Presidência da República, com base no

Ato Institucional nº 12, de 31 de agôsto de 1696; II - as resoluções, fundadas em Atos Institucionais, das

Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais que hajam cassado mandatos eletivos ou declarado o

impedimento de governadores, deputados, prefeitos e vereadores quando no exercício dos referidos cargos; e III

- os atos de natureza legislativa expedidos com base nos Atos Institucionais e Complementares indicados no item

I.

A DOUTRINA DA SEGURANÇA NACIONAL: JUSTIFICAÇÃO DO GOVERNO MILITAR E

PERSEGUIÇÃO DO “INIMIGO”

556

Por fim, impende registrar o que queremos retratar quando afirmamos que o AI-5 e a lei

de segurança nacional eram a “Constituição” do “inimigo”. Primeiro, porque afastavam as

garantias constitucionais da Carta de 67. Segundo, porque de uma autêntica Constituição não

tinham nada, pois nenhuma garantia era prevista. Ao “inimigo”, capturado pelo AI-5 e seu

apêndice “legal”, restava apenas rogar aos céus. O AI-5 e a lei de segurança nacional forjaram

a aparência de legalidade do regime, acobertando a ilegalidade patente dos “porões”. Foi uma

falsa legalidade para encobrir um rei nu e, ainda hoje, impune.

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