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HUMBOLDT 106 A EDUCAÇÃO — ENTRE O CORAÇÃO E A RAZÃO HUMBOLDT 106 UMA PUBLICAÇÃO DO GOEThE-INsTITUT A EDUCAÇÃO ENTRE O CORAÇÃO E A RAZÃO

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A EDUCAÇÃO — ENTRE O CORAÇÃO

E A RAZÃO

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Humboldt 158 / A EDUCAÇÃO – ENTRE O CORAÇÃO E A RAZÃO

EDiTORiAl UlRikE PRiNZ E isAbEl RiTh-MAgNi 3

gUillERMO hOyOs O iDEAl DA fORMAÇÃO hUMANisTA 5

JORgE VOlPi A MáqUiNA DE EMOÇõEs 7

CRisTiNA PERi ROssi O gOZO iNTEgRAl 9

MATThiAs kROss MEU CéREbRO sENTE? 11 UTE fREVERT COMO EDUCAR O CORAÇÃO 15

JUAN ANTONiO flOREs MARTOs TURbUlêNCiAs DO DEsEJO E DA EMOÇÃO 18

WOlfgANg fRühWAlD DE qUANTO sAbER PRECisAMOs? 21

JANNA DEgENER fAlAR MAis DE UM iDiOMA NOs TORNA iNTEligENTEs? 25

MANfRED sPiTZER EDUCAÇÃO sEM sisTEMA 28

séRgiO bRANCO RAZÃO E sENsibiliDADE NA sAlA DE AUlA 33

RilO ChMiElORZ OxfORD EM MADRi 36

ROsA TENNENbAUM fORMAÇÃO DO bElO CARáTER 39

MARCElO DA VEigA qUANTO EsPíRiTO é NECEssáRiO NA EDUCAÇÃO? 43

ViCTORiA EglAU “NOssA ORqUEsTRA é UM TEsOURO” 46

sibyllE lEWiTsChAROff fORMAÇÃO CUlTURAl 49

RikE bOlTE lEiTURAs EM DOMiCíliO E OUTRAs PONTEs PARA A AlfAbETiZAÇÃO 52

UlRikE PRiNZ MARiPOsA, OU O PODER TRANsfORMADOR DA ARTE 55

WOlfgANg bEhRENs CONfissõEs íNTiMAs 57

RiCARDO bADA MAfAlDA VAi à EsCOlA 59

bJöRN kUhligk E RiTO RAMóN AROChE TRANsversalia 61

MigUEl giUsTi CUlTURA DA TOlERâNCiA. CUlTURA DO RECONhECiMENTO 64

MARiANgElA giAiMO ANTígONA ORiENTAl 67

gUillERMO CAlDERóN TERREMOTO EM DüssElDORf 70

fRiEDER REiNiNghAUs TRibUTO AO REi AsTECA 72 MARk MüNZEl PROTOTExTO NO ARMáRiO 75

ANNE hUffsChMiD “VER E CRER” 78

bERThOlD Zilly ENTREMUNDOs 80

ExPEDiENTE 82

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A educação – entre o coração e a razão

3/82Ulrike Prinz e isabel Rith-Magni

A EDUCAÇÃO – ENTRE O CORAÇÃO E A RAZÃO

Os ideais da educação mudam hoje em dia com mais rapidez do que as tarifas de telefonia móvel. As instituições educativas mal conseguem acompanhar o ritmo, e tudo o que tentam fazer parece carecer de um sistema. Vivemos atualmente num “mundo do saber” altamente flexível, que tem por lema “aprender a vida inteira”. Mas o que vale a pena aprender num mundo digital em aceleração permanente, no qual o que se sabe hoje parece não valer um tostão furado amanhã? O presente número ocupa-se da educação no campo de tensão entre o coração e o cérebro, entre a emoção e a razão. Um tema central e de grande

relevância social, que não tange apenas a formação e a escolha de uma profissão tendo em vista o mercado de trabalho, mas que tem a ver muito mais com a questão sobre o que perfaz intrinsecamente a educação e o que é necessário saber na sociedade pós-industrial.

Avanços recentes na pesquisa do cérebro mudaram também nossa maneira de entender a educação. Eles nos apresentam os processos de aprendizagem como sistemas de redes neuronais de grande complexidade. Só que o cérebro passa por transformações drásticas no decorrer de uma vida. Grandes

Susan Aldworth, “Cogito Ergo Sum 3”, 2006, impressão giclée, 250 x 200 cm. Cortesia da artista e de GV Art, Londres

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os sensíveis corações sejam suscetíveis de manipulação. Um exemplo impressionante neste sentido é fornecido por Victoria Eglau em seu relato sobre a força mágica da música na planície boliviana, com a qual os jesuítas impulsionaram seu trabalho missionário a partir de fins do século XVII. Depois que a ordem foi expulsa da América em 1767, os indígenas da Chiquitania preservaram as velhas partituras e hoje lhes insuflam vida nova em suas orquestras. A arte desperta entusiasmo e criatividade; a educação musical, portanto, é capaz de mover o mundo.

Se o arquiteto coreano Eun Young Yi, no caso de um celeiro do saber como o é a biblioteca que projetou em Stuttgart, qualifica o cerne do edifício simbolicamente de “coração” e “raiz do conhecimento”, isto evidencia que a razão e a emoção não precisam ser necessariamente antagônicas. Cada vez se alude com mais frequência à “inteligência emocional”. A experiência comprova que aprendemos melhor quando as coisas apelam também ao emocional, através da boa literatura, por exemplo. Como destaca o filósofo Guillermo Hoyos, ela amplia nossos horizontes; para Cristina Peri Rossi, proporciona prazer na aquisição de conhecimentos, compaixão e compreensão; e Jorge Volpi vê na ficção uma verdadeira máquina de emoções, que incentiva a educação e a sabedoria de uma pessoa, mas também é capaz de manipulá-la.

Educar é sempre educar o coração. A educação deveria ser capaz de motivar e entusiasmar, pois, para dizer com as palavras de Robert Musil, “nada é mais triste do que ver como um jovem vital e promissor se converte num adulto totalmente normal”. <

Copyright: Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Informações adicionais sobre a ilustração:Susan Aldworth (1955, Epsom, Grã-Bretanha) é uma artista que trabalha com arte gráfica, técnicas de impressão digital, cinema e instalação. Tem uma abordagem interdisciplinar, inspirada pela medicina, e ocupa-se especialmente com o cérebro humano e formas de expressão da personalidade, de uns tempos para cá também com a esquizofrenia. Ponto de partida de sua busca do fundamento concreto daquilo que chamamos de personalidade são os escâneres cerebrais científicos, a partir dos quais ela cria analogias visuais com os processos eletroquímicos neuro-lógicos.

esperanças recaem sobre as conquistas das neurociências, cujos métodos imagiológicos dão a impressão de ser possível observar o cérebro enquanto pensa. No entanto, as conclusões tiradas a partir das imagens diferem muito entre si. O filósofo Matthias Kross não é o único a prevenir do reducionismo fisiológico praticado pelas neurociências, que de uns anos para cá adquiriram uma posição preeminente entre as disciplinas científicas. As ciências humanas e da cultura objetam ao materialismo neurocientífico que o cérebro está sempre inserido num corpo, estando assim submetido a condicionamentos culturais, históricos e sociais. Por isso, a pesquisa das emoções, que está em voga há algum tempo, não se interessa tanto pela listagem exaustiva das emoções, e sim mais pela perspectiva social, ou seja, pelo modo como certas camadas sociais, culturas ou sociedades exprimem seus sentimentos. Uma mudança nessas estratégias é apontada pelo estudo de Juan Antonio Flores em Veracruz, no México, onde se pode comprovar uma clara substituição das medidas rituais tradicionais, com predomínio do corporal, por estratégias narrativas para a contenção das emoções.

O “emotional turn”, a nova abordagem das emoções como objeto de pesquisa tanto nas ciências exatas como nas humanas, traz resultados muito diversos – também em relação à questão sobre uma educação “razoável” e adequada a nossa sociedade. Chama atenção, por exemplo, que de uns tempos para cá os ideais de educação mais antigos sejam mobilizados de novo, na batalha já dada por perdida contra a fragmentação crescente do saber. Na busca de novos conceitos educacionais, recorre-se com frequência às teorias de Wilhelm von Humboldt (1767–1835) e a abordagens pedagógicas reformistas posteriores, que desde sempre defenderam uma concepção mais ampla de educação que envolvesse também o coração e os sentimentos. Será que este início do século XXI está maduro para seu renascimento?

O que se pode dizer em todo caso, como resume a germanista Rosa Tennenbaum, é que a sociedade que fez do saber um produto não nos tornou mais sabidos. O acúmulo de conhecimento não leva necessariamente a desenvolver uma capacidade de juízo crítico, que em último caso é o mais importante na hora de selecionar as montanhas de informação, segundo o germanista Wolfgang Frühwald. Educar é sempre educar pessoas. Como assinala o filósofo e pedadogo Marcelo da Veiga, trata-se de entender o outro e de entender o mundo. E na escola? O pesquisador do cérebro e psicólogo Manfred Spitzer duvida seriamente de que a irrefreável digitalização melhore de fato as aulas e alerta com veemência de métodos de aprendizagem superficiais favorecidos pela introdução de meios digitais. Já Sérgio Branco, professor e pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio, mostra que o emprego de meios digitais reforça o aprendizado ativo e autorregulado e aumenta a motivação.

Mas como seria uma educação que levasse em conta igualmente o coração e a razão? Na época dos irmãos Humboldt, tratava-se de inculcar nas almas jovens o belo, o bom e o sublime através da música, da literatura e das artes plásticas. Mesmo que, como expõe Ute Frevert, se estivesse consciente dos perigos, pois a acentuação da emocionalidade fomenta o medo de que

Ulrike Prinz e isabel Rith-MagniEditorial

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função da economia. As humanidades, a filosofia e as ciências sociais são negligenciadas, como se fossem um estorvo. Hoje não se dá muito valor ao ideal de Wilhelm von Humboldt, que defendia uma educação na solidão e na liberdade, a formação da pessoa para a cooperação e uma educação superior que conciliasse docência e pesquisa. Esses ideais do humanismo, que em nenhum momento descuidaram da formação profissional, enfatizavam certos valores na educação, começando pelos do Iluminismo, como – por exemplo – a capacidade de pensar e de se comprometer com uma cultura política. Chegamos a um

São diversas as propostas de reforma da educação formuladas na América Latina. A maioria delas parece se orientar pelos mesmos princípios criticados pela filósofa norte-americana de origem judaica Martha C. Nussbaum em seu livro Not For Profit: Why Democracy Needs the Humanities (Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades, Princeton University Press, 2010). Nesse livro, a autora assinala que hoje a educação se orienta pelo rendimento econômico, tanto da iniciativa privada como das instituições públicas, que se esforçam para formar profissionais em administração e áreas afins, tudo em

o idEAl DA fORMAÇÃO

hUMANisTA

Representação da alma como uma série de capacidades de delimitação exata, de: Gregor Reisch (1470–1525), Margarita, philosophica nova, 1512, xilogravura. © Dresden, Sächsische Landes-, Staats- und Universitätsbibliothek / Deutsche Fotothek / Regine Richter. Foto: Cortesia Deutsches Hygiene-museum de Dresden

guillermo hoyos

de que formação – entre o racional e o emocional – os jovens precisam em tempos

de concorrência econômica e pragmatismo?

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estágio tal no domínio da ciência, da técnica e da tecnologia na condição humana que nós, especialmente os não religiosamente musicais, parecemos ser levados a desconfiar da sensibilidade moral e a reagir aos seus apelos de forma racional, ou seja, ignorando-a ou adaptando-nos aos ideais de êxito, de competitividade e de produtividade. Por outro lado, fato é que a mesma tradição religiosa se encarregou de menosprezar o caráter profundamente humano dos sentimentos. A educação da sensibilidade acabou muitas vezes em sua repressão. A asquese da formação religiosa, herdeira – de uma forma negativa – da catarse da tradição grega, transformou em ideal de formação humana um controle racional das paixões, especialmente de seu enraizamento nos sentimentos. A pessoa com uma boa formação controla suas paixões e tem domínio sobre sua sensibilidade. Um dos resultados positivos da assim chamada pós-modernidade tem sido precisamente questionar o racionalismo que, em termos de modernização, se apoderou da própria modernidade. O fato de a minha racionalidade e de a minha concepção do bem não precisarem necessariamente coincidir com as de outras pessoas requer que compreendamos a racionalidade do outro, especialmente em se tratando de valores. Trata-se do reconhecimento do outro como diferente em sua diferença e, portanto, como interlocutor legítimo. E isso está relacionado à crítica pós-moderna a uma modernização que acabou colonizando nosso mundo da vida. Esse mundo tem que ser reencantado, já que a ciência e a tecnologia o desencantaram, a fim de que nos reencontremos nele como se estivéssemos em casa. A própria Martha Nussbaum reivindica uma educação das emoções, que – a partir do sentimento de compaixão em sua acepção etimológica de “sentir com” o outro – nos leve a enriquecer nossas relações interpessoais para a construção de uma sociedade mais humana, mais solidária, mais compreensiva e mais pluralista. Para tal, ela insiste na formação da imaginação narrativa, nos estudos culturais, na estética e nas letras em geral, a fim de ampliar o horizonte de compreensão cosmopolita. Os jovens de hoje são tachados de intolerantes, desprovidos de valores e indiferentes. Na verdade, trata-se do contrário. Se os submetermos a uma educação não só da razão, como também do coração, podemos descobrir que os valores dos jovens de hoje são exatamente de tolerância e pluralismo, de compromisso com a igualdade e respeito às diferenças, de fidelidade como complemento da reciprocidade e da solidariedade. Se eles fossem expostos à sensibilidade moral e não à repressão, a uma educação de valores e não a ameaças de castigo, à consciência de justiça como igualdade e não à Justiça e a anos de cadeia, veríamos como vale a pena buscar a paz e não a guerra. A juventude é, por natureza, pacifista. <

guillermo hoyosO ideal da formação humanista

Copyright: Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autor: Guillermo Hoyos Vásquez (1935, Medellín, Colômbia), licenciado em Filosofia e Letras, estudou Teologia em Frankfurt e se doutorou em Filosofia na Universidade de Colônia (Alemanha) em 1973. É professor emérito da Universidade Nacional da Colômbia, na qual lecionou Filosofia durante 25 anos. Atualmente dirige o Instituto de Bioética da Pontifícia Universidade Javeriana de Bogotá. É autor de numerosas publicações sobre filosofia moral, política e do direito.

Tradução do espanhol:Simone de Mello

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las, como se elas fossem feras selvagens. As emoções têm sido vistas, desde então, como forças imbatíveis, capazes de nos impelir aos piores excessos. Essa percepção não é muito exagerada: de fato, as emoções não derivam de um impulso racional, mas sim da predisposição do cérebro de reagir de imediato às ameaças externas. Entre muitas outras coisas – como guardiã da memória, transmissora de ideias e padrões, breviário do futuro –, a ficção também funciona como uma máquina de emoções. Imergir em um filme, numa série de televisão, numa

Segundo António Damásio, as emoções são conjuntos complexos de respostas químicas e neuronais que formam um padrão distintivo, enquanto os sentimentos são percepções de estados do corpo. Em outras palavras, uma emoção descreve um estado mental, enquanto um sentimento é, antes de mais nada, uma percepção física. Segundo Damásio, isso explica por que as emoções precedem os sentimentos. Não é à toa que os antigos acreditavam que nós, seres humanos, éramos dominados por nossas paixões e que a tarefa da civilização consistia em domá-

A MáqUiNA DE EMOÇõEs

Poyet, A cabeça do inventor, La Nature, 1890, vol. 1, gravura impressa. © Leipzig, Universitäts–bibliothek. Foto: Cortesia Deutsches Hygienemuseum de Dresden

A literatura forma tanto a razão quanto o coração. Ela estimula as emoções e serve não apenas para educar

como também para manipular.

Jorge Volpi

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peça radiofônica ou teatral ou em um relato é como subir uma montanha-russa de emoções: passamos de um personagem ao outro e, às vezes, a contragosto, sofremos, amamos, gozamos, nos enaltecemos, nos paralisamos e tombamos com cada um deles. A propósito, há temperamentos que não toleram esse frenesi. A ficção nos inocula, de imediato, a síndrome da múltipla personalidade: estremeço, quase concomitantemente, como aquele, como aquele e como aquele, um após o outro, sem cessar. Não sou apenas Emma Bovary, mas me aborreço, me frustro, me desconcerto e me abandono como Emma Bovary. E apenas alguns segundos, algumas páginas mais tarde, sofro, desconfio e me enfureço com Charles, seu marido. Madame Bovary c’est moi, sem dúvida, mas Pierre Bovary c’est moi aussi.

Um romance é um campo emocional de provas: se Platão ordenou que se expulsassem os poetas de sua República, era para poupar os cidadãos desse torvelinho interior, que acabaria os distraindo de seus regrados afazeres cotidianos. Platão não entendia – ou, perversamente, entendia bem demais – que as emoções provocadas pela ficção (ou pela poesia) nos ensinam a ser autenticamente humanos.

Os regimes totalitários empenhados em censurar e controlar a ficção, como a União Soviética ou a China de Mao, estavam obstinados em converter seus súditos em criaturas fáceis de modelar, manipuláveis, previsíveis, por meio de romances, contos e poemas que exaltassem somente aquelas emoções adequadas às suas finalidades, sobretudo o elenco de emoções primárias tão fáceis de serem instrumentalizadas, como o patriotismo, o medo do outro ou a fidelidade. <

Copyright: Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autor: Jorge Volpi (1968, Cidade do México) estudou Direito e Literatura e doutorou-se em Salamanca (Espanha). Escritor desde 1992, é um dos membros fundadores de Crack, um círculo literário de autores cujo manifesto exige um distanciamento do realismo mágico. É diretor de programação do canal cultural da televisão mexicana. Entre suas obras mais destacadas, encontram-se El temperamento melancólico (1996), En busca de Klingsor (1999), No será la tierra (2006) e La tejedora de sombras (2011).

Tradução do espanhol:Simone de Mello

Jorge VolpiA máquina de emoções

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O gOZO iNTEgRAl

Charles Bell (1774–1842), Corte superficial do cérebro, em: The Anatomy of the Brain, Explained in a Serie of Engravings (A anatomia do cérebro, explicada em uma série de gravuras), manuscrito, imagem nº 1, 1802, aquarela com lápis. © Londres, Wellcome Library. Foto: Cortesia Deutsches Hygienemuseum de Dresden

Cristina Peri Rossi

Não apenas as ciências exatas, também as artes descrevem a realidade humana e são determinadas por ela.

Elas educam o coração e a razão.

Todas as disciplinas científicas compartilham uma ilusão: a possibilidade de compreensão da realidade. Mas também as artes e as disciplinas humanísticas têm a ilusão de compreender a realidade: os desejos, os conflitos, as relações entre as pessoas, seus sonhos, suas obsessões. Por isso, descobrir o papel das proteínas no câncer é tão importante como contemplar O mar de gelo (A esperança fracassada), de Caspar David Friedrich, ler A carta ao pai, de Kafka, ou escutar a Bachiana Brasileira n° 5, de Heitor Villa-Lobos. O que a compreensão proporciona? Não apenas conhecimento; ela dá prazer. Se alguns jogadores de futebol dizem ter um orgasmo ao fazer um gol, também dá prazer

contemplar uma cadeia de aminoácidos, a forma de um floco de neve, o aroma da lavanda, os gestos do chimpanzé ou o riso de uma menina. Por isso, a cumplicidade das diferentes disciplinas é imprescindível, tanto para a formação do ser humano como para a obtenção do gozo. A cada vez que se cruzam duas áreas diferentes do conhecimento, está assegurado o gozo intelectual (Leonardo da Vinci, Johann Wolfgang von Goethe). Afinal, há assuntos humanos que não podem ser entendidos sem um cruzamento de disciplinas. O sentido do mal, por exemplo, não pode ser analisado apenas pelo enfoque da ciência, para a qual o mal pode ser apenas a enfermidade do corpo. O mal é

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tema de todas as religiões, da ética, da filosofia, da psicologia e de pensadores de inclinação social, como Hannah Arendt, que demonstrou “a banalidade do mal” a partir das infâmias do Terceiro Reich (o mal nunca é banal, porque causa danos, mas as pessoas que o executam podem ser medíocres, banais, “normais”). Para mim, a melhor descrição dessa necessidade de se juntarem disciplinas se encontra em um aforismo do físico Jorge Wagensberg: “A ciência e a poesia sublimam a ilusão de toda linguagem: evocar o máximo com o mínimo”. Evocar o máximo: o alcance de uma fórmula matemática, de uma mancha de tinta em um quadro ou de um verso inesquecível. A teoria da relatividade de Einstein (E=mc2) é a expressão mínima de uma série de conhecimentos bastante extensos, do mesmo modo que o verso “Como o mar. Como o tempo. Tudo em ti foi naufrágio”, de Pablo Neruda, é a expressão mínima de uma multiplicidade de significados. (As fórmulas científicas são como metáforas literárias.) O conceito de multidisciplinaridade não coincide, contudo, com o de multiculturalismo. Não só as culturas são desiguais, como não dispõem da mesma capacidade civilizadora. As culturas se diferenciam fundamentalmente por sua ética, e a ética, no início do século XXI, se baseia no respeito aos direitos humanos, seja qual for sua religião, classe social, sexo ou idade. Eu acrescentaria que as culturas superiores são as que protegem as pessoas mais carentes e fracas, ou seja, as que praticam a compaixão. Compaixão quer dizer sentir a dor do outro, compartilhar seu sofrimento. Ninguém duvida do progresso da técnica no século XXI, mas o progresso moral é muitíssimo mais lento. Talvez o avanço mais importante nesse sentido tenha sido o reconhecimento dos direitos das mulheres e, em algumas sociedades, do direito dos homossexuais e transexuais. Todo progresso moral se fundamenta, portanto, na compaixão. Por isso, a crise econômica na Europa é prova de seu escasso avanço moral; assim como na crise de 1929, quem paga o seu preço são os mais pobres. <

Copyright: Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autora: Cristina Peri Rossi (1941, Montevidéu) é considerada uma das escritoras mais importantes de língua castelhana. Sua obra, traduzida para 20 idiomas, abarca todos os gêneros: poesia, relato, novela, ensaio, artigos. Em 1972 teve que deixar o Uruguai por razões políticas; desde 1974 tem a nacionalidade espanhola. Recebeu numerosos galardões, o último por seu livro Playstation, que obteve o conceituado Prêmio Internacional de Poesia da Fundação Loewe em 2008.

Tradução do espanhol:Simone de Mello

Cristina Peri RossiO gozo integral

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No ano de 2004 “onze neurocientistas de ponta” publicaram na revista alemã Gehirn & Geist (Cérebro & Mente) um manifesto no qual anunciavam que “todos os processos psíquicos internos podem ser descritos através de procedimentos fisioquímicos”. Pouco depois, cinco psicólogos protestaram em nome de sua especialidade: “Psicologia e pesquisa do cérebro se referem a planos de análise bem diferentes”. Por trás dessa defesa bastante fraca da própria disciplina havia uma tentativa franca de se insinuar junto à neurofisiologia. Os psicólogos simplesmente

temiam por seu direito à existência. Algo semelhante aconteceu por ocasião da inauguração do instituto de estudos avançados Hanse- Wissenschaftskolleg de Bremen, em 1995, fundado pelo renomado pesquisador alemão do cérebro Gerhard Roth. Em seu discurso de inauguração, o germanista Wolfgang Frühwald, então presidente da Fundação Alemã de Pesquisa (DFG), chegou a implorar aos colegas das ciências neurológicas para que, por favor, colocassem pelo menos uma mesinha destinada às ciências humanas e da cultura junto à mesa de banquete dos pesquisadores das ciências naturais.

MEU CéREbRO sENTE?

Matthias kross

Considerações filosóficas acerca da situação em que se encontra a pesquisa da emoção na Alemanha e a falta de uma “linguagem”

comum entre as ciências da cultura e as neurociências.

Katharine Dowson (*1962), “My Soul”, 2005, cristal, 24,3 x 40 x 30 cm. Cortesia da artista (www.katharinedowson.com) e GV Art (www.gvart.co.uk). Foto: Courtesy Sunderland University

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de chegar como intenção à consciência) não fornecem ao livre-arbítrio um conceito adequado acerca da complexidade das ações humanas (sobretudo quando estas são mediadas simbolicamente). O livre-arbítrio abrange evidentemente mais do que a decisão de levantar o braço. Em resumo: assim que se deixa o laboratório de experiências e se volta para os seres humanos em seu complexo mundo da vida, o reducionismo neurocientífico parece embotado e canhestro.

CENTRAis DE COMANDO COM CAPACiDADE DE APRENDER Bem mais produtivo parece, nesse sentido, o ponto de vista defendido pelo psiquiatra Thomas Fuchs, de Heidelberg. Ele diz que o cérebro é sobretudo um “órgão relacional”, uma central de comando que coordena os processos vitais do ser humano e sua autorreflexão consciente, convertendo-os em agir ativo. Ao mesmo tempo, o cérebro dispõe de uma “plasticidade” considerável; ele muda como órgão ao aprender e através do aprendizado, quer dizer, ele muda em sua estrutura fisiológica. Para compreender de modo adequado o desempenho do cérebro, deve ser considerado o conjunto do ambiente no qual ele está inserido: sobretudo sua sensação física geral, a interação com seu ambiente, assim como a intersubjetividade, quer dizer, o encontro social mais próximo e a comunicação social – para resumir: neurociências fazem sentido apenas como “incorporadas” (em inglês: embodied cognitive neurosciences). Assim como o cérebro dirige nosso corpo e nosso comportamento, também nosso ambiente e as diversas funções do nosso corpo que fogem a um controle consciente ou por parte da razão agem sobre as atividades neuronais de nosso cérebro.

A liNgUAgEM DAs EMOÇõEs O eu não é um cérebro, mas sim tem um corpo com um cérebro. Caso se leve a sério a objeção das ciências humanas e da cultura, passam a existir para as mesmas novas chances no âmbito da pesquisa das emoções, chances de libertar a emoção da limitação imposta pelos procedimentos neurocientíficos de medição e trazê-las de volta para a diversidade cultural e histórica de suas formas de expressão. Na Alemanha as referidas chances foram aproveitadas sobretudo pelo cluster de excelência “Languages of Emotion”, estabelecido em 2006 na Universidade Livre de Berlim (www.languages-of-emotion.de) e concluí- do em 2012, no qual equipes internacionais de pesquisadores de vinte disciplinas trabalharam em conjunto. Tratava-se, sobretudo, de pesquisar “os vínculos entre emoções e práticas simbólicas”, portanto a “linguagem” das emoções em sua diversidade temática e variabilidade histórica: o que e como sentimos estaria marcado em grande parte pela língua e pelas imagens. Do mesmo modo que a neurociência teria descuidado do papel da língua, a pesquisa linguística não teria iluminado suficientemente o papel das emoções. O cluster multidisciplinar foi instituído no sentido de agir contra isso, pois sentimentos incentivariam ou atrapalhariam nossa aquisição da linguagem; pelo lado inverso, a competência linguística influenciaria nossas habilidades de comunicação emocional. Portanto, o que o cluster pretendia, em primeira linha, era opor ao reducionismo das ciências naturais a complexidade do uso emotivo de

O CAMiNhO DE CONqUisTA DA PEsqUisA ExPERiMENTAl DO CéREbRO Entrementes, pesquisadores de ponta trabalharam sem parar na Alemanha para implementar as teses do manifesto neurológico. Graças a generosos fomentos de pesquisa e aos progressos da imagiologia digital, e também graças à indexação dos resultados, sempre de grandes efeitos midiáticos, em pouco surgiu também na Alemanha isso que se pode chamar de uma “moda da ciência”. A Sociedade Max Planck, sobretudo, chegou a fundar institutos próprios para ciências da cognição e neuro- ciências. E, inebriada pelo rápido sucesso e pelos resultados supostamente espetaculares, a pesquisa experimental do cérebro em pouco deixou os laboratórios de pesquisas acadêmicas e as clínicas para avançar ao campo das ciências sociais, da teoria jurídica, assim como ao campo da filosofia e da teologia. Ela ocupou o âmbito das ciências da imagem e da comunicação, tanto como o da economia ou da psicologia publicitária.

“VOCê é sEU CéREbRO” O segredo de seu sucesso provavel-mente deva ser buscado sobretudo no fato de que com a nova tecnologia da imagiologia pareceu ter sido encontrado um método que se encontrava acima de toda e qualquer dúvida, que permitia responder, de um modo espantosamente simples, perguntas que há milênios continuavam na condição de incógnitas: “Nosso eu é [...] uma ficção, um sonho do cérebro, sobre o qual nós, a ficção, o sonho, nada podemos saber”, escreveu por exemplo o biólogo e pesquisador do cérebro Gerhard Roth (1994). Ou o psicólogo, psiquiatra e pesquisador do cérebro Manfred Spitzer, que disse: “Você não tem seu cérebro, você é seu cérebro” (2005). Para muitos, essa resposta reducionista à pergunta pelo eu do ser humano pareceu a pedra da sabedoria, a solução do maior dos mistérios do mundo. E até hoje muitos neurocientistas continuam insistindo na questão. Assim, por exemplo, o filósofo e neurocientista Thomas Metzinger anunciou em 2009: “A moderna neurociência mostrou que o conteúdo de nossa vivência consciente não apenas é uma construção interna, mas também uma forma altamente seletiva de representação da informação... Nosso cérebro produz uma simulação do mundo que é tão perfeita a ponto de não sermos capazes de a reconhecer como uma imagem em nosso próprio espírito”.

A lUTA PElO liVRE-ARbíTRiO Depois de algum tempo de espanto, primeiramente incrédulo por certo, mas depois paralisante, começou a se manifestar nas ciências humanas e da cultura, mais ou menos desde a virada do milênio, uma resistência mais ampla à reivindicação de universalidade das neurociências. Embora não se questionasse suas descobertas –o fato de os neurônios, sobretudo os assim chamados neurônios espelho serem a “sede” do humano e possibilitarem a convivência social entrementes é reconhecido por vários pesquisadores. Mas ainda assim há restrições fundamentadas contra as conclusões filosóficas que alguns dos bem-falantes representantes da neurologia tiraram a partir disso. Pois logo fica claro que até mesmo experiências espetaculares como o conhecido experimento de Libet (que “prova” que a decisão de agir é tomada por processos cerebrais inconscientes, antes

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da doutrina dos afetos ainda muito mais antiga e significativa, na qual era atribuído sobretudo um significado ético às emoções na interação entre corpo, alma e juízo. Segundo essa tradição, as emoções na condição de afetos do corpo, paixões da alma ou acompanhantes das noções de juízo necessitavam de cultivo ético (regimentação) para ajudar o ser humano em sua busca da felicidade, sua paz anímica ou seu bem-estar. A ascese, ou seja – conforme o verdadeiro significado da palavra –, o exercício ético dos afetos e sentimentos, foi tido por mais de dois mil anos, de Platão a Nietzsche, como a obrigação mais distinta do filósofo em nós – pouco importando se o caminho para a felicidade ou para o bem-estar passasse pelo ideal da ausência de sentimentos (estoicismo), pela produção de um equilíbrio dos sentimentos (Aristóteles), pela promoção dos sentimentos importantes para uma vida que agradasse a Deus (Santo Agostinho) ou então pela criação dos pressupostos subjetivos e emotivos para o comportamento moral em sentido categórico (Kant). Sempre era acrescentado um moral sense (Hutcheson) às emoções, unido à exigência de dar atenção a suas manifestações, seguindo as boas e combatendo as nefastas, mas em todo caso: trabalhar nelas e com elas.

Emoção E éticA Foi sobretudo Jean-Jacques Rousseau em sua obra Émile ou De l’éducation (1762) que traduziu as paixões do indivíduo em sentimentos sociais. Rousseau deu, com isso, o passo decisivo no sentido de retirar das emoções aquela clareza simbólica que teria sido indispensável para uma formação ética. Desde Rousseau, não podemos mais retornar para o período anterior à sua ambivalência. As emoções se adequaram de um modo igualmente submisso à intimização da cultura sentimental do século XIX, como também se deixaram explorar pelas ideologias totalitárias do século XX e hoje servem à exposição exibicionista nos meios de comunicação (“Quem chora, aparece na televisão”). Se ao lado do public viewing [expressão que na Alemanha se refere às transmissões ao vivo e em telão de jogos de futebol e outros eventos em praças públicas, mas que em inglês remete à exposição pública (e oficial) de um cadáver, diante do qual se passava, se soluçava e se era filmado ao fazêlo (por exemplo à morte de Stálin). N. d. Tr.] também o public crying é permitido, as emoções deixam de ser indicadores confiáveis de uma determinada postura ética; elas se tornam uma manifestação intensiva de constelações sociais mutáveis.

Por isso é necessário que hoje fique em aberto se as emoções podem ou não ser descritas de novo na linguagem de uma postura moral. Para os que ocupam a posição do reducionismo neurocientífico, questões éticas não são relevantes; ao que parece, ao cientista da cultura e ao filósofo não resta, até prova ao contrário, outra coisa a não ser catalogar a diversidade de seus dialetos, sem poder formular ele mesmo uma arte de viver filosoficamente obrigatória como postura ética. E talvez esteja justamente nessa incapacidade o fato de não conseguirmos compreender o moralista que tantas vezes demonstra em alto e bom som seus sentimentos, e com isso também sua mentalidade. <

sinais em sua “expansão a âmbitos do possível, do ficcional e do imaginário”, logo sobretudo em suas formas de expressão artística.

AÇõEs PARAlElAs Os resultados do cluster no entanto trouxeram apenas alguns poucos progressos tangíveis no caminho para a almejada aproximação entre ciências naturais e humanas. Isso ao final das contas nem sequer chega a surpreender. Pois ainda que o cluster tenha coletado uma abundância fascinante de aspectos e formas de manifestação do emocional, ele não conseguiu traduzir os resultados das neurociências na “linguagem” dos sentimentos, formada culturalmente, quanto mais integrá-los a ela. Ao final das contas, tudo ficou naquilo que o escritor Robert Musil chamou tão certeiramente de “Ação Paralela”: assim como os neurocientistas sonham com a cartografação tridimensional do cérebro, para localizar nela conceitos filosóficos tais como o eu como si mesmo, identidade, responsabilidade e decisão, religião e ética, ação prática e especulação teórica, assim também o cluster esboçou um registro meticuloso das emoções, no qual podem ser arroladas e classificadas na medida do possível todas as variedades cientificamente apreensíveis de afetos e sentimentos, em suas diferentes formas de expressão e rastros.

De um ponto de vista filosófico está longe de surpreender que com isso a aproximação das “linguagens” das ciências da cultura e das neurociências não pode ser entabulada. Enquanto a “linguagem” neurocientífica confia ser capaz, com os meios do arranjo experimental, de “representar” e descrever de modo adequado um objeto que se encontra fora do âmbito linguístico, as ciências humanas e da cultura são obrigadas a se limitar às manifestações (em sentido amplo) linguísticas e simbólicas, quer dizer, às manifestações mediais desses estados. Conforme o filósofo da linguagem Ludwig Wittgen- stein (1889–1951) demonstrou com seu “argumento da linguagem privada”, não existe no entanto a possibilidade de deduzir a existência de tais estados por meio da própria linguagem. Falar de emoções ou estados interiores não pressupõe que os estados ou emoções existam realmente. Nós não vamos além do jogo de linguagem ou do conjunto de sinais nos quais eles se manifestam.

TRAbAlhAR NAs EMOÇõEs A fixação temática e metódica do cluster levou, além disso, a que não se visse que a pesquisa científica e classificatória das emoções que impera hoje em dia é apenas um dos muitos modos de se confrontar com afetos e sentimentos. A maior parte das teo- rias das emoções não orientadas neurológica ou medicinalmente é marcada decisivamente pela antropologia filosófica do século XX (por exemplo de Max Scheler e Helmuth Plessner). Dando prosseguimento à “revaloração” (Umwertung) dos afetos de Friedrich Nietzsche (de acordo com sua contribuição ao aumento da potência vital), a antropologia filosófica partiu do ponto de vista de que a razão humana é dirigida essencialmente por emoções e está “embutida” no corpo. Assim como as “neurociências incorporadas”, ela compreende o ser humano na totalidade de seu mundo da vida. O próprio Nietzsche, no entanto, pôde recorrer, em sua “revaloração” dos afetos, a uma tradição

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Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autor:Matthias Kross (1953) doutorou-se com uma tese sobre a filosofia social de Ludwig Wittgenstein. Desde 1996, trabalha como assessor científico em filosofia do século XX no Fórum Einstein de Potsdam e é docente de Sociologia Geral na universidade dessa cidade.

Tradução do alemão:Marcelo Backes

Informações adicionais sobre a ilustração:Katharine Dowson (1962) sonda com seus trabalhos os limites entre arte e ciência (médica): “I had an MRI scan as part of the research into Dyslexia and all the resulting work ‘My Soul’ and ‘Brain Bricks’ are of my life size brain”. Caracterizar a estrutura neurológica de “alma” é uma tomada de posição, já que isso foge à divisão categorial entre mente e alma, entre matéria e espiritualidade. Por trás da beleza estética da excrescência de aspecto vegetal de “Memory of a Brain Malformation”, esconde- se enfermidade e perigo superado: “‘Memory of a Brain Malformation’ is a Venus Ulterior Malformation that was successfully lasered out of my cousins brain”.

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COMO EDUCAR O CORAÇÃO

Representações da teoria aristotélica do conhecimento. Anônimo de “De corpore et anima” (em torno de 1497), manuscrito, 22 x 15,8 x 1,1 cm. Manchester, The John Rylands University Library, The University of Manchester. © Reprodução por cortesia do bibliotecário e diretor da biblioteca universitária. Da ex-posição “Images oft the Mind”, Deutsches Hygiene-Museum de Dresden

Ute frevert

sentimentos e emoções. sobre a transformação dos ideais de educação ao longo dos séculos.

A “educação do coração” ou, literalmente, a “formação do coração” (Herzensbildung) é um conceito do classicismo alemão. Fried- rich Schiller o empregava com frequência; Wilhelm von Humboldt preferia a expressão “formação do temperamento” (Bildung des Gemüths). Na época, o coração era considerado o centro do sentimento (Gefühl) e do temperamento (Gemüt), e ainda hoje nos utilizamos de expressões e sinais vinculados a essa topografia. Quem está apaixonado dá de presente anéis ou

chocolate em forma de coração, quem está na fossa fica com o coração partido ou com dor no coração. Quem está feliz sente o coração expandir, quem está triste sente um aperto no coração.

Mas como educar um coração? Será então que os sentimentos não são inatos e consequentemente imperscrutáveis? Será que todos nós não temos, conforme rezam os psicólogos, um repertório de sentimentos básicos, por assim dizer, como medo e alegria, ódio e tristeza, repulsa e fúria? E esses sentimentos

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não seguem um ritmo natural ou uma concepção biodinâmica transmitida e inscrita nos seres humanos ao longo da evolução? Nesse caso, o que significaria “educação” e o que ela poderia proporcionar?

Essas questões foram discutidas desde a Antiguidade, mas adquiriram maior significado e impulso a partir do século XVIII, o chamado Século da Pedagogia. Quem considerava o ser humano – em corpo, mente e alma – um ser capaz e carente de formação, e quem esperava que sua formação levasse a um progresso civilizatório não podia ignorar a educação do coração. A educação deveria incluir não só a mente, o entendimento, ou seja, o que Wilhelm von Humboldt denominava “o conhecimento do conhecimento”; sentimentos e emoções também deveriam ser educados. Por um lado, estes eram considerados produtos da natureza imediatamente acessíveis à pessoa. Por outro, parecia problemático relegá-los a um estado natural, sem qualquer filtro.

Com certeza, todo homem era capaz de sentir compaixão (sympathy), segundo enfatizavam os representantes escoceses da filosofia moral. Todavia, se essa capacidade realmente acabava sendo exercida e cultivada, já era uma outra história. Em algumas pessoas, essa capacidade podia estar bloqueada ou obliterada por sentimentos paralelos de egoísmo. Era nesses casos que a educação se tornava necessária, a fim de possibilitar que aquilo que é próprio do ser humano de fato se manifestasse e fosse colocado em prática.

CONTROlAR E MOlDAR Os sENTiMENTOs Outros sentimentos − como inveja ou avidez, ira ou ódio − talvez estivessem presentes em excesso e pertubassem a convivência próspera em uma sociedade burguesa. Quem se deixasse dominar por essas emoções e paixões negativas se tornava um perigo para si mesmo e para os outros. Também aqui os pais e pedagogos deviam intervir, a fim de impedir excessos e garantir uma boa temperança emocional. O objetivo de tais intervenções era um ser humano autogovernado, que se observasse, controlasse e cultivasse e cuja capacidade de sentir respaldasse o processo da civilização, em vez de entravá-lo.

Como deveria ser exatamente essa educação do coração e como ela deveria ser organizada eram questões calorosamente debatidas. Muitos pedagogos davam grande valor a uma educação estética, que deveria enraizar na alma jovem os sentimentos do belo e do sublime. Nesse sentido, uma iniciação precoce à música, à poesia e às artes plásticas parecia indispensável. Outros já advertiam contra um excesso de estética. Estes consideravam a leitura de romances perigosa para ambos os sexos. Entre as mulheres, ela poderia levar a uma imaginação exacerbada e a desejos fantasiosos que não se consumariam e que a vida real acabaria frustrando. Por meio dos romances, os homens jovens poderiam, por sua vez, perder de vista sua verdadeira missão no mundo e acabariam desenvolvendo um temperamento frágil, dificilmente conciliá- vel com seus sólidos deveres na política, na economia e na sociedade.

Há que se dizer que a sensibilidade ainda estava bastante em voga na segunda metade do século XVIII, e Gotthold Ephraim

Lessing não foi o único a eleger o ser humano compassivo como o melhor de todos. No entanto, não era para exagerar ao fazer o bem. Quem ficasse com os olhos cheios de lágrimas com muita facilidade, quem aderisse a um culto do autêntico sentimento acabaria se entregando ao “melindre” (Empfindeley), criticava Immanuel Kant. O importante não era só um coração compassivo, mas também a coragem e a energia para colocar em ação a compaixão sentida e para prestar ajuda ativa quando necessário.

JUíZO E sENsibiliDADE Não havia dúvida entre os pedagogos de que a educação do coração deveria ocorrer também na escola, mesmo que não fosse esse o único lugar. Era consensual também que ela deveria ser acompanhada da formação do entendimento. Quem cultivasse somente sentimentos e sensibilidade entre crianças e jovens estaria criando entusiastas e sonhadores, já advertia o diretor de ginásio Immanuel Johann Georg Scheller em 1780. O entendimento não deveria adormecer, mas sim guiar as emoções e a imaginação por meio da riqueza de conhecimentos e da força do discernimento. Joachim Heinrich Campe, preceptor dos irmãos Humboldt e influente reformador da educação escolar, se utilizava da imagem do corpo como um navio, guiado pelo juízo ao leme e movido pelas velas da sensibilidade.

Os programas de ensino escolar geralmente incluíam três âmbitos principais: a formação do corpo, da mente e do coração. O diretor de um “instituto educacional para meninos de 6 a 14 anos”, inaugurado em Berlim em 1801, prometia que seus alunos seriam educados para se tornarem “seres humanos moralmente bons”, passariam por uma “formação do entendimento e do coração”, seriam habi- tuados “a limpeza, ordem, diligência, modéstia e cortesia” e insuflados de amor pela “pátria e sua respectiva Constituição”. “Educação do coração” compreendia, nesse caso, “o direcionamento terno e amável dos impulsos jovens”, “a admoes- tação de passos em falso” e “a apresentação das consequências naturais da virtude e do vício por meio de exemplos da vida humana”.

ADEsTRAMENTO E EMPATiA Com quanta ternura e quanta amabilidade as escolas do século XIX realmente direcionavam as emoções e os “impulsos” de seus educandos já era uma outra história. Nas escolas elementares, a educação do coração se limitava essencialmente a ensinar aos meninos e às meninas o senso de dever e a obediência à autoridade da Igreja e do Estado. Os ginásios ofereciam um currículo moral e estético mais diversificado. Mas o conde Harry Kessler não foi o único a vivenciar a sua fase escolar nos anos 1880, em Hamburgo, como um “adestramento”: “No fundo, não tínhamos que aprender grego ou latim, mas sim trabalhar. Trabalhar por trabalhar; eles queriam nos adestrar como animais de carga. Do ideal, inflamado na época de Goethe, da pessoa que trazia na cabeça e no coração toda a humanidade e sua cultura, só restara a enorme aplicação necessária para absorver a incomensurável quantidade de matéria”. Em vez de abrir “a alma tanto para o lado da mente quanto para o das emoções”, a escola só fazia

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transmitir habilidades e posturas que, segundo admoestava Kessler, viriam a “fornecer aos soberanos da nova era os escravos incansáveis e autocomplacentes necessários para a mecanização da economia”.

O cânon de formação ginasial também deixava transparecer ainda menos coração e humanidade quando se tratava de questões sociais. Não havia sensibilidade nenhuma para as preocupações, necessidades e anseios das camadas sub-burguesas. À medida que os interesses e as orientações nacionais passavam para primeiro plano, mais esmorecia a mensagem cosmopolita dos clássicos de Weimar. O prognóstico e a reinvidicação enfática de Schiller por uma fraternidade de alcance mundial se tornou ainda mais inatingível. Embora o mundo estivesse perceptivelmente se integrando por meio de grandes projetos coloniais, a atitude imperial não era marcada por solidariedade e amor fraternal, mas sim por uma arrogância de cunho social e crescentemente racial. Quem não correspondesse aos próprios padrões civilizatórios colhia desdém, desprezo e, em casos extremos, destruição.

A carência dessa educação do coração se revelou não só durante o Segundo Reich guilhermino, praticamente insuperável em sua identificação agressiva de inimigos internos e externos. Isso viria a se manifestar de forma ainda mais radical e raivosa durante o Terceiro Reich nacional-socialista, que definia a inimizade em termos não apenas políticos, mas também e sobretudo raciais. A compaixão, segundo constava da Enciclopédia Meyer de 1939, valia apenas para os “integrantes da comunidade”; ou seja, apenas com aqueles que pertenciam à própria comunidade étnica era possível compartilhar vivências e sentimentos, e só eles eram merecedores de uma “ajuda ativa para aliviar e sanar os sofrimentos”. O sofrimento daqueles que se viam excluídos dessa comunidade não contava. Quem mostrasse compaixão para com eles ou os ajudasse se tornava suspeito e corria o risco de graves sanções.

Supõe-se que foi exatamente essa experiência que moveu muitas pessoas após 1945 a enfatizar expressamente a educação do coração como meta da educação escolar. A proposta do governador social-democrata Wilhelm Hoegner de fundamentar isso na Constituição do Estado Livre da Baviera foi sancionada por unanimidade na Assembleia Constituinte. Até hoje, o parágrafo 131 impõe às escolas bávaras não só a tarefa de “transmitir saber e habilidade, mas também a de formar o coração e o caráter”. “Os objetivos supremos da educação são temor a Deus, respeito pela convicção religiosa e pela dignidade do ser humano, autocontrole, senso de responsabilidade e disposição a assumi-la, solicitude, receptividade para todo o verdadeiro, o bom e o belo.” Além disso, os escolares “devem ser educados no amor pela terra natal bávara e pelo povo alemão e no sentido de conciliar os povos”.

O MODERNO TREiNAMENTO DA EMPATiA A disputa dos pedagogos a respeito de se tais metas da educação deveriam realmente ser alcançadas e como persiste hoje com a mesma veemência dos anos em torno de 1800. Alguns as rejeitam como uma pretensão arrogante e ingênua, outros editam um “Manual da educação do coração” e traduzem esse conceito em termos

de “inteligência emocional”, uma linguagem compatível com o management empresarial. Enquanto muitos políticos pensam sobretudo na educação de valores, um número cada vez maior de escolas está experimentando com o treinamento da empatia. Esta é, desde muito tempo, a mais concreta e prática implementação da antiga ideia de que a “educação geral do ser humano” não envolve apenas corpo e mente, mas também coração e sentimentos. <

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Autora:Ute Frevert deu aulas de História em Berlim, Constança, Bielefeld e Yale (EUA). Desde janeiro de 2008 dirige no Instituto Max Planck de Pesquisa Educacional (Berlim) a área de estudos “História dos sentimentos”. A história social e cultural da Idade Moderna, a história dos gêneros, a nova história política e a história dos sentimentos estão entre seus temas de pesquisa.

Tradução do alemão:Simone de Mello

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TURbUlêNCiAs DO DEsEJO E DA EMOÇÃO

Grafite de Suso 33 realizado na exposição “Esto no es graffiti” no CICUS (Centro de Iniciativas Culturais da Universidade de Sevilla). Foto: José Martos (Sevilla Creativa, [email protected])

Juan Antonio flores Martos

Etnografia e culturas emocionais em Veracruz: Do ritual às salas de autoajuda.

Os jarochos, como são chamados os habitantes da zona portuária de Veracruz, foram modelados historicamente pelo olhar externo, até se perfilarem de modo nítido as características de seu estereótipo na cultura nacional. Inventou-se uma autêntica “fisiologia jarocha”, com traços definidos, no aspecto corporal, emocional, sexual, que ancoram o jarocho no terreno das paixões,

na emotividade e na propensão ao excesso. O fato de ser alegre e “festeiro” se apresenta como atributo sinônimo e consensual da identidade dos habitantes da zona portuária de Veracruz, fazendo parte de sua autoapresentação e do orgulho de sua identidade. Não obstante, para mim foi bastante surpreendente e inexplicável que, desde o momento em que cheguei à cidade,

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meus informantes me contavam que frequentavam “cultos de cura” – católicos, pentecostais, mas também da órbita espiritista e espiritualista – ou grupos anônimos de autoajuda. Uns e outros expressavam sua busca de uma modulação e de um melhor manejo de ditas emoções, desses modos de se emocionar dos quais eles se orgulham.

RiTUAis E DisCURsOs Identifiquei duas vias através das quais o povo de Veracruz gere e vive suas emoções. Dois grandes estilos emocionais que afloram em seus rituais e em suas práticas sociais. Um desse estilos é mais tradicional, busca a “liberação” emocional mediante a ação ritual, dando um papel de protagonista essencial ao corpo e aos espíritos, com um componente importante do teatral. E o outro é “terapêutico” (segundo o trabalho da soció- loga Eva Illouz), mais moderno, ligado à extensão da cultura terapêutica da autoajuda, com práticas e rituais onde ganha mais importância a palavra, a narrativização e os discursos do “eu”, através dos testemunhos e das “tribunas” dos grupos anônimos de autoajuda.

Veracruz revelou ser um cenário onde, por um lado, se busca a “liberação” do mal místico (dos demônios, espíritos malignos ou chocarreiros, da feitiçaria e das aflições fisiológicas e emocionais) mediante exorcismos coletivos em igrejas católicas e “cultos de cura” que teatralizam um combate. Por outro lado, procura-se a “liberação” de hábitos sociais considerados patológicos, que são vistos como “dependências” – do álcool, da comida, das múltiplas relações sexuais, das relações de maus-tratos e de dependência afetiva etc. – mediante a participação ativa dos envolvidos ou dando “tribuna” ao testemunho diante de um grupo de iguais, nos clubes anônimos de autoajuda; quer dizer, dandose mais ênfase à palavra do que ao corpo.

qUANDO Os EsPíRiTOs DOs MORTOs gEREM As EMOÇõEs DOs ViVOs O ato de centrar o olhar etnográfico em algumas práticas sociais em cenários públicos – um “convívio” nos portais da praça central, uma reunião num café, um passeio de carnaval – permite que nos aproximemos da questão de como a cultura urbana de Veracruz canaliza e exibe modos e expressões tradicionais e “populares” de conduzir as emoções. Nos bailes de danzón aberto [comparável ao forró brasileiro. N. d. T.], na Praça do Zócalo, exibe-se publicamente aquilo que os habitantes de Veracruz chamam “refrear-se” em seus desejos; algo semelhante a uma dramatização de uma disciplina da contenção e de uma “etiqueta”, para dar conta da existência de padrões culturais, de roteiros de canalização e gestão das emoções em âmbitos públicos. E nas “tertúlias de danzón”, os “danzoneros”, em sua maioria de extração social popular e humilde, se vestem com indumentária “de salão”; em suas danças mostram o prazer de saber “refrear-se”, executando disciplinas rítmicas de contenção em meio a um contexto festivo, a poucos metros das mesas dos bares dos portais, onde a ingestão alcoólica, o “convívio” e as danças e os gestos de outros protagonistas contribuem para teatralizar a perda do controle corporal e emocional que se dá pela senda do excesso e da desmesura visíveis.

A gestão tradicional das emoções em Veracruz também se manufatura ritualmente, mediante a teatralização de um

combate “espiritual”, uma dramatização corporal, uma maneira de temperar ou neutralizar os desejos. Meus interlocutores, tanto homens como mulheres, costumavam apontar como possível origem ou causa dessa aflição espiritual o campo das paixões ilícitas, fonte de desarranjos e mal-estares corporais e emocionais. Dona Mari me contou um caso extremo, em o que o desejo de um desconhecido tinha levado uma jovem a adoecer. Ela, por ser objeto de um desejo alheio, converteu-se em vítima de uma possessão espiritual, em “enferma”. Esta garota, tal como outras registradas em outras histórias, foram levadas à missa de “cura” da igreja de Puente Jula – católicos carismáticos –, onde houve um exorcismo coletivo em público. Para “liberá-las”, as pessoas “enfermas” – entre quinze e vinte, em sua maioria mulheres – foram amarradas a bancos frente ao altar-mor da igreja, rodeadas por uma barreira de fiéis que rezavam o rosário. Com gritos, sons de arcadas e vômitos, os endemoninhados expressavam seu sofrimento. Segundo as pessoas de Veracruz com as quais falei, as amarrações aos bancos são um elemento-chave. A sujeição física que representam remete a outra espécie de sujeição: a social e de gênero, com regras e fórmulas tão rígidas como essas amarrações às quais, de modo implícito e plástico, se submetem, ante os olhos de Deus, dos familiares e dos rezadores do rosário, as “endemoninhadas”, pessoas com desordens que provêm da ruptura o do afastamento de alguma dessas normas.

EsPíRiTOs CAlMANTEs Embora a vingança não seja em si mesma uma emoção social – é fruto de uma construção mais complexa, que a aproxima mais do “sentimento”–, ela se nutre de uma classe dessas emoções, implicando, além disso, outras emoções primárias, como o ódio e o medo. É um ato que se produz num contexto social determinado, desenhado, executado e carregado de emoção. Tudo isso está relacionado com o trance sobrevindo, ou “espontâneo”, que experimentou dona Mari. O espírito de seu Pascual, seu consogro, um fazendeiro e pecuarista sequestrado, torturado e assassinado por um movimento de ocupação de terras, encarnou-se no corpo de dona Mari, fato este que acabou sendo providencial em alto grau, pois desativou uma vingança familiar que estava sendo preparada nesse mesmo momento. As palavras de seu Pascual ofereceram algo de paz e calma aos herdeiros e à família, fornecendo- lhes uma explicação de sua morte: “Foi um engano, não era para ele”. Anulou a espiral de violência e de morte que o enfrentamento com as centenas de homens de uma organização armada teria gerado. Dentro do imaginário de Veracruz de uma ciência espiritual, os espíritos trazem informações que explicam as enfermidades, as aflições ou os problemas das pessoas, mas, além disso, neste modelo de gestão emocional, se encontram posicionados contra a vingança.

ClUbEs ANôNiMOs DE AUTOAJUDA Durante meu trabalho de campo, também se tornou evidente a existência na cidade de um conjunto “terapêutico” de conformação e traços mais modernos, de influência externa, composto por uma infinidade de agências e grupos de autoajuda, nos quais uma parte de meus interlocutores de classe média, com os quais convivi e

Juan Antonio flores MartosTurbulências do desejo e da emoção

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compartilhei a pesquisa, buscava uma regulação emocional e vital: Alcoólicos Anônimos, Neuróticos Compulsivos Anônimos, Dependentes de Relações Anônimos, Mulheres que Amam Demais, Métodos de (Auto)Controle Mental (do “mentalista” José Silva) etc. Nos clubes de autoajuda, identifiquei novos recursos disponíveis para a gestão emocional, que implicam menos o corpo que a emergência de uma narrativa terapêutica, produzindo uma reordenação narrativa ao passar do privado para o público. Estes grupos proliferam porque substituem outras formas tradicionais de organização social.

Não esquecerei a experiência – e o itinerário emocional – que me relatou Héctor, na sua desesperada busca de “liberação”, fundamentalmente emocional e moral, embora também corporal. Ele tinha estado frequentando leituras e grupos de autoajuda na “metafísica”, na Fraternidade Universal (maçonaria, teosofia), Alcoólicos Anônimos, até acabar nos Comedores Compulsivos Anônimos. Héctor participou de dois destes grupos. Nas entrevistas, me chamou a atenção como influi o jargão médico nos participantes destes grupos, concretamente no dos Comedores Compulsivos Anônimos, ao falar do termo “prontuário” referindo-se às historias de vida que os “enfermos/dependentes” vão construindo pouco a pouco, mediante o ritual de passar pela “tribuna” – como novo modo de “confissão” pública e internalização dessas categorias sobre sua fisiologia. A “tribuna” se erigia como momento-chave de livre expressão e de estruturação emocional compartilhada com o grupo. Também me falava de “o reflexo” que se dá nessas reuniões, e do “dar testemunho”, como elementos que influem na construção de narrativas reflexivas sobre o “eu”. Héctor comentava: “E qual seria minha surpresa quando comecei a ver que não havia só loucos, mas também loucas, ou seja, mulheres que pensavam as mesmas doidices que eu penso… Como pode ser que haja alguém assim, igual a mim? Isso é o que lá chamam o reflexo, ou seja, você se reflete no cara que está aí, porque é de tua mesma onda. Por exemplo, a quem se lhe pode ocorrer que engolir... cinco pays [tortas, palavra mexicana derivada do inglês pie. N. d. T.] de limão, imagina, te vá mudar o ânimo? ‘Me sinto triste, vou comer cinco pays’ ou ‘me sinto muito brabo...!, vou comer cinco pays de limão para que a brabeza vá embora’, e... ela vá embora? Não!”.

DO sENTiMENTO AO “PECADO” Segundo Robert Wuthnow, estes grupos de apoio se caracterizam por converter as histórias privadas em atos comunicativos públicos, e assim estariam ativando e representando a estrutura das narrativas terapêuticas, produzindo uma narrativização pública do “eu”, através da exposição e elaboração do sofrimento. Nesta reconstrução narrativa biográfica e de identidade, quando se presta atenção aos sentimentos, parece que estes se transformam noutra coisa: personalidade, defeitos humanos. É interessante analisar esses processos pelos quais, nas citadas “tribunas”, estes sentimentos se transformam de repente para seus integrantes em “pecados”, em “enfermidades”, e “o estar gordo” se converte em um claro sintoma de que se padece “a enfermidade”. Neste processo é necessário destacar a influência e o poder da ideologia moderna da cultura terapêutica de autoajuda, que tem desenvolvido e

disseminado pelo mundo a psicologia, e sua tendência a mostrar como patológicos até mesmo os sentimentos e as emoções. Segundo Illouz, estas narrativas terapêuticas são tautológicas: uma vez que um estado emocional é definido como saudável e desejável, o resto das condutas que não atingem dito ideal são consideradas emoções problemáticas e devem ser “tratadas” no marco dessa narrativa terapêutica.

MUDANÇA DE EsTADO EMOCiONAl O antropólogo Michael Houseman, que tem investigado o campo dos rituais new age e “neopagãos”, observou a diferença entre estes e os rituais enraizados numa tradição. Refere-se à existência de dois modos de ritualização. Um, mais familiar para os antropólogos, onde a performance ritual consiste em influenciar e modelar as condutas sociais. O outro, que se encontra em muitos cerimoniais new age e “neopagãos”, onde a performance ritual surge da emulação convencional de motivações e sentimentos que se consideram exemplares, e que está especialmente focado em provocar uma mudança de disposição emocional no estado de seus participantes. Estes rituais não procuram um efeito nas coisas, mas uma mudança de estado emocional no participante, deslocando assim a eficácia simbólica para o “eu”.

DEsEJOs TRANsfORMADOs Por último, quero apontar para um fenômeno relevante neste campo das emoções em Veracruz. Refiro-me à implantação de uma nova “emoção”: “a energia”. Esta “energia”, experimentada em termos físicos e sensoriais, é veiculada e sentida tanto em contextos rituais “ao modo de Veracruz”, como em contextos rituais terapêuticos de autoajuda mais “modernos”, permitindo a confrontação com outras paixões entendidas como prejudiciais ou anômicas e que os rituais e práticas da cultura terapêutica de autoajuda produzem no sujeito nutrindo-se de desejos e emoções consideradas como negativas e problemáticas para o “eu” dos habitantes de Veracruz. Dito de outro modo, dentro deste campo e estilo emocional terapêutico, os desejos são transformados em “energia” terapêutica e liberadora, nos planos espiritual, corporal e moral. <

Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autor:Juan Antonio Flores Martos (1966, Madri) é antropólogo americanista e professor da Universidade de Castilla-La Mancha (Espanha). Seu último livro publicado como coeditor é Emociones y sentimientos. Enfoques interdisciplinares (2010). É membro do Grupo de Estudios de Etnología Americana.

Tradução do alemão:George Bernard Sperber

Juan Antonio flores MartosTurbulências do desejo e da emoção

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DE qUANTO sAbER PRECisAMOs?

Biblioteca Municipal na Mailänder Platz, Stuttgart, inaugurada em 2011. Arquiteto: Eun Young Yi (1956, Coreia). Foto: Kraufmann/Manu Harms © Landeshauptstadt Stuttgart

Wolfgang frühwald

sobre o a derrocada de um cânone cultural da burguesia: Um arrazoado em favor de uma comunidade midiática culta.

Num ensaio publicado há trinta anos com o título “Sobre a Ignorância”, cujo conteúdo continua tendo validade hoje em dia, Hans Magnus Enzensberger fez uma sátira do moderno mundo da informática. Naquele tempo (1982) a internet – nas palavras de Bill Gates – ainda era um “gigante adormecido”, que foi acordando apenas nos últimos anos do século XX e que, deste então, não para de crescer...

Enzensberger escolheu exemplos tão extremos como o do jovem teólogo Philipp Schwarzerd, que no século XVI adotou a forma grega de seu sobrenome “Melanchthon” [em português Filipe Melâncton], e o de uma jovem cabeleireira dos nossos dias, de nome Zizi. Ambos perambulam por aquela montanha de informações que todos tentamos escalar e cujo cume fica cada vez mais longe à medida que caminhamos. Seja qual for a nossa

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avaliação da profissão da cabeleireira e do sábio no início da Idade Moderna, para Enzensberger tanto o amigo de Martinho Lutero quanto a cabeleireira sem emprego fixo (juntamente com os seus amigos) configuram os pontos extremos no uso do saber funcional, ou seja, do saber necessário para a comunicação com os outros e para o exercício da profissão. E não deixa de ser razoável considerar que o sábio reformador, “um espírito rico num mundo objetivamente estreito”, não tinha, do ponto de vista quantitativo, uma capacidade de memória maior do que a da cabeleireira. O saber funcional de Melâncton, uma mescla de leituras bíblicas, de conhecimento dos filósofos da Antiguidade e da Idade Média, dos Padres da Igreja e da literatura teológica especializada do seu tempo, pode sem dúvida ser comparado com a capacidade de memória de Zizi, até mesmo com a funcionalidade das informações “salvadas” por ela. De fato, Zizi consegue “lembrarse de milhares e milhares de artigos de grife, e conhece tão bem seus respectivos slogans publicitários, que, antes do começo da exibição do filme principal, tal como se estivesse participando de um concurso de adivinhas, ela exclama os nomes corretos dos produtos em meio à sala escura, antes mesmo de eles aparecerem na tela. [...] Até mesmo conceituações complexas estão à sua disposição. Embora ela não saiba o que significa a palavra transubstanciação, ela conhece muito bem o termo não menos abstrato da restituição do Imposto sobre o Valor Agregado. Bastam as revistas especializadas em TV e cinema que ela lê para ela obter informações com dimensões de muitos megabits, as quais ela memoriza conscienciosamente – uma capacidade de memorização que provavelmente não fica nada a dever àquela de um profundo conhecedor das obras dos Padres da Igreja”.

O estoque de conhecimentos do famoso humanista é sem dúvida comparável, do ponto de vista quantitativo, com o da cabeleireira dos nossos dias. Tanto no campo das suas profissões quanto no do intercâmbio de ideias com os seus respectivos círculos de amizade, ambos possuem um estoque de conhecimentos suficiente, seja que ele provenha do estágio atual das discussões a respeito da fé, seja que provenha do conteúdo das revistas que Zizi lê no salão de beleza, durante os minutos de descanso entre uma cliente e outra (e que, hoje, ela também obtém das informações enviadas pelos seus numerosos amigos através do Facebook). Não obstante, opina Enzensberger, há importantes diferenças entre os respectivos estoques de saber que ele compara satiricamente entre si: “Isso não tem a ver com as dimensões, mas com a organização de seus conhecimentos. Enquanto Melâncton, ao estruturar o seu saber, podia confiar num cânone estável, enquanto para ele estava claro desde o início o que era digno de ser sabido e o que não o era, de modo a poder estruturar, durante um processo de aprendizado que durou 63 anos, aquilo que era digno de ser sabido numa cosmovisão durável e bem ordenada, Zizi, [os seus amigos] Helga e Bruno, não obstante os seus incansáveis esforços, dispõem apenas de um quodlibet variegado, para não falar num monte de lixo que, ainda por cima, está submetido a uma permanente reestruturação”.

Ao mesmo tempo, o ritmo com o qual os conhecimentos e as habilidades aprendidos envelhecem é cada mais veloz. Helga,

Zizi e Bruno sabem “que a sua formação profissional pode virar sucata de um dia para o outro”. Por isso, a sua bem preenchida memória de curta duração é constantemente posta à prova, de modo tal que Zizi tem apenas uma “vaga lembrança” do passado. Mas a questão de para que servem esses “incomensuráveis conhecimentos” para Zizi e Bruno, ou seja, para “nós todos”, não fica respondida com isso. Enzensberger suspeita, com razão, que os conhecimentos de Zizi sejam “absolutamente funcionais. [...] Não depende dela que sua atenção precise se concentrar mais na legislação de proteção aos inquilinos do que na indulgência plenária de toda pena temporal e eterna pelos pecados cometidos, e que para ela seja mais importante a comparação entre os grupos comerciais Karstadt e Tengelmann do que entre os poetas Goethe e Schiller”.

CONhECiMENTO ORiENTACiONAl E CONhECiMENTO DisPONíVEl Esta sátira de leitura prazerosa deve ser levada mais a sério do que possa parecer à primeira vista. Porque ela fala do fim da era da burguesia, sendo que as perdas dentro do conhecimento orientacional comum (assim denominado pelo filósofo Jürgen Mittelstraß, para diferenciá-lo do conhecimento disponível) são mais do que evidentes. Embora no mundo todo hoje em dia se publique e se leia muito mais do que em qualquer momento do passado, não fica claro para nós, nisso tudo, do que nós poderíamos e deveríamos tomar conhecimento. No fim das contas, a mera quantidade de saber não nos ajuda a formular um juízo crítico. Mas é apenas ele que interessa, porque é ele que possibilita a classificação dessas montanhas de conhecimentos e permite obter, a partir de informações sopesadas e avaliadas, ou seja, a partir de um saber (verdadeiro), aquilo que nós podemos denominar cultura. Mas cultura é sempre formação da personalidade, ela é a certificação de uma personalidade provida de capacidade para julgar, uma personalidade que encontra caminhos percorríveis em meio à selva das cordilheiras de dados, e que entende que o esquecimento de informação desnecessariamente onerosa é a contrapartida necessária para uma constante ampliação do saber. Mas evidentemente fica claro que o quadro do saber, dentro do qual muitos grupos e pessoas (socialmente relevantes) se sentiam abrigados num conjunto de conhecimentos compartilhado por todos, o “cânone cultural”, esse quadro foi destruído, aniquilado.

O CâNONE DA CUlTURA DA bURgUEsiA Contudo, também o cânone cultural dos séculos passados, sobretudo o dos séculos XIX e XX, era uma ficção ou, no melhor dos casos, uma idealização. A tentativa feita na Alemanha poucos anos atrás de imprensá-lo de novo entre as duas capas de um livro e de cimentá-lo como um “cânone literário”, essa tentativa fracassou, pelo menos no que se refere à jovem geração de “cidadãos da internet”. Observe-se que as diferenças estruturais entre o “antanho” e o tempo de hoje nem são tão grandes quanto possam parecer. Porque no século XIX a burguesia, entendida como o conjunto dos cidadãos, estava tão fascinada e ao mesmo tempo tão atemorizada pelo vapor e pela máquina como nós hoje o estamos diante da informatização do mundo. De modo semelhante ao que acontece hoje, o fenômeno denominado por

Wolfgang frühwaldDe quanto saber precisamos?

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Reinhart Koselleck de aceleração das mudanças de experiências modificou o dia a dia das pessoas com uma rapidez difícil de ser suportada. Outrora os cidadãos ganharam em mobilidade graças ao correio expresso e às ferrovias, graças a estradas mais confortáveis e à eliminação de barreiras alfandegárias. Mas já os nomes que foram dados a estes novos meios de transporte são testemunho de quão desamparadamente os cidadãos de então procuravam ligá-los ao mundo por eles conhecido. As locomotivas foram chamadas em alemão de Dampfross [cavalo-vapor; em português, uma unidade de medida de potência], e as pessoas começavam a sonhar, em alemão, com Luftschiffe [aeronave, palavra utilizada até hoje em português]. Não havia, no passado, nenhum modelo para ser comparado com os novos meios de transporte. Subitamente tornou-se possível atingir sobre o planeta Terra lugares dos quais os viandantes de tempos passados só tinham ouvido falar em sagas e mitos. A eletricidade iluminou a escuridão e parecia estar à disposição como fonte inesgotável de energia. As famílias de trabalhadores foram sendo substituídas por comunidades industriais.

MElANCOliA ROMâNTiCA O poeta Joseph von Eichendorff, que na década de 30 do século XIX foi um eficiente e zeloso funcionário do Ministério da Educação da Prússia, muitas vezes utilizou o verso das suas fichas oficiais para esboçar aquelas poesias que se transformaram em textos de canções de fama mundial, compostas por Felix Mendelssohn-Bartholdy, Robert Schumann, Johannes Brahms, Hugo Wolf etc., e que evidenciam com imagens memoráveis as fissuras do mundo de então. Estas canções falam do “belo tempo de antanho”, da era pré-industrial, do silêncio dos bosques que já tinha sido aniquilado fazia certo tempo pelo desmatamento causado por uma indústria faminta de energia. Falam do companheirismo durante os longos passeios, que se tornavam parte de uma longínqua lembrança na era das viagens de trem, com o rápido embarque e desembarque de passageiros. Falam de castelos que já tinham sido leiloados fazia muito tempo. E falam de uma comunidade de valores que tinha mudado radicalmente pela liberalização no exercício das profissões, por revoluções e movimentos de massa. A burguesia europeia viu-se afligida pelo surgimento de novas classes sociais, pelo proletariado em vias de organização, impulsionada pela indústria e pela técnica e preocupada com as flutuações nas bolsas de valores etc. Como para se proteger de tudo isso, ela construiu para si na literatura, nas artes plásticas e no teatro um refúgio alienado da vida cotidiana, dentro do qual pareciam poder ser preservados valores de um tempo passado, “seguro” e “familiar”. Deste modo, a partir do último terço do século XVIII, num tempo a respeito do qual Jürgen Habermas disse que a leitura individual e meditativa se transformou no caminho real para a individuação burguesa, surgiu um cânone de textos literários, de pinturas e composições famosas, que se manteve até bem entrado o século XX. Citações e frases provenientes daquele cânone de leitura foram acomodadas num “dialeto culto”, do qual não mais faziam parte frases anônimas, mas citações cuja origem era supostamente conhecida. “A gente” sabia qual era a sua origem, era possível relê-las rapidamente, e finalmente, a partir de 1864, foram publicadas por Georg

Büchmann sob o título de Geflügelte Worte: Zitatenschatz des Deutschen Volkes [Ditos proverbiais: tesouro de citações do povo alemão]. O cânone, assim como as citações dele extraídas, era mutável e capaz de admitir mudanças marginais, mas era estável em seu cerne: a Bíblia, Shakespeare, Lessing, Schiller e Goethe eram as fontes essenciais deste cerne.

CADA VEZ MAis lEiTURAs PARA UM NúMERO CADA VEZ MENOR DE lEiTOREs O cânone da burguesia culta – por exemplo, um Schiller não censurado, cuja peça Guilherme Tell foi lida no período da ditadura nacional-socialista como um drama de resistência contra a tirania; Goethe, que muitos perseguidos achavam que os tinha acompanhado no exílio; mas também romances de Thomas e de Heinrich Mann, de Robert Musil, de Hermann Broch, os clássicos socialistas etc. – foi resguardado pelos perseguidos de fala alemã no exílio durante os anos em que Hitler dominou a Europa. Por isso, o cânone burguês teve uma nova fase de renascimento a partir da década de 50 do século passado. Foi um tempo em que a leitura do romance A montanha mágica, de Thomas Mann, publicado em 1924, transformou-se em pedra de toque cultural até para a burguesia estadunidense. Muitos autores latino-americanos (Borges, Cortázar, García Márquez, Neruda, Skármeta etc.) foram incluídos em grande número no cânone. Mas o número de leitoras e leitores para os quais o novo – e ao mesmo tempo velho – cânone era obrigatório, esse número começou a diminuir. Os pilares sobre os quais descansa hoje a indústria editorial estão ficando – assim dizem – cada vez mais altos, mas as suas bases não ficaram mais largas. Um número cada vez menor de pessoas lê cada vez mais!

MUDANÇAs NA MíDiA DETERMiNAM MUDANÇAs sOCiAis Qual é, portanto, o futuro do cânone cultural, caso ele volte a se constituir; qual será o seu rosto, caso ele retornar? Aqueles que não classificam a história das mudanças na civilização segundo as batalhas e as guerras, segundo o destino de povos e de Estados, mas segundo o uso da mídia, defrontarse ão com o fato de que as mudanças realmente importantes do mundo sempre estiveram ligadas a alguma mudança nos meios de comunicação. A invenção da escrita (e, com ela, o surgimento da “literatura”) trouxe como consequência uma profunda mudança social. A sua verdadeira profundidade torna-se clara, entre outros aspectos, pelo fato de que mesmo Christa Wolff considerava que a passagem do matriarcado para a sociedade patriarcal está ligada à invenção da escrita. Quem foi, neste caso, a “galinha”, e quem o “ovo”, isso é uma questão difícil de ser dirimida, mas presumivelmente a mudança do meio de comunicação determinou a mudança social, e não, pelo contrário, a mudança social levou à mudança do meio de comunicação. Quando aproximadamente quinhentos anos atrás a era da transmissão manuscrita do conhecimento foi substituída pela era do livro impresso, essa mudança teve enormes consequências sociais. A Reforma, por exemplo, é inimaginável sem a imprensa e sem os livros; nesses tempos nasceu um forma totalmente nova de ciência, a qual colocaria a dúvida no lugar das autoridades bíblicas ou daquelas provindas da Antiguidade. Foi então que

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as línguas faladas pelo povo foram vistas como línguas da religiosidade. Quando os formatos dos livros foram se tornando menores, quando foi inventado o texto contínuo e a fabricação de papel se tornou mais barata, as pessoas puderam deixar de apenas ouvir leituras feitas em voz alta e passaram a praticar a leitura individual e meditativa. Criaram, assim, aquela cultura burguesa da leitura, a qual fez surgir não apenas os mundos literários privados, mas também um refúgio para uma “bem-aventurança privada”, dentro do qual o “sujeito autônomo” definido por Kant podia se encontrar consigo mesmo.

O fUTURO DO CâNONE CUlTO NA ERA DigiTAl Mas o que ocorre no presente, na era da digitalização, como consequência do vertiginoso desenvolvimento da tecnologia informática, é algo inteiramente novo em termos técnicos e sociais. O “gigante adormecido” acordou. Por enquanto, nós ainda estamos tão ocupados com os muitos novos equipamentos e suas funções, que praticamente não podemos nos ocupar com os conteúdos dos mundos da informação; o domínio técnico das tecnologias digitais ainda ocupa o primeiro plano, mas já há consequências sociais que podem ser percebidas – e elas são graves. Após a revolução informática, que subjugou os mercados financeiros, a produção industrial, a vida econômica como um todo, agora também está começando a sumir a esfera privada. Ela vem perdendo respeito e consideração, porque cada vez mais pessoas jovens manifestam os seus sentimentos, as suas emoções e as circunstâncias das suas vidas através da Web 2.0. As regras do direito autoral, que deram um fim à fase anárquica do livro impresso e criaram o conceito da “propriedade intelectual”, estão sendo infringidas todos os dias de forma tão aberta e ampla, que elas se tornam ineficazes e servem de apoio a uma ideologia que parece tornar tudo em propriedade de todos. O fato de que a confiança tenha que ser substituída pela transparência está sendo discutido com grande engajamento. Se devem existir, além da opinião de muitos, outras autoridades, por exemplo, a autoridade do argumento, da dúvida fundamentada, do verdadeiro saber de especialistas, tudo isso naufraga na maré das opiniões. “Nunca dantes”, escreveu Jürgen Mittelstraß, “uma cultura que vá além das necessidades do dia a dia e do cerne dos negócios profissionais foi tão indispensável dentro de uma sociedade que se entende não apenas como sociedade aberta, mas também como sociedade acelerada, de cujo credo também fazem parte a inovação permanente, a mobilidade sem fronteiras e uma flexibilidade camaleônica.” Em meio a essa situação surgem timidamente nas escolas, nas universidades, nos teatros, nos museus etc. reflexões a respeito da necessidade de um novo cânone cultural, que também no futuro possa valer para a formação da personalidade. Há de conter tal cânone elementos diferentes daqueles do cânone burguês, talvez mais conhecimentos metódicos do que conhecimentos especializados? Ele conterá, em primeira instância, conhecimentos das ciências naturais e exigirá o domínio de técnicas culturais utilizadas pelas modernas tecnologias. Ele exigirá também uma competência para a leitura que vá além dos textos impressos e que introduza nos mundos das imagens que nos circundam. Exigirá, sobretudo, o exercício da capacidade de diferenciação, para aprendermos

a distinguir o valioso do inútil, para podermos encontrar, no meio do lixo de dados, as pedras preciosas (supostamente) nele enterradas. Porque também no futuro será necessário – para citarmos uma frase de Aby Warburg – “reconquistar Atenas de Alexandria”. Mas isso significa resgatar da imensa montanha de informações e de dados, recoberta de opiniões divergentes, um diminuto tesouro de saber, indispensável para a vida. Dito de outra forma: o nosso futuro enquanto sociedade culta dependerá de nossa capacidade de transformar os “usuários”, os “netizens”, em leitores. Uma comunidade midiática culta – essa é uma visão pela qual vale a pena a gente se empenhar. <

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Autor:Wolfgang Frühwald (1935), catedrático emérito de História da Literatura Alemã Moderna e Contemporânea da Universidade de Munique. Foi presidente da Fundação Alemã de Pesquisa (DFG) de 1992 a 1997 e da Fundação Alexander von Humboldt de 1999 a 2007; desde 2008, é presidente honorífico da Fundação. Conta com numerosas publicações em seus campos de estudo: prosa religiosa medieval, literatura alemã da época de Goethe, literatura alemã moderna, história da ciência e organização da pequisa.

Tradução do alemão:George Bernard Sperber

Informações adicionais sobre a ilustração:O cubo como espaço do saber. A Biblioteca Municipal na Mailänder Platz em Stuttgart

“O projeto norteia-se pela ideia de criar em Stuttgart com a Biblioteca Municipal um novo centro intelectual e cultural. [...] No passado, o ponto nevrálgico de uma cidade era constituído por uma igreja ou um palácio. Mas numa sociedade moderna, a importância de um lugar onde aprofundar o saber e enriquecer a experiência assume esse protagonismo. Desse modo, a biblioteca adquire um significado crescente para a sociedade.” (Eun Young Yi)

“E no âmago, encontra-se um monolito em negativo: um espaço branco, absolutamente geométrico e regular com forma de cubo perfeito, iluminado por uma claraboia central. Portanto, um espaço para o recolhimento. [...] O ‘coração’ [simboliza] as raízes do conhecimento […].” (Eun Young Yi)

(As citações foram extraídas do texto “Zur Architektur und Räumlichkeiten” [Sobre a arquitetura e os espaços], no qual o arquiteto Eun Young Yi explicou sua concepção no volume publicado quando da inauguração da Biblioteca Municipal de Stuttgart.)

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fAlAR MAis DE UM iDiOMA NOs TORNA iNTEligENTEs?

Fibras da substância branca, tronco encefálico e parte superior. Cortesia do Laboratory of Neuro Imaging e do Martinos Center for Biomedical Imaging (www.humanconnectomeproject.com)

Janna Degener

Ou: O que faz o nosso cérebro quando aprendemos línguas?

Há mais de cinquenta anos o Goethe-Institut faz a intermediação da cultura e da língua alemãs no exterior. Gente do mundo inteiro aprende alemão em 150 institutos espalhados por mais de noventa países. Para alguns, é um enorme desafio. Outros, porém, acostumados desde a infância a transitar entre vários idiomas, têm mais facilidade de se adaptar à pronúncia e à gramática da língua alemã. Por quê? É o que os cientistas podem explicar cada vez melhor com base nos mais novos métodos da pesquisa cerebral.

áREAs DA liNgUAgEM O que acontece nos nossos cérebros quando aprendemos um idioma? Em que lugar da nossa cabeça ficam armazenadas informações como pronúncia, vocabulário e gramática? E de que jeito os professores podem dar uma mãozinha ao nosso intelecto? São questões pelas quais a ciência se interessa há bastante tempo. No século XIX, por

exemplo, neurologistas já examinavam pacientes com danos cerebrais parciais depois de um acidente vascular cerebral e que haviam perdido determinadas capacidades linguísticas. Assim descobriram que duas regiões no lobo esquerdo são responsáveis pela linguagem. Até hoje parte-se do pressuposto de que a chamada Área de Broca é a responsável pela fala (ou pela produção da fala), enquanto a Área de Wernicke é responsável pela compreensão (interpretação e associação da fala). No entanto, graças às possibilidades técnicas mais recentes, as últimas décadas produziram novas evidências de que esta é apenas uma pequena parte da verdade.

CORRENTEs EléTRiCAs CEREbRAis Hoje em dia, os cientistas conseguem literalmente assistir como o cérebro humano trabalha. Pode ser com ajuda da ressonância magnética – portanto, uma espécie de tubo com escâner em que os

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pacientes ficam deitados ou resolvem problemas relacionados à fala enquanto os pesquisadores observam no monitor as re- giões cerebrais ativadas. Ou com ajuda do eletroencefalograma (EEG), em que se fixam pequenas placas metálicas eletrizadas com um gel no couro cabeludo e que ajudam os pesquisadores a medir com bastante precisão quando uma célula cerebral produz alguma atividade. Ambos os procedimentos registram os impulsos elétricos produzidos pelo nosso cérebro. “Não importa o que fazemos – falar, pensar ou simplesmente erguer o braço: qualquer atividade se produz a partir de fluxos elétricos enviados de um lado para outro pelas nossas células cerebrais”, explica o professor Harald Clahsen, psicolinguísta e diretor do Centro de Pesquisas sobre Multilinguismo de Potsdam (Re- search Institute for Multilingualism). “Essas atividades produzem ondas que podem ser medidas e representadas graficamente.” A partir de experimentos, os cientistas já conhecem alguns padrões das atividades cerebrais medidas e que, ao que tudo indica, estão relacionadas com o processamento da fala, e tirar conclusões sobre como determinados conhecimentos estão enraizados no cérebro. Dessa forma, diferentes estudos indicaram que a língua não é apenas processada em algumas regiões altamente especializadas, mas também nas numerosas e importantes ligações entre essas regiões, ou seja, em todo o cérebro.

APRENDER UMA líNgUA OU ACUMUlAR CONhECiMENTO “Por muito tempo, os cientistas acreditavam que os cérebros de pessoas poliglotas funcionavam diferentemente dos cérebros de pessoas monoglotas”, explica Klaus-Börge Boeckmann, professor de alemão como língua estrangeira ou segunda língua em Viena. “Uma hipótese dizia que, no caso de indiví- duos poliglotas, o lado direito do cérebro teria mais tarefas a resolver, já que o lado esquerdo de certa maneira estaria ocupado com a primeira língua. Outra suposição era a de que pessoas poliglotas organizam suas línguas no cérebro de outra forma ao armazenarem as diferentes línguas em locais separados.” Segundo Boeckmann as duas teorias já estão ultrapassadas.

Mas a maneira de efetivamente armazenar uma segunda ou uma terceira língua no cérebro pelo jeito depende principalmente de se o método de aprendizado é implícito ou explícito. Tentamos decifrar a significação de determinadas frases em uma nova língua estrangeira por esforço próprio, como fizemos talvez em trabalhos de equipe nas aulas de inglês? Ou é um professor que nos explica as regras gramaticais de uma língua, como ocorre frequentemente nas aulas de latim? Experimentos mostram que, para o nosso cérebro, isso faz toda a diferença. Um desses experimentos submeteu voluntários ao ensino de uma língua artificial, sendo que um grupo foi submetido a uma metodologia de aprendizado implícito e outro, a uma metodologia explícita. Em seguida, testou-se qual dos grupos tinha melhor domínio da língua e ainda quais as atividades cerebrais registradas durante o uso da nova língua. Resultado: não havia diferença na qualidade das respostas. Nenhum dos métodos era melhor do que o outro. Mas os dois grupos revelaram no EEG padrões totalmente diferentes em suas atividades cerebrais. “Os voluntários submetidos ao

aprendizado implícito mostraram padrões em suas atividades cerebrais que já conhecemos como sendo típicos para o uso do idioma. Portanto, durante o processo de fato ativaram seu sistema de processamento do idioma e enraizaram a nova língua em seu conhecimento linguístico. Por isso, são capazes de usar a língua enquanto língua“, explica o professor Clahsen. “Os outros voluntários que aprenderam a língua pelo método explícito, por seu lado, relevaram padrões em suas atividades cerebrais típicos para o uso de fatos ou conhecimentos gerais, como se tivessem aprendido conscientemente a dirigir ou a jogar xadrez. Portanto, através do método explícito de aprendizagem aprenderam um novo sistema de regras que não tem muito a ver com linguagem. Dominam essas regras da mesma forma como dominam fatos aprendidos nas aulas de geografia, história ou matemática.” Em suma, segundo Clahsen: o método implícito de aprendizagem leva pessoas a aprenderem uma língua. O método explícito faz as pessoas acumularem conhecimento.

CRiANÇAs POliglOTAs Muitas crianças já crescem com duas ou mais línguas porque seus pais falam idiomas diferentes ou porque em família se fala outra língua do que na creche ou na escola. Essas crianças aprendem a segunda ou a terceira língua quase brincando, portanto, de forma tão implícita como todos nós aprendemos nossa língua materna. Mas adolescentes e adultos dependem sempre em certo grau de estudar conscientemente determinadas regras. Por isso, crianças que cresceram com mais de uma língua geralmente revelam atividades cerebrais diferentes de pessoas que aprenderam a segunda ou a terceira língua mais tarde. Não importa que língua estejam falando: sempre ativam a mesma área cerebral. Já os cérebros de pessoas que só aprenderam sua segunda ou terceira língua mais tarde começam a usar áreas diferentes, responsáveis pelo processo de memória mais geral, quando falam a língua estrangeira. Isso significa que pessoas que começam a aprender uma língua estrangeira mais tarde precisam ativar mais regiões no cérebro a fim de utilizar sua segunda ou terceira língua. A diretora do Instituto Max Planck de Ciências Cognitivas e Neurociências de Leipzig, professora Angela Friederici, explica: “Quanto mais velhos, mais esforço é necessário para aprender uma nova língua. Alunos mais velhos necessitam de mais recursos para atingir o mesmo resultado”. E quem já domina duas línguas tem mais facilidade para aprender uma terceira.

DEsENVOlViMENTO PRECOCE DE EsTRUTURAs CEREbRAis Não é só. Quem está acostumado a mais de uma língua desde pequeno e tem a possibilidade de treinar seu multilinguísmo no dia a dia pelo jeito processa não só as línguas como também outras informações em um nível bastante elevado. Pessoas que dominam várias línguas têm excelentes resultados em experimentos quando se trata de sublimar ruídos do meio ambiente ou quando precisam resolver tarefas que concorrem entre si. Em um desses experimentos, mostram-se imagens em que a palavra “amarelo” está escrita em letras vermelhas e a palavra “verde” em azul. Pede-se aos voluntários que digam rapidamente a cor em que a palavra vem escrita. Demonstrou-se que quem fala uma só língua geralmente lê a palavra em vez de

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indicar a cor, coisa que fazem as pessoas multilíngues. Vantagens semelhantes ocorrem quando se trata de resolver vários desafios simultaneamente, ou seja, o clássico multitasking. Quem fala mais de uma língua tende a ter mais facilidade em olhar os filhos enquanto cozinha ou falar ao celular enquanto dirige. Além disso, há, segundo o professor Boeckmann, indicações de que o multilinguismo melhora o desempenho social.

“Quem fala várias línguas aproveita melhor as possibilidades oferecidas pelo nosso cérebro humano, pois está treinado para se concentrar em uma só língua, sublimando as outras“, diz Boeckmann. “E, pelo jeito, essa aptidão pode ser transferida para outras tarefas.” Naturalmente há pessoas que aprenderam uma segunda língua em criança e a esqueceram depois. Outros cresceram falando uma língua e depois conseguiram muito bem aprender outra já com mais idade. Ou terceiros que conseguem transitar entre diversas tarefas cotidianas sem problemas, embora só tenham aprendido uma única língua materna. Mas esse é apenas um pequeno consolo para aqueles que não ganharam a carreira de tradutor ao nascer. Pois há muitos indícios apontando para o fato de que as vantagens cognitivas de pessoas que falam várias línguas desde cedo não advêm apenas do exercício diário. O que é decisivo – pelo jeito, mesmo em idade avançada – é se as estruturas existentes no cérebro começaram cedo a evoluir. <

Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autora:Janna Degener estudou Linguística, Literatura, Etnologia e Alemão como Língua Estrangeira na Universidade Livre de Berlim. Trabalha como jornalista autônoma e professora em Colônia. www.jannadegener.de

Tradução do alemão:Kristina Michahelles

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EDUCAÇÃO sEM sisTEMA

Fibras da substância branca, fibras comissurais. Cortesia do Laboratory of Neuro Imaging e do Martinos Center for Biomedical Imaging (www.humanconnectomeproject.com)

Manfred spitzer

Um discurso veemente contra o desperdício sistemático de recursos e a transformação das cabeças das próximas gerações em lixões virtuais.

“Um sistema é um conjunto de elementos que estão de tal modo relacionados entre si e têm efeitos mútuos, que podem ser considerados como uma unidade, com tarefas, sentidos ou finalidades comuns.” Se levarmos a sério esta definição de sistema, temos que admitir que na Alemanha não existe um sistema educacional. As consequências deste fato para a educação dos jovens são devastadoras. Esta situação ameaça a subsistência de nosso bem-estar e de nossa sociedade como um todo.

PilOTOs CEgOs “Olhe para o seu vizinho à esquerda, e depois para o da direita. É altamente provável que neste mesmo período do ano que vem, eles não mais estarão aqui.” É dessa forma que, na Alemanha, os professores cumprimentam os

estudantes que cursam o primeiro semestre de Matemática, e, ao mais tardar no momento das provas, os estudantes percebem que essa frase não era uma brincadeira. “Papai, tenho uma boa e uma má notícia. A má notícia: levei bomba na prova. A boa: eu fui o melhor dos 93% que levaram bomba.” Esse foi o texto do SMS que meu filho me enviou quando cursava o seu primeiro semestre de Matemática numa das boas universidades alemãs. Nada fora do comum, porque a cota de desistência nos cursos de Matemática é de 60 a 70%. Isso tem consequências muito desfavoráveis para a formação matemática básica em nosso país. Porque na Alemanha há, hoje em dia, uma carência de perto de 30.000 professores de Matemática. Os políticos propõem resolver essa situação assustadora no ensino médio

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alemão trazendo às escolas alemãs de nível médio docentes de Matemática dos países do Leste Europeu. Embora eles não dominem a língua alemã, dominam matemática superior. Mas para poder ensinar numa escola alemã, é muito mais importante ter bons conhecimentos da língua alemã do que saber o que são os conjuntos Li ou os espaços de Banach. E aquilo que é certamente desnecessário é ironia, cinismo, sarcasmo e outras características da frieza social.

Quase todos os estudantes que terminam o ensino médio e decidem estudar Matemática em nível universitário sabem da situação com que irão se defrontar, mas dominam a matéria no nível exigido nos exames finais das escolas de nível médio. A prática da seleção de estudantes com dotes especiais para a matemática costuma privilegiar quem sofre de autismo, isto é, de falta de empatia social. Pratica-se, assim, uma seleção ativa dirigida contra as pessoas possuidoras de altos graus de empatia social, as quais, devido a essa característica, estão especialmente capacitadas para o exercício da docência. Esta é uma atitude semelhante à de dar preferência aos cegos nos cursos de pilotagem! Isso não faria nenhum sentido, porque é óbvio que os pilotos têm que enxergar direito. Da mesma forma, os docentes precisam ter um elevado grau de empatia, porque eles são, de longe, a “variável” mais importante quando se trata de obter um ensino de boa qualidade.

A lACUNA NA fORMAÇÃO DOs PROfEssOREs: O EsTUDANTE A situação acima descrita demonstra de forma exemplar a falta de sistema no nosso “sistema educacional”, no qual, se algum sistema existe, grande parte dele é sistematicamente errada! E não se trata de casos isolados, mas sim da regra, como outros exemplos o hão de demonstrar. Eu mesmo sou professor de Psiquiatria numa clínica ligada a uma universidade alemã, quer dizer, eu cuido de pacientes e dou aulas a jovens estudantes de Medicina que se tornarão jovens médicos e, dentre estes, aos que serão jovens psiquiatras. Peço agora ao leitor que imagine que eu tenha visto meu último paciente há uns trinta anos, e que eu cumprimentasse os jovens médicos que querem se especializar em psiquiatria com as palavras: “Esqueçam tudo o que vocês aprenderam sobre teoria da medicina durante os seis anos de estudos: aqui nós temos pacientes de verdade!”. Parece algo impensável, não é verdade? No caso da medicina, sim, mas no caso da educação é algo absolutamente normal! Os professores de Pedagogia não dão aulas em escolas. Como é que eles podem ensinar a ensinar a estudantes; como é que eles podem conhecer, a partir de sua própria experiência, as mudanças ocorridas no meio estudantil durante os últimos trinta anos? Como é que eles podem servir de exemplo em que os jovens professores possam se espelhar? O próprio sistema impede que isso seja possível!

Seria fácil remediar esta situação fazendo uma mudança do sistema. Do mesmo modo que sem pacientes não pode haver uma formação no campo da medicina, no campo da educação deveria ser obedecido o princípio de que onde se formam professores, deve haver estudantes. Deveriam ser escolas em bairros problemáticos, assim como num Hospital das Clínicas, ligado a uma universidade, são tratados justamente os casos

mais graves, e a geração seguinte aprende, desse modo, a fazer justamente isso: tratar de pacientes.

AsPiRiNA NA ágUA POTáVEl E TEORiA DOs CONJUNTOs NA sAlA DE AUlA Não apenas o ensino, mas também a pesquisa no campo da educação carece de sistema, porque não há resultados científicos consistentes para responder às questões importantes e sistematicamente relevantes que são discutidas permanentemente no espaço público. Qual é a idade a partir da qual as crianças devem ser incentivadas nas instituições públicas de educação, e de que forma? Será que isso deve ocorrer, dependendo de seu talento, de forma isolada, e, caso a resposta a esta pergunta seja positiva, a partir de que idade? Qual é a quantidade mais apropriada de alunos por classe, em qual faixa etária, com qual grau de diferenciação entre os alunos? Qual a melhor duração para cada aula? Quanto deve durar um dia de aula? Como não existem dados confiáveis para orientar as decisões políticas a esse respeito, essas questões são resolvidas de forma ideológica, sem qualquer embasamento empírico. Mas a questão central, a saber, como as crianças aprendem, deve ser esclarecida cientificamente para poder ser implementada de forma correta.

Imaginem um ministro a quem um amigo dá a dica de que a aspirina é boa para prevenir infartos. Este político decide, então, que deve ser adicionada aspirina à água potável. Dez anos mais tarde uma estatística demonstra, casualmente, que o número de mortes cresceu depois da implementação dessa medida. Nesse momento o ministro decide não mais adicionar aspirina à água potável. Isso é algo impensável? No campo da medicina talvez, mas no campo da educação é algo normal. Na Alemanha, no estado federado de Hessen, durante mais de uma década, o ensino de Aritmética começava, na primeira série, com a teoria dos conjuntos, porque alguém teve a ideia de que desse modo a matemática poderia ser ensinada do mesmo modo como essa disciplina pode ser fundamentada sistematicamente (ou seja, de fato, com base na teoria dos conjuntos). O caráter peculiar dessa ideia torna-se claro quando ela é transferida para outras disciplinas. Toda a biologia pode ser deduzida da genética e da bioquímica, mas nem por isso alguém poderia ter a ideia de confrontar alunos da primeira série não com ouriços ou esquilos, mas com proteínas e ácidos desoxirribonucleicos. Quando, passada mais de uma década, ficou claro que a teoria dos conjuntos não melhorava o aprendizado da aritmética pelos alunos da primeira série, mas o prejudicava, a teoria dos conjuntos foi rapidamente riscada do programa didático.

lAPTOPs E sMARTbOARDs PREJUDiCAM A EDUCAÇÃO Observemos um exemplo recente: a tecnologia da informação (TI) assume, hoje em dia, grande parte de nosso trabalho mental. Justamente por isso, os computadores conquistaram espaços incomensuráveis no mundo de quem trabalha com a mente. Mas o aprendizado pressupõe um trabalho mental individual. Quanto mais tempo e, sobretudo, quanto maior profundidade intelectual dedicarmos ao estudo de um fenômeno qualquer, tanto mais e melhor aprenderemos a seu respeito. Laptops e smartboards, quando usados indiscriminadamente na escola,

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levam inevitavelmente a piorar o aprendizado. Se num smart-board sensível ao tato eu puxar uma palavra do ponto A ao ponto B, isso é, provavelmente, o que de mais superficial eu posso fazer com uma palavra (mais superficial ainda, porque exige menos movimento, é usar o mouse nas funções “copiar” e “colar”). Ler uma palavra ou até mesmo copiá-la por escrito, e ao mesmo tempo refletir sobre ela (sozinho, cada um por si e em silêncio, sem clicar a todo instante em alguma tecla), essas seriam etapas de processamento mais aprofundadas, que são dificultadas ou até mesmo impossibilitadas pela mídia eletrônica. Por isso, não existe até hoje nenhum estudo que tenha provado que o aprendizado se torne mais efetivo pela introdução de computadores e lousas interativas nas salas de aula.

Não obstante, uma comissão do Parlamento alemão criada para tratar de “Internet e da Sociedade Digital” no âmbito da competência informática, recomendou, em 21/10/2011, para além dos limites dos mandatos e dos partidos de seus integrantes, fornecer computadores portáteis a todos os alunos a partir da 5ª série até o final do ensino médio. Se essa recomendação fosse implementada, os nossos estudantes ficariam mais burros. Isto é demonstrado não apenas por dados levantados pelo PISA [Programa Internacional de Avaliação de Alunos, patrocinado pela OCDE. N. d. T.], mas também por estudos sobre o funcionamento do cérebro humano, assim como por pesquisas pedagógicas empíricas dos efeitos dos computadores sobre o aprendizado. No Texas foram investidos, em 2005, 20 milhões de dólares para distribuir gratuitamente laptops em 21 escolas, para comprar o software adequado e até para treinar os professores e desenvolver conceitos pedagógicos apropriados. Cinco anos depois, um estudo comparando essas escolas com 21 outras que não ganharam os laptops demonstrou que essa medida dispendiosa não teve efeitos positivos sobre o sucesso no aprendizado dos alunos.

A comissão do Parlamento alemão acima mencionada recomendou aos estados federados “considerar a pedagogia dos jogos para computadores como tarefa necessária dentro da pedagogia midiática, e incentivá-la intensamente. Os jogos para computadores devem ser considerados, por um lado, como meios e, por outro lado, como jogos. É indiscutível a importância dos jogos para o desenvolvimento pessoal e para a nossa cultura em geral”. Por isso a comissão parlamentar recomendou “[...] a incorporação, em âmbito interdisciplinar, da pedagogia midiática nas escolas e na pedagogia do lazer, incluindo os jogos para computadores como parte integrante do mundo convergente da mídia e de nossa cultura”.

A este arrazoado deve-se contrapor o seguinte: se jogos nos quais crianças e adolescentes são recompensados por massacrar seres humanos representados com grande realismo, a fim de ganharem mais pontos quanto mais cruel for o seu comportamento, se tais jogos realmente fazem parte de nossa cultura, há algo de errado em nossa cultura!

O relatório da comissão parlamentar mostra que pessoas adultas, eleitas como representantes do povo, nas quais os cidadãos confiam e às quais transferiram responsabilidades, não são capazes de questionar minimamente os efeitos do consumo da mídia digital sobre as pessoas. Sabemos, a partir de muitos

bons estudos científicos, que a mídia digital, dependendo da dosagem (quanto maior, tanto maior o efeito) e da idade (quanto mais jovem o consumidor, tanto mais profundo o efeito), tem efeitos indubitavelmente nocivos. Os autores dessas recomendações suprapartidárias nada dizem a este respeito! Pelo contrário, eles ocultam sistematicamente os conhecimentos existentes a respeito do perigo emanado da mídia digital. O fato de que a rede, em comparação com a vida real, contém mais mentiras, piora a qualidade da pesquisa, torna mais superficial o pensamento e deteriora sensivelmente o aprendizado, e que, por essas razões, ainda mais tendose em vista que os cérebros das crianças e dos adolescentes ainda estão em fase de desenvolvimento, o seu uso deveria ser limitado – a respeito disso tudo não há uma palavra sequer em meio às mencionadas recomendações!

REfORMAs só sE ElAs TROUxEREM MElhORAs REAis! Frequentemente, pessoas responsáveis pelo planejamento da educação, à procura de melhorar a sua imagem, lançam campanhas sem qualquer sistema e sem nenhuma necessidade, com consequências nefastas. Um bom exemplo disso é a reforma do sistema educacional ligado à palavra Bolonha. A sua meta declarada era um maior grau de internacionalização dos estudos universitários. Estes deveriam ser uniformizados em toda a Europa – mas essa reforma trazia consigo a exigência de uma maior especialização (“profiling”) das universidades. O resultado foi a escolarização dos cursos universitários e a formação de estudantes que se interessam apenas por critérios e problemas fictícios, mas praticamente por nenhum conteúdo, tal como o testemunham unanimemente professores de toda e qualquer faculdade. Estuda-se uniformemente em toda a Europa, mas é praticamente impossível mudar de Mainz para Frankfurt, porque os currículos são muito diferentes. Depois da introdução do Acordo de Bolonha, o número de estudantes que vão para o exterior não cresceu, mas diminuiu sensivelmente. E aliás, quem fez um curso uniformizado pelo padrão europeu para se tornar professor, só pode exercer essa profissão no Estado no qual ele estudou. Será que alguém entende esse “sistema”?

APRENDiZADO AUTOCONTROlADO EM lUgAR DE RECEPÇÃO PAssiVA Quem alguma vez observou um bebê começando a andar sabe que o aprendizado só pode se dar de forma autocontrolada, ativa, através da curiosidade e da repetição. Exatamente essas características de um aprendizado bem-sucedido não estão sendo implementadas sistematicamente em nossas escolas. Raramente ou nunca se pergunta aos nossos alunos e estudantes a respeito do que eles mesmos querem. Quando isso é feito – assim o demonstram dois trabalhos publicados na revista Science –, o desempenho dos alunos da 7ª série melhora: num espaço de dois anos, as notas aumentam em meio ponto [na Alemanha, as notas vão de 1 a 6, correspondendo 1 a “muito bom” e 6 a “insuficiente”. N. d. T.], e o número de repetentes cai para um terço. Quando ao longo de anos se impinge aos estudantes (àqueles que têm a meta de se tornarem docentes), graças a Bolonha, a noção de que o aprendizado se resume à memorização de fatos irrelevantes em seu conteúdo,

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mas relevantes em termos de notas, eles, uma vez formados, dificilmente se tornarão modelos para uma aquisição ativa e autocontrolada do saber. Estamos aniquilando sistematicamente a curiosidade dos estudantes, na medida em que, nas escolas, os confrontamos constantemente sobretudo com aquilo que eles não dominam, sem darmos mais atenção àquilo que eles dominam.

EsCOlhAs ERRADAs Pode-se dizer que, em geral, toda sociedade recebe a educação que ela merece. As nossas escolas em nada se parecem, no seu exterior e no seu interior, aos deslumbrantes shoppings que surgem por todo lado, para não falar nos bancos. Será que, de fato, damos tão pouco valor à próxima geração? O que as crianças e os adolescentes fazem durante o dia todo é algo que nós deixamos nas mãos do mercado, o qual parte do princípio de que os seres humanos só cuidam de seus próprios interesses, e que lhes fornece toda espécie de hardware e de software que têm efeito nocivo sobre a sua educação. Em média, crianças e adolescentes se ocupam de cinco a seis horas por dia diante com mídias digitais. Quem tem 35 aulas semanais de 45 minutos cada, fica na escola 3,75 horas por dia (35 x 3/4 x 1/7). Isso significa que crianças e adolescentes passam diante da TV, dos jogos de computador, dos consoles de videogames e, mais recentemente, dos smartphones, um tempo que se aproxima do dobro de todo o tempo dedicado ao aprendizado escolar!

Uma última coisa: os investimentos públicos em educação per capita não apenas são comparativamente bastante baixos, mas estão sistematicamente mal distribuídos entre as diversas faixas etárias. A maior velocidade de aprendizado e, consequentemente, o melhor rendimento dos investimentos em educação ocorrem na pré-escola. Já na fase escolar são bem mais reduzidos e, na idade adulta, muito baixos. Quando um adulto aprende depressa, isso ocorre não porque as suas sinapses se modificam rapidamente, mas porque ele consegue estabelecer conexões entre conhecimentos novos e aqueles já adquiridos anteriormente. O cérebro humano, portanto, não é como uma caixa de sapatos normal (quando ela está cheia até a metade, só cabe nela uma outra metade de seu volume), mas é uma espécie de caixa de sapatos paradoxal: quanto mais coisas estão dentro dela, tanto mais outras coisas nela cabem. Disso resulta que é na pré-escola e na escola de primeiro grau que nós nos preparamos para aprender ao longo da vida toda. E também resulta que, quem aos 20 anos de idade nada aprendeu, mais tarde aprenderá com dificuldade ou não poderá aprender mais nada. É justamente por isso que as culturas mais avançadas valorizam grandemente a educação da geração imediatamente seguinte. A partir deste ponto de vista, tanto segundo as neurociências quanto em conceitos sociopolíticos, há uma atitude sistematicamente errada por parte do nosso Estado, que cobra pelas pré-escolas, mas concede verbas à formação profissional.

UM TRisTE bAlANÇO. E UM APElO PARA A AÇÃO! Não há outro alicerce para o nosso bem-estar a não ser as cabeças brilhantes da próxima geração. Os exemplos enumerados mostram que a educação, na Alemanha, não tem nenhum sistema

(em nenhum lugar há elementos que se integrem de forma sensata), ou que, quando ela se dá sistematicamente, isso ocorre de forma sistematicamente errada. As transições são, na verdade, rupturas. As pessoas erradas são educadas por pessoas erradas. Os investimentos são feitos de forma errada, em aparelhagens caras, de eficiência não comprovada ou até mesmo negativa – ao mesmo tempo em que há falta de recursos humanos. Não existe pesquisa de relevância prática. O federalismo é responsável pelas diferenças entre os estados federados e, ao mesmo tempo, Bolonha deve cuidar da igualdade entre os países. Mas esta igualdade é neutralizada pelo profiling das universidades. As reformas são feitas de forma arbitrária.

Nós sabemos, graças também às neurociências, como os seres humanos aprendem, mas não aplicamos esse saber. Pessoas que têm apenas meio cérebro, sem os centros da fala – a medicina já o demonstrou – podem viver de um jeito normal e falar fluentemente duas línguas. Por que perto de um em cada catorze dos nossos jovens, dono de um cérebro em perfeito estado de funcionamento, não consegue completar a 9ª série do ensino fundamental? Isso não precisa ser assim, e é apenas uma prova da situação insuportavelmente ineficiente e simultaneamente perigosa de todos os nossos esforços educacionais. Crianças não têm lobby. É por isso que investimos tão pouco nelas? Ou será que é porque o resultado, por melhor que seja, não será creditado pelo eleitorado, quinze anos mais tarde, ao político que promoveu o investimento?

Não há quem não entenda que as despesas relativas à mudança climática feitas hoje mostrarão seu resultado num longínquo futuro. No que se refere às despesas na área da educação, que não são gastos sociais, mas sim investimentos no futuro, todos nós devemos ter o mesmo fôlego. AGORA! Porque o desperdício sistemático de recursos, que ocorre simultaneamente com a transformação, em grande estilo, das cabeças das próximas gerações em lixões virtuais, esses são luxos aos quais nós não podemos nem nos devemos dar, nem do ponto de vista econômico, nem do ponto de vista social. <

Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autor:Manfred Spitzer (1958) estudou Medicina, Psicologia e Filosofia. Em 1989 fez as provas de agregação em Psiquiatria. Duas estadas como professor visitante da Universidade de Harvard e uma de pesquisa no Institute for Cognitive and Decision Sciences da Universidade de Oregon exerceram influência decisiva em seu campo de estudo na área da neurociên- cia cognitiva e da psiquiatria. Desde 1997 ocupa a cátedra de Psiquiatria da Universidade de Ulm e desde 1998 dirige a Clínica Psiquiátrica Universitária de Ulm. Dentre seus numerosos livros, foi publicado em português Aprendizagem – Neurociências e a Escola da Vida (2007).

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Tradução do alemão:Carmen García del Carrizo

Informações adicionais sobre a ilustração:Uma nova imagem do cérebro. As imagens dos circuitos cere-brais foram realizadas no contexto do “Human Connectome Project”. A meta deste projeto, tão ambicioso quanto o foi na sua época o do genoma para desvendar o código genético humano, é representar num mapa tridimensional do cérebro todas as células nervosas e suas conexões. Os resultados obtidos até agora mostram que, de maneira comparável aos fios da trama e da urdidura de um tecido, o circuito neuronal é composto de uma retícula geométrica relativamente simples e retilínea.

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RAZÃO E sENsibiliDADE NA sAlA DE AUlA

Plan Ceibal, 2009. © Foto: Luciano Dossen

sérgio branco

iniciativas como “one laptop per child” mostram resultados muito bons em programas de alfabetização. Como será o ensino do futuro?

Em 1969, o educador Anísio Teixeira profetizou, em seu livro Educação e o mundo moderno, que a escola do futuro lembraria muito mais um laboratório, uma oficina, uma estação de TV do que a escola do passado e do modelo então existente.

Quarenta anos depois, contudo, a prática demonstra que, ainda hoje, a educação é aquela fundada na aula expositiva e no conteúdo tornado disponível quase sempre por meio de textos impressos. Ocorre que, diante de todas as mudanças tecnológicas, o processo de construção do conhecimento não deveria se limitar aos mecanismos tradicionais. Aparentemente, todos sabem disso. Mas, também aparentemente, muito pouco tem sido feito para mudar esse cenário.

Tanto é assim que um médico ou um engenheiro do século XIX que fossem transportados para nosso tempo teriam dificuldade em atuar profissionalmente, tamanha a distância que o tempo imprime no exercício de suas especialidades. Mas qualquer professor de duzentos anos atrás poderia entrar sem muito espanto em uma sala de aula para lecionar. Claro que não

se trata aqui do conteúdo ministrado (que estaria ultrapassado, certamente), mas sim da maneira de fazê-lo.

DEsAfiOs AO CONsERVADOR MUNDO ACADêMiCO Felizmente, algumas condutas estão desafiando o conservador mundo acadêmico. Entre uma aula tradicional e outra, aparecem práticas sociais que nos afastam do modelo consolidado (e francamente preguiçoso) de ensinar, tornando a realidade prevista em décadas passadas uma possibilidade ao alcance da mão. Vejamos dois exemplos.

Wolenchite é uma cidade no centro da Etiópia. Encontra-se a cerca de 84 quilômetros da capital, Adis Abeba. Sua população é de aproximadamente 22 mil pessoas, quase todas analfabetas e sem acesso a luz elétrica. E foi esse lugar que Nicholas Negroponte, o fundador do projeto “um laptop por criança” (one laptop per child), escolheu para conduzir uma experiência que pode ser revolucionária: entregou tablets movidos a energia solar a meninos de 4 a 12 anos, sem lhes dar qualquer instrução

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sobre como fazêlos funcionar. Os resultados foram animadores.Conforme relata a revista Wired do mês de junho de 2012,

demorou quinze minutos para a primeira criança entender como ligar o tablet. Depois dela, em três minutos, todas as outras já haviam ligado seus próprios aparelhos. Após uma semana, o grupo estava usando 47 aplicativos, e em duas, todas as crianças conseguiam recitar o alfabeto em voz alta. Se não chega a ser uma novidade que a tecnologia é uma forma sedutora de se acessar o conhecimento, é de fato surpreendente a rapidez com que os resultados foram alcançados – a despeito das circunstâncias adversas.

Na verdade, muito já foi escrito sobre a extrema habilidade com que a nova geração lida com artefatos tecnológicos, como se lhe fosse uma qualidade inata. Mas isso não significa que quem não é mais criança esteja condenado a ficar alheio às possibilidades que a tecnologia oferece.

Em Campinas, localizada no Sudeste do Brasil, o matemático José Luís Poli criou o Programa de Alfabetização na Língua Materna, destinado a jovens e adultos e implementado com o uso de aparelhos celulares. Aliando som e imagem, os exercícios são jogos educativos que integram um método tradicional de ensino. De acordo com matéria publicada na revista A Rede, de maio de 2012, uma aula de três horas contaria com 40 ou 50 minutos de exercícios interativos. Tais exercícios são resolvidos individualmente, o que induz a que todos os alunos os pratiquem na mesma medida e sem a necessidade de se expor em público (o que muitas vezes é um problema, sobretudo entre adultos). Além disso, podem ser refeitos inúmeras vezes. Cada aluno segue, assim, sua própria cadência. Um dos resultados do programa foi o aumento da presença dos alunos nas aulas, com a consequente diminuição da taxa de evasão – que caiu de 20% para 5%.

COMO ROMPER COM A sECUlAR TRADiÇÃO DE ENsiNO Apesar dos exemplos acima, o uso da tecnologia em sala de aula ainda é bastante incipiente. Na verdade, a geração de professores que hoje atua nas diversas instituições educacionais, do ensino fundamental à pós-graduação, não cresceu, ela própria, tão tecnológica quanto os alunos que hoje precisa ensinar. Talvez daí decorra um obstáculo que é ao mesmo tempo árduo e fascinante: romper com a tradição de ensino secular em que apenas o professor fala, enquanto o aluno escuta.

Talvez também decorra daí a dificuldade que as universidades vêm enfrentando com relação ao uso de laptops e congêneres em sala de aula. Alguns professores de renomadas faculdades norteamericanas têm proibido seus alunos de assistir a suas aulas munidos de computadores ou tablets. Se por um lado os equipamentos facilitam o aprendizado, por outro são uma porta sempre aberta à dispersão e à perda de tempo.

Entretanto, em um cenário absolutamente invertido, pode ser justamente a tecnologia a extrapolar qualquer aglomeração fisicamente identificada (uma vila na Etiópia, uma escola no Brasil ou as renomadas universidades dos Estados Unidos, por exemplo) para criar uma classe verdadeiramente globalizada, sem fronteiras e de acesso praticamente universal – desde que se tenha acesso à internet.

Um dos exemplos mais bem-sucedidos da atualidade é a Khan Academy. O que começou com um jovem indiano que gravava vídeos para ensinar matemática a sua prima acabou por resultar em uma organização não governamental que disponibiliza cerca de 3.200 vídeos sobre praticamente qualquer assunto, de maneira gratuita, acumulando quase 164 milhões de aulas lecionadas à distância, em todo o mundo.

Diversos vídeos da Khan Academy já contam com versão em português e estão sendo usados experimentalmente em algumas escolas públicas brasileiras como ferramenta de ensino. Professores têm apontado maior dinamismo nas aulas e maior concentração por parte dos alunos como benefícios do uso do conteúdo da Khan Academy. Dificilmente o material didático interativo vai substituir o professor – como poderia parecer a partir de uma leitura simplista da experiência com os laptops na Etiópia. Mas a complementação parece um caminho inevitável.

MEiOs TECNOlógiCOs AVANÇADOs NÃO bAsTAM Não basta, no entanto, dispor dos meios tecnológicos para tornar mais eficiente o processo de aprendizado. Se não é apenas pela racionalidade que aprendemos, é necessário aproximar o ensino da sensibilidade dos alunos. Quanto mais o aluno for parte realmente ativa na produção do próprio conteúdo estudado – quanto mais o conteúdo for capaz de envolver pessoalmente o aluno – melhores serão os resultados.

Lawrence Lessig descreve, em seu livro Cultura livre, o projeto de Daley e Stephanie Barish, do Institute for Multimedia Literacy, para uma escola pobre de Los Angeles. Segundo Lessig, do ponto de vista tradicional da educação, a escola era um fracasso. Mas Daley e Stephanie criaram uma atividade que consistia em fazer os alunos se expressarem por meio de vídeos, narrando sua experiência com algo que conheciam muito bem: a violência urbana.

Lessig comenta que a aula acontecia nas tardes de sexta-feira, criando um problema novo e inesperado para a escola. Se na maior parte das disciplinas o desafio era fazer que os jovens aparecessem nas aulas, a dificuldade nessa disciplina era justamente fazer eles irem embora. “[Apesar de o horário da aula ser após o meio-dia], [eles] estavam chegando às seis da manhã e indo embora às cinco da tarde [...]. Os alunos trabalhavam com mais empenho do que em qualquer outra disciplina”, para fazer o que a educação supostamente deveria ensinar – aprender a se expressarem.

Ainda de acordo com Lessig, o projeto foi bem-sucedido em fazer com que os jovens se expressassem, com mais sucesso e poder do que se eles usassem textos. Barish chegou a afirmar que se fosse demandado aos alunos que escrevessem sobre determinado assunto, eles simplesmente deixariam para lá e iriam fazer outra coisa. Em parte, sem dúvida, porque se expressar em texto não é algo que esses estudantes façam naturalmente bem. Além disso, é provável que o texto escrito não seja o meio mais adequado para transmitir bem essas ideias. O poder da mensagem depende, nesse caso, da sua conexão com a forma de expressá-la.

Talvez esse seja o ponto central na aproximação inevitável entre educação e tecnologia. Os meios tecnológicos de hoje

sérgio brancoRazão e sensibilidade na sala de aula

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permitem uma adequação muito maior entre a forma de acessar o conhecimento disponível e o modo como os alunos são capazes de compreendê-lo e de transformá-lo, a partir de sua experiência, de sua sensibilidade.

A tecnologia do tempo presente nos liberta de séculos de escravidão a um determinado modelo educacional que tentava igualar todos os alunos, sem levar em consideração suas verdadeiras habilidades e vocações, sem lhes dar o direito de se expressar ou os mecanismos adequados para tanto. Quem sabe se agora, com as redes sociais, os blogs, os vídeos, as fotografias digitais, o remix, o mash up, a criação colaborativa e tudo o mais que vier a ser inventado a gente não possa dar razão a Anísio Teixeira para admitir que o futuro finalmente chegou. <

Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autor:Sérgio Branco, doutorado e mestrado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Pósgraduado em Propriedade Intelectual e em Cinema Documental. Professor pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio. É autor dos livros Direitos autorais na internet e o uso de obras alheias e O domínio público no direito autoral brasileiro.

Informações adicionais sobre a ilustração:O projeto “One Laptop per Child” (OLPC) – “um laptop por criança” – foi apresentado pelo Laboratório de Mídia do Massachusetts Institute of Technology em 2005 no Fórum Econômico Mundial de Davos. A intenção original calcou-se nesta iniciativa que se estende por vários países, mas que até o momento só alcançou níveis absolutos de penetração no Uruguai.

Em 2007 um decreto presidencial deu o pontapé inicial ao Plano Ceibal, que busca promover a inclusão digital com o fim de diminuir a brecha digital tanto em relação a outros países como entre os cidadãos do Urugai, de maneira a possibilitar um maior e melhor acesso à educação e à cultura.

(de:www.ceibal.org.uy)

sérgio brancoRazão e sensibilidade na sala de aula

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OxfORD EM MADRi

José Moreno Villa (1887–1955) “Vista da Residencia de Estudiantes”, desenho, 1926© Residencia de Estudiantes, Madri

Rilo Chmielorz

Do krausismo à Residencia de Estudiantes. E como foi que tudo continuou.

Berlim, 2012: quando se vai de metrô da Alexanderplatz na direção Hermannplatz, ouve-se sobretudo espanhol. É cada vez maior o número de jovens espanhóis que se sentem atraídos pela capital alemã. Apesar de bons diplomas universitários, eles não chegam a ter uma perspectiva profissional auspiciosa em sua pátria. A jovem intelligentsia espanhola é recebida de braços abertos na Alemanha.

Madri: quando se segue os rastros da história cultural e intelectual do modernismo na Espanha, chega-se, seguindo pela pequena Calle Pinar, no norte da capital, a um oásis verde distante do barulho agitado das ruas. Por trás de oliveiras e grandes arbustos de oleandro, fachadas vermelhas de tijolos brilham à luz do sol espanhol. Uma arquitetura despretensiosa, graciosa, edificada entre 1910 e 1915: a Residencia de Estudiantes.

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Em 1917, Luis Buñuel chega à Residencia na condição de “provinciano tímido e assustadiço”, e passa ao todo sete anos no lugar. Em sua autobiografia, escreve que tem absoluta certeza de que sua vida sem a estada na Residencia teria sido bem diferente. A Residencia é, nessa época, um lugar privilegiado. É tida como uma “ilha do modernismo”, que segue o modelo britânico e significa um marco no decorrer de um longo desenvolvimento que parte de um grupo de intelectuais que partilham as mesmas ideias e cujo objetivo declarado é estabelecer uma educação livre em uma instituição criada especialmente para tanto. A espinha dorsal desse movimento de reforma é o krausismo, batizado segundo o nome de seu pai espiritual, o filósofo praticamente desconhecido na Alemanha Karl Christian Friedrich Krause, natural da Saxônia-Altenburg, na atual Turíngia.

DO kRAUsisMO... Em 1860, Julián Sanz del Río havia publicado em espanhol o livro de Krause Das Urbild der Menschheit com o título de Ideal de la Humanidad para la Vida. Nessa época, o filósofo alemão, que jamais havia pisado em solo espanhol, já estava morto há 28 anos. Sua obra se compreendia como doutrina social humanista de cunho idealista inserida em uma assim chamada visão de mundo panenteísta. Uma data decisiva: pois de então em diante tudo deveria ser diferente na Espanha mística, que mal chegou a ser tocada pelo Iluminismo e na época continuava presa à escolástica medieval.

Em 1875, no entanto, alguns catedráticos de orientação krausista foram expulsos da Universidade Central de Madri. Eles teriam infringido o dogma católico em suas aulas e pesquisas. Entre os referidos catedráticos estavam os dois juristas Francisco Giner de los Ríos e Juan Sanz del Río.

O que havia acontecido? E quem era o homem que servira de fonte de inspiração para esse círculo? Karl Christian Fried-rich Krause, nascido em 1781, concebe o mundo como uma realidade harmônica, orientada organicamente, na qual a religião é espelho da cultura. O mundo é tido por ele como a poesia primitiva do espírito, e Deus como uma outra palavra para a harmonia do mundo. A partir desse espírito surge sua maior obra, a já mencionada Das Urbild der Menschheit. Cerne desta é o panenteísmo por ele desenvolvido, uma doutrina do tudo-em-Deus: Deus seria imanente ao mundo e ao mesmo tempo transcendente a ele, e o mundo por sua vez imanente a Deus e envolvido por Deus. O filósofo esboça uma reorganização harmônica da humanidade. A peça central da mesma é a sociabilidade primordial do ser humano. É ela que o leva a fundar uma família e a cultivar amizades, é ela que lhe possibilita criar estruturas sociais complexas. Virtude, justiça, beleza e religiosidade são as principais forças nesse processo. O progresso, segundo Krause, pode ser alcançado apenas se o ser humano agir socialmente: portanto não como indivíduo isolado, mas de modo conscientemente conjunto. Para a completude do ser humano é necessário, por isso, criar uma base através de uma educação plena, tanto para homens quanto para mulheres.

Apesar do grande número de textos que Krause escreve nos anos seguintes, jamais consegue chegar a uma cátedra universitária. No dia 27 de setembro de 1832, ele morre, aos

51 anos, em Munique. A partir de então são os poucos alunos de Krause, de seus tempos de professor privado, que retomam suas ideias e divulgam seus escritos. Passando por Paris, eles chegam à Espanha. Em Madri caem nas mãos do já mencionado jovem jurista Julián Sanz del Río.

A ideia filosófica fundamental de Krause se encaixa diretamente nas pretensões dos espíritos esclarecidos como proposta de solução para uma mudança social na Espanha, porque aponta para um caminho intermediário entre o materialismo, que justamente àquela época está em voga na Europa Ocidental, e a filosofia espanhola, que não consegue se livrar da escolástica. Os intelectuais espanhóis querem recuperar o Iluminismo sem romper com a religião. Para eles a filosofia de Krause é ao mesmo tempo interpretação do mundo e convite à ação. E nisso o foco principal está situado na educação plena de um “espírito livre”, pois apenas ele seria capaz de realizar uma revolução social.

Eis que a partir de então Francisco Giner de los Ríos dá cursos livres sobre a filosofia de Krause na Universidade de Madri todos os domingos. E assim acaba se estabelecendo um círculo krausista, que se transforma na forja renovadora do quadro de catedráticos. Os krausistas colaboram na nova Constituição de 1869 e na reforma do sistema penal em 1873. Alguns deles se tornam ministros. O próprio Giner atua como conselheiro do governo e inclusive lidera a reforma universitária. Nada é mais importante para os krausistas do que a libertad de la catedra, na condição de ciência “a serviço da humanidade”, conforme Giner o formula livremente seguindo Krause.

As forças conservadoras e a Igreja não podem tolerar algo assim, no entanto. Já em 1874 os ventos políticos passam a soprar em outra direção e uma época de restauración principia. Em 1875, chega-se então ao atentado à liberdade da ciência mencionado no princípio: Giner e todos os outros professores krausistas perdem suas cátedras. Sem demora, porém, os catedráticos desempregados decidem estabelecer o fundamento para uma instituição própria. Em 1876, é fundada a Institución Libre de Enseñanza, uma instituição acadêmica de ensino livre que oferece cursos de Filosofia, Direito e Pedagogia, e na qual também são formados professores. Giner tem esperanças em relação ao futuro.

No princípio do século XX, os ventos políticos mudam de direção outra vez com a ascensão do reformismo, e os krausistas retornam às instituições públicas. Em 1907, o novo governo liberal aprova uma lei para a construção da Junta de Ampliación de Estudios (JAE). Obviamente os krausistas fazem parte dessa comissão. A Espanha deverá enfim se tornar parte da história intelectual europeia e atingir o nível da pesquisa internacional. É criado um fundo de bolsas de estudo e encaminhado o projeto Residencia de Estudiantes.

… à REsiDENCiA DE EsTUDiANTEs Em 10 de outubro de 1910 a Residencia abre suas portas. Em pouco, todas as suas salas estão abarrotadas. Até 1915 é aberto um novo campus com prédios de moradia, laboratórios, sala de conferências, biblioteca e uma praça esportiva. A tarefa principal da Residencia de Estudiantes é reformar a universidade espanhola. Falta de tudo na mesma:

Rilo ChmielorzOxford em Madri

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não existem seminários nas ciências humanas, nem laboratórios nas ciências exatas e da natureza. O diretor, Jiménez Fraud, também krausista, defende a responsabilidade, a tolerância e a solidariedade, e também uma comunidade harmônica livre, pois os señoritos, os filhinhos mimados da burguesia, deverão se tornar gentlemen, e as señoritas mulheres cultas, e juntos eles haverão de tomar o futuro da Espanha nas mãos. Já em 1921 o inglês J.B. Trend se mostra surpreso: “Oxford e Cambridge em Madri! A Residencia praticamente suplantou as universidades inglesas!”.

Na Residencia impera um ambiente intelectualizado: diálogo aberto entre arte e ciência, aulas práticas nos laboratórios de pesquisa, cursos de língua, palestras, debates, sessões de música e de teatro à noite. Assim, a Residencia se transforma em quintessência da Espanha moderna, e além disso em fórum de debates da vida intelectual europeia de um modo geral. Em seus salões se encontram Albert Einstein, Paul Valery, Marie Curie, Igor Stravinsky, Alexander Calder, Walter Gropius, Henri Bergson, Le Corbusier. O filósofo José Ortega y Gasset se torna colaborador constante. Juan Rámon Jiménez, que mais tarde receberia o Prêmio Nobel de Literatura, é contratado como jardineiro.

Além disso há o laboratório de pesquisas fisiológicas da Residencia, dirigido por Juan Negrín. Ninguém ainda imagina que Negrín se tornará o último primeiroministro socialista da Segunda República em 1937, e que seu aluno Severo Ochoa receberá o Prêmio Nobel de Medicina em 1959. Os escritores da assim chamada Geração de 1898, como Unamuno, Valle-Inclan, Azorín – todos eles já haviam sido alunos da Institución Libre de Enseñanza – passam a ser convidados assíduos. Em meados dos anos de 1920 se forma a nova geração de poetas: a Geração 27, em torno de Federico García Lorca, Pedro Salinas, Rafael Alberti. La Edad de Plata principia.

Entre os mais famosos moradores da Residencia estão, além do poeta Federico García Lorca, nomes não menos importantes como o do pintor Salvador Dalí e do cineasta Luis Buñuel. E logo em seguida surge a revolucionária primeira obra cinematográfica surrealista da história: Um cão andaluz. Essa obra reúne aspectos do mundo intelectual da Residencia, bem como brincadeiras e chacotas dos amigos que ali desenvolvem um surrealismo em estado bruto. Buñuel escreve, depois de terminar o filme: “Todos os nossos caprichos na tela!”.

Pode-se observar o quanto arte e ciência se interpenetram mutuamente na Residencia quando, no ano de 1923, Albert Einstein chega às instalações do local e introduz os estudantes em sua Teoria da Relatividade. Pouco depois Buñuel escreve seu texto Por que eu não uso relógio, que é pontilhado de referências a Einstein.

E COMO fOi qUE TUDO CONTiNUOU Em 1936, a fase de desenvolvimento reformador chega ao fim repentinamente com o golpe fascista e o princípio da Guerra Civil. A maior parte dos krausistas vai para o exílio latino-americano. O êxodo da intelligentsia espanhola principiou há muito tempo (e desde 2009 vivencia, condicionado pela grave crise financeira e econômica na Espanha, sua reedição, e não apenas em Berlim).

Apenas sob o governo socialista de Felipe González nos anos de 1980 é que a Residencia volta a se tornar uma casa

cultural e interdisciplinar. Cultiva-se a herança de seus alunos famosos. Também o programa atual retoma a união entre arte e ciência. Além disso, a casa abriga o mais abrangente centro de documentação da história intelectual do modernismo na Espanha. Um belo e histórico triunfo para os krausistas. Pois de fato: essa história – como ela teria acontecido sem ele, sem Karl Friedrich Christian Krause? <

Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autora:Rilo Chmielorz (1954), artista multimídia, vive em Berlim e Madri. Dedica-se há anos a pesquisas sobre La Edad de Plata espanhola. Realizou uma reportagem radiofônica sobre a Residencia de Estudiantes e o krausismo e escreveu sobre o tema em DIE ZEIT e no diário Sächsische Zeitung.

Tradução do alemão:Marcelo Backes

Rilo ChmielorzOxford em Madri

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fORMAÇÃO DO bElO CARáTER

Wilhelm von Humboldt é tido como o pai espiritual do ideal humanista de educação. Seu monumento diante da Universidade Humboldt de Berlim foi “ocupado” durante uma manifestação em 2009. Foto: Hannibal Hanschke © dpa

Rosa Tennenbaum

Nossa moderna sociedade do saber tornou obsoleto o ideal de formação humboldtiano? Uma réplica.

Há anos foi proclamada a sociedade fundada no saber, mas desde então não nos tornamos mais sabidos, muito pelo contrário. Aumentam cada vez mais, por um lado, as notícias ominosas sobre a queda do nível de desempenho escolar, sobre a desorientação, sobre a crescente predisponibilidade para a violência, e por outro lado, as queixas sobre o saber bitolado, sobre o nível insuficente de formação profissional e sobre o crescente analfabetismo funcional entre os estudantes que adquirem o diploma escolar.

A sociedade do saber acelerou essa tendência. A formação se reduziu a profissionalização, o saber se tornou um pro-duto a ser fabricado, lançado, vendido e “gerenciado”, um

produto que rapidamente se torna obsoleto e deve ser conti- nuamente renovado. Ao mesmo tempo, importa cada vez menos se a pessoa sabe algo; o principal, cada vez mais, é onde podemos encontrar com presteza as informações desejadas. E é isso que se chama de “aprender a vida inteira”.

Na sociedade do saber, o que conta não é o saber, nem o conhecimento, muito menos a sabedoria; o que importa são os rankings, os mercados, os balancetes e a influência. A pessoa, todavia, não é um “capital humano”, não é uma mera peça da engrenagem econômica, cujo desempenho possa ser contabilizado num balanço. O ser humano tem outros potenciais a serem desenvolvidos. Isso requer, no entanto, uma outra compreensão

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de formação e uma outra compreensão de ser humano. Um esboço alternativo à nossa atual sociedade fundada no saber e na informação é o ideal de formação humanista de Humboldt.

A iDEiA DE fORMAÇÃO iNTEgRAl DE hUMbOlDT Wilhelm von Humboldt, nascido em Potsdam, em 1767, dois anos antes de seu irmão mais novo Alexander, e falecido em Tegel, nas imediações de Berlim, em 1835, era jurista, alto funcionário do Estado prussiano e estudioso da Antiguidade. Em dezembro de 1808, foi convocado – a contragosto – para chefiar o sistema educacional da Prússia, e – apesar de ter exercido o cargo apenas durante dezesseis meses – conseguiu criar os fundamentos para um sistema de ensino que revolucionou a educação na Prússia e gozou de uma fama extraordinária em todo o mundo até o século passado.

Ele compreendia o ser humano em sua totalidade. Em vez da mera transmissão de saber, Humboldt priorizava a formação; em vez de tipos de desempenho a serem acionados concretamente, ele enfatizava a modelagem integral da personalidade. Na definição de Wilhelm, a formação era uma “contínua interação do entendimento teórico e do arbítrio prático”. Saber é algo que pode ser incutido à força; formação, por sua vez, tem que ser engendrada pelo próprio aprendiz dentro de um processo subjetivo. Para tal, todas as faculdades do ser humano precisam ser escoladas, não apenas o entendimento. Devemos nos tornar indivíduos humanos belos, e para isso todas as potencialidades que trazemos conosco têm que ser homogeneamente desenvolvidas.

Wilhelm von Humboldt aponta quatro faculdades básicas que definem o ser humano: entendimento (Verstand), sentimento (Gefühl), visão (Anschauung) e imaginação (Einbildungskraft). O seu modelo tem como eixo o desenvolvimento do pensamento. No entanto, o pensar não é um processo objetivo, mas está intimamente ligado ao sentimento. É por isso que, além do entendimento, o ensino deve instigar todas as outras faculdades em igual medida.

Qualquer assunto tratado em aula deve, ao mesmo tempo, desenvolver o entendimento, aprofundar a visão e o sentimento, e incitar a imaginação. Por meio da visão, apreendemos impressões sensoriais do mundo exterior que, com ajuda da imaginação, serão associadas a percepções acumuladas no passado, compondo imagens novas em nossa psique. Aprender não significa dar duro; o aprendizado designa uma complexa interação das faculdades humanas básicas. “Toda atividade vital da mente consiste em apropriar-se do mundo, remodelá-lo em ideia e na realização dessa ideia no mesmo mundo ao qual sua matéria pertence”, afirma Humboldt. Somente quando assimilamos a matéria toda e a incorporamos apropriadamente, é que podemos não só evocá-la quando bem entendermos, mas ela também passa a nos pertencer, tornando-se nossa propriedade intelectual, da qual podemos então tirar proveito.

O desequilíbrio dessas faculdades leva necessariamente a imperfeições. Se o entendimento for treinado de forma unilateral, em detrimento do temperamento, estaremos educando funcionários do conhecimento e estudiosos bitolados.

Se o entendimento for negligenciado em prol do sentimento, acabaremos criando excêntricos bizarros. Essa é a diferença entre saber e formação integral.

Aprender significa estabelecer um vínculo entre o eu e o mundo, ou – como afirma Humboldt – “torná-los mais similares entre si”. O que lhe interessa é o processo de um discernimento crescente e de uma compreensão mais profunda e não os resultados concretos a serem tomados do aluno em sala de aula. Todo conhecimento assimilado serve, por sua vez, como base para se adquirirem outras ideias. A finalidade máxima da educação é converter “o empenho individual em uma totalidade e agregá-lo à ideia do mais nobre fim, da formação mais elevada e mais bem proporcionada do ser humano”.

“Quem apreende sempre precisa se tornar, de alguma forma, semelhante àquilo que ele quer apreender.” Precisamos afinar nossa mente e nossa alma no mesmo tom, para que os estudos sejam profícuos. A escolha de temas a serem estudados em aula é, portanto, de grande importância.

“Exercício das faculdades”: assim denomina Humboldt esse processo, insistindo na ideia de que o contato contínuo com ideias belas e formas perfeitas lima as arestas da nossa personalidade e, por fim, o nosso caráter acaba se igualando a essa imagem harmônica.

A iMPORTâNCiA DA filOlOgiA A filologia constitui a espinha dorsal do sistema educacional de Wilhelm von Humboldt, no qual o grego antigo tem uma posição de destaque. “A relação adequada entre receptividade e iniciativa de ação, a fusão interior do sensorial com o mental, a manutenção do equilíbrio e da harmonia na soma de todos os esforços, o direcionamento de tudo para a vida real e ativa e a revelação da sublimidade integral do indivíduo em toda a gama de nações e em toda a espécie humana – esses são por assim dizer os componentes formais da disposição humana, e eles se encontram no caráter grego...”. Esse ideal compreende, ao mesmo tempo, aquilo que – segundo Humboldt – deveria ser viabilizado pelo ensino.

Ao estudarmos grego, imergimos profundamente no mundo de ideias da Antiguidade. Para ele, o grego não era uma erudição alienada do mundo, mas sim um dos mais prementes âmbitos do cotidiano. Para ele, devíamos nos escolar segundo o espírito grego e nos tornarmos semelhantes a ele. Humboldt não cultivava o grego por mera euforia; o que ele defendia não era a imitação, mas sim uma continuidade criadora, com o objetivo de gerar algo próprio e grandioso. A imagem da perfeição da Antiguidade deveria servir de diretriz ao homem moderno.

CONTRA O UTiliTARisMO As condições encontradas por Wilhelm von Humboldt há duzentos anos têm semelhanças surpreendentes com as da sociedade do saber europeia de hoje. No contexto do Iluminismo, o pensamento utilitarista conquistara amplo espaço na política educacional. Todas as matérias que não prometessem uma utilidade imediata (“lastro de saber”) haviam sido banidas dos currículos. O mercantilismo em ascensão precisava de trabalhadores solícitos e a monarquia requeria súditos obedientes, e não cidadãos pensantes. O sistema de ensino fora fragmentado em inúmeros tipos

Rosa TennenbaumFormação do belo caráter

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diferentes de escola. Havia escolas de Latim, que preparavam os alunos para o ensino universitário, e havia escolas elementares, populares e rurais para o povo comum. A isso se somavam diversas escolas especiais, nas quais os alunos eram diretamente profissionalizados em seu futuro ofício.

A ideia de que um aluno só devia aprender na escola aquilo de que fosse precisar posteriormente na vida prática era considerada por Humboldt um mal a ser combatido com todo rigor. Sobretudo as escolas especiais eram repudiadas por ele. Nelas haviam se concentrado todas as tendências especializantes e utilitaristas, que ele considerava unilateriais e bitoladas demais, à medida que só exercitavam mecanicamente uma habilidade profissional. A sua acusação era de que essas escolas não cultivavam a formação, mas apenas estimulavam o treinamento e o adestramento; e nesse ponto ele farejava o antigo espírito de segregação das classes. Havia posições sociais distintas, a sociedade prussiana continuava sendo dividida em classes. Não era que Wilhelm von Humboldt combatesse a diferença de classes, ele apenas a ignorava completamente em sua política educacional. Ele rejeitava tanto escolas especiais para a nobreza como as simplórias escolas populares e rurais. Para ele, só havia uma classe de seres humanos e a formação e o tratamento a ser dado a todos eles deveriam seguir princípios idênticos.

A escola de Humboldt era a escola unitária. Em cada aluno, ele enxergava um ser humano em crescimento e não o futuro profissional ou cidadão do Estado. “É por isso que esse ensino geral tem o mesmo fundamento. O mais simples trabalhador remunerado diariamente pelo serviço executado e os estudantes com a mais elaborada formação devem ter o temperamento igualmente afinado, para evitar que aquele se torne tosco e se mantenha abaixo da dignidade humana, e que este acabe se tornando sentimental, quimérico e excêntrico, desprovido do necessário vigor humano.”

“Todas as escolas”, insistia ele, “devem ter como finalidade apenas a formação geral do homem. Tudo o que requerem as demandas da vida ou os ramos específicos de trabalho deve ser tratado à parte, após se ter adquirido uma educação geral e integral. Quando essas duas coisas se misturam, não se formam nem seres humanos íntegros, nem cidadãos íntegros de classes específicas.” O ser humano nem recebe uma formação abrangente, nem é adequadamente preparado para sua futura profissão, insiste Humboldt, considerando “uma monstruosidade” o vínculo dessas duas tendências.

(Após o término da formação escolar, quando o jovem ingressasse na vida profissional, a situação mudava totalmente de figura. Aí deveriam existir instituições especializadas de formação, nas quais o aprendiz seria instruído em todos os conhecimentos específicos e aptidões mecânicas de que necessitasse.)

ENsiNO DE líNgUAs PARA fORMAR A MENTE E O TEMPE-RAMENTO A filologia ocupava um lugar central no currículo escolar. Primeiramente, o estudante aprendia grego e latim, e posteriormente as línguas modernas (francês, inglês, italiano, espanhol, também russo ou hebraico, quando havia professores destes idiomas).

Pensar é um processo puramente mental e interior, que se exterioriza e se torna perceptível por meio da linguagem. Considerando que, na fala, a natureza sensorial do ser humano se associa à sua natureza mental, o ensino de línguas é ideal, portanto, para educar concomitantemente a mente e o temperamento. Isso se aplica primeiramente à língua materna. Quando aprendemos um idioma estrangeiro, somos introduzidos ao mesmo tempo em um outro imaginário, pois os diferentes povos seguiram caminhos diversos para se apropriar do mundo e da natureza e os representar. Essa é para Humboldt a razão de se ensinarem línguas, e não o pensamento de que elas posteriormente podem ser úteis ao estudante e permitir que ele se enquadre em uma classe salarial mais alta.

Ao lado das línguas antigas, “as matérias históricas e matemáticas devem ser tratadas juntamente com as filológicas, com o mesma qualidade e o mesmo zelo”. As ciências naturais, sobretudo a matemática, passaram a ser muito mais valorizadas, à medida que eram ensinadas segundo os mesmos métodos da filologia, ou seja, como ciências. Todo conteúdo ensinado em aula deveria ser tratado “de forma a mobilizar intensamente o ânimo e o temperamento”. O professor deveria ser entusiasmado pela matéria que estivesse ensinando e também ser capaz de despertar entusiasmo nos estudantes. Só assim se aprende. Só quando o entendimento e o âmbito de sensações, emoções e sentimentos estiverem igualmente envolvidos e mobilizados, o conteúdo a ser aprendido pode ser retido e gravado. Humboldt era contra aprender de cor o conteúdo, pois ele seria inevitavelmente esquecido, ou seja, um esforço desperdiçado.

Formar seres humanos, seres humanos e não futuros profissionais: essa era sua profissão de fé. A escola deveria fornecer ao estudante um amplo fundamento de formação e conhecimentos gerais, com os quais ele pudesse atuar livremente e adquirir fácil e rapidamente qualquer conhecimento especial e habilidade específica. Daria para dizer que essa seria a pessoa ideal para ingressar na vida profissional na nossa era moderna.

A RElEVâNCiA DE hUMbOlDT hOJE Quem estuda Humboldt fica imediatamente perplexo com a atualidade de suas ideias. Ele advertia que a escola não deveria se adaptar à realidade que a circunda; caso contrário, ela se tornaria um meio para a crescente incapacitação e desautorização do ser humano.

Foi isso que fizemos na Europa, e justamente com esse resultado. A escola não deveria se perder numa diversidade de conteúdos de formação, senão passaria a transmitir apenas conhecimento, em vez de propiciar formação. Parece que Humboldt intuiu a era da internet. Justamente diante do mar de informações e da imensidão de conhecimentos esparsos com os quais somos confrontados, concentrar-se em conteúdos fundamentais e formadores, como diria Humboldt, é indispensável para a sobrevivência do espírito. A quantidade de conhecimento compartimentalizado está acelerando a particularização do pensamento. Nós nos perdemos cada vez mais em pormenores e nos distanciamos cada vez mais de uma compreensão abrangente do mundo que nos cerca.

O ideal de formação de Wilhelm von Humboldt representa uma posição nitidamente antagônica às fabricadas pelos

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atuais especialistas em educação. Ele poderia lhes servir como estímulo, fornecendo respostas a questões urgentes. Isso depende, no entanto, de eles se disporem a apreender o novo – ou seja, “aprender a vida toda”. <

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Autora:Rosa Tennenbaum, germanista, é autora de numerosos artigos e ensaios sobre temas relacionados com a educação, a poesia alemã e a Antiguidade grega. Foi vice-presidente do Instituto Schiller. Atualmente vive em Berlim e é autora e recitadora.

Tradução do alemão:Simone de Mello

Rosa TennenbaumFormação do belo caráter

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qUANTO EsPíRiTO é NECEssáRiO NA EDUCAÇÃO?

Antroposofia como cosmosofia. “Se queres conhecer o mundo, olha para teu próprio interior. Se queres conhecer a ti mesmo, olha para o mundo.d Denken (pensamento) / F Fühlen (sentimento) / W Wollen (vontade). Redemoinho azul: conhecimento do mundo passado. Redemoinho laranja: conhecimento do mundo futuro.” Foto e © Rudolf Steiner Archiv, Dornach

Marcelo da Veiga

A educação não deve ser entendida como um meio para chegar a um fim, isto é, encontrar um bom emprego.

questões esquecidas nos debates atuais sobre o tema.

O Brasil está, atualmente, entre as economias que avançam e se desenvolvem com mais rapidez. O país nos últimos anos também investiu muito em educação, e em 2011 inclusive aderiu à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). A confluência entre economia e educação, que é defendida pela OCDE, no entanto, não raramente omite questionamentos decisivos atinentes à educação. No presente artigo, o acadêmico brasileiro especializado em filosofia da educação e reitor fundador da Alanus University of Arts and Social Sciences, na Alemanha, contempla algumas dessas questões “esquecidas”.

“Nós precisamos compreender por que uma grande porcentagem daqueles que fecharam os olhos ao assassinato de

seis milhões de judeus tinha títulos de doutor de algumas das ‘grandes’ universidades da época.”

Esta constatação toca o centro do assunto! Ela confronta o leitor com uma das questões mais graves da história da educação do último século. Como foi possível que na Alemanha, o país da educação e da cultura, houvesse tantos apoiadores “cultos” desse fracasso educacional e cultural sem precedentes? Por que a educação não foi capaz de evitá-lo de um modo efetivo? Muito já se pensou e se refletiu a respeito; no ano de 2010, o sociólogo norte-americano Parker Palmer e o professor de Física Arthur Zajonc fizeram esta pergunta mais uma vez com a publicação de The Heart of Higher Education: A Call to Renewal.

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A pergunta desta vez não é dirigida apenas aos alemães, mas antes inclusive ao público norte-americano e por extensão a todos os contemporâneos que pensam e que se ocupam da questão do ensino acadêmico e de seu futuro. Ela não se propõe a rediscutir a história, mas sim a indagar pelo futuro.

A iDEOlOgiA MATERiAlisTA DA EDUCAÇÃO Em meio às promessas da Declaração de Bolonha e dos processos de padronização do ensino, Palmer levanta uma questão incômoda e que muitas vezes é deixada de lado. Por mais que ela eventualmente cause vergonha, não deixa de ser produtiva em meio à confusão das sugestões e soluções que pretendem resolver os problemas da educação vividos no presente mas que apenas contemplam o progresso econômico e a preparação para a carreira profissional. O fato de alguém estudar para ser melhor do que os outros e assim ter melhores chances no mercado de trabalho se transformou em credo epistemológico no mundo inteiro, que é repassado quase como um refrão em comunicados sempre renovados da OCDE, para então fazer com que sejam repetidos de modo já praticamente mecânico pelos policy makers nacionais. O fato de a educação representar uma vantagem competitiva na luta universal pela sobrevivência vale, segundo esse ponto de vista, tanto para os indivíduos quanto para as nações. Seguindo-se as orientações da OCDE, a educação foi instrumentalizada não apenas no passado, mas também o é hoje em dia. Hoje não são mais as ideologias políticas do nacional-socialismo e do comunismo as responsáveis pela instrumentalização, mas sim a adequação pragmática e aparentemente inofensiva do homem às necessidades supostas ou efetivas da economia. O grande objetivo é o bem-estar econômico e a felicidade do homem. O que contudo passa despercebido nesse contexto é que sempre se pressupõe a forma atualmente dominante da economia como sendo a economia em si e sem alternativas. Essa se caracteriza como corrida ao enriquecimento global, disputada pelos indivíduos e pelas nações, que no princípio do século XXI levou o mundo a uma espiral de endividamento que gera compromissos financeiros impagáveis, e adiando o colapso financeiro somente através da ficção de um crescimento econômico constante e sem limites. Essa evolução é acompanhada, além disso, pelo estado de emergência ecológica sem precedentes resultante da predação sistemática da natureza. No que diz respeito à orgia global de endividamento e de desgaste dos países industrializados, governos de esquerda e conservadores aliás se estendem as mãos. Todos prometem bem-estar material imediato e nisso agem de acordo com o mesmo princípio: enjoy now and let others pay later!

O iDEAl EsPiRiTUAl DE EDUCAÇÃO Face a essa grassante miopia na educação, a pergunta deixada de lado, que Palmer e Zajong indiciam na obra, é aquela que dá conta do sentido da educação e de sua dimensão espiritual. Será que para viver bem e levar uma vida que tenha sentido basta treinar o homem apenas para a economia? Será que as coisas podem continuar assim, ou não é muito mais importante refletir acerca de como a educação deve ser no futuro, a fim de que o homem

contemporâneo possa lidar com as questões fundamentais de sua existência e do desenvolvimento social, mudando sua vida coerentemente sem que um sentido ainda lhe seja indicado de algum outro lugar? Conceitos educacionais via de regra são introduzidos hoje em dia por debates estruturais como o da Declaração de Bolonha de modo pragmático e aparentemente desprovido de qualquer ideologia. Por trás disso, no entanto, por certo se esconde uma ideologia bem materialista, segundo a qual o sentido da vida consiste meramente na sobrevivência material: a educação aparentemente cumpriu sua tarefa quando contribui à manutenção material da vida. Uma tal ideologia educacional evita as questões importantes e na verdade contribui tacitamente, ainda que prometa a felicidade, para uma desgraça ainda maior.

A educação acadêmica, porém, pode e deve fazer o contrário. Por mais que seja justo levar devidamente em consideração a divulgação pragmática de conhecimento e de habilidades, e além disso desfazer, por meio de reformas estruturais, barreiras nacionais e internacionais que obstruem o reconhecimento de competências e de diplomas, também não se pode esquecer que na educação, e hoje em dia mais do que nunca, se trata de investigar e compreender o ser humano. Para isso são necessários bem mais do que programas de estudo padronizados e convertidos em módulos e créditos. O debate contemporâneo acerca da educação deve partir de questões e conteúdos que dizem respeito ao ser humano como tal. O filósofo britânico Michael Dummett aponta para tais questões em seu escrito The Nature and Future of Philosophy conforme segue: “Há tantos problemas para os quais nós não conhecemos a solução: a relação entre mente e corpo, em que medida nossas ações são livres, o fundamento da moralidade, a natureza do tempo. O que é consciência, e será que poderíamos nos comportar como nos comportamos sem a existência dela? A consciência é possível apenas em organismos vivos, ou pode existir também em mentes desprovidas de corpo? Faz sentido acreditar na existência após a morte mesmo sem o corpo? Será que uma completa descrição dos eventos físicos incorporaria tudo o que há no universo, ou deixaria algumas coisas de fora? Sobre que pressupostos repousa a ideia de que alguém pode merecer as coisas boas ou ruins que lhe acontecem, e em que medida temos direito de fazer essas pressuposições? Valores morais devem ser discernidos do mundo natural, incluindo o mundo do comportamento humano, ou derivam de algum outro setor da realidade? Todas estas e várias questões paralelas são próprias da filosofia”.

PROCEssOs EDUCACiONAis ViVOs COMO iDEAl Tais questões não se encaixam nas normas da OCDE, e tampouco podem ser respondidas por um ensino cujos resultados são examinados em provas subsequentes de conclusão de módulo, para ao final das contas ser atestado como “skills and competences”. Trata-se de um modo bem diferente de questionar e aprender, que acompanha o ser humano durante a vida inteira e só aos poucos desemboca em um conhecimento que cresce com a vida e transforma a existência do mesmo ser humano. As questões que dizem respeito à essência e ao sentido da vida humana merecem

Marcelo da Veigaquanto espírito é necessário na educação?

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todo o cuidado hoje em dia, pois constituem as referências para as decisões sobre qual é o futuro e qual é a sociedade em que pretendemos viver. São questões que requerem tanto cérebro quanto coração, e apenas quando aquele que questiona muda a si e à sua vida e continua se desenvolvendo ao questionar é que as questões levam a respostas. Este modo de questionar, e o movimento educacional vinculado a ele, pode ser caracterizado com uma expressão cada vez mais divulgada no âmbito da língua inglesa, contemplative inquiry, ou quiçá também com outro conceito. O que se pretende é o estímulo e o desenvolvimento de atividades e habilidades espirituais, sobre cujo valor quem decide não é o mercado de trabalho, o Ministério da Educação ou qualquer outra instituição, mas sim a vida e o sentido real vivenciado na consumação da vida.

As iDEiAs DO REfORMADOR RUDOlf sTEiNER ACERCA DA “ARTE DA EDUCAÇÃO” Processos educacionais que incitem potenciais espirituais e tenham por fim levar a genuínas inovações científicas e sociais, e não mudanças previamente determinadas que apenas pretendam dar conta de sucessos econômicos: estes eram também a grande preocupação do reformador da educação Rudolf Steiner (1861–1925). A pedagogia Waldorf inspirada por ele pode se orgulhar hoje de uma propagação pelo mundo inteiro. Ela formula elevadas exigências didáticas aos professores, pois compreende a si mesma como “arte da educação”, cujas medidas e recomendações se justificam coerentemente a partir dos princípios que regem o desenvolvimento de um ser humano em crescimento. A pedagogia Waldorf como método pergunta: de que precisa um ser humano em termos de matéria de ensino e atividade de ensino para se desenvolver integralmente, tornando-se uma personalidade autônoma? Sem dúvida as medidas pedagógicas fundamentadas apenas antropologicamente precisam então ser colocadas também em relação com a respectiva realidade histórica e sociocultural. Mas o decisivo é que o ser humano em crescimento não seja adestrado apenas para cumprir um preceito político-ideológico ou econômico, mas sim considerado em seu potencial criador e inovador. Para tanto é necessário levar o ser humano a sério não apenas em sua dimensão biológica, mas também como entidade espiritual pessoal. Portanto, quem estuda a pedagogia Waldorf precisa aprender, além da especialidade necessária para as aulas na escola, também a se ocupar com o ser humano em sua complexidade física, psíquica e mental. O objetivo é aprender a contemplar de modo diferenciado o ser humano em seus processos de transformação e desenvolvimento, e a partir dessa capacidade de observação deduzir e aplicar as medidas pedagógicas adequadas.

Mencione-se ainda que esse princípio pedagógico reformador encontrou não apenas adeptos, mas também críticos. Por isso a Alanus University of Arts and Social Sciences em Alfter, nas proximidades de Bonn (www.alanus.edu), transformou recentemente em tarefa sua a tentativa de estabelecer o discurso acadêmico acerca das possibilidades e limites da pedagogia Waldorf em diálogo com a pedagogia universitária existente. Para tanto, criou um programa de pesquisa multifacetado e uma rede internacional abrangente com universidades da Europa, da

América Latina e da Nova Zelândia. Os resultados disso podem ser acompanhados no primeiro Peer Reviewed Journal acerca deste tema (www.rosejourn.com), sob o título “Research on Steiner Education” (ROSE). <

Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autor:Marcelo da Veiga é professor de Filosofia da Educação na Univer- sidade Alanus de Arte e Ciências Sociais (www.alanus.edu), nas proximidades de Bonn, da qual (desde 2002) é reitor fundador. Oriundo do Brasil, lecionou na Universidade Federal de Santa Catarina e foi assessor em questões educativas de diversas universidades particulares brasileiras.

Tradução do alemão:Marcelo Backes

Informações adicionais sobre a ilustração:Rudolf Steiner (1861–1925) e seus desenhos na lousa. Steiner, que primeiro gozou de consideração em círculos especializados como pesquisador de Goethe, filósofo e crítico literário e mais tarde se tornou mundialmente conhecido como antropósofo, artista e reformador social, foi também um pioneiro no campo pedagógico como criador das escolas Waldorf. Durante suas conferências, fazia com frequência desenhos na lousa com giz branco ou de cor, para explicitar com meios gráficos os conteúdos expostos. Graças à iniciativa de uma ouvinte entusiasta, a partir de 1919 as lousas passaram a ser forradas com um papel preto e os desenhos eram fixados após as palestras. Desse modo chegaram até nós mais de 1.000 desenhos com comentários seus que documentam o ideário de Steiner, em cuja tradição – submetida a uma reflexão crítica – se vê a Alanus University of Arts and Social Sciences.

Marcelo da Veigaquanto espírito é necessário na educação?

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“NOssA ORqUEsTRA é UM TEsOURO”

Músicos da Chiquitania (Bolívia), da série fotográfica “Bach in the Bush”. Foto e ©: Christopher Pillitz

Victoria Eglau

A partir do final do século xVii, os jesuítas estabeleceram a música como estratégia missionária na planície boliviana. Mas qual importância têm hoje

a formação artística e a educação musical para a integração social?

Santa Ana de Velasco é um pacato vilarejo na Chiquitania, no leste da planície boliviana. Na esverdeada plaza, as árvores toborochi brotam exuberantes em rosa escuro. Trezentas pessoas vivem em Santa Ana, mas o centro do vilarejo parece abandonado. A vida parece reinar apenas na igrejinha, de onde sons de violinos chegam até a praça.

Santa Ana é a menor das antigas missões jesuíticas na Chiquitania, uma região pouco explorada e coberta pela floresta tropical na fronteira com o Brasil. A igrejinha se assemelha às outras igrejas católicas da região: um telhado com águas bem inclinadas, sustentado por colunas de madeira pujantes, uma fachada pintada em tons de terra e, sobre o frontão, a cruz. Ao lado da igreja jesuíta, fica a simples torre do sino, de madeira.

Lá dentro, no interior da igreja esplendidamente decorada com entalhes de madeira e querubins rechonchudos, duas dúzias

de meninas e meninos estão afinando seus instrumentos. Como toda tarde, a orquestra de cordas de Santa Ana está ensaiando. As crianças e jovens se reúnem em pequenos grupos, com expressão concentrada. Então sentam-se diante do altar e tocam – um pouco desafinado mas com verve – a Sonata Barroca n° 8 do Archivo Musical de Chiquitos, de compositor desconhecido.

O arquivo, localizado no vilarejo Concepción, abriga o tesouro musical da Chiquitania: 5.500 páginas de partituras originais das missões jesuíticas. O arquiteto suíço Hans Roth as descobriu quando chegou à Bolívia no início dos anos 1970 para restaurar as igrejas jesuítas arruinadas. No entanto, foi a população indígena nativa que guardou as partituras após a expulsão da ordem católica. Em Santa Ana, por exemplo, o conselho indígena formado pelos mais velhos do vilarejo conservou 1.500 folhas de partitura durante mais de dois séculos no coro da igreja.

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Luís Rochas aponta para uma caixa envelhecida: “Era aqui que ficavam as partituras até serem levadas embora”. Rochas, chamado por todos de Don Luís, usa um boné sobre o cabelo farto e grisalho. Com 62 anos, ele é o músico da igreja de Santa Ana. Sobe lentamente a escada externa de madeira ao lado da igreja, no alto da qual, através de uma porta, chega-se ao pequeno coro. Lá embaixo, seu neto ensaia com a orquestra de cordas.

Na região boliviana, também chamada de Chiquitos, vivia originalmente uma mistura de diferentes comunidades indígenas. Como os conquistadores espanhóis encontraram lá cabanas de folhas de palmeiras com entradas muito baixas, deram aos nativos o nome de “os pequenos” (chiquitos). Atualmente, os moradores da região se chamam chiquitanos.

Quando, em 1767, o rei espanhol expulsou os jesuítas das colônias latino-americanas, suas missões na Chiquitania ficaram abandonadas. Durante cerca de oitenta anos a ordem havia convertido ali as pessoas ao catolicismo – e isso sobretudo com a ajuda da música. “Se nos agrada ou não: os jesuítas estavam convencidos de que tinham que anunciar o evangelho aos índios”, comenta o musicólogo Piotr Nawrot, de origem polonesa. Mas as missões também ofereceram aos seus habitantes proteção dos colonizadores espanhóis, que exploravam os indígenas em minas e em plantações.

JEsUíTAs DisfARÇARAM A REligiÃO “COM O MANTO DA MúsiCA” Nawrot, que não é apenas musicólogo, como tam-bém um religioso católico, conta sobre o pouco sucesso que inicialmente os jesuítas tiveram com seus esforços de evangelização – afinal, a população indígena tinha sua própria crença. Mas os índios adquiriram confiança quando os jesuítas reconheceram seu talento para a música. “Os missionários disfarçaram a religião com o manto da música. Isso agradou aos chiquitanos e eles próprios começaram a cantar e a tocar essa música”, conta Nawrot, que também dirige artisticamente o Festival Internacional de Música Renascentista e Barroca Americana, que ocorre a cada dois anos na Chiquitania.

Foram os frades que ensinaram a música vocal religiosa e a música instrumental barroca aos chiquitanos. O padre jesuíta suíço Martin Schmid não mandou apenas construir as singulares igrejas barrocas, ele também levou para as missões da Chiquitania as obras de seu confrade, o compositor italiano Domenico Zipoli. Em Córdoba (atual Argentina), onde Zipoli tinha se estabelecido, Schmid copiou a sua música. Giovanni Battista Bassani e Johann Josef Ignaz Brentner foram outros europeus cujas composições chegaram à atual Bolívia por meio dos missionários.

Sob a direção do padre Schmid, os habitantes da missão produziram violinos, flautas e harpas. “Os índios não conheciam a música europeia. Mas como eles tinham um grande talento e um bom ouvido, apropriaram-se dela”, esclarece Piotr Nawrot. E não somente isso: os habitantes das missões transformaram as sonatas, concertos e missas importadas de acordo com seu próprio gosto, e com o tempo trataram-na como se fosse sua própria música – assim nasceu o barroco das missões.

Piotr Nawrot foi o primeiro na Bolívia que pesquisou os arquivos musicais da Chiquitania e da região vizinha Moxos. Sua missão completamente pessoal: a música barroca boliviana deve

ser novamente tocada e tornar-se mundialmente conhecida. Quando as partituras conservadas pelos indígenas foram levadas aos arquivos, estavam amareladas e carcomidas por insetos, tornando-se quase ilegíveis. Mas nesse meio-tempo, especialistas bolivianos restauraram as partituras musicais no arquivo de Concepción. Aos poucos, Piotr Nawrot está transcrevendo e publicando a música das missões, para que orquestras e corais de hoje possam inseri-las em seu repertório.

“Os próprios índios resgataram e cuidaram dessa música até o nosso tempo”, salienta Nawrot e conta sobre os moradores da região de Moxos, que chegaram até mesmo a copiar repetidamente as partituras para que o clima úmido não destruísse a música. “Eles estavam conscientes do valor das partituras e se identificaram com esse tesouro. Nunca mais esqueceram essa música, como também não pararam de tocá-la”, diz o musicólogo, comovido.

Os cabildos, os conselhos dos indígenas mais velhos, são responsáveis na Chiquitania pelo acompanhamento musical em festas religiosas. De geração a geração eles passaram adiante as canções religiosas das missões. No coro, na igreja de Santa Ana, Luís Rochas toma seu violino reverenciosamente do estojo. Don Luís aprendeu sozinho a tocar violino somente há vinte anos, com mais de 40. Por muito tempo, ele havia sonhado em tocar até que pôde ter finalmente seu próprio instrumento.

“Um dos mais velhos me aconselhou a começar com uma canção fácil. Então comecei a cantar e a tocar a Canção à Glória do Santíssimo – no começo apenas em duas cordas. Em algum momento compreendi”, conta Luís Rochas sorrindo orgulhoso. Hoje, ele mesmo faz parte do cabildo e executa a tarefa tradicional de tocar música em louvor a Deus. Don Luís tira o boné da cabeça e arranha em seu violino o louvor. Lentamente e concentrado, ele canta a melodia excêntrica na língua chiquitana.

ChiqUiTANOs COMPUsERAM ObRAs REligiOsAs EM sUA líNgUA A música não é transmitida apenas oralmente como também por escrito em chiquitano. Nas missões jesuíticas dos séculos XVII e XVIII, missionários e índios compunham suas próprias obras. A maior parte das partituras contém textos em latim, mas há também peças religiosas para corais na língua indígena. Por exemplo: os Cantos chiquitaneses de um compositor anônimo que hoje pertencem ao repertório dos numerosos corais e orquestras da região.

Quando, em 1996, um grupo de gestores culturais da cidade de Santa Cruz realizou o primeiro Festival de Música Renascentista e Barroca Americana, ainda não havia sequer uma única orquestra na planície oriental da Bolívia. Naquela ocasião, foram convidados grupos estrangeiros que queriam tocar músicas barrocas bolivianas ainda pouco conhecidas. “Mas nosso objetivo era fazer com que os próprios nativos dominassem novamente a música das missões”, recorda Cecilia Kenning do Pro Arte y Cultura (APAC), responsável pela organização do festival.

O objetivo foi alcançado: por todo lado na Chiquitania, e também em muitos lugares das regiões vizinhas, as administrações municipais fundaram, nos dezesseis anos passados, escolas de música, orquestras e corais para crianças e jovens. Parte do conjunto é mantida pelo SICOR, isto é, Sistema de Coros y

Victoria Eglau“Nossa orquestra é um tesouro”

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Orquestras. O SICOR ensina música segundo o modelo venezuelano: em vez de aulas individuais de um instrumento durante anos, depois de um curto tempo os alunos já tocam na orquestra.

Nos vilarejos missioneiros Santa Ana, San Ignacio, San Rafael ou San José de Chiquitos, jovens músicos dão novamente vida ao legado dos jesuítas. A cada dois anos, eles se apresentam ao público do festival de música barroca com conjuntos internacionais de alto calibre. O acontecimento cultural mais importante da Bolívia hoje em dia atraiu, em abril de 2012, 50.000 visitantes nativos e estrangeiros para os concertos nas igrejas jesuítas restauradas da Chiquitania. Graças ao festival, as antigas missões, que a Unesco declarou em 1990 Patrimônio Cultural Mundial, tornaram-se ainda mais conhecidas como ponto turístico. Na Chiquitania, uma região com pouca infraestrutura que vive tradicionalmente da agricultura, da silvicultura e da pecuária, o turismo vem aos poucos avançando – mesmo se é penoso viajar por estradas rurais não asfaltadas.

REAViVAMENTO DO lEgADO MUsiCAl é “PROgRAMA sOCiAl” Pelo menos tão importante quanto isto é o fato de se abrirem novas perspectivas para os jovens. “O reavivamento de nosso patrimônio musical tornou-se um programa social”, relata Cecilia Kenning do APAC. Mais de duas mil crianças e jovens de famílias pobres recebem hoje uma formação em canto ou instrumento. “Eles têm a chance de fazer da música uma profissão, e muitos alcançam com isso mais prosperidade.”

Em Santa Ana, a orquestra de cordas tem trinta integrantes na faixa etária de 6 a 19 anos. Quase cada uma das cerca de noventa famílias no vilarejo manda pelo menos uma criança à escola de música. Mas geralmente são vários irmãos que aprendem um instrumento. “A aula de música é a única oferta de lazer fora da escola. Quando aprendem a tocar um instrumento, os jovens têm algo para fazer depois das aulas”, esclarece Vanessa Suarez, coordenadora de cultura dos municípios de Santa Ana e San Ignacio. Frequentemente, a orquestra de Santa Ana ensaia já das seis às oito da manhã. “Paixão e vocação verdadeiras” ocultam-se atrás desse empenho, afirma Suarez.

Eduardo Martinez tem 24 anos, toca na orquestra de cordas e é um dos três professores de violino de Santa Ana. Tímido, mas assertivo, ele diz: “Nossa orquestra é um tesouro”. Eduardo tinha 11 anos quando começou a aprender violino. “Naquela época, chegou um professor no vilarejo, e trabalhamos duro durante um mês. Depois disso, ficamos quase um ano sem professor e eu e meus camaradas continuamos a ensaiar em grupo. Hoje, seis de nós dão aulas em escolas de música.” Eduardo Martinez diz estar orgulhoso por tocar música das missões jesuíticas: “Ela foi composta aqui em nossa terra, a Chiquitania – em parte pelos nativos. Lemos e folheamos as partituras com respeito e com muito sentimento”.

Os habitantes da Chiquitania tiram autoestima e esperança do reavivamento de sua música barroca. Mas em seu dia a dia, a orquestra esbarra com frequência em limitações materiais. Faltam instrumentos para emprestar aos jovens músicos e acessórios como cordas para violinos. Apenas em Urubichá, um vilarejo na região vizinha de Guarayos, constroem-se instrumentos atualmente – assim como há mais de duzentos anos

nas missões dos jesuítas. Em Urubichá, encontra-se também o único instituto na planície boliviana que forma professores de música – patrocinado pela Adveniat, obra social católica para a América Latina, entre outros.

Não apenas organizações para o desenvolvimento como também artistas estrangeiros apoiam a nova geração musical. O flautista e dirigente britânico Ashley Solomon fundou o coral Arakaéndar com cantoras e cantores bolivianos especialmente talentosos. “Suas vozes têm uma gravidade rica e muito atrativa. Na minha opinião, esse coral tem o melhor som da América Latina ou até mesmo mais do que isso”, diz Solomon. Ele também fica empolgado com a prontidão dos jovens cantores, “ensaiando, aprendendo, se aperfeiçoando doze horas por dia”.

De volta ao coro da igreja de Santa Ana: Don Luís escuta seu neto, sentado agora sozinho diante do altar, tocando uma rápida sequência de notas no violino. O velho coloca seu próprio violino cuidadosamente de volta no estojo. “Estou feliz”, diz ele, “que os jovens mantenham viva nossa tradição. Quando um dia nós, os velhos músicos, não estivermos mais aqui, eles tomarão o bastão.” <

Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autora:Victoria Eglau (1970) estudou Politologia, História Moderna e Espanhol em Bonn e Madri. Trabalhou como jornalista radio-fônica em Colônia e Berlim. Desde 2007 é correspondente autônoma em Buenos Aires, de onde informa sobre temas políticos, culturais e sociais da Argentina e dos países vizinhos.

Tradução do alemão:Douglas Pompeu e Anna-Katharina Elstermann

Victoria Eglau“Nossa orquestra é um tesouro”

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fORMAÇÃO CUlTURAl

Eduard Swoboda, “Um pequeno rato de biblioteca”, óleo sobre tela sobre cartão, 1902

sibylle lewitscharoff

Convidada para escrever um ensaio sobre “Eros como princípio pedagógico”, Sibylle Lewitscharoff – considerada pela revista literária Literaturen em 2012 uma das escritoras alemãs mais importantes do momento – apresenta uma retrospectiva auto- biográfica, que sumariamente intitulou com o conceito “Formação

cultural”. “Eros” é aqui entendido platonicamente como o movimento que nos leva à sabedoria. Esse amor passional – atraído pelo belo, pelo verdadeiro e pelo bom – paira sobre sua ode ao saber universal obtido através dos livros.

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Um ou dois aninhos antes que aprendesse a ler, eu já era ávida por fingir que sabia ler. Lia jornal à noite para meu pai, folheando cuidadosamente as páginas do mesmo, como se estivesse procurando por algum artigo apropriado. Fazia uma cara de séria e aí começava. Meu pai se divertia muitíssimo com isso. Mas eu não gostava quando ele ria demais, pois minha representação era de natureza séria.

Eu fazia de tudo para não ser mais uma criança burra, para não ser pequena demais para isso e para aquilo. Eu era na melhor das hipóteses uma meia pessoa, que os outros ainda não acreditavam ter realmente juízo. Um ser excluído do mundo cheio de significados dos adultos. A palavrinha ainda me enfurecia com frequência. Isso você ainda não pode, para isso você ainda não tem permissão. Eu queria de qualquer forma saber tudo, poder tudo, crescer para provar isso de uma vez por todas aos adultos.

O que eu queria provar? Certamente que eu era mais esperta que todos eles juntos. E os livros se tornaram, tão logo eu consegui lê-los, a matéria adequada para adentrar com segurança o mundo dos adultos. É claro que comecei com livros infantis, mas rapidamente passei para Karl May, cuja obra inteira li durante os primeiros anos do ensino fundamental. E por total desespero até mesmo o volume Ich: Karl Mays Leben und Werk (Eu: vida e obra de Karl May), que me entediava, pois o próprio May não me interessava. Pois para mim era até mesmo muito desagradável o fato de o autor se colocar incomodamente entre as personagens, tirando delas desta forma seu caráter de realidade. Até hoje tenho uma certa aversão a biografias pomposas demais – nunca quero saber muito sobre os autores dos livros que amo.

Meus pais tinham formação escolar superior e prazer em ler, mas não foi através deles que fui introduzida no mundo dos livros. Não havia nenhuma pedagogia de leitura pairando sobre minha cabecinha de criança. Neste sentido, me deixaram em paz. O caminho para os livros foi trilhado por si só.

Aos 11 anos de idade, minha vida mudou radicalmente. Meu pai morreu e minha adorada avó, que me protegia e vivia no mesmo prédio, também morreu. Meu irmão foi viver em outra cidade para estudar. E minha mãe tinha que ganhar a vida. Como representante de vendas de medicamentos, ela viajava muito e vivia em seu mundo, obstinada com suas preocupações. Antes disso, eu havia sido uma criança consideravelmente protegida em meio a uma grande família. De repente, fiquei sozinha e abandonada.

Aí também os livros ajudaram. Mas agora, quase que repentinamente, apenas os livros para adultos, nada de literatura juvenil. Eu lia como se estivesse fugindo do diabo em pessoa, devorando montanhas de livros. E entre estes estavam também romances altamente conceituados, como por exemplo A montanha mágica, de Thomas Mann, e mais tarde Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust.

O amor pela literatura era um lado da coisa. O outro era o marxismo e a revolta estudantil, em cuja turbulência me envolvi aos 13 ou 14 anos. Em Stuttgart, foi fundado em 1966 o Club Voltaire, que exibia os primeiros filmes da Factory de Andy Warhol, o LSD era considerado a grande droga capaz de ampliar a consciência, uma promessa de felicidade por excelência. E eu

queria de qualquer forma parecer mais velha do que de fato era e participava de tudo. O desejo mais forte era o de fugir para Nova York abandonando de uma vez por todas a mofada Stuttgart para começar uma carreira como Factory-girl.

Mas tive, sim, que permanecer mais alguns aninhos em Stuttgart. As alianças de esquerda começaram a tomar cada vez mais espaço e rapidamente toda nossa sala de aula estava contaminada. Um colégio só de meninas, em sua maioria filhas de famílias ricas ou de classe média. A escola era tendencialmente liberal e os professores tentavam, de certa forma – bastante atônitos, embora com boas intenções –, dar conta do recado. Os combates políticos entre as discípulas dos diversos grupinhos de esquerda – havia trotskistas, maoístas, leninistas e sabese lá o que mais – eram travados em sala de aula. Tudo era incendiado pelas leituras marxistas, indispensável era naturalmente o chamado “Curso sobre O Capital”, com o qual várias de nós nos torturávamos já aos 15 anos.

Uma anedota curiosa talvez possa ilustrar como a potência intelectual era por nós calculada e admirada, como éramos ávidas por modelos de explicação do mundo, a fim de dar um xeque-mate nos outros. Aos 16 anos, deveríamos frequentar um curso de dança, o que a maioria de nós achava totalmente imbecil. Pulávamos de um lado para o outro ao som dos Rolling Stones e ficávamos perdidas com as baladas de Bob Dylan impregnadas da sabedoria vinda da idade. E agora deveríamos aprender a dançar foxtrote. A fim de encontrar uma classe de garotos (toda Stuttgart era naquela época dividida em colégios para meninos e para meninas), eram organizadas conversas preliminares e festinhas para que todos se conhecessem. Destas conversas participavam três representantes de cada uma das classes, em uma reunião de suma importância. Certa vez levei a Fenomenologia do espírito, de Friedrich Hegel, e coloquei em tom de provocação o calhamaço sobre a mesa. Ficamos esperando. Não houve nenhuma reação dos meninos. Com isso, a coisa estava resolvida para o nosso lado. (Desde então, depois de uma triagem como essa, ficou de fato complicado encontrar uma classe que ousasse querer dançar conosco.)

Meu amor pela literatura fez com que meu amor pelos grupinhos revolucionários da esquerda carrancuda esfriasse de novo. Me incomodava que os revolucionários tivessem tão pouco entusiasmo, no máximo por Bertolt Brecht, e de forma alguma por Thomas Mann, nem mesmo por Johann Wolfgang von Goethe ou pelos surrealistas franceses, nem... nem... Enfim, os fanáticos pela revolução eram, do ponto de vista literário, muito limitados. Quando terminei o ensino médio, minha chama revolucionária já estava quase apagada. Eu pelo menos não tinha mais vontade de receber ordens de uma trupe bolchevista a respeito do que e onde estudar, a fim de trilhar bravamente, como uma escrava, os caminhos para fazer a revolução.

Foi então que me mudei para Berlim Ocidental, um eldorado da liberdade em 1973, com apartamentos enormes e aluguéis baratos. Lá, acabei na Universidade Livre, por acaso na graduação de Ciências da Religião, algo do que nunca me arrependi. Ali era preciso ler coisas das quais eu nunca tinha ouvido falar antes, ou no máximo talvez soubesse pelo nome de que autor estavam talvez falando. Fiquei entusiasmada porque surgia para mim

sibylle lewitscharoffFormação cultural

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um campo totalmente novo de saber, temperado com textos de filosofia grega, teologia medieval ou pelos novos historiadores e filósofos franceses. E também a psicanálise, que havia sido banida pelos nazistas e depois trilhado um caminho difícil tanto no Oeste quanto no Leste alemão, tornava-se interessantíssima. Em suma, um novo empurrão violento de leitura, um turbilhão de ideias, que eram elaboradas, avaliadas, descartadas ou acrescentadas em acaloradas discussões noturnas.

E para não esquecer: o mais magnífico na nossa vida de estudante era que tínhamos tempo, muito tempo. Vivíamos com pouco dinheiro e podíamos, paralelamente, ganhar facilmente algum extra. O que seria de nós no futuro não era motivo de preocupação para nós, durante muitos anos. Nunca antes uma geração de estudantes tinha podido levar uma vida tão luxuosa quanto aquela. O que para muitas pessoas tinha consequências fatais, pois não conseguiram lidar com a liberdade extrema, caindo cada vez mais na depressão e no abandono. Mas quem tinha disciplina e sabia desfrutar da liberdade recebida de presente podia se aproveitar daquela situação única. Eu, por minha vez, não gostaria de ter deixado de viver aquele tempo. Havia alimento para o espírito para dar e vender. Discutia-se com afã e diversas formas de vida eram experimentadas. O que um jovem pode querer mais?

Nunca me deparei com a educação como algo compulsório. Nunca ninguém me obrigou a ler este ou aquele livro, a estudar isto ou aquilo. Verdade seja dita, nunca fui muito afeita à matemática, tinha certas dificuldades com a matéria, mas, na nossa escola condescendente, isso era visto com humor. Era até mesmo engraçado ser péssimo em uma matéria e, por outro lado, estar entre os melhores em outras. O CDF eterno, que brilha em todas as matérias, não angaria exatamente muita simpatia. Minha fome de educação sempre foi uma fome de livros, impulsionada pela vontade e pela curiosidade de saber mais sobre o mundo e sobre a complexidade do ser humano, enfim, mais sobre mim mesma.

O que é o belo, o verdadeiro e o bom nos livros? Alguns deles têm a força inerente de nos consolar, nos impulsionar e nos dar simultaneamente lições sobre o próprio homem, sobre a paisagem na qual ele vive, sobre as plantas e animais que o cercam, talvez até sobre o céu sobre suas cabeças, que esconde o maior dos mistérios. Viver dos livros significa sempre também viver dos mortos. A maioria dos escritores que adoramos, graças a Deus, já morreram. Ao nos alimentarmos de seus romances, dramas e poemas, fazemos um culto aos mortos de maneira especial. E são os mortos que nos sussurram por caminhos secretos como devemos viver e como devemos limpar nossos corações de todo o mal. Para além de todos os abismos, eles pelo menos dão uma ideia do que seria o bom, o verdadeiro e o belo. E nos fortalecem no desejo e também na bravura para levar uma vida sobre a qual reluza o brilho desta tríade sublime. <

Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autora:Sibylle Lewitscharoff (1954, Stuttgart) estudou Ciências da Religão em Berlim, onde vive atualmente depois de prolongadas estadas em Buenos Aires e Paris. Em 1998 recebeu o Prêmio Ingeborg Bachmann. Seu romance Apostoloff foi agraciado em 2009 com o Prêmio da Feira do Livro de Leipzig. Sua última obra publicada é Blumenberg (2011), que esteve entre as candidatas ao Prêmio Alemão do Livro. É membro da Academia Alemã de Língua e Poesia, bem como da Academia de Artes de Berlim.

Tradução do alemão:Soraia Vilela

sibylle lewitscharoffFormação cultural

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lEiTURAs EM DOMiCíliO E OUTRAs PONTEs PARA A AlfAbETiZAÇÃO

Biblioburro, Colômbia, 2007. Foto: Andrés Sarria Sanguino. (www.sanguino.co)

Rike bolte

Orelhas nas páginas dos livros contra a falta de hábito de leitura na Alemanha e na América latina.

Aludindo à expressão alemã Eselsohren (que significa literal-mente “orelhas de burro”, mas se refere em sentido figurado às “orelhas”, às dobras acidentais ou voluntárias nos cantos das páginas dos livros, sinal de seu uso ou marca de leitura), o autor barroco Johann Ulrich Megerle (conhecido como Abraham a Sancta Clara, 1644–1709) esclarece que, ao ler a palavra Esel (burro) de trás para frente, ela se transforma no imperativo lese! (leia!). O popular poeta e pregador, cujas palestras cheias de jogos de palavras cativavam milhares, esclarecia que ler livra do “Funil de Nuremberg”, ou seja, do aprendizado mecânico.

E como é hoje – quando internalizamos a revolução digital e, diante da tela, esquecemos frequentemente o que olhamos, ouvimos e lemos durante o tête-à-tête com essa vitrine virtual, quando é que nós mesmos fomos produtivos ou quando é que clicamos (compramos) paralelamente algo desse universo de bens conectado?

Há necessidade de sermões para nos advertir que temos pouca afinidade com a leitura, nós, que em nosso cotidiano de informação digitalizado pelo menos cultivamos constantemente microleituras?

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Debatemos muito sobre a questão de se a tela de compu-tador está ou não tomando o lugar da página do livro. Trata-se no caso de avaliar a mudança de paradigma midiático que vem se delineando; com o estado concreto do hábito de ler e do prazer pela leitura, ocupam-se avaliações e projetos de fomento como, por exemplo, o estudo “Leselust in lesefernen Familien” (O gosto pela leitura em famílias sem afinidade com os livros), da Universidade de Leipzig (2008). Resultado: na Alemanha encontram-se em todos os níveis de escolaridade famílias em que ler e ler em voz alta não representa “nenhuma prática cultural cotidiana”. A ideia de que se pode crescer (proveitosamente) rodeado por livros e a pergunta sobre o que poderia ser eficaz contra a falta de hábito de ler foram tratadas aqui no contexto de uma Alemanha que se reconhece como um país de cidadãos cultos.

Mas em 2010, a Universidade de Hamburgo chegou a um diagnóstico certamente agravante com o estudo “leo”. Cerca de sete milhões de alemães apresentam analfabetismo funcional; e 4% da população é mesmo completamente analfabeta. É certo que avançamos ao nível mais alto de uma sociedade da informação, no entanto vêm se tornando conhecidos números alarmantes sobre o estado da educação em nosso país... Concomitantemente, em feiras, nos cadernos de cultura e em estabelecimentos de ensino fala-se sobre o valor dos livros.

Qual seria então a situação da América Latina, onde o analfabetismo não é tão visto como tabu como na Alemanha e, além disso, é calculado e identificado de outra maneira (na Nicarágua existem cerca de 30,3% de iletrados, na Bolívia 9,4%, no México 7,2%, na Colômbia 5,9%, na Argentina 2,4% – como mostra o anuário estatístico de 2010 da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe [CEPAL])? Quais iniciativas funcionam contra a falta de hábito de ler e a favor do gosto pelos livros, transmitindo o potencial integrativo do conhecimento da escrita e da leitura?

Em março de 2011, participei no México, no âmbito do intercâmbio internacional de poesia Enclave, nas assim chamadas “lecturas a domicilio”. Encontramo-nos em Colima com jovens que possibilitam o “Mes Colimense de la Lectura y del Libro”. O escritório deles estava localizado em uma praça pública e encontrava-se bem equipado. Vestimos logo camisetas com o lema do projeto, fomos rapidamente instruídos de que se tratava de levar livros à população com pouca instrução – e começamos com uma volta pelas escolas públicas. Fomos autorizados a interromper a aula para ler poemas em qualquer língua que quiséssemos. As crianças largavam o lápis. Depois dessa volta pelas escolas, nas quais deixamos livros em todas as classes, seguimos em direção aos barrios populares e batemos de porta em porta. Será que poderíamos ler poemas aqui também? Um mecânico se desfez de sua chave de boca e foi buscar seus companheiros. Um de nós leu em voz alta um poema em sueco. Distribuímos os livros (em espanhol) e seguimos adiante. Em todo lugar, abriam-nos portas e portões. Paramos em quintais na sombra de árvores, em cozinhas diante de fogões à lenha. À tarde, voltamos ao nosso ponto de partida e ali encontramos alguém sentado com um livro na frente de casa lendo para si mesmo em voz alta, com o livro de ponta-cabeça. Também

poderíamos ter deixado com ele o volume de poesias suecas, pensei, e minha imaginação me levou longe até a minha terra: leituras em domicílio, por exemplo, em um bairro problemático como o berlinense Marzahn, levando poemas em espanhol, alemão e sueco na mala. Quanta conversa – arte retórica ou de persuasão, ou mesmo quanto desbocamento – seria preciso para levar a arte da língua escrita para dentro das casas, para mobilizar o gosto pela leitura?

“Lectura a domicilio” poderia significar em alemão Heim-Lesung ou Haus-Lektüre. Eu conhecia até então o conceito de Haus-Lektüre (leitura a ser feita em casa) apenas da didática, uma forma de tarefa escolar ou universitária. Entretanto, o escritor mexicano Tryno Maldonado prescreveu na revista digital Cuadrivio um “suplemento vitamínico de leitura” que consiste em dez títulos de livros que talvez tenham lhe salvado a vida, e uma leitora quis saber: “O doutor não faz leituras em domicílio?”.

Parece que o conceito de trabalho e de iniciativa para diminuir em casa a falta de hábito de leitura decolou no México e até recebeu uma aura profissional.

De fato, na América Latina os projetos para a democratização do letrismo são muito difundidos. Na Argentina, María Héguiz mantém desperta há muitos anos a tradição da lectura oral, honrando ao mesmo tempo a mídia livro. Ela gerencia uma “biblioteca oral circulante” e se aproveita da força performativa da leitura em voz alta para despertar o gosto pelos livros. Além disso, participa, por exemplo, na “Caminata por la lectura”, uma marcha da leitura que, sob o lema “despertar la voz”, procura estimular a leitura comunitária e uma discussão oral sobre o livro, tornando pessoas em comunidades distantes de bibliotecas protagonistas de uma prática cultural que nunca é corriqueira o bastante.

Uma outra microiniciativa eficiente de leitura acontece na Colômbia. Ela nos leva de volta à supracitada tese barroca sobre a leitura, pois recorre literalmente ao burro. Trata-se do Biblioburro, uma invenção de Luis Soriano, que nos fins dos anos 1990 carregou com livros os burros Alfa e Beto e se deslocou para a parte caribenha da Colômbia, a comunidades distantes muito afetadas por conflitos semelhantes aos de guerras civis, para habituar crianças à leitura. Sua biblioteca, que de setenta livros cresceu para aproximadamente cinco mil títulos, é constituída em primeira linha de romances de aventura, mas também de obras de consulta e dos melhores momentos da grande literatura latino-americana. Em uma das viagens com os livros, Soriano conta que foi assaltado e teve que entregar um romance de Paulo Coelho. Não só os assaltantes, mas também a crítica popular local o atacava – até que o jornalista americano Larry King ressaltou que Soriano é um herói, pois salva crianças do analfabetismo.

Para finalizar esta excursão demasiado breve pela afinidade dos latino-americanos com os livros, gostaria de saber quantas orelhas (sobre as quais Abraham a Sancta Clara também refletiu) ornam, nesse meio-tempo, as páginas dos livros da biblioteca do burro. No entanto, eu volto à tela do computador e dou prioridade a um comentário no Taringa, uma comunidade virtual de troca de informações: “Demais o Biblioburro! Levando instrução sobre o lombo de burros!”. <

Rike bolteleituras em domicílio e outras pontes para a alfabetização

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Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autora:Rike Bolte (1971), doutorada pela Universidade Humboldt de Berlim, é “Akademische Rätin” na Universidade de Osnabrück, tradutora do espanhol e cofundadora do Festival Itinerante de Poesia Latino-americana “Latinale”. Publicou artigos científicos e jornalísticos sobre literaturas e culturas latino-americanas e é também autora de contos e crônicas. Com Ulrike Prinz, publicou em 2011 pela editora J. Frank Verlag, de Berlim, Transversalia. Horizontes con versos/Horizonte in verkehrten Versen.

Tradução do alemão:Douglas Pompeu e Anna-Katharina Elstermann

Informações adicionais sobre a ilustração:O biblioburro. “A série de fotografias sobre o biblioburro não é mais que uma homenagem ao professor Luis Soriano e seus burros Alfa e Beto que, num povoado qualquer perdido no mapa e composto por uma quantidade de casas que cabe nas mãos, nos ensina o que se pode fazer com amor pelo ensino. La Gloria (Colômbia) tem sua própria escola, mas não tem biblioteca, do mesmo modo que o resto dos povoados das redondezas. Todos os fins de semana, por fora de seu trabalho acadêmico, Soriano se levanta de madrugada para levar conhecimento às crianças dos povoados próximos. Carrega no lombo dos animais os livros que andou coletando durante vários anos e que lhe foram doados. E empreende uma viagem de vários quilômetros ao encontro dessas crianças que esperam as mágicas histórias das letras, para devorar os livros em meio ao campo.” (Andrés Sarria Sanguino)

Rike bolteleituras em domicílio e outras pontes para a alfabetização

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MARiPOsA, OU O PODER TRANsfORMADOR DA ARTE

Alfred Meyerhuber, símbolo emblemático de MARIPOSA. Foto e ©: Andreas Weber

Ulrike Prinz

Em 1984 o casal de galeristas Helga e Hans-Jürgen Müller desen- volveu a ideia do projeto ATLANTIS/MARIPOSA. Do gigantesco esboço ATLANTIS de Leon Krier, que pôde ser visto na documenta IX, resultou um projeto mais modesto, ainda que não menos ambicioso: MARIPOSA. Este inseto, símbolo da metamorfose, simboliza reorientação do pensamento e transformação social. A escolha do lugar foi feliz: a oficina do futuro MARIPOSA está localizada em Tenerife, o ponto mais sul-ocidental da Europa – entre os continentes da África, Europa e América do Norte. Distante dos centros turísticos, estende-se por uma superfície de 25.000 m2 uma paisagem artificial única, criada e ao mesmo tempo desenvolvida por obra de mais de 50 artistas das mais diversas procedências. Ali surgiu um think tank inspirado pela beleza no qual o coração e o entendi-mento – segundo a intenção dos fundadores – devem unir-se em benefício de uma razão mais elevada.

Nesse lugar realmente privilegiado, onde arte e natureza se enlaçam, reuniram-se especialistas em economia, política e ciência, bem como artistas, filósofos e pensadores não convencionais. O que os Müllers se haviam proposto era nada menos do que mudar o mundo mediante o poder transformador da arte. Se até há pouco a educação entendida como gosto pelo belo era tida como um pretensão pouco séria, uma exaltação, MARIPOSA hoje está de novo muito adiante de seu tempo, desde que tanto a filosofia como as neurociências (re)descobriram o campo dos sentimentos. Muitos grandes nomes visitaram MARIPOSA nos últimos anos, mas Helga Müller deposita suas esperanças sobretudo na juventude, que deve formar-se – longe de seus computadores e telefones móveis – por meio da observação e da vivência diretas. Pois quem melhor do que ela poderia dar forma a nosso futuro? <

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A piscina que, com seus sete assentos de pedra, é por sua vez uma “sala de reuniões da diretoria” muito singular. Foto e ©: Andreas Weber

“Escada dourada”, segundo uma ideia de Hans-Jürgen Müller. Foto e ©: Andreas Weber

Ulrike PrinzMariposa, ou o poder transformador da arte

Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autora:Ulrike Prinz (1961, Munique) é etnóloga e redatora. Entre 2001 e 2004, deu aulas sobre temas latino-americanos na Universidade Ludwig Maximilian de Munique. Desde 2007, é corresponsável pela redação da revista HUMBOLDT.

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CONfissõEs íNTiMAs DE UM PARTiCiPANTE DE “MERCADO NEgRO”

Hannah Hurtzig: Academia Móvel, no teatro HAU1 (Hebbel am Ufer), Berlim, 2009. Foto: Thomas Aurin

Wolfgang behrens

sobre a “Academia Móvel” da dramaturga hannah hurtzig.

O ponto de encontro parece maravilhosamente secreto: o camarote de um teatro. Ao encaminhar-me para lá, pouco antes das 21 horas, sinto que estou um pouco nervoso. Compreensível, pois naquele local ao mesmo tempo escondido e público deverei encontrar uma mulher que nunca vi antes na vida. Além disso, paguei (não muito) para poder encontrar-me com ela. Ela me dará uma lição. Assim, meu coração bate um pouco mais rápido quando subo correndo os degraus do foyer para não chegar atrasado. Sinto-me um pouco como um adolescente antes de encontrar a primeira namorada.

Na verdade, a situação aparentemente um tanto duvidosa faz parte de um evento da “Academia Móvel”. Quem criou essa instituição que se move em algum lugar na interseção entre a transmissão de conhecimento e a performance, entre universidade popular e teatro, foi a dramaturga alemã Hannah

Hurtzig. Não é nenhuma aventura amorosa que está à minha espera no camarote, e sim uma escritora cuja expertise eu “contratei” por 30 minutos. Ela me ensinará algo sobre o tema romantismo da palavra e nostalgia durante a leitura. E como “ensinar” lembra escola, o nome correto é “consultoria”. Também não está mal.

Mesmo assim, há algo de curiosamente íntimo em nosso encontro. Participei antes de uma ou outra leitura pública de escritores, de uma ou outra palestra de artistas, comportadamente sentado em salas de maiores ou menores dimensões – de um lado, o público em silêncio, do outro, o compositor ou poeta distante dos pobres mortais, tanto física quanto espiritualmente. Mas agora a escritora está a um palmo de distância, e no camarote apertado simplesmente falta o espaço que gera o distanciamento. Depois que ela leu para

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mim um excerto de um romance ainda inédito, começamos a conversar. Ela me fala de suas reflexões sobre as conexões e as interpenetrações entre linguagem e emoção, falamos sobre intuição e ofício. Trinta minutos depois, deixo o camarote com a agradável certeza de ter ficado um pouco mais sábio.

Naturalmente não estamos a sós no teatro. Em todos os cantos e recantos acontecem conversas semelhantes. No palco, por exemplo, há uma tenda semitransparente e iluminada por dentro em que outros “especialistas” estão sentados, dialogando. Seus contornos são nítidos no tecido da tenda, formando uma bela imagem. O som de conversas em tom baixo e a atmosfera de uma atenção concentrada preenchem o teatro. E se o visitante resolver simplesmente olhar as conversas e escutar o murmurar das vozes sem distinguir as falas, o evento ganha subitamente uma dimensão estética inesperada. Para citar Immanuel Kant, é possível passar horas percorrendo os espaços com prazer desinteressado, doando-se à beleza. À beleza da troca de conhecimento.

Hannah Hurtzig inventou um nome ótimo (por seus vários significados) para o tipo de evento que estou visitando: “mercado negro do conhecimento e do não conhecimento útil”. Por que mercado negro? Será que o conhecimento que se pode adquirir aqui é mercadoria falsificada, meio ilegal, será que fica ao largo das grandes veias do conhecimento oficial? E o que seria o não conhecimento? Seria esse o aspecto estético da coisa, ou será que aqui também me contarão coisas nas quais eu não deveria acreditar? Cuidado, sussurro para mim mesmo, quem sabe essa escritora é uma hábil mentirosa... E será que o não conhecimento também é útil, ou o atributo se refere apenas ao conhecimento?

Mas antes de quebrar a cabeça com essas questões é melhor colocar o fone de ouvidos e sintonizar uma das conversas em curso. Pois no início cada visitante recebeu um desses equipamentos em que se pode clicar diferentes canais para ouvir as conversas ao vivo. Então eu não estava tão recluso com a minha escritora no camarote. Possivelmente, centenas de visitantes entraram no canal 9 no momento em que fiz minha pergunta mais burra. E quando finalmente consegui fazer uma intervenção inteligente, todos foram ouvir a conversa dos especialistas em futebol sobre torcedores. Ou um diálogo sobre ressonância magnética.

Os “mercados negros” de Hannah Hurtzig fazem sucesso desde 2005 nas mais diversas cidades europeias – Berlim, Viena, Varsóvia ou Istambul. Geralmente, os “especialistas” e os “clientes” sentam-se em mesas compridas uns diante dos outros (o evento berlinense que visitei diferiu significativamente deste modelo). Mas a constelação do diálogo a dois, que substitui a palestra unilateral, é elementar para o conceito da dramaturga. “Há algo de fascinante em observar o rosto de alguém que escuta“, disse Hannah Hurtzig em uma entrevista. “Você está entregue nessa concentração em outra pessoa. Muitas vezes o interlocutor tem uma expressão de rosto entre o burro e o beatificado. Como um santo ou uma santa. De qualquer forma, no mercado negro tratase mais de falar do que escutar. Qualquer pessoa pode se tornar um ‘especialista’, basta prestar bastante atenção.”

Claro que seria grandioso poder um dia encontrar o próprio Sócrates nesse “mercado negro do conhecimento e do não conhecimento útil”. A famosa “arte de parideira” do filósofo grego – a arte de extrair conhecimento e não conhecimento do interlocutor em vez de impingir sabedoria a ele – é, digamos, o lema dos mercados negros de Hurtzig. Na melhor tradição de Sócrates, o conhecimento se apresenta como algo inacabado que não cabe dentro de um verbete, e sim algo que precisa sempre ser renovado e renascer através do diálogo. Conhecimento que não é comunicado é conhecimento morto. O verdadeiro arquivo do conhecimento é o homem, e ele é vivo.

E já que estamos falando de arquivo: a “Academia Móvel” disponibilizou um bom número dos diálogos dos mercados negros on-line (www.mobileacademy-berlin.com). Dessa forma, dois anos depois de ter recebido a “consultoria” da escritora, eu pude ouvir nosso encontro na internet, o que foi um choque. Nada de intimidade no camarote! O privado é público.... Para ser bem honesto: se eu soubesse que não iria apenas conversar com uma senhora desconhecida, mas ter uma conversa que entraria no arquivo de conhecimento da eternidade virtual, teria ficado muito mais nervoso. <

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Autor:Wolfgang Behrens (1970), jornalista autônomo, estudou Musicologia, Filosofia e Matemática em Berlim. Desde 2007 é redator de nachtkritik.de, influente portal de teatro em língua alemã. Publicou um livro sobre Einar Schleef e um sobre Fritz Marquardt, ambos diretores de teatro.

Tradução do alemão:Kristina Michahelles

Wolfgang behrensConfissões íntimas de um participante de “mercado negro”

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“Toda Mafalda”, Ediciones de la Flor, 1993. © Joaquín Salvador Lavado (QUINO)

Ricardo bada

Gostaria de ressaltar em Mafalda um aspecto de sua personalidade do qual quase nunca se fala, se é que alguma vez dele se falou. Ela é bastante patriota, até o ponto de existir uma tirinha onde ela, em três quadros consecutivos, aos berros e com a insígnia nacional balançando ao peito grita “Viva a pátria!”, fazendo com que o pai lhe pergunte o que está acontecendo, já que não é nenhum feriado nacional. Mafalda lhe responde: “Que importância tem isso? Eu amo a pátria todos os dias e não quando o calendário dita!”.

Com isso, estou querendo de certa forma dizer que a escolarização deve ter sido para ela uma alegria: içar a bandeira nacional, cantar o hino, toda esta parafernália diária deve ter lhe feito muito bem. Mas...

Existe uma outra tirinha sua onde, na escola, ela canta a plenos pulmões uma canção patriótica que diz assim: “ O sol da pááááátria / brilhou com fulgoooor / enchendo as aaaalmas / de cristalino amoooooor ”, e quando termina de cantar, ela se dirige à professora para perguntar se não poderiam cantar... o quê será revelado no último quadro, quando chega em casa e diz para a mãe: “Mamãe, consegui uma entrevista para você amanhã às oito sem falta, para falar com minha professora de Música sobre os Beatles”. E umas quinze tirinhas depois, vemos a professora de História corrigindo os deveres entregues pelas alunas sobre o tema “As invasões inglesas”, sendo que uns quadros mostram os trabalhos apresentados por Maruja e Beatriz, com cenas de guerra, bandeiras e violência física, enquanto na

MAfAlDA VAi à EsCOlAbernard shaw disse certa vez que teve que

interromper a sua educação porque o escolarizaram.será que Mafalda, a mais fértil invenção da mente de quino,

poderia assinar embaixo deste paradoxo?

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tarefa de Mafalda vemos dois hippies felizes, emoldurados pelas legendas “Viva os Beatles! E os Rolling Stones!”.

Quer dizer, o patriotismo de Mafalda não é cego, e terminamos de comprovar isso na tirinha onde ela diz ao Felipe: “Se a professora não ficasse chateada, eu escreveria uma composição somente com perguntas. Amamos o nosso país porque nascemos aqui? Os turcos amam a Turquia porque nasceram na Turquia? Os suecos amam a Suécia porque nasceram na Suécia? Os javaneses amam Java porque nasceram em Java? E colocaria o título ‘Patriotismo e comodidade’”. Mais claro, só água.

Umberto Eco disse que “Mafalda pertence a um país cheio de contrastes sociais que, no entanto, quer integrá-la e fazê-la feliz”. Entretanto, de quase duas mil tirinhas, não chega a meia dúzia as que mostram os contrastes sociais no seio da sociedade argentina dos anos 60, e a única tentativa que seu país faz para integrá-la é a que fazem todos os países com seus cidadãos indefesos a partir dos cinco anos: escolarizá-la.

(Valhe um adendo sobre a crítica ao desastre que são as instalações escolares, mostra clara da negligência do Estado. Na tirinha 1.129, quando soa o sinal do recreio, e diante das paredes rachadas, dos telhados estragados, dos tubos furados, Mafalda comenta com Felipe: “É incrível como os decoradores do Ministério da Educação conseguiram imprimir o mesmo estilo a todas as escolas”).

São quase cem tirinhas onde aparece a escola, seja fisicamente, seja mencionada pelos personagens do microcosmo mafaldiano, e o resumo que podemos fazer, depois de repassar uma a uma, é que o sistema escolar está atrasado alguns aninhos-luz em relação a essa nova aluna. Isso fica muito claro quando vemos Mafalda com a mãe em frente a uma loja. O dono lhe pergunta como se chama e se ela vai à escola. Mafalda responde que seu nome é Mafalda, que vai sim à escola e que quer saber se ele paga todos os impostos. A mãe a leva embora, roxa de vergonha, e Mafalda explica que foi ele que começou a falar sobre obrigações.

Quem parece se dar conta da situação antes mesmo da própria Mafalda é Miguelito, que fica entediado por lhe ensinarem coisas simplesmente ultrapassadas: que foi Colombo, que foram os conquistadores, que foram os índios, e quando Mafalda argumenta que a História é assim, “como quer que lhe ensinem?”, Miguelito responde cheio de razão: “Daqui pra diante!”. Susana, por sua vez, se mostrou resignada ante a perspectiva de chegar a sua vez de ir para a escola: “É triste atirar pela janela toda uma vida dedicada ao analfabetismo!”. E Manolito, por seu turno, no início do segundo ano letivo, diz que a professora falou que a escola era um templo do saber: “Vamos ver se este ano eu saco esta ladainha” (o que não acontecerá, como se pode depreender de uma carta da professora ao seu pai dizendo que Manolito interpreta os deveres mais do que os faz). De Felipe é melhor nem falar, porque a escola se tornou um trauma para ele. Somente Libertad parece conseguir se medir com o sistema, graças a uma mistura muito sábia de ingenuidade e de se colocar sempre à altura de seus pedagogos. A professora lhe pergunta qual é a montanha mais alta da América e Libertad responde que é uma que apareceu numa

revista, com foto e tudo. “Sim, mas como se chama?” “Ah, não me lembro, mas não importa.” “Como não importa?” “Porque não, mas tenho a revista em casa. Amanhã eu trago e olhamos juntas, está bem?” “Não, o que você vai trazer amanhã é a lição bem estudada. Volte para o seu lugar!” Libertad olha para ela desconsolada: “A senhora deve ser uma mulher muito solitária, senhorita, muito solitária mesmo!”.

Mas aqui devo retomar o fio do patriotismo. Em Mafalda, onde não se trata de outra coisa a não ser do pensamento do autor Quino, o patriotismo passa principalmente pelo filtro do idioma. E embora haja duas ocasiões em que ela se autocontempla no futuro como intérprete na ONU e, embora seja fã dos Beatles sem saber inglês, cada vez que o inglês incide em sua vida fora do âmbito musical, Mafalda fecha a cara. Isso acontece principalmente numa tirinha em que a professora escreve na lousa “História Nacional” e se dirige à classe dizendo: “Bem, queridas alunas, já em anos anteriores vocês aprenderam como foi se formando o que hoje constitui a essência própria de nossa nacionalidade, não é mesmo?”. E a garotada em conjunto (com exceção apenas de Mafalda) lhe responde entusiasmada: “YEAH!”. <

Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autor:Ricardo Bada (1939, Huelva, Espanha), escritor e jornalista residente na Alemanha desde 1963. Editor ali da obra jornalística de García Márquez e dos livros de viagem de C. J. Cela e, com Felipe Boso, da antologia de literatura espanhola contemporânea Ein Schiff aus Wasser (Um barco de água). Editor na Espanha da poeta costarriquenha Ana Istarú, e na Bolívia da única antologia integral em castelhano de Heinrich Böll (Don Enrique).

Tradução do alemão:Maria José de Almeida Müller

Ricardo badaMafalda vai à escola

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A educação – entre o coração e a razão

61/82Rike bolte

TRANsversaliahorizontes com versos: diálogo germano-latino-americano.

Ilustração Mónica Alvarez Herrasti, 2011

Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Redatora:Rike Bolte (1971), doutorada pela Universidade Humboldt de Berlim, é “Akademische Rätin” na Universidade de Osnabrück, tradutora do espanhol e cofundadora do Festival Itinerante de Poesia Latino-americana “Latinale”. Publicou artigos científicos e jornalísticos sobre literaturas e culturas latino-americanas e é também autora de contos e crônicas. Com Ulrike Prinz, publicou em 2011 pela editora J. Frank Verlag, de Berlim, Transversalia. Horizontes con versos/Horizonte in verkehrten Versen.

Autor:Björn Kuhligk (1975, Berlim) é poeta e reside em Berlim. Entre suas últimas publicações, encontram-se Von der Oberfläche der Erde (2009) e Bodenpersonal (2010). Seu próximo poemário, Die Stille zwischen Null und Eins, será publicado no início de 2013. Foi selecionado para a antologia da sexta edição de “Latinale”, em 2011, quando este festival apresentou em Guadalajara (México) a jovem poesia alemã recente.

Tradução:Marcelo Backes

Autor:Rito Ramón Aroche (1961, Ciudad de La Habana) é autor dos poemários Puerta siguiente (Prêmio Luis Rogelio Nogueras 1993), Material entrañable (Prêmio Abril 1994), Cuasi II (Prêmio Pinos Nuevos 1997), Cuasi I (2001), El libro de los colegios reales (2005), Andamios (2005), Del río que durando se destruye (2005), Historias que confunden (2008) e Las fundaciones (2011). Em 2006 obteve o Prêmio de Poesia de La Gaceta de Cuba. Publicou em diversas revistas.

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A educação – entre o coração e a razão

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///// Telegrama de Aroche a kuhligk: // O interessante em um texto como “Poema para casa” de Björn Kuhligk é a própria capacidade que mostra o sujeito lírico de se mover de um lugar a outro, de um sítio a outro, através da evocação. Quase do sonho, ou melhor, quase do estado de vigília. Isso, do meu modesto ponto de vista, é o que se chama dar forma à poesia. Jorge Luis Borges: a ideia da poesia como jorro de palavras é uma ideia de todo errada. Kuhligk é o que se diz um poeta. Alguém busca por demais superar o já feito... // ///

POEMA PARA CAsA

Talvez também tenhas dançado penso eu, antes de dormir, tu estavas nessa festa, penso eu em teu peito, o amor, o amor é uma leiteirinha, se diz eu te amo, tem três litros de fundura sobre a cidade, uma débil, uma abóboda uma luz que vai e vem, como se alguém tivesse uma gota d’água num copo de pastis a ponta da torre Eiffel está cravada ali, eu ando em torno e vejo aquiloque tu não vês, as fileirasde motociclos, largados como motociclos três vagabundos debaixo de uma lona plástica o dinheiro, o crédito e o débito, le douleur, é a dor, l’amour é claro, meu francês não vale a penana tarde do céu, livre de nuvens um olho de refugiado, o amor, o amor é uma leiteirinha, os pretos levam o lixoembora, uma segurança visual no Jardin du Luxembourg duas crianças no carrossel, nós dizemos o carrossel de Rilke alguns, não dá para entender, correm por aí como se existisse uma vida como ação descontextualizadano Musée d’Orsay vi um homem que tapava seus ouvidos, eu penso, não sou bom de fala, tu estavas nessa festa o amor, antes de dormir, o amor tem três metros de fundura, e talvez também tenhas dançado, penso eu em teu peito

Björn Kuhligk

gEDiChT NACh hAUsE

Vielleicht hast du auch getanztich denk, bevor ich einschlaf, duwarst auf dieser Feier, denke ich an deine Brust, die Liebe, die Liebeist ein Milchmädchen, spricht esich liebe dich, ist sie drei Liter tiefüber der Stadt ein kümmerliches, ein Gewölbeein hinterherlaufendes Licht, als hätte jemandeinen Tropfen Wasser in ein Glas Pastisdie Spitze des Eiffelturms stecktdarin fest, ich gehe umher und sehe was, was du nicht siehst, die Reihen von Mopeds, abgestellt wie Mopedsdrei Penner unter einer Plastikplanedas Geld, das Haben und das Sollenle douleur, das ist der Schmerz, l’amournatürlich, mein Französisch ist nicht redenswertam Nachmittag der Himmel, frei von Wolkenein Asylantenauge, die Liebe, die Liebe ist ein Milchmädchen, die Schwarzen bringenden Müll weg, eine visuelle Sicherheitim Jardin du Luxembourg zwei Kinderauf dem Karussell, wir sagen Rilkes Karusselleinige, es ist nicht fassbar, laufen hier herumals gebe es ein Leben als Übersprunghandlungim Musée d’Orsay, da sah ich einen Mannder hielt sich die Ohren zu, ich denk, ich bin nicht gut im Reden, du warst auf dieser Feierdie Liebe, bevor ich einschlaf, die Liebeist drei Liter tief, und vielleicht hast du auch getanzt, denke ich an deine Brust

Rike bolteTransversalia

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A educação – entre o coração e a razão

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///// Telegrama de kuhligk a Aroche: // Gosto do teu poema, e ele me dá trabalho. Leio que vives em Cuba, e imediatamente salta o aparato-estorva-poesia, tentando estabelecer parâmetros com os quais eu possa abrir o trinco do teu poema. Uma caterva de ideias dispara em minha cabeça: como teu livro chegou de Cuba até a Alemanha, que caminhos teve de fatigar, foram realmente fatigosos? Gosto dessa coisa, provida de porão, que tem teu poema. E no segundo verso aparece uma citação de Rimbaud, de seu poema “Mau sangue”. Pois, apenas com grande esforço poderia construir para mim uma interpretação que tivesse talvez um vislumbre de coerência. Me ocupo de muitas coisas, mas não de coisas assim. Talvez teu poema não seja nada mais – e nada menos – do que a busca de uma casa na qual um pelotão de homens barbudos saia marchando da tomada elétrica e, quando todos tenham se postado numa fila, o mais baixo grite c’est oracle. Gosto do teu poema, isso me basta. Não necessito entender tudo. ////

Rito Ramón Aroche

hAbiTACiONEs

Y en otra parte: ¿Han aparecido otra vez?

C’est très certain, c’est oracle, ce que je dis.

Los hombres de las máquinas rojas, y los túneles,en las habitaciones.

Casi un cuerno la luz – ¿luna? – y marchar adelante.

Te aferras casia llamar. En llamar a esas endemoniadas horas queya dije. Y que te marca en la sangre (notas) o enlas vértebras.

De las habitaciones cuentan, en las habitaciones.

© Publicado en Del río que durando se destruye (2005)

CAsAs

E em outra parte: Apareceram outra vez?

C’est très certain, c’est oracle, ce que je dis.

Os homens das máquinas vermelhas, e os túneis,nas casas.

Quase um corno a luz – lua? – e seguir adiante.

Te aferras quasea chamar. Em chamar essa endemoniadas horas que já disse. E que te marca no sangue (notas) ounas vértebras.

Das casas contam, nas casas.

Rike bolteTransversalia

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Ensaio de “Nathan der Weise”, de Gotthold Ephraim Lessing, em combinação com o drama secundário “Abraumhalde”, de Elfriede Jelinek. Thalia Theater, Hamburgo, 2009. Direção: Nicolas Stemann. Foto: Bodo Marks © dpa

Miguel giusti

As TRibOs VOlTARAM É surpreendente a importância que possui atualmente o debate em torno da tolerância no mundo inteiro, em que pese se tratar de um problema quase milenar e de uma noção relativamente antiquada para confrontá-lo. Porém é a realidade, a intolerância, que impõe hoje sua evidência, especialmente no caso das relações entre culturas ou no das relações entre membros de diferentes culturas no seio de muitas sociedades, sejam estas democráticas ou não. É sobre aquilo que mais nos faz falta que debatemos com mais intensidade e frequência. Já faz alguns anos que o filósofo norte-americano Michael Walzer, um dos protagonistas mais originais de todos esses debates, pretendeu caracterizar metaforicamente a situação com a sentença provocadora: “as tribos voltaram” (“the tribes have returned”). Voltaram no Oriente, no mundo árabe e no mundo asiático, mas voltaram também, a sua maneira, no interior do mundo ocidental, através da presença de velhas ou novas formas de identidade cultural que reclamam seu direito de existir com autonomia. O tribalismo e a globalização

parecem ser dois fenômenos contrapostos mas concomitantes, reciprocamente necessários, que imprimem seu selo à situação em que se encontra a cultura mundial no presente milênio.

Por que isso é assim, ou seja, por que o tribalismo adquiriu legitimidade no contexto internacional, é parte de um processo estreitamente aparentado do questionamento (e especialmente, do autoquestionamento) ao qual foi submetida a própria cultura ocidental, processo que nas últimas décadas deu lugar a sucessivos movimentos filosóficos de crítica da modernidade, do eurocentrismo, do liberalismo, do instrumentalismo ou do universalismo. Estamos, por assim dizer, diante das duas faces de uma mesma moeda: a obtenção de legitimidade das reivindicações culturalistas é o reverso, ou o anverso, da perda de legitimação das pretensões universalistas da cultura ocidental. É justamente por isso que se diz que as tribos estão “voltando”, não que estejam aparecendo: sempre estiveram aí, mas foram aparentemente subjugadas por sistemas culturais dominantes que minimizaram sua relevância. Sua volta coincide, portanto,

CUlTURA DA TOlERâNCiA. CUlTURA DO RECONhECiMENTO

O tribalismo e a globalização parecem ser dois fenômenos contrapostos mas concomitantes, reciprocamente necessários, que imprimem seu selo à

situação em que se encontra a cultura mundial no presente milênio.

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com a crise daqueles sistemas. E, conforme já se disse, isso não diz respeito apenas às tribos exteriores ao mundo ocidental ou com as quais este entra em contato. Também no interior da sociedade liberal surgiram vozes tribais que fazem pensar nas limitações desse sistema para processar adequadamente as diferenças culturais.

O CONCEiTO DE TOlERâNCiA A virtude chamada “tolerância” surgiu no Ocidente justamente como uma resposta moral e política a problemas do enfrentamento violento entre culturas ou religiões como os que venho mencionando. Seu surgimento está indissoluvelmente ligado à experiência devastadora da Guerra das Religiões e à reflexão que ela suscitou na cultura europeia da época. Ainda assim não é nada fácil estabelecer uma leitura canônica do conceito de tolerância; pelo contrário, como bem assinalam alguns intérpretes, se trata, de um ponto de vista conceitual, de uma virtude “escorregadia” ou “borrada”. Mesmo sendo possível identificar, na história da filosofia, certos protótipos ou matrizes de interpretação que iluminam aspectos específicos do problema e nos elucidam, ademais, as limitações do conceito, não resta dúvida de que a interpretação mais clássica é aquela que situa a tolerância no marco da teoria liberal contratualista da sociedade. O pensador mais representativo dessa tendência é John Locke, cuja Carta sobre a tolerância, publicada em 1689, se converteu em ponto de referência obrigatório sobre o tema. Mas Locke é também, conforme se sabe, o autor mais emblemático da fundamentação teórica da sociedade liberal, de modo que sua proposta encobre um modo de desvalorização das culturas que muitas vezes se mostra patente na cosmovisão liberal e que termina por tornar o diálogo intercultural assimétrico e inviável.

Com efeito, Locke faz com que a tolerância dependa da natureza contratual da associação política, na medida em que para a constituição desta última é necessário pressupor a existência de indivíduos livres e iguais, com capacidade e liberdade para decidir sobre sua participação no ato contratual fundacional. Sendo impossível estabelecer um acesso privilegiado à verdade prática, e não existindo, portanto, a possibilidade de desautorizar por princípio a vontade de ninguém, resta apenas buscar uma forma procedimental de fundar o pacto social e reconhecer o direito de todos a participar na constituição do poder. A fundamentação contratual traz consigo o traçado de uma linha divisória clara entre o poder civil e o poder religioso, e essa fronteira tem repercussões importantes sobre o modo de conceber o pertencimento a uma religião ou a uma cultura. Neste marco, a tolerância é concebida, portanto, como um produto da secularização e da democratização do poder político. Há um duplo ganho nesta perspectiva: de um lado, são colocadas em primeiro plano as vontades livres em busca de um consenso sobre o sistema de regras de sua vida social; por outro lado, a liberdade de consciência e de crenças é consagrada definitivamente. Ainda assim, o ganho tem também um alto custo, porque ao estabelecer uma separação tão taxativa entre a esfera pública e a esfera privada, é produzida implicitamente uma distorção do fenômeno religioso e, por extensão, do fenômeno cultural. Efetivamente a religião é definida por

Locke como uma associação voluntária sobre fins ou interesses restritos à esfera privada, mais ou menos como acontece em um clube de golfe. Ao caricaturizá-la desse modo, o caminho a uma incorporação da religião no processo de democratização é fechado e absolutizado indiretamente o horizonte cultural em que é produzida a secularização. Este foi um juízo precoce de Hegel em sua obra Crer e saber, obra que foi, com certeza, evocada por Jürgen Habermas para caracterizar o enfrentamento entre a sociedade ocidental e o islã.

A NOÇÃO DE “RECONhECiMENTO”: MUlTiCUlTURAlisMO E lUTAs sOCiAis Para contrapor essas limitações do paradigma liberal, assim como para expressar uma nova sensibilidade diante da natureza das reivindicações culturais, já há alguns anos foi introduzido nos debates da ética e da filosofia política a noção de “reconhecimento”. O que se quis foi, por assim dizer, complementar conceitualmente a cultura da tolerância com uma cultura do reconhecimento.

Vimos aparecer, em diferentes contextos, propostas e obras importantes nesse sentido. Um desses contextos é o contexto do multiculturalismo. Em vez de terminar com as reivindicações culturalistas, o processo de globalização mostrou estar acompanhado, nas últimas décadas, por um intenso movimento contrário de retorno às raízes identitárias nacionais e por um agravamento dos conflitos interculturais. Charles Taylor pretendeu dar um nome ao ressurgimento dessas reivindicações e por isso recorreu à categoria do “reconhecimento”. Foi o que fez em seu pequeno ensaio “O multiculturalismo e a política do reconhecimento”, ensaio que aliás teve muita repercussão e desencadeou uma frutífera polêmica no mundo inteiro. O interessante de sua posição é que o reconhecimento aparece tematizado, por assim dizer, a partir de uma perspectiva negativa: não como um chamado a reconhecer, mas sim como um chamado a dar ouvidos à demanda de reconhecimento feita pelas culturas reprimidas. É a reivindicação de ser reconhecidos o que aparece no primeiro plano. Exposto assim o problema, se torna mais fácil apreciar a relação entre a questão do reconhecimento e a questão da identidade pessoal ou grupal. Quando não se experimenta o reconhecimento, quando as culturas, os grupos ou os indivíduos são vítimas de exclusão ou discriminação, se veem expostos a uma percepção deformada de sua identidade seguindo os moldes da cultura dominante. Sabemos pela história que essa repressão é fonte de revoluções, quando não solo fértil para uma cultura da alienação. Taylor responsabiliza o liberalismo, acusando-o de ser, por princípio, “cego” diante das diferenças culturais e de se mostrar impotente diante de suas reivindicações. Defende, no entanto, uma retificação do próprio paradigma liberal, a fim de recuperar a inspiração ética que consiga acolher em seu seio as diferentes comunidades de valores que se desenvolvem em seu interior.

Outro contexto no qual se deu o surgimento da noção de reconhecimento, que certamente engloba o anterior, é o das lutas e das revoluções sociais na história. O autor mais representativo dessa matriz hermenêutica é Axel Honneth. Em seu livro A luta por reconhecimento, lançado no mesmo ano em que foi publicado o ensaio de Taylor, em 1992, se propõe a retomar o conceito de

Miguel giustiCultura da tolerância. Cultura do reconhecimento

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“reconhecimento” do jovem Hegel, com a finalidade de empregá-lo sistematicamente como chave de leitura moral, como “gramática” das demandas sociais e das reivindicações culturais que vêm se expressando nas últimas décadas. A reconstrução de Honneth é muito sugestiva porque mostra a atualidade da percepção ética hegeliana à luz das investigações sociológicas, filosóficas e psicanalíticas mais recentes, e porque ilumina de modo especial o sentido moral que pode ter a perspectiva da identidade subjetiva percebida como humilhação, ou seja, como falta de reconhecimento.

O maior aporte de Honneth ao estudo destes temas consiste em haver destacado que o paradigma do reconhecimento nos permite efetuar uma leitura invertida da experiência dos sujeitos implicados nesta relação, ou seja, permite que analisemos o reconhecimento não apenas a partir da perspectiva de sua bem-sucedida colocação em prática, mas também a partir da perspectiva de seu fracasso. Muitas formas de violência política deveriam ser lidas e interpretadas conforme essa chave. São expressão de uma experiência de menosprezo e de uma demanda implícita de reconhecimento. É essencial entender esse significado porque dessa maneira compreenderemos as verdadeiras causas da violência e poderemos buscar um remédio que seja eficaz para tratar delas.

A PARábOlA DOs ANéis Nesse esforço de complementar a cultura da tolerância com a cultura do reconhecimento pode nos servir de inspiração um autor cuja obra mereceria sem dúvida mais atenção em todos esses debates. Refiro-me a Lessing, o dramaturgo, ensaísta e crítico de teatro alemão, que foi uma das figuras mais importantes da recepção alemã do pensamento ilustrado e uma das vozes que contribuíram com mais engenho no sentido de dotar de conteúdo o conceito de tolerância. A genialidade de Lessing pode ser apreciada de modo particular em sua conhecida parábola sobre os anéis, Nathan, o sábio. Conforme se sabe, a obra é ambientada na cidade de Jerusalém, no século XII, na época das Cruzadas. Jerusalém se encontra em poder do sultão Saladino, e na cidade reina um precário e momentâneo equilíbrio de forças entre muçulmanos, cristãos e judeus. O sultão Saladino ouviu que Nathan, o judeu, é um homem sábio e rico, muito apreciado por seu povo, e tem curiosidade de conhecê-lo. Manda chamá-lo a seu palácio e, com a intenção de colocar sua sabedoria à prova, lhe pergunta qual é, em sua opinião, a fé ou a religião verdadeira: a judaica, a cristã ou a muçulmana. Colocado em dificuldades pela pergunta, Nathan recorre à parábola dos anéis.

Segundo o relato, um pai, dono de uma anel mágico que concedia a seu proprietário o poder de ser amado e respeitado por seu povo, sem saber a qual de seus três filhos deveria dá-lo em herança, encarregou um artesão de fabricar outros dois anéis idênticos e, antes de morrer, os entregou separadamente a cada um deles. Crendo-se cada um dos irmãos dono do anel verdadeiro, os três principiaram uma violenta disputa entre si, e em seguida foram a um juiz para solucioná-la. Mas o juiz, em vez de fixar sua atenção na diferença entre os anéis, fixou-a nos efeitos que o anel devia produzir em seus portadores, ou seja, perguntou aos filhos qual deles era verdadeiramente respeitado

e amado aos olhos de seu povo; aquele que o fosse, aquele que desse mostras práticas de vida humanitária, poderia se considerar dono do anel verdadeiro. Assim, a parábola inverte a pretensão de verdade dos contendores, que nesse caso representam as religiões.

Qual das três religiões é a verdadeira?, queria saber Saladino. Nathan responde que o problema principal não reside na verdade das religiões, ou das culturas, mas em sua capacidade de cultivar a prática da virtude da tolerância. Cada qual em sua língua e em seus costumes (através da materialidade de suas jóias específicas), mas dando provas de humanitarismo e compaixão. Lessing disse, com efeito, que a tolerância deve ser “compassiva” ou “afetuosa”: ele usa a palavra “herzlich” em alemão. Uma cultura universal que aspire à tolerância, deve comprometer o coração, ou seja – seguindo o estilo dos ensinamentos do velho Nathan –, deve solicitar a intervenção de nossos afetos na promoção de uma cultura humanitária do reconhecimento. <

Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autor:Miguel Giusti (1952, Peru), filósofo, professor e diretor do Centro de Estudos Filosóficos da Pontifícia Universidade Católica do Peru. Estudou na Alemanha com Rüdiger Bubner e Jürgen Habermas. É autor de vários livros sobre ética contemporânea e filosofia do idealismo alemão. Por vários anos foi membro do Comitê Científico Internacional dos Hegel-Studien. Atualmente preside o Humboldt Club do Peru.

Informações adicionais sobre a ilustração:O discurso da tolerância em questões religiosas costuma remeter à parábola dos anéis de “Nathan der Weise” (Nathan, o sábio), de Lessing. Em sua montagem desta obra em 2009, o diretor Nicolas Stemann fez com que os representantes das três grandes religiões monoteístas – ironicamente identificados por meio de máscaras carnavalescas de papel machê – lessem seus textos de um púlpito, para “fazer soar” o texto iluminista de fins do século XVIII antes de qualquer interpretação. Na otimista utopia conciliadora de Lessing, foram inseridas passagens radicalmente pessimistas do drama “Abraumhalde” (Montão de escória), de Elfriede Jelinek, a título de alusão à busca atual de Deus e de sentido, à caça ao dinheiro e à intolerância vivida. Com essa colagem, rompe-se a mensagem sublime de tolerância e reconhecimento da obra de Lessing.

Miguel giustiCultura da tolerância. Cultura do reconhecimento

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“Antígona oriental”, a partir de Sófocles e testemunhos de ex-presas políticas, filhas e exiladas. Direção: Volker Lösch. Dramaturgia: Marianella Morena. Foto: Gustavo Castagnello

Mariangela giaimo

“Já não o quero comigo. Faça o que quiser. Vou enterrá-lo”, repetiam as mulheres na audição realizada em fevereiro de 2011. Havia mais de quarenta mulheres para formar um coro, mas somente dezenove delas fariam o papel de Antígona em 28 de janeiro de 2012, no Teatro Solís, o mais importante do país e sede da Comédia Nacional e da Orquestra Filarmônica de Montevidéu. As mulheres entrariam em cena no papel de si mesmas, sem atuar. Elas e seus discursos, o de todas, misturados, criando uma nova trama, com outra pontuação e reivindicando o direito à verdade e à justiça.

A Antígona de Sófocles desenvolve o conflito entre a lei divina e a dos seres humanos. Antígona quer enterrar seu irmão – representando o direito individual de ter uma sepultura, e Creonte representa o Estado – que se nega a lhe conceder esse ritual. No Uruguai pós-ditadura, esse dilema existe até hoje, às vezes mais camuflado, às vezes num tom mais exaltado. Desconhece-se, atualmente, o paradeiro de quase 150 pessoas detidas por motivos políticos. Desde 2005 até agora foram encontrados restos de quatro assassinados. Isso acontece porque, logo após o fim da ditadura, foi aprovada a Lei da Caducidade

ANTígONA ORiENTAlA montagem do diretor alemão Volker lösch dá a palavra a mulheres vítimas da última ditadura uruguaia. Presas, exiladas e filhas reivindicam a memória das vítimas do terrorismo de Estado e põem em evidência a necessidade de

julgar os genocidas e de enterrar os “desaparecidos”.

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da Pretensão Punitiva do Estado, que concede impunidade aos atos ilícitos cometidos por militares e policiais durante aquele período. Em 1989, um grupo de movimentos sociais e militantes de esquerda realizaram uma campanha para reunir assinaturas e adesões em prol de um plebiscito para anular a lei. O resultado da votação foi favorável à sua manutenção por mais de 54 por cento dos votos. E o tema parecia ter sido silenciado.

TODAs sÃO ANTígONA No início do projeto teatral – que contou com a colaboração do Goethe-Institut de Montevidéu – no final de 2009, realizaram-se eleições nacionais que elegeram José “Pepe” Mujica, um ex-guerrilheiro tupamaro e prisioneiro político como presidente e segundo governante de esquerda. Houve então um segundo plebiscito que obteve 52 por cento de apoio à lei, embora pesquisas de opinião pública tenham assegurado que a maioria da população era contra a mesma. A seleção do coro de mulheres se realizou nesse clima, no qual a própria esquerda no governo com maioria absoluta no Parlamento manobrava para manter o status quo reinante. Levantou-se novamente o muro e as portas se fecharam. E a pergunta era: “que farão essas mulheres não profissionais do teatro contando suas histórias, as piores que aconteceram no passado recente?”. O diretor Lösch e a diretora e dramaturga uruguaia Marianella Morena confiaram com razão no potencial da vivência: o corpo de quem atravessou a história, o discurso de quem a viveu, o esquecimento de quem lhes recusa a ajuda, o desejo de falar sobre o passado, do que ocorreu e do que não pode ser, assim como de seus anseios para a sociedade de amanhã. Na palavra e na carne dessas mulheres. O fio condutor era a esquerda uruguaia ontem e hoje, a Lei de Caducidade, a maternidade na prisão, o papel dos familiares, a sexualidade, os homens, a tortura, entre outros tópicos. Estas mulheres tinham e têm muito a dizer e querem fazê-lo.

A cada ensaio foram se tornando evidentes os protagonismos, as personalidades, as diferenças entre elas, não somente políticas como também de vida, que no entanto formam uma só Antígona feita de muitas. O texto é polifônico, como o coro. Todos os testemunhos então se unem para criar um só relato, que ao mesmo tempo são muitos. “Este é um grupo de mulheres que está acostumado a questionar e criticar. No entanto, houve tanta insistência nos pedidos, que elas cederam suas memórias porque sentiram que as estariam depositando em um local protegido. É estranho, e principalmente com uma pessoa que você pensa ser distante, mas não é assim”, explica Ana Demarco como foi fazer o relato ao diretor. Ana tem 59 anos, é professora, foi prisioneira de dezembro de 1974 a fevereiro de 1978, e a primeira mulher que falou com Lösch no Museu da Memória de Montevidéu, momento em que surgiu a ideia. De qualquer modo, disse Demarco, elas não se importaram de que alguns de seus testemunhos não tenham feito parte do texto final ou de terem de dizer palavras de uma outra. “Há muitas coisas que não coincidem com a pessoa, mas sabemos que refletem um setor.” Desse modo, pensa, o texto se torna mais democrático e se forma um grupo: “Na medida em que se deixa de ser um personagem para ser a pessoa, você se torna parte de um grupo que tem como trama o conhecimento e a confiança”.

Elas decidiram falar sobre a tortura: física, simbólica, própria, a dos amigos e familiares, a que podiam contar, a que não podiam, a que somente hoje têm coragem de verbalizar. É difícil falar da dor, expressar com palavras, se mostrar ao outro como vítima. É difícil também perguntar sobre isso, não parecer óbvio, mórbido, insensível no interrogatório, voltar a perguntar – “sem torturômetro”, como elas diziam –, sentindo que as perguntas as desnudam novamente. Mas como não perguntar, se precisamos saber o que aconteceu para nos darmos conta da insanidade, da loucura, da falta de sentido da tortura, esta besta imbecil que esteve solta trinta anos atrás e continua ainda babando escondida? Como fazê-lo sem voltar a colocá-las naquele lugar? Como fazê-lo sem escutar os mínimos detalhes e sentir de alguma forma que fizeram isso com todos nós, com aqueles que estavam fora, que ainda não eram nascidos ou eram crianças? É difícil falar da dor e das perdas, mas é necessário, pelo menos para mostrar o limite e ver que de certa forma continuam sendo as mesmas e por sua vez são outras, aquelas que estão de pé e querem continuar sendo protagonistas de sua própria história.

O APlAUsO gRiTA Para Lösch era necessário expô-las à dor sem cair numa espécie de psicoterapia. Era necessário – assim como faz em todas as suas obras na Alemanha – confrontar a tragédia com o público e a opinião pública. “Há imagens precisas que não espalham sangue. São fortes em si mesmas. Talvez pelas sutilezas”, descreve Demarco. Para as mulheres, elas foram mostradas em seu momento de maior debilidade com uma delicadeza chocante. Nibia López, 57 anos, funcionária, onze anos na prisão, contracena com Tatiana Taroco, 22 anos, desenhista gráfica, sua filha. Esta última faz parte da geração nascida na democracia mas que sofre as sequelas da ditadura. O público ao qual Antígona oriental queria comover e conseguiu. Taroco tem um irmão que nasceu na prisão e tanto o pai como a mãe dela estiveram presos. “Estou feliz por minha filha participar desse projeto”, disse Nibia, “mas por outro lado penso que para ela é uma experiência muito dura. Uma coisa é saber e outra é estar ali e ouvir uma série de experiências e testemunhos que muitas vezes nunca tínhamos escutado. Eu mesma ouvi e disse coisas pela primeira vez.” No entanto, López define esta experiência também como curativa e até como um impulso para novas ações sociais: “Muitas mulheres foram fazer denúncias da tortura e violação agora. Porque não conseguiam ir até o fim e falar sobre sua violação. É muito difícil”. Foi a partir de novembro de 2011 – em pleno ensaio – que 28 ex-presas fizeram uma denúncia penal sobre as torturas físicas e psicológicas e os delitos sexuais. No Uruguai não existem presos por tortura, mas por violação aos direitos humanos. O general Gregorio Álvarez (ditador de 1981 a 1985) foi detido no governo de Tabaré Vázquez por sequestro, traslado clandestino, assassinato e desaparecimento de cidadãos uruguaios exilados na Argentina em 1978 e é o símbolo de outros tantos genocidas nacionais que ainda devem ser julgados.

O teatro lotou nas oito apresentações. As pessoas de pé, aplaudindo. “Tivemos retornos diversos. Dos meios de comunicação, que foram muitos. Mas o que nos importava era

Mariangela giaimoAntígona oriental

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a emoção que sentíamos no público. Por exemplo, quando a sala se iluminava, no intervalo, e víamos o público, os rostos. Esse momento de comunhão, onde se sentia uma resposta, era impressionante. Os aplausos – que para nós não tinham precedentes, já que não somos atrizes e não nos movimentamos nesses espaços – eram comovedores”, conta Demarco. Talvez esses mesmos aplausos que se repetem em todos os 20 de maio desde 1996 na Marcha do Silêncio pela busca dos desaparecidos. Era um aplauso diferente daquele de teatro, não era contínuo, era como se fossem golpes.

“Com uma força que só senti aí e na Marcha”, evoca Demarco, “era um aplauso que não significava aclamação, era um aplauso diferente.” Era uma manifestação que muitas sentiram como uma reparação depois dos dois plebiscitos perdidos. “Sentia-se como um obrigado por dizê-lo. O retorno é que alimenta seu processo de crescimento, com o dizer, com o gritar e a resposta do outro”, explica. As mulheres já estiveram em Córdoba, Argentina, com sua obra. “Ali sentimos que o tema gênero ocupou um lugar importante. Num dado momento, um rapaz jovem nos disse que lhe deu vergonha ser homem, e aqui esse foi um aspecto que não ouvi em nenhuma crítica”, frisou. Agora elas estão se preparando para ir a Buenos Aires, assim como ao Equador e à Colômbia e, em princípios de 2013, à Europa. Antígona viaja, em várias mulheres, e quer continuar gritando seu desejo. Um pedido que foi pouco escutado pelas autoridades de esquerda, que fizeram ouvidos de mercador a essa voz. Uma só, mas de várias. <

Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autora:Mariangela Giaimo (1975, Montevidéu) é licenciada em Comunicação Social, docente de Teorias da Comunicação, jornalista freelance e colaboradora assídua do semanário uruguaio Brecha. Atualmente faz o doutorado em Ciências Sociais na Universidade General Sarmiento–IDES (Argentina).

Tradução do alemão:Maria José de Almeida Müller

Mariangela giaimoAntígona oriental

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“Beben”, texto e direção: Guillermo Calderón. Estreia no teatro Düsseldorfer Schauspielhaus em 21 de abril de 2012. Foto: Sebastian Hoppe

guillermo Calderón

Em 22 de abril de 2012 estreei minha nova peça, BEBEN, no tea- tro de Düsseldorf. Esse dia marcou o fim do trabalho de um ano que começou quando o novo diretor-geral, Staffan Valdemar Hølm, me convidou para escrever e dirigir uma peça para a temporada 2011–2012. Ele me propôs iniciar minha relação com o Düsseldorfer Schauspielhaus com um trabalho que vinculasse o universo cultural do Chile ao da Alemanha, e me sugeriu escrever uma peça inspirada no conto O terremoto no Chile, de Heinrich von Kleist, uma história escrita há cerca de duzentos anos e que trata de uma catástrofe natural em um país distante e quase imaginário. Apesar de ser um reconhecido viajante, Kleist, o contemporâneo genial e desafortunado de Goethe e Schiller, nunca esteve no Chile, tendo se inspirado seguramente no terremoto de Lisboa, em 1755. Mas, apesar da distância, Kleist criou um vínculo definitivo e emocional com meu país. Meu trabalho consistia em atualizá-lo. A ideia também me interessou, pois esse conto é uma crua reflexão existencial e religiosa sobre as consequências de uma catástrofe natural. Creio que os problemas que O terremoto no Chile explora continuam em pauta toda vez que a terra treme e o mar sobre ela avança.

Kleist narra nele a história de uma mulher que, em Santiago do Chile, em 1647, engravida de seu tutor apesar de seu pai tê-la enviado para um convento na tentativa de separá-los. É

condenada à morte por cometer esse pecado, mas no momento em que vão executá-la, um terremoto destrói a cidade e ela foge. Finalmente ela consegue se reunir com seu amante e seu filho recém-nascido nas colinas que cercam a cidade. Mas quando voltam à cidade para assistir à primeira missa depois da catástrofe, o sacerdote culpa a jovem mãe de ter provocado com seu pecado a fúria divina do terremoto. Então uma multidão enfurecida mata os dois, ela e o pai de seu filho.

O conto pode ser lido como uma grande crítica à crueldade do catolicismo, disposto a executar os crentes que provocam a fúria de Deus com seus pecados. No entanto, também explora uma ideia mais ampla, referente à dificuldade de explicar uma catástrofe natural a partir de um ponto de vista religioso. Esse problema poderia soar irrelevante em nosso mundo de sóbrias explicações científicas, mas carrega uma desconcertante atualidade. De fato, após o recente terremoto no Haiti em 2010, o televangelista norte-americano Pat Robertson justificou a catástrofe natural dizendo na televisão que o povo haitiano havia dado as costas a Deus ao abraçar a religião vodu. Segundo ele, o terremoto seria a consequência de um antigo “pacto com o diabo” assinado pelo povo haitiano para se libertar da dominação francesa. Curiosamente, depois de duzentos anos, o conto de Kleist adquiria uma surpreendente atualidade: novamente as

TERREMOTO EM DüssElDORfO autor e diretor chileno de teatro conta como

devolveu à Alemanha a visão que, há duzentos anos, o poeta heinrich von kleist teve da destruição imaginária de santiago do Chile.

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próprias vítimas eram acusadas de causar uma catástrofe natural. Seu pecado havia desatado a fúria de um Deus cruel e vingativo.

A polêmica sobre o papel de Deus nas catástrofes é algo que se repete em um país como o Chile, abalado por terremotos periodicamente. Logo após a destruição, é comum ver pes- soas religiosas e a Igreja procurando consolar-se com explicações contraditórias. Algumas vezes, dizem que Deus tem um plano secreto que não podemos entender. Outras, que Deus criou o mundo, mas que não pode controlar os acidentes do mundo natural. Muitos, com certeza, seguem afirmando que Deus está nos castigando pelos pecados que continuamos cometendo. Mas se Deus é bom, como permite então que crianças inocentes morram? Este é um tema que Kleist encara explicitamente ao permitir que no final do conto a multidão também acabe matando uma criança recém-nascida; não o filho dos pecadores, mas outra da mesma idade. Acho que Kleist chega a esse extremo para representar seu desencantamento com a humanidade, capaz de arrebentar a cabeça de um bebê contra um pilar da igreja para saciar a sede de justiça de seu Deus pessoal. Essa profunda decepção, esse ato radical de representar o assassinato mais cruel possível, pode ajudar a descrever o estado que levou Kleist a suicidar-se pouco tempo depois de publicar o conto. Um terremoto faz com que alguém fique decepcionado com Deus; mas se alguém também se decepciona com a humanidade, então já não sobram alternativas para justificar a vida.

Decidi criar uma peça contemporânea que explorasse todas essas ideais e que ao mesmo tempo conseguisse estabelecer uma relação entre o mundo de Kleist e minha visão de seu conto no ano de 2012. Escrevi uma história na qual quatro jovens voluntários alemães trabalham no Chile ajudando as vítimas do terremoto de 2010. O conflito se desata em um ato no qual os jovens, abalados em sua própria angústia existencial, decidem contar a história de Kleist a crianças sobreviventes do tsunami, que eles estão tentando ajudar. As crianças, obviamente, não conseguem compreender nem aceitar a crueldade brutal do conto. Os próprios voluntários se encontram finalmente envolvidos em uma discussão sobre os mesmos temas presentes no conto original. Além disso, a essas questões inevitáveis decidi incorporar o problema dos saques dos centros comerciais ocorridos após o terremoto do Chile. Pareceu-me inevitável apresentar a ideia de que uma catástrofe permite expor a crise latente em sociedades como a chilena, na qual a injustiça social tem a mesma relevância e urgência que as ideias do conto original de Kleist.

Cheguei em Düsseldorf em fevereiro com a peça escrita e traduzida (por Hedda Kage) e ali me deparei com o incrível sistema do teatro alemão. A imensa importância que o teatro tem para a vida da cidade e a expectativa que cada nova peça cria no público local e nacional me surpreendeu. Vindo do teatro independente, foi um prazer sentir-me respaldado com a infraestrutura e a eficiência da administração e das equipes artísticas. Além disso, por sorte, visto que não falo o idioma, os alemães com quem trabalhei em Düsseldorf eram poliglotas generosos que entendiam tudo o que eu dizia em espanhol, se falasse devagar.

Os atores aceitaram afavelmente o fato de serem dirigidos em inglês. Escutaram-me com paciência antes de se entregarem com liberdade ao universo da peça. Encantou-me descobrir

como começaram o processo de ensaios com uma atitude rigorosamente intelectual e o terminaram em uma dispersão de maravilhosa irracionalidade emocional. Sua atitude em geral é estóica diante da rigorosidade e intensidade de um trabalho como o que se faz no Düsseldorfer Schauspielhaus. Eles têm um horário de trabalho que deixaria exausto o corpo de outros atores no mundo, mas parecia haver um orgulho em trabalhar até o limite da resistência. A atitude e firmeza dos atores que dirigi servem de permanente testemunho da tradição cênica alemã. Quando chegou a estreia, encantou-me ver que o público e os críticos recepcionaram o trabalho com generosidade e rigor, sem uma gota de condescendência com um dramaturgo e diretor de um país do fim do mundo.

No geral, acredito que nunca havia visto tão claramente como na Alemanha que o teatro é um lugar privilegiado para pensar e examinar o mundo. O Chile tem uma ampla relação com a Alemanha, envolvendo imigração e exílio. Convidar-me para escrever e dirigir é uma forma de seguir, por outros meios, essa ampla relação entra as duas culturas nacionais. Neste caso, permitiu-me devolver à Alemanha a visão que Kleist teve da destruição imaginária de minha cidade há duzentos anos. Essa devolução reelaborada da imaginação existencialista de Kleist aconteceu sobre um cenário e permitiu aproximar dois mundos teatrais cada vez mais generosamente entrosados.

No fim da experiência já começava a primavera e eu conseguia entender um pouco do alemão que os atores repetiam nos ensaios e nas apresentações. Além disso, conseguia falar o básico para cumprimentar e pedir comida nos restaurantes. Mas não era suficiente. Minha única e grande frustração em Düsseldorf é nunca ter podido ler o conto que inspirou BEBEN em seu idioma original. As pessoas com quem trabalhei me diziam que um dos maiores valores da obra de Kleist é a elegância e a beleza de seu estilo. Talvez por isso sempre falem dele com tanto carinho. Morreu muito jovem e há muito tempo, mas seu trabalho me acompanhou em toda minha aventura alemã. Acredito agora que Kleist vai seguir me acompanhando, forçando-me a aprender alemão para poder finalmente ler sua obra na língua em que ele a escreveu. <

Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autor:Guillermo Calderón (1971) é autor e diretor teatral. Aposta num novo teatro político e é considerado hoje um dos dramaturgos mais interessantes do Chile. Após seus estudos no Chile, Estados Unidos e Itália, fundou o Teatro en el Blanco. Além de suas próprias obras, encenou Fassbinder e Tchekhov. Seu primeiro trabalho na Alemanha foi Beben, em 2012, para o teatro Düsseldorfer Schauspielhaus.

Tradução do alemão:Douglas Pompeu e Anna-Katharina Elstermann

guillermo CalderónTerremoto em Düsseldorf

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Christian Gottlob Fechhelm (1703–1759), figurino do “Re Americano” para a ópera “Montezuma” (libreto: Frederico II, música: C.H. Graun), Coleção Louis Schneider, Berlim. Foto: culture-images/Lebrecht Music & Arts

frieder Reininghaus

Ele foi um homem versátil e uma figura politicamente ambígua: Frederico von Hohenzollern (1712–1786). Sua atividade de libretista não pode ser estudada separadamente de sua existência como príncipe e como rei. Já um ano antes de assumir o governo, ele pôs no papel as suas ideias a respeito da gestão do Estado, num escrito de caráter teórico-político denominado Antimacciavel (1739). O modo com o qual ele geriu posteriormente os negócios e o destino da Prússia não deixou de influenciar as suas atividades literárias. A política musical que ele conduziu pessoalmente, até nos mínimos detalhes, fez

parte de uma combinação e sobreposição das preferências pessoais de um apaixonado músico amador com uma vontade de configuração político-estratégica, uma “razão de Estado” autoimposta e uma política externa marcantemente agressiva.

Na figura de Frederico o Grande reativa-se um verdadeiro “ídolo” alemão. Durante os anos mais recentes foi possível observar um renascimento do interesse por esta personagem histórica, que culmina neste ano de 2012, em que se completa o tricentésimo aniversário de seu nascimento. Este interesse está relacionado com a fascinação despertada tanto pela sua

TRibUTO AO REi AsTECAUma revisão da figura ambígua do rei prussiano frederico ii, impiedoso guerreiro, criador do castelo barroco de sanssouci

em Potsdam e autor do libreto da ópera “Montezuma”, por ocasião da comemoração do 300º aniversário de seu nascimento em 2012.

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“autoeducação” política e estética, quanto pela sua sensibilidade artística – sobretudo pela sua conhecida “fraqueza” por tocar flauta e pela música de câmara em geral, pelos seus avanços como compositor e como construtor (também de teatros) e como organizador de toda a programação musical da corte prussiana. Enquanto monarca, era ele quem decidia quais peças seriam apresentadas em “seus” teatros, assim como fixava a remuneração dos capões (os castrati) e das frangas (as prima-donas), ou os subsídios dos figurantes. Ele também não esquecia de fixar minuciosamente os custos admissíveis dos materiais. Isso tudo somado não melhorará, contudo, a opinião daqueles que veem este monarca, com reservas ou com aberta rejeição, como um raivoso caudilho.

Diante deste complexo pano de fundo, é bastante óbvio ler a tragédia Montezuma, concebida para ser encenada no palco da Ópera Real de Berlim, como um texto-chave para a compreensão do reinado de um monarca (parcialmente) orientado pelo Iluminismo. Como a expressão de um homem que se autoestilizava como alguém abençoado simultaneamente por “Marte e Apolo”.

sANs PAREil Mesmo antes de ser coroado rei, este príncipe era respeitado nas cortes europeias pelas suas afinidades com as Musas – parecia “seguir os passos de sua mãe”. Ele era o mais velho dos filhos sobreviventes da princesa Sofia Dorotea von Braunschweig-Lüneburg, conhecida pelo seu interesse pelas artes, pela literatura e pela moda, e do príncipe herdeiro da casa de Brandemburgo e Prússia, um homem de orientação espartana, que assumiu o trono em Berlim com o nome de Frederico Guilherme I em 1713, pouco tempo depois do nascimento de seu filho, e o ocupou até 1740. Este pai, extremamente autoritário, foi quem transformou a área de domínio da Casa dos Hohenzollern, entre o rio Mosa e o rio Neman, numa severa ditadura militar. “Prússia não é um Estado que possui um exército, mas é um exército que possui um Estado”, ironizava o marquês de Mirabeau. Depois da morte do “rei-soldado”, o seu filho Frederico II aproveitou-se das vantagens políticas do momento. De forma totalmente inesperada ele assumiu o comando do exército que seu pai tinha munido dos melhores armamentos da época, para invadir a região desmilitarizada da Silésia, sob o lema de ir “ao encontro da fama”.

Este ataque era carente de qualquer base de legitimação – e foi bem-sucedido. Com esta Primeira Guerra da Silésia, Prússia simplesmente anexou aos seus territórios a província da Boêmia, originalmente pertencente à Áustria. Mas também a França, a Espanha, a Suécia, a Saxônia e a Baviera queriam ganhar sendas porções da Áustria, e atacaram. As grandes guerras que se seguiram na Europa e nas suas colônias, causando centenas de milhares de mortes, resultaram do ataque de 1740. O historiador Karl Otmar von Aretin não é o único que vê Frederico II como fundador de uma linha política maquiavelista que pode ser acompanhada até o surgimento de Hitler, e nega que este monarca absolutista tenha governado no sentido do Iluminismo, embora ele tivesse mantido durante algum tempo um contato próximo com o autor iluminista francês mais lido na época, ou seja, o filósofo Voltaire.

UM POETA DRAMáTiCO NO TRONO DOs hOhENZOllERN Frederico II pôs à prova seu talento como autor de peças teatrais no breve período de paz entre a Primeira (1740–1742) e a Segunda Guerra de Silésia (1744–1745). Ele contribuiu para as festividades das bodas de um aristocrata amigo com a comédia Le Singe de la Mode (O macaco da moda).

Passado um bom tempo depois da segunda vitória sobre a sua rival em Viena, a imperatriz Maria Teresa, ele escreveu em língua francesa, inspirado pelo seu protegido Voltaire, um esboço em prosa para uma ópera. O poeta da ópera da corte, Leopoldo de Vilati, desenvolveu a partir desse texto um libreto italiano, que foi musicado pelo diretor da orquestra da corte, Carl Heinrich Graun. Tratava de um ditador na Roma antiga, que, durante uma guerra civil, poupa a cidade, pondo assim sua vida em risco: Coriolano estreou em Berlim em fins de 1749 (o nome do rei como coautor foi omitido). Numa carta, Frederico disse que, ao colaborar neste trabalho comunitário, ele teria “se submetido às regras da música”, e que considerava – tendo como pano de fundo as suas penosas lembranças do severo pai – a cena em que aparecem Coriolano e seu filho Paulino uma das mais “comoventes”.

Um outro projeto operístico cuja autoria pode ser atribuída, pelo menos na sua intenção, ao rei, utilizou mais uma vez um tema da Antiguidade – usado também como pretexto para tratar de circunstâncias políticas da atualidade. Nesse caso, o personagem principal era Sulla, um ditador romano que se traveste de cidadão pacífico para se misturar com os outros cidadãos. Silla foi apresentada pela primeira vez em 1753, em Berlim. É presumível que Frederico não apenas tivesse em mente uma aproximação da opera seria à tragédie francesa, mas que quisesse estatuir um exemplo a caminho da criação de uma “escola berlinense” independente; e que também quisesse, de passagem, refletir a si mesmo e à sua política.

A óPERA COMO ARMA DE gUERRA A terceira obra em cuja criação o rei prussiano teve um papel principal (sendo dessa vez indicado com seu próprio nome) foi Montezuma. Baseava-se em bem conhecidos relatos sobre a conquista do México pelos espanhóis no início do século XVI, e faz parte de uma longa série de óperas que tratam das “Índias Ocidentais” e dos “índios”. Esta série teve seu início em Londres, em 1695, com a Indian Queen, de John Dryden e Henry Purcell, atingiu um primeiro e brilhante apogeu com Les Indes Galantes, de Jean-Philippe Rameau, em Paris, em 1735, e teve continuidade até o presente (como, por exemplo, em recentes obras de Wolgang Rihm e Bernhard Lang). O libretista coroado pôde basear-se, em 1753 sobretudo, num dramma per musica de autoria de Girolamo Alvise e Antonio Vivaldi, surgido duas décadas antes, em Veneza. Contudo, ele procurou se afastar cuidadosamente desse texto. A partir da correspondência entre ele e sua irmã preferida, Guilhermina von Bayreuth, sabe-se que Frederico escreveu o seu Montezuma na língua que ele mesmo utilizava na corte, a saber, o francês. Depois enviou o texto para a Alta Francônia, para ser revisto criticamente, e o mandou traduzir em versos italianos pelo poeta da corte, Giampietro Tagliazucchi. O compositor da corte, Carl Heinrich Graun, compôs a partitura entre maio e novembro de 1754.

frieder ReininghausTributo ao rei asteca

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A história de horror do entrechoque de mentalidades e religiões no “Ano 13 do Coelho” (1518) e da destruição da cultura asteca por Hernán Cortéz e seus mercenários foi escolhida de caso pensado. Frederico II louvava o “nobre selvagem” que se torna vítima da sua boa fé e da sua inteireza, e fez saber a um dos seus assessores no início da escrita do libreto que sua intenção não era apenas despertar “compaixão e emoção”, mas também transmitir uma mensagem política. Ele fazia questão de que “Cortéz fosse um tirano e que, com isso, mesmo na música fosse possível lançar alguma munição contra a barbárie da religião católica”.

Coerentemente, os diálogos – fazendo claramente alusão à virulenta confrontação político-militar com o governo imperial em Viena – alvejavam a fome de poder e de riquezas que os Habsburgo manifestavam em nome da Igreja Católica: “México e o mundo inteiro / as leis do monarca da Espanha / e o seu Reino devem honrar. / Interessa-nos menos conquistar reinos, / do que fazer com que aqui se conheça o nosso Deus. / E entre vós fomentar o ofício divino, que a esse Deus aprouver”.

Depois da estreia de Montezuma em 1755, Frederico II teve que se ocupar com os preparativos e com a realização da Guerra dos Sete Anos. Esta primeira guerra de extensão mundial levou não somente ao fechamento dos teatros na Prússia, mas o país como um todo à beira do abismo. Depois do tratado de paz assinado no palácio de Hubertusburgo em 1763, o rei perdeu interesse pela criação literária. Tornou-se mais maligno, cada vez mais solitário e incapaz de qualquer laivo de criatividade.

Montezuma, devido justamente ao contexto político, tornou-se uma das óperas mais bem-sucedidas de Graun. Nas regiões em que predomina a religião protestante, volta e meia ela é tirada do baú até hoje em dia. Os especialistas continuam expressando reconhecimento a Frederico II, porque o novo tipo de ária aplicado nesta obra, a cavatina dividida em duas partes, que substituiu a ária da capo tripartite, abriu caminho para uma nova forma de ópera no Norte da Alemanha. O uso nu e cru do teatro musicado como arma de guerra ideológica é mencionado, quando muito, como sendo um fenômeno colateral. Mas nele consistia o verdadeiro cerne desta obra – “mesmo na música”. <

Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autor:Frieder Reininghaus, musicólogo. Desde 1971 é colaborador das emissoras de rádio alemãs Deutschlandfunk/Radio, WDR e Südwest(rund)funk, bem como de diversos jornais e revistas. Entre 1996 e 2005 foi docente em Bayreuth e, desde 2005, da Universidade de Viena. É coeditor de vários manuais espe-cializados e, desde 2011, edita em Viena a revista de música Österreichische Musikzeitschrift.

Tradução do alemão:George Bernard Sperber

frieder ReininghausTributo ao rei asteca

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Klara Lidén, Sem título, Poster Painting, 2010. Cortesia da artista e de Galerie Neu (Berlim)

Mark Münzel

Certa vez um pai deu de herança a seus filhos casacas que sempre estavam na medida certa, bastando para isso apenas que se observasse exatamente o corte. Mas eis que as velhas casacas em pouco parecem fora de moda aos filhos. Por fim cada um deles tranca sua casaca no armário para de então em diante se vestir de acordo com a moda, conforme melhor lhe aprouvesse, e só a tira de lá quando quer invocar a autoridade do pai. É sabido que com essa sátira publicada em 1704, Jonathan Swift se refere à invocação da palavra bíblica sem

uma literalidade exata. Aleida Assmann (1997) também a lê como testemunho de um temor moderno desde então crescente de perder a herança original dos ancestrais. Nós sabemos que perdemos o prototexto.

De modo semelhante procuramos, também em fábulas e mitos, a autenticidade no entanto há tempo desvanecida. Escrituras sagradas, mitos envolvidos pela aura do sagrado e fábulas profanas se assemelham nesse ponto: uma vez que são ancestrais, são veneradas, mas também necessitam de constante renovação.

PROTOTExTO NO ARMáRiOUma contribuição à busca dos mitos genuínos

no ano que lembra os irmãos grimm

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ANTEs DOs iRMÃOs gRiMM Em 1697 o escritor francês Charles Perrault publicou seus Contes de ma mère l‘Oye, que teria ouvido da tradição popular. Ele os adequou ao gosto da época, e assim Le Petit Chaperon Rouge (Chapeuzinho vermelho) era lido no século XVII como a sedução de uma camponesinha por parte de um nobre. A edição de Perrault de 1964 menciona antecessores de várias das fábulas em obras ainda muito mais antigas, como por exemplo Cendrillon (A gata borralheira), que teria sua origem no poeta napolitano Giambattista Basile.

Entre 1760 e 1765 surgiram as canções do bardo gaélico Ossian, do século III. Quando mais tarde se percebeu que elas eram em sua maior parte do poeta escocês James Macpherson, do século XVIII, já haviam ocasionado uma moda de poesia ancestral. Seu estilo (analisado pelo historiador da música James Mulholland em 2009) se adequa à corrente literária do sentimentalismo inglês que imperava à época e que precedeu o movimento alemão Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto). Este é o segredo do sucesso do poeta: ele está em consonância com a tendência atual, mas sugere originalidade, e muda de modo aparentemente espontâneo da forma passada para o presente ou intercala exclamações.

Ossian deixou o Goethe do Sturm und Drang impressionado: Werther lê seus versos a Carlota. Goethe passou a prestar atenção em Ossian por indicação de Johann Gottfried Herder, que se interessava por canções populares e fábulas. Herder não dava importância ao caráter genuíno e primevo, mas escreveu ele mesmo novas fábulas no estilo das antigas. Nisso foi seguido por outros poetas do princípio do século XIX (mas, ao contrário do que aconteceu com Macpherson-“Ossian”, eles se revelavam em sua condição de autores): Clemens Brentano, Achim von Arnim (foi por intermédio deles que os irmãos Grimm começaram a se entusiasmar pela poesia popular), Goethe, Adelbert von Chamisso. Nesse contexto, os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm publicaram, entre 1812 e 1815, seus “contos infantis e domésticos”, não criados, mas sim reunidos por eles e hoje conhecidos como “os contos de Grimm”.

As pessoas que lhes contavam as fábulas eram, em parte, elas mesmas colecionadoras cultas de fábulas (conforme Bernhard Lauer, especialista nos irmãos Grimm, deixa claro). A mais importante entre elas foi Dorothea Viehmann, uma cidadã burguesa empobrecida, de origem francesa, que na condição de calvinista fiel à Bíblia estava vinculada a uma cultura mais livresca, e que deve ter repassado aos irmãos Grimm algumas das fábulas do livro de Perrault.

Estas insinuam um tom popularesco – provavelmente também em razão de uma consciente elaboração literária. Existiam então meios estilísticos de evocar o ancestral, em palavras ou nas ruínas artificiais muito apreciadas na época. O fato de um poeta retrabalhar antigos textos parecia antes um enobrecimento do que uma falsificação. Não se estabelecia ainda fronteiras nítidas em relação à beletrística. Apenas na segunda metade do século XIX é que começou a se exigir aos poucos uma fidelidade maior ao texto.

A bElETRísTiCA NOs ANTigOs MiTOs Transmitir a tradição significa revisá-la. Conhecemos até mesmo os antigos mitos

não da era ancestral oral, mas sim a partir de sua reprodução literária, na maior parte das vezes feita na Antiguidade tardia. E justamente na mais antiga fonte dos mitos gregos, Hesíodo, a investigação crítica encontrou influências especialmente nítidas da literatura do Oriente Médio. “Zeus e os deuses restantes jamais voltaram a se recuperar completamente de Homero”, escreveu Jacob Burckhardt – mas não conhecemos fontes mais autênticas. Dependendo do objetivo, os mitos eram escolhidos e modificados: raramente um poeta antigo narra um mito inteiro, escreve Carlos García Gual (1999), especialista espanhol em Grécia antiga, pois ele pressupõe que seus ouvintes já conhecem o mito, e quer apenas lembrar dele a fim de em seguida destacar o que lhe interessa especialmente no momento. Paradoxalmente, deduz-se muitas vezes do fato de conhecermos o mito apenas a partir de versões individuais e variáveis que antes disso ele era coletivo e invariável, de modo que sua transformação foi um acréscimo posterior.

DEPOis DOs iRMÃOs gRiMM A bUsCA DA DisTâNCiA Na época em que os contos de Grimm se tornaram populares na Europa, viajantes se puseram a caminho para encontrar histórias semelhantes também fora da Europa. Essa pesquisa seguiu dois quadros de busca tipicamente europeus: as fábulas e sagas que haviam sido acabadas de ser coletadas (especialmente influentes nesse sentido foram os contos de Grimm) e os antigos mitos, que já há muito serviam de fonte sempre renovada para a literatura.

Esperava-se então encontrar histórias tradicionais genuínas e ancestrais, contadas adiante coletivamente de geração em geração, ou seja, o contrário da literatura escrita artificial e refinada individualmente que caracterizava o presente. Mas mais uma vez não se encontrou o prototexto.

Embora várias sociedades fora da Europa não possuíssem uma cultura escrita até o século XX, já no princípio da pesquisa etnológica dos mitos, no século XIX, muitos povos marginais, inclusive, já haviam tido contato com sociedades possuidoras de escrita. E os pesquisadores raramente eram os primeiros entre aqueles povos, seu ponto de partida eram por exemplo as estações missionárias. Os habitantes destas no princípio não costumavam ler romances europeus, mas mantinham contato com missionários e comerciantes, que usavam componentes da cultura escrita (como citações e histórias bíblicas, parábolas e provérbios) – sem contar os índios norte-americanos de formação escrita como George Hunt, o contador de mitos e colaborador do etnólogo Franz Boas: ainda que fosse um kwakwaka’wakw, mas filho de um inglês e de uma tlingit, ele se situava (mais ainda do que a contadora de fábulas dos irmãos Grimm, Dorothea Viehmann, que se encontrava entre a origem francesa e o nascimento alemão) entre diferentes culturas. Além disso, os mitos podiam ser registrados apenas após ter sido superada a barreira linguística, portanto depois de um contato mais estendido, e a pesquisa muitas vezes se apoiava em cultural brokers, que sabiam redigir longos textos a mão ou ditá-los ao microfone mais tarde. Isso não quer dizer que os textos registrados não representassem mitos indígenas, mas sim que neles o que é “autêntico” e o que é “literário” mal pode continuar sendo distinguido.

Mark MünzelPrototexto no armário

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Etnólogos fazem relatos acerca da flexibilidade dos mitos a partir de numerosas sociedades não europeias. Vivenciei um exemplo evidente para “a language of argument, not a chorus of harmony” (“uma linguagem de argumento, não um coro de harmonia”, Edmund Leach 1968) em 1968, na aldeia dos Kamayurá, no Brasil Central, onde há anos se costumava contar mitos a etnólogos, mas não como dessa vez, quando justamente uma mulher contou sobre a mulher ancestral que foi a primeira a ensinar a relação sexual aos homens. Ousada, ela contou sua história enfrentando os homens, que procuravam perturbá-la fazendo caretas e dando gargalhadas. Ela destacava de modo cada vez mais zombeteiro a compreensão lenta do homem, que só bem mais tarde entendeu o que era de fato importante no amor; sua versão era uma resposta aos homens em torno dela.

As DifiCUlDADEs DA liTERAliDADE Ainda que os pesquisadores já a partir do século XIX cada vez mais tenham colocado o bom estilo em segundo plano diante da reprodução literal de textos registrados, eles mal dominavam a língua indígena antes do século XX, e por isso dependiam de intérpretes. Estes inseriam seu próprio estilo e muitas vezes também seus próprios conteúdos nas narrativas.

Em 1876, Couto de Magalhães publicou narrativas de índios da Amazônia que ele havia registrado com todo o cuidado filológico em língua geral. Esta era uma língua muito espraiada na região do Amazonas, embora nem sempre a língua materna, mas em parte apenas língua franca entre os índios do Amazonas e os colonizadores. Algumas das histórias de antemão já eram traduções, portanto, e provavelmente já adequadas estilisticamente com liberdade, de acordo com o modo como se achava que o pesquisador queria ouvi-las. Embora este então tenha traduzido os textos literalmente, acabaram sendo inseridas nele também suas próprias noções. E assim ele, que em seu entusiasmo romântico tardio via o mundo dos índios da Amazônia próximo da Idade Média romantizada, traduziu determinada palavra por “vassalo”, que de resto normalmente era traduzida por “escravo” – provavelmente porque ele próprio preferia pensar na devota Idade Média a pensar na época das pouco devotas caças a escravos. Ele também retocou o estilo ao, por exemplo, evitar repetições de palavras com as quais se queria representar conscientemente a monotonia (por exemplo durante uma viagem). Com isso, ele não pretendia, ao contrário de Ossian, sugerir uma oralidade ancestral, mas sim convencer os leitores beletristicamente instruídos da alta qualidade dos textos.

APAgANDO fRONTEiRAs Quando gravamos fábulas e mitos “autênticos”, não seguramos nosso microfone discretamente junto ao fogo do acampamento ante o qual os antigos contam espontaneamente, mas sim gravamos os mesmos mitos em uma situação de exceção criada por nós: colocamos o contador de mitos diante de nosso microfone, depois de encontrarmos um lugar acusticamente adequado, na maior parte das vezes um pouco longe do movimento. Este lugar é, muitas vezes, a própria cabana do pesquisador, hoje em dia não raramente inclusive seu escritório. A iniciativa de contar mitos na maior parte dos casos parte do pesquisador. Gravar um mito intocado e por assim

dizer espontâneo – isso não passa de uma ilusão! Pesquisadores não colecionam mitos inventados, mas por

certo mitos transformados. É claro que eles já existiam antes, mas não na forma em que são apresentados nas narrações iniciadas pelo pesquisador, conforme o antropólogo espanhol Manuel Gutiérrez Estévez (2003) deixa claro. O pesquisador sentase por assim dizer ante um depósito no qual conteúdos míticos estão armazenados como matéria bruta, que o contador de mitos retira em seguida e conta como mitos. Em outras situações, a forma bruta é transformada de modo diferente, por exemplo em um ritual, um ensinamento às crianças ou em artesanato. Isso lembra a adequação multifacetada que García Gual destaca nos mitos antigos.

Desde sempre aqueles que transmitiram mitos e fábulas também os transformaram. Retoques da moda, no entanto, não representavam uma suspensão do respeito (ao contrário do que acontece na sátira de Swift). A alegria de narrar tipicamente humana acrescenta sempre algo novo a mitos e fábulas. Os irmãos Grimm não foram apenas colecionadores de fábulas, mas também seus habilidosos revisores e reorganizadores. <

O presente texto se baseia em um texto anterior que em 2010 foi editado na publicação em homenagem a Peter Gerber (publicação em CD, Völkerkundemuseum da Universidade de Zurique). O texto foi retrabalhado e adaptado pelo próprio autor.

Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autor:Mark Münzel, etnólogo, estudou Etnologia, Antropología Cultural da Europa e Romanística em Frankfurt do Meno, Paris, Coimbra (Portugal) e Recife (Brasil). Entre 1989 e 2008 foi professor universitário em Marburg. Dedicou muitos anos à pesquisa das sociedades indígenas do Brasil, Paraguai, Peru e Equador.

Tradução do alemão:Marcelo Backes

Informações adicionais sobre a ilustração:Klara Lidén (1979, Estocolmo), artista sueca estabelecida atualmente em Berlim, trabalha com instalação, performance e vídeo. Para seus Poster Paintings, ela cola pedaços de cartazes uns sobre os outros. Desses achados urbanos, surge assim um “arquivo ilegível da cidade camuflado de quadro monocromático” (monopol). Essas esculturas em relevo surgidas da superposição de camadas coladas são, segundo a crítica de arte Elke Buhr, “símbolos de uma história que deve ser preservada mas não é visível”; desse modo oferecem uma referência visual às questões colocadas por Mark Münzel a respeito do prototexto, sua legibilidade e a possibilidade de ser reconstruído.

Mark MünzelPrototexto no armário

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“Velório”, Tepito, Cidade do México, outubro de 2010. Foto: Frida Hartz

Anne huffschmid

A devoção define-se por seu caráter íntimo, os espíritos são invisíveis, a religiosidade não se deixa fotografar. O que podemos aspirar a ver é o que dela se materializa e se manifesta em público, seus atos e rastros na vida cotidiana, os rostos e corpos que a praticam. Veremos nas séries de Frida Hartz e Verónica Mastrosimone, das quais fragmentos são mostrados aqui, que as visões não são nem de longe homogêneas. Seus cenários são duas das megalópoles emblemáticas da América Latina, a Cidade do México e Buenos Aires. São cidades efervescentes

e hipermodernas, sem dúvida, ao mesmo tempo em que são tomadas e fragmentadas pela pobreza e pela exclusão. As fotógrafas nos levam, cada uma em sua cidade, a percorrer cultos de rua, sacerdotes e fiéis em ação, inscrições nos muros e na pele, sincretismos culturais, ícones e signos, santos e santas perambulando pelas ruas, no bairro e na colônia popular, na vila de emergência e no assentamento. Sobretudo elas nos confrontam com uma variedade de olhares, melancólicos uns, desafiantes e céticos outros, vulneráveis todos.

“VER E CRER”Um projeto fotográfico em cenários urbanos de

duas megalópoles emblemáticas da América latina, a Cidade do México e buenos Aires, revela as novas

religiosidades nas precárias e efêmeras comunidades do urbano.

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Houve, no princípio desta exploração visual, que se inscreve no projeto Global Prayers*Redemption and Liberation in the City (http://globalprayers.info), duas inquietudes: o que restou dos espíritos mobilizadores daquele cristinanismo libertador, comprometido com os pobres, dos anos 1970? E em que creem hoje, depois do colapso do monopólio católico, os habitantes das regiões carentes destas urbes? Segundo os próprios participantes, a noção de “libertação” se tornou mais complexa, já não se referindo somente às amarras materiais do mundo exterior, como a exploração e a opressão, mas abarcando cada vez mais as necessidades de afeto, sentido e celebração. O religioso se diversificou de muitas maneiras: da promessa de um futuro melhor, mais justo, até às necessidades do dia a dia; do materialismo histórico ao milagre cotidiano. Os santos tradicionais, como São Judas Tadeu ou São Caetano, tornaram-se ícones pop dos jovens urbanos, ao mesmo tempo em que vão se popularizando os santos dissidentes, como o Gauchito Gil em Buenos Aires ou, o mais recente dos novos cultos, a Santa Muerte no México. Ao contrário de outros credos, a Flaquita, segundo dizem os devotos, recebe sem preconceito qualquer pecador. Além disso oferece, segundo a antropóloga Laura Lee Roush, um “espaço afetivo”, de contenção efêmera, para todo tipo de “traumatizados”.

E isso se dá justamente no não resolvido das sociedades onde nos encontramos, contra todos os prognósticos, com a memória viva daquela Teologia da Libertação. Nos rincões marginalizados, onde alguns padres ainda hoje se dedicam a pregar a transformação social. Ou também na violência excessiva do México atual, onde não parece ser casual que muitos daqueles que põem suas vozes e corpos para frear esta nova guerra suja estejam arraigados neste catolicismo profético. Reconhecemos aí uma vontade assombrosa de crer e assim transcender um presente traumático.

São os espíritos invisíveis da atualidade, vinculados às mais diversas urgências de salvação e transformação, que as imagens de Hartz e Mastrosimone nos revelam. Olhando suas fotos, chega-se a pensar que a fé não é, em princípio, uma questão de filiação religiosa, mas que tem a ver com o poder de enxergar além do visível. E que a magia urbana, daqui e de agora, não está arraigada somente naqueles ritos e rituais que podem parecer exóticos, pelo menos para o estranho, mas que repousa sobretudo na magia fundadora da coexistência: nas comunidades precárias e efêmeras que se constituem e se dissolvem a cada instante em nossas cidades. <

Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autora:Anne Huffschmid, especialista em ciências da cultura e autora. Pesquisa, leciona e publica sobre análise do discurso, a imagem e o espaço público, a cultura da urbanidade e da memória, centrando-se na América Latina e, em especial, no México e na Argentina. É membro fundadora do Centro para Assuntos Urbanos metroZones, iniciador do projeto multidisciplinar “Global Prayers – Redemption and Liberation in the City”. Neste contexto participou da concepção da exposição internacional “The Urban Cultures of Global Prayers”. Recentemente foi publicado sobre o tema Faith is the Place (2012).

Tradução do espanhol:Soraia Vilela

Anne huffschmid“Ver e crer”

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Livro de artista “El Mar” – Pablo Neruda (2004). Arte gráfica: Gisela Oberbeck. Tipografia: Christa Schwarztrauber. Cortesia da artista. Foto: Mario Steigerwald

berthold Zilly

Escrever sobre Curt Meyer-Clason poderia parecer delicado, pois sendo glorificado por duas gerações de críticos, editores e leitores como um gênio da tradução e do intercâmbio cultural, um herói, um mito − também há, desde os anos 80, vozes discordantes, que questionam o seu passado político ou a qualidade das suas traduções. Será que essa discrepância de opiniões pode embaraçar uma homenagem? Decididamente não. Quem ponderar essas críticas diante do conjunto da vida e obra de Curt Meyer-Clason, vai chegar ao seguinte balanço: ele foi o mais importante mediador entre o mundo ibero-americano e o mundo germânico no século XX, um mestre da língua alemã, um grande humanista.

Teve uma vida romanesca, cheia de percalços, e peripécias e triunfos em diversos países dos dois lados do Atlântico, oferecendo farta matéria-prima para um romance − o qual

realmente chegou a ser escrito, por ele mesmo, intitulado Äquator (1986). Nascido no sul da Alemanha, abandonou o colégio antes de terminar o curso médio, virou bancário, executivo de multinacional norte-americana do setor têxtil na França e, a partir de 1937, no Brasil, membro do partido nacional-socialista, presidiário, estabelecendo-se em Munique a partir de 1954 como revisor, redator, tradutor, escritor, passando a ser diretor do Instituto Goethe de Lisboa de 1969–76, voltando para Munique depois.

Era homem de várias metamorfoses, mas no fundo de uma só, radical. Pois teve duas vidas: uma antes e uma depois de 1942, ano em que o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial e em que Meyer-Clason foi preso no Rio Grande do Sul, acusado de espionagem em favor da Alemanha hitlerista, sendo que nunca se provou que tenha prejudicado concretamente alguém.

ENTREum grand seigneur do diálogo entre culturas e pessoas.

in memoriam Curt Meyer-Clason (1910–2012).

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Mais tarde, interpretou a prisão a que foi condenado como uma imensa sorte, uma chance para ler e refletir, o que lhe abriu os olhos para o que passou a considerar como verdadeiros valores na vida: a literatura, a beleza do mundo, a pessoa humana, a convivência pacífica. Saulo transformou-se em Paulo. Cultivou pelo Brasil, país onde nasceu pela segunda vez, sempre um amor especial, que mais tarde se estenderia a Portugal. Se teve culpa, dela se redimiu dedicando todo o resto da sua longa vida ao diálogo entre as nações, as culturas, as pessoas.

Encontrou, finalmente, a sua vocação, tornando-se um grande comunicador cultural, um mestre da palavra escrita e falada, um apaixonado pela literatura, da qual apreciava tanto o aspecto estético como o ético, um incansável militante contra qualquer tipo de preconceito racista, social ou nacionalista, em favor da liberdade e da justiça social, um intrépido homem de letras polivalente, cosmopolita, cético e otimista ao mesmo tempo. Até hoje, ele é altamente estimado em Portugal, por ter apoiado, durante a ditadura, intelectuais oposicionistas, e a partir da Revolução dos Cravos de 1974, o processo da democratização.

Em poucos anos afirmou-se como um renomadíssimo tradutor literário do português e do espanhol para o alemão, mas também do inglês (Vladimir Nabokov) e do francês (Elie Wiesel). Tornou-se nos anos 60, junto com os jornalistas e ensaístas Albert Theile, fundador da revista HUMBOLDT, e Günter W. Lorenz, fundador da revista Zeitschrift für Kulturaustausch, um dos principais divulgadores e intérpretes do chamado boom da literatura latino-americana nos países de língua alemã, traduzindo e comentando autores hispano-americanos como Borges, García Márquez, Lezama Lima, Onetti, Roa Bastos, Neruda, e brasileiros como Jorge Amado, Adonias Filho, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, mas também clássicos do século XIX como o brasileiro Machado de Assis e o português Camilo Castelo Branco. Acabou traduzindo mais de cem livros, organizando uma boa dúzia, escrevendo uma dezena, além de um sem-número de artigos, peças radiofônicas, prefácios e posfácios, ensaios, sendo um dos seus fóruns a revista HUMBOLDT.

O seu enorme talento formulador e fabulador com certeza o ajudou no seu ofício principal, o de traduzir. Mas não raras vezes a criatividade própria entrava em conflito com a não menos importante lealdade em relação ao texto original e ao leitor. Pois existe um tênue equilíbrio entre dois papéis complementares no ofício do tradutor: ser ao mesmo tempo servidor e senhor do texto. Meyer-Clason parece que se sentia mais senhor do que servidor.

A pesquisa paciente não era o seu forte, já que confiava muito na sua intuição e experiência, e no diálogo com os autores. Disse certa vez, numa palestra: “Eu não uso dicionários, os dicionários é que me usam”. Por outro lado, a crítica literária, com a sua atitude bastante acrítica em relação a ele mesmo, tem alguma corresponsabilidade pela frequente falta de exatidão e acuidade no trabalho de Meyer-Clason. Além disso, é preciso levar em consideração as péssimas condições financeiras da atividade tradutória que quase tornam inviável a necessária perseverança.

Esplendor e limite da estratégia tradutória meyerclasoniana ficam particularmente evidentes no trabalho com a obra de Guimarães Rosa, autor que criou praticamente um idioleto,

semienigmático, com máxima distância ao português-padrão, apesar da aparente proximidade à fala dos sertanejos mineiros. Escreve − o que parece paradoxal − um barroco conciso, conjugando abundância com parcimônia lexical, cada palavra calculadíssima, frases paratáticas e longas alternando-se com frases lacônicas. Tudo isto aparece bastante aplainado na versão alemã, apesar do seu estilo plástico e sonoro, sempre envolvente.

Meyer-Clason não acreditava na radical estranheza entre as línguas e culturas, mas na profunda afinidade entre elas, numa relação quase pré-babélica, apesar de reivindicar da tradução também “a cor da estranheza”, uma fórmula feliz de Wilhelm von Humboldt. Desejava − como diria um dos primeiros teóricos da tradução e fundador da hermenêutica moderna, Friedrich Schleiermacher − levar o livro estrangeiro ao leitor, em vez de levar o leitor ao livro estrangeiro, seguindo, portanto, uma estratégia mais bem naturalizadora e menos estranhadora. E realmente levou as literaturas latino-americanas e ibéricas para os leitores de língua alemã, um enorme presente que lhes fez, condizente com o seu caráter que era todo generosidade. Guimarães Rosa, que sabia alemão, viu claramente essa estratégia assimiladora com respeito ao gosto do público alemão, criticando-a diplomática e amigavelmente, mas concordando com ela de um modo geral, elogiando-a, em nome da legibilidade, da compreensibilidade, e da vendabilidade das traduções.

Ninguém melhor do que esse amigo de Meyer-Clason para caracterizá-lo, multilingualmente, vendo nele “qualidades várias de um germânico, de um anglo-americano e de um latino, Gruendlichkeit, souplesse, sense of humour, Gemuetlichkeit, verve, esprit, accuracy, tenacidade, objetividade, coragem, businessmanship, sensibilidade, Tiefe, Temperament”. <

Copyright:Goethe-Institut e. V., Humboldt RedaktionDezembro 2012

Autor:Berthold Zilly (1945), romanista especializado em Brasil, catedrático da Universidade Livre de Berlim e da Universidade de Bremen, atualmente é professor visitante da Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil). Autor de ensaios sobre literatura latino-americana e tradução; tradutor de clássicos da literatura brasileira, portuguesa e argentina, como Os Sertões, de Euclides da Cunha; Confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro; Facundo. Civilización y barbarie, de Domingo F. Sarmiento. Está preparando uma nova tradução para o alemão de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.

Tradução do alemão:Claudia Silveyra D’Avila

berthold ZillyEntreMundos

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A educação – entre o coração e a razão

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OS ARTIGOS NEM SEMPRE EXPRESSAM NEM COINCIDEM PLENAMENTE COM A OPINIãO DA REDAçãO.

Capa:Pablo García López (*1977) “PET Soul Butterflies”, 2009Cortesia do artista (http://pablogarcialopez.com)

Pablo García Lopez (1977, Madri) estudou Biologia e doutorou- se em Neurologia em Madri. Obteve o título de Master of Fine Arts no Maryland Institute College of Art. Em sua série PET, ele remete a Ramón y Cajal (1852–1934), neurologista, patologista e histologista espanhol segundo o qual “todo homem pode ser, se assim se propuser, escultor de seu próprio cérebro” (1923), e para quem os neurônios eram “borboletas da alma”: “Como os entomologistas na procura das borboletas brilhantes e colori-das, minha atenção é captada, no jardim florido da substância cinzenta, por células com formas delicadas e elegantes, as mis-teriosas borboletas da alma, cujo bater de asas poderá um dia – quem sabe? – esclarecer os segredos da vida mental” (1923).

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