A epidemia silenciosa II

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ÁFRICA21– JUNHO 2013 63 o artigo passado, abordamos, ainda que de maneira superficial, a questão da violência do- méstica de que são vítimas as mulheres, que colocam o Brasil no vergonhoso e inaceitável sétimo lugar entre 86 países pesquisados, com uma taxa de 4,4 homicídios por grupo de 100 mil habitantes. Hoje, trataremos dos casos de agressão contra crianças e adolescentes que ocorrem entre quatro paredes, e que mostram como ainda estamos longe dos pressupostos mais básicos de algo deno- minado civilização. O romance O meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos, é um dos livros mais traduzidos da literatura brasilei- ra – pode ser lido em 52 línguas diferentes, o que garante ao autor um lugar de desta- que, junto com Paulo Coelho e Jorge Amado, entre os escritores nacionais mais conhecidos no exterior. Publicado originalmente em 1968, teve duas adaptações para o cinema e três para no- velas de televisão, além de contar com inúmeras e sucessi- vas edições desde seu lançamento. Trata-se de uma história autobiográfica, que narra as agruras de uma criança pobre tentando sobreviver dig- namente num meio hostil. Sensível e curioso, Zezé, o personagem principal, enfrenta o alcoolismo do pai, a omissão da mãe, as humilhações sociais e as dificuldades econômicas, escapando da realidade por meio da fanta- sia: o pé de laranja lima existente no quintal da casa torna-se seu confidente. O livro, dedicado ao público juvenil, é um dos maiores libelos contra a violência do- méstica já registrados pela literatura. A força do romance, no entanto, não está na condução do texto, que a todo momento apela para o sentimentalis- mo fácil, mas no fato estarrecedor, que poucos leitores se dão conta, de que o final da história não está na conclusão do livro, mas em sua dedicatória... Se, após acompanhar as peripécias de Zezé ao longo de 180 páginas, voltarmos ao início, leremos: «Aos mortos: meu preito de saudade para meu irmão Luís, o Rei Luís, e minha irmã Glória; Luís desistiu de viver aos vinte anos e Glória aos vinte e quatro também achou que viver não valia mesmo». Ou seja, dos cinco irmãos que formavam a família de José Mauro de Vasconcelos, dois se mataram! A ra- zão? Eles não suportaram conviver com os traumas provocados por um pai alcoólatra, extremamente vio- lento e intolerante, e por uma mãe que, embora sofresse ela também as agressões do marido, se omitia submissa às surras tomadas pelos filhos. Segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, todos os dias são registrados 364 denúncias de violência doméstica contra crianças e adoles- centes no Brasil – um número que, todos sabem, está muito aquém da realidade. Os relatos mais frequentes encontrados nos registros dos hospitais são de marcas na pele provo- cadas por murros, tapas, surras de chicote, fios e vara ou por queimaduras de cigarro, ferro elétrico, água fervente e objetos aquecidos. Também são comuns fraturas de ossos (braços, pernas, crânio, costelas e clavículas) e lesões de vísceras (ruptura de fígado, baço ou intestinos). Nos casos de abuso sexual, pesquisa patrocinada pelo Ministério da Justiça concluiu que as denúncias quase nunca redundam em processo legal, porque os pais não acreditam no relato dos filhos ou os policiais não crêem na descrição dos pais por falta de provas físicas (somente 30% dos casos resultam marcas evidentes). Levantamento do Ministério da Saúde apontou, em 2011, que do total das notificações de violên- cia contra crianças menores de catorze anos, a agressão se- xual é o segundo fator mais citado. A maior parte dos ata- ques ocorre na residência da criança (64,5%) e o meio mais utilizado para o constrangimento é a força corporal ou espancamento. Grande parte dos agressores são pais e familiares, ou alguém do convívio muito próximo, como amigos e vizinhos. Temos sido apontados como um país em franca as- censão, ocupando lugar de destaque no cenário interna- cional. No entanto, não há porque nos orgulharmos de qualquer protagonismo econômico, se nossa sociedade não consegue enfrentar questões como a violência domés- tica, contra mulheres, crianças e adolescentes, que nos empurra aos níveis mais baixos de civilidade. Todos os dias são registrados 364 denúncias de violência doméstica contra crianças e adolescentes no Brasil, número muito aquém da realidade A crónica de Luiz Ruffato A epidemia silenciosa (II) N luizruff[email protected]

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Artigo de Luiz Ruffato na revista África 21, de junho de 2013.

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África21– junho 2013 63

o artigo passado, abordamos, ainda que de maneira superficial, a questão da violência do-

méstica de que são vítimas as mulheres, que colocam o Brasil no vergonhoso e inaceitável sétimo lugar entre 86 países pesquisados, com uma taxa de 4,4 homicídios por grupo de 100 mil habitantes. Hoje, trataremos dos casos de agressão contra crianças e adolescentes que ocorrem entre quatro paredes, e que mostram como ainda estamos longe dos pressupostos mais básicos de algo deno-minado civilização.

O romance O meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos, é um dos livros mais traduzidos da literatura brasilei-ra – pode ser lido em 52 línguas diferentes, o que garante ao autor um lugar de desta-que, junto com Paulo Coelho e Jorge Amado, entre os escritores nacionais mais conhecidos no exterior. Publicado originalmente em 1968, teve duas adaptações para o cinema e três para no-velas de televisão, além de contar com inúmeras e sucessi-vas edições desde seu lançamento.

Trata-se de uma história autobiográfica, que narra as agruras de uma criança pobre tentando sobreviver dig-namente num meio hostil. Sensível e curioso, Zezé, o personagem principal, enfrenta o alcoolismo do pai, a omissão da mãe, as humilhações sociais e as dificuldades econômicas, escapando da realidade por meio da fanta-sia: o pé de laranja lima existente no quintal da casa torna-se seu confidente. O livro, dedicado ao público juvenil, é um dos maiores libelos contra a violência do-méstica já registrados pela literatura.

A força do romance, no entanto, não está na condução do texto, que a todo momento apela para o sentimentalis-mo fácil, mas no fato estarrecedor, que poucos leitores se dão conta, de que o final da história não está na conclusão do livro, mas em sua dedicatória... Se, após acompanhar as peripécias de Zezé ao longo de 180 páginas, voltarmos ao início, leremos: «Aos mortos: meu preito de saudade para meu irmão Luís, o Rei Luís, e minha irmã Glória; Luís desistiu de viver aos vinte anos e Glória aos vinte e quatro também achou que viver não valia mesmo».

Ou seja, dos cinco irmãos que formavam a família de José Mauro de Vasconcelos, dois se mataram! A ra-zão? Eles não suportaram conviver com os traumas provocados por um pai alcoólatra, extremamente vio-lento e intolerante, e por uma mãe que, embora sofresse

ela também as agressões do marido, se omitia submissa às surras tomadas pelos filhos.

Segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, todos os dias são registrados 364 denúncias de violência doméstica contra crianças e adoles-centes no Brasil – um número que, todos sabem, está

muito aquém da realidade. Os relatos mais frequentes encontrados nos registros dos hospitais são de marcas na pele provo-cadas por murros, tapas, surras de chicote, fios e vara ou por queimaduras de cigarro, ferro elétrico, água fervente e objetos aquecidos. Também são comuns fraturas de ossos (braços, pernas, crânio, costelas e clavículas) e lesões de vísceras (ruptura de fígado, baço ou intestinos).

Nos casos de abuso sexual, pesquisa patrocinada pelo Ministério da Justiça

concluiu que as denúncias quase nunca redundam em processo legal, porque os pais não acreditam no relato dos filhos ou os policiais não crêem na descrição dos pais por falta de provas físicas (somente 30% dos casos resultam marcas evidentes). Levantamento do Ministério da Saúde apontou, em 2011, que do total das notificações de violên-cia contra crianças menores de catorze anos, a agressão se-xual é o segundo fator mais citado. A maior parte dos ata-ques ocorre na residência da criança (64,5%) e o meio mais utilizado para o constrangimento é a força corporal ou espancamento. Grande parte dos agressores são pais e familiares, ou alguém do convívio muito próximo, como amigos e vizinhos.

Temos sido apontados como um país em franca as-censão, ocupando lugar de destaque no cenário interna-cional. No entanto, não há porque nos orgulharmos de qualquer protagonismo econômico, se nossa sociedade não consegue enfrentar questões como a violência domés-tica, contra mulheres, crianças e adolescentes, que nos empurra aos níveis mais baixos de civilidade.

Todos os dias são registrados364 denúncias de violência doméstica contra criançase adolescentes no Brasil, número muito aquém da realidade

A crónica de Luiz Ruffato

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