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CRIMINOLOGIA A esquerda punitiva MARIA LÚCIA KARAM 1. As primeiras reivindicações repressoras: o combate à criminalidade dourada Na história recente, o primeiro mo- mento de interesse da esquerda pela repressão à criminalidade é marcado por reivindicações de extensão da re- ação punitiva a condutas tradicional- mente imunes à intervenção do siste- ma penal, surgindo fundamentalmen- te com a atuação de movimentos po- pulares, portadores de aspirações de grupos sociais específicos, como os movimentos feministas, que, notada- mente a partir dos anos 70, incluíram em suas plataformas de luta a busca de punições exemplares para autores de atos violentos contra mulheres, febre repressora que logo se esten- dendo aos movimentos ecológicos, igualmente reivindicantes da interven- ção do sistema penal no combate aos atentados ao meio ambiente, acaba por atingir os mais amplos setores da esquerda. Distanciando-se das tendências abolicionistas e de intervenção míni- ma, resultado das reflexões de crimi- nólogos críticos e penalistas progres- sistas, que vieram desvendar o papel do sistema penal como um dos mais poderosos .instrumentos de manuten- ção e reprodução da dominação e da exclusão, características da formação social capitalista, aqueles amplos se- tores da esquerda, percebendo ape- nas superficialmente a concentração da atuação do sistema penal sobre os membros das classes subalternizadas, a deixar inantigidas condutas social- mente negativas das classes dominan- tes, não se preocuparam em enten- 79

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CRIMINOLOGIA

A esquerdapunitivaMARIA LÚCIA KARAM

1. As primeiras reivindicaçõesrepressoras: o combate à

criminalidade dourada

Na história recente, o primeiro mo-mento de interesse da esquerda pelarepressão à criminalidade é marcadopor reivindicações de extensão da re-ação punitiva a condutas tradicional-mente imunes à intervenção do siste-ma penal, surgindo fundamentalmen-te com a atuação de movimentos po-pulares, portadores de aspirações degrupos sociais específicos, como osmovimentos feministas, que, notada-mente a partir dos anos 70, incluíramem suas plataformas de luta a buscade punições exemplares para autoresde atos violentos contra mulheres,febre repressora que logo se esten-dendo aos movimentos ecológicos,igualmente reivindicantes da interven-

ção do sistema penal no combate aosatentados ao meio ambiente, acabapor atingir os mais amplos setores daesquerda.

Distanciando-se das tendênciasabolicionistas e de intervenção míni-ma, resultado das reflexões de crimi-nólogos críticos e penalistas progres-sistas, que vieram desvendar o papeldo sistema penal como um dos maispoderosos .instrumentos de manuten-ção e reprodução da dominação e daexclusão, características da formaçãosocial capitalista, aqueles amplos se-tores da esquerda, percebendo ape-nas superficialmente a concentraçãoda atuação do sistema penal sobre osmembros das classes subalternizadas,a deixar inantigidas condutas social-mente negativas das classes dominan-tes, não se preocuparam em enten-

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der a clara razão desta atuação desi-gual, ingenuamente pretendendo queos mesmos mecanismos repressoresse dirigissem ao enfrentamento dachamada criminalidade dourada, maisespecialmente aos abusos do pocíêr

LH^ po.IItico e-do poder econômico.

w^ Parecendo ter descoberto a supos-ta solução penal e talvez ainda in-conscientemente saudosos dos para-digmas de justiça dos velhos tempos

e de Stalin (um mínimo de coerênciadeveria levar a que em determinadasmanifestações de desejo ou aplausoa acusações e condenações levianase arbitrárias se elogiassem também ostr is temente famosos processos deMoscou), amplos setores da esquer-da aderem à propagandeada idéiaque, em perigosa distorção do papeldo Poder Judiciário, constrói a ima-gem do bom magistrado a partir doperfil de condenadores implacáveis eseveros. Assim, se entusiasmandocom a perspectiva de ver estes "bonsmagistrados" impondo rigorosas pe-nas a réus enriquecidos (só por issovistos como poderosos) e aproprian-do-se de um generalizado e inconse-qüente clamor contra a impunidade,estes amplos setores da esquerda fo-ram tomados por um desenfreado fu-ror persecutório, centralizando seudiscurso em um histérico e irracional

Tomados por um desenfreadofuror persecutório, amplos

' setores da esquerda centralizaramseus discursos em histérico e

irracional combate à corrupção,não só esquecidos das lições dahistória, como incapazes de ver

acontecimentos presentes

combate à corrupção, não só esque-cidos das lições da história, a demons-trar que este discurso tradicionalmen-te monopolizado pela direita já fun-cionara muitas vezes como fator delegitimação de forças as mais reacio-nárias (basta lembrar, no Brasil, daeleição de Jânio Quadros e do golpede 64), como incapazes de ver acon-tecimentos presentes (pense-se na'simbólica vitória dos partidos aliadosa Berlusconi nas eleições italianas, noauge da tão admirada OperaçãoMãos Limpas).

Este histérico e irracional combateà corrupção, reintroduzindo o pior doautoritarismo que mancha a históriade generosas lutas e importantes con-quistas da esquerda, se faz revitaliza-dor da hipócrita prática de trabalharcom dois pesos e duas medidas (ofuror persecutório voj.ta-s£__ap_e_nascontra adversários políticos, eventu-ais comportamentos não muito ho-nestos de companheiros ou aliadossempre sendo compreendidos e jus-tificados) e do aético princípio de finsque justificam meios, a incentivar orompimento com históricas conquis-tas da civilização, com imprescindí-veis garantias das liberdades, comprincípios fundamentais do Estado deDireito.

Desejando e aplaudindo prisões econdenações a qualquer preço, estessetores da esquerda reclamam contrao fato de que réus integrantes dasclasses dominantes eventualmentesubmetidos à intervenção do sistemapenal melhor se utilizam de mecanis-mos de defesa, freqüentemente pro-pondo como solução a retirada dedireitos e garantias penais e proces-

sjja ís, n o mínimo esquecidos de qu ea desigualdade inerente à formaçãosocial capitalista que,Jógica e natu-ralmente, proporciona àqueles réusmelhor utilizacãgjJos mecanismos dedefesa, certamentejiã^i_^e_res2liiexiaCOTÍI a r^tir^Ha rloJrlirpifO-V P garímt1-

as, cuja vulneracão repercute sim —e de maneira multo mais intensa — sp-bre as classes subalternizadas,_ciuevivem o dia-a-dia da Justiça-Griminal,constituindo a clientela para a qualesta prioritariamente se volta.

Inebriados pela reação punitiva,estes setores da esquerda parecemestranhamente próximos dos arautosneoliberais apregoadores do fim dahistória, não conseguindo perceberque, sendo a pena, em essência, purae simples manifestação de poder — e,no que nos diz respeito, poder declasse do Estado capitalista — é ne-cessária e prioritariamente dirigidaaos excluídos, aos desprovidos destepoder. Parecendo ter se esquecidodas contradições e da divisão da so-ciedade em classes, não conseguemperceber que, sob o capitalismo, a se-leção de que são objeto os autoresde condutas conflituosas ou social-mente negativas, definidas como cri-mes (para que, sendo presos, proces-sados ou condenados, desempenhemo papel de criminosos), naturalmen-te, terá que obedecer à regra básicade uma tal formação social — a desi-gualdade'na distribuição de bens. Tra-tando-se de um atributo negativo, ostatus de criminoso necessariamentedeve recair de forma preferencial so-bre os membros das classes subalter-nizadas, da mesma forma que os bense atributos positivos são preferenci-almente distribuídos entre os mem-

Perdendo sua antiga visão críticasobre a "imprensa burguesa",.

setores da esquerda reproduzemliteralmente o que dizem

os órgãos massivos de informaçãoquanto a um aumento

descontrolado da criminalidade

bros das classes dominantes, servin-do o excepcional sacrifício, represen-tado pela imposição de pena a um ououtro membro das classes dominan-tes (ou a algum condenado enrique-cido e, assim, supostamente podero-so), tão somente para legitimar o sis-tema penal e melhor ocultar seu pa-pel de instrumento de manutenção ereprodução dos mecanismos de do-minação.

Não percebem estes setores da es-querda que a posição política, sociale econômica dos autores dos abusosdo poder político e econômico lhesdá imunidade à persecução e à impo-sição da pena, ou, na melhor dís hi-póteses, lhes assegura um tratamen-to privilegiado por parte do sisteTnapenal, a retirada da cobertura de in-vulnerabil idade dos membros dasclasses dominantes só se dando empouquíssimos casos, em que conflitosentre setores hegemônicos permitemo sacrifício de um ou outro responsá-vel por fatos desta 'natureza, que co-lida com o poder maior, a que já nãosirva. Não percebem que, quandochega a haver alguma punição relaci-onada com fatos desta natureza, estaacaba recaindo sobre personagens su-balternos.

Ao centralizarem o combate à cor-rupção na utilização da reação puni-

tiva e somarem suas vozes ao clamorcontra a impunidade e ao apelo poruma maior eficiência da repressão,estes setores de esquerda aderem àidéia de que um maior rigor repressi-vo seria necessário para acabar comaquelas práticas de corrupção e coma impunidade de seus autores, assimignorando o fato de que nenhuma re-ação punitiva, por maior que seja suaintensidade — e ainda que fosse pôs;síyel a superação dos condicionamen-tos de classe — pode pôr fim à impu-nidade ou à criminalidade de qual-quer natureza, até porque não é esteseu objetivo.

A imposição da pena, vale repetir,não passa de pura manifestação depoder, destinada a manter e reprodu-zir os valores e interesses dominan-tes enfurna dada sociedade. Para isso,não é necessário nem funcional aca-bar com a criminalidade de qualquernatureza e, muito menos, fazer reca-ir a punição sobre todos os autoresde crimes, sendo, ao contrário, impe-rativa a individualização de apenas al-guns deles, para que, exemplarmen-te identificados como criminosos, em-prestem sua imagem à personalizaçãoda figura do mau, do inimigo, do pe-rigoso, assim possibilitando a simul-tânea e conveniente ocultação dosperigos e dos males que sustentam aestrutura de dominação e poder.

A excepcionalidade da atuação dosistema penal é de sua própria essên-cia, regendo-se a lógica da pen.a pelaseletividade, que permite a individu-alização do criminoso e sua conse-qüente e útil demonização, processoque se reproduz mesmo quando sepretende, como nos delitos sócio-eco-

nômicos, trabalhar com a responsa-bilidade 'penal de pessoas jurídicas,pois a individualização e a demoni-zação do criminoso são característi-cas inerentes à reação punitiva, em-presas ou instituições também poden-do perfeitamente ser individualizadas,e demonizadas, de igual forma seocultando, através destes mecanis-mos ideológicos, a lógica e a razãodo sistema gerador e incentivador dosabusos do poder realizados em ativi-dades desenvolvidas naqueles orga-nismos.

AJTTOnppolizadora reacJicMaurHtjvacontra um ou outro autor de ^:ondu-tas^ socialmente negativas, gerando asatisfação e o alívio experimentadoscom a punição e conseqüente identi-ficação do inimigo,, do mau, do peri-goso, não só desvia as atenções comoafasta a busca de outras soluçõesmais eficazes, dispensando a investi-gação-das razões ensejadoras daque-las situações negativas, ao provocara superficial sensação de que, com apunição, o problema já estaria satis-fatp,riamente resolvido. Aí se encon-tra um dos principais ângulos da fun-cionalidade do sistema penal, que,tornando invisíveis as fontes gerado-ras da criminalidade de qualquer na-tureza, permite e incentiva a crençaem desvios pessoais a 'serem comba-tidos, deixando encobertos e intoca-dos os desvios estruturais que os ali-mentam.

Chega a ser, assim, espantoso queforças políticas que se dizem (ou/pelo menos, originariamente, se dizi-am) voltadas para a luta^por transfor-mações sociais prontamente forne-çam sua adesão a um mecanismo tão

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eficaz de proteção dos interesses evalores dominantes de sociedadesque supostamente deveriam ser trans-formadas.

2. As novas preocupações com acriminalidade de massas e com

a criminalidade organizada

Majsjgrayes do que as ilusões polí-tico-ideológicas que levam às reivin-dicações de extensão da reação pu-nitiva aos abusos do poder político eeconômico, são as novas preocupa-ções da esquerda com a criminalida-de de massas e com as reais ou su-postas manifestações da chamada cri-minalidade organizada, preocupaçõesque logo se seguiram àquela sua des-coberta do sistema penal.

O abandono da utopia da transfor-mação social, cedendo lugar a dese-jos mais imediatos de conquista decargos políticos no aparelho de Esta-do, parece ser uma primeira explica-ção para o surgimento destas novaspreocupações. Mas, talvez, se devapensar também no processo de enve-lhecimento e. estabilização materialde grande parte dos antigos .militan-tes — em sua maioria, oriundos dasclasses médias —, agora temerosos esensibilizados com a violência da cri-minalidade de massas, á ameaçar seus'novos ideais de "paz" e tranqüilidade.

Perdendo sua antiga visão críticasobre a "imprensa burguesa", amplossetores de esquerda reproduzem lite-ralmente o que dizem os órgãos mas-sivos de informação, quanto a um au-m<ento descontrolado da criminalida-de, sendo comum ouvir de suas vo-zes a repetição do apelido de V/e£nam

dado a determinados locais — certa-mente do Rio de Janeiro — onde rou-bos praticados principalmente pormeninos de rua acontecem com cer-ta freqüência, voz"es preocupadas emaumentar a segurança para combatertal violência, parecendo ter trocadode posições, agora desempenhandoo papel de EUA, na busca de fórmulaspara conter o avanço dos vietcongs...

Talvez esta troca de posições tam-bém pudesse ser uma boa explicaçãopara a acrílica aceitação da expres-são narcotráfico, que se incorporouao vocabulário da esquerda, refletin-do sua submissão às regras da inter-nacionalização da política de drogas,ditada pelos EUA, a partir da décadade 80, quando, simultaneamente aodesenvolvimento da "guerra contra asdrogas", pautada pela eleição eloagente externo (os produtores, e dis-tribuidores dos países latino-america-nos) como o inimigo a ser enfrenta-do, adotou-se o uso do radical dapalavra inglesa narcot/cs; utilizáveltambém em espanhol ou em portu-guês, passando-se então a falar cienarcotráfico, narcodólares, etc. inobs-tante o principal alvo da política-domomento — a cocaína — sequer pu-desse ser visto como narcótico, tra-tando-se, ao contrário, de evidente es-timulante.

Envernizando suas inquietaçõescom a criminalidade convencional demassas (decerto ameaçadora "pãTaquem quer usufruir dos privilégios deuma estabilização material, sem serincomodado com roubos e furtos) epreocupados em melhor justificar suaideologia repressora, amplos setoresda esquerda aderem ao apelo de mai-

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Quando se concilia com a idéiade que o enfrentamento da

criminalidade corresponde auma situação de guerra, não sepode pretender dos agentes da

repressão respeito aos direitos doseventuais violadores da lei

or intervenção do sistema penal, tra-balhando — à semelhança da ideolo-gia dominante — não com aquelasmais verdadeiras inquietações com acriminalidade convencional, mas compoderosos fantasmas de uma supos-ta criminalidade organizada (aquitambém reproduzindo discurso im-portado dos países centrais), fantas-mas que, ecoando nos sentimentos deinsegurança e no medo coletivo difu-so, característicos das sociedadescontemporâneas, favorecem os cres:

centes anseios de segurança, de in-tensificação da repressão, de maiorrigor penal,,fortemente presentes nomomento histórico em que vivemos.

Trabalhando com estes fantasmasdo mal definido fenômeno da chama-da criminalidade organizada, estessetores da esquerda apressam-se emidentificá-lo — como o discurso domi-nante — na atuação dos varejistas docomércio das drogas ilícitas estabe-lecidos nas favelas cariocas, emboraquem foi acostumado a ter na práti-ca o critério da verdade talvez deves-se prestar mais atenção à sinalizaçãoque vem -da realidade, dando contadas-constantes disputas por pontos devenda, a melhor sugerir uma certa de-sorganização em tal atividade. Mas,organizada ou desorganizádamente,o fato é que esta criminalidade liga-da ao tráfico de drogas nas favelas do

Rio de Janeiro trouxe ao discurso des-tes setores criminalizantes da esquer-da o verniz de que necessitavam, pas-sando a justificar sua ideologia repres-sora e punitiva com os argumentos deque aquela dita criminalidade organi-zada estaria dominando as favelas doRio de Janeiro e oprimindo seus mo-radores, controlando as associaçõespela intimidação e cooptação de li-deranças (generalização, aliás, bastan-te questionável), assim sufacaado_QSmovimentos populares. Será mesmoque é a intimidação ou a cooptaçãode lideranças que impedem a organi-zação popular? Não seria esta umacômoda desculpa para a incapacida-'de política da própria esquerda?

Uma análise séria da organizaçãoe dos movimentos populares não po-deria omitir a distorcida política quepresidiu á formação das associaçõesde moradores,no Rio de Janeiro, po-lítica que, mais do que provocar o en-fraquecimento daqueles movimentos,compactuou com o acirramento dasdiferenças entre os habitantes das fa-velas e os habitantes do asfalto, acir-ramento que certamente contribuipara uma maior agressividade recípro-ca e, conseqüentemente, para um au-mento de atitudes violentas. Em suaorganização, impulsionada pela es-querda, notadamente no início dadécada de 80, as associações de mo-radores foram divididas em duas ca-tegorias, que reproduziam a artificiale reacionária separação morro x as-falto, Criando-se associações de bair-ro, que, tendo maior crescimento nazona sul, integravam em seus quadrosmoradores das classes médias, compredominância de militantes de es-querda, e, paralela e distanciadamen-

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te, associações de moradores de fa-velas, como se estes não vivessemnos mesmos bairros onde se situavamas associações das classes médias.

Talvez antes de lamentar uma su-posta perda de associações de mora-dores para o tráfico e se assustar coma violência da criminalidade, a pontode se unir ao desejo dominante derepressão e punição, devesse a es-querda retomar às sessões de auto-crítica (sempre saudáveis, desde quenaturalmente podadas de seus exces-sos históricos), de modo a reconhe-cer, e superar os "desvios" que a le-varam a contribuir, ainda que incons-cientemente, para a institucionaliza-ção de nosso apartheid social.

Embora apelando para aquela su-posta responsabilidade do tráfico peladesorganização de movimentos popu-lares e tentando manter alguma coe-rência com seus originários ideais, aosugerir que suas preocupações, nes-te campo, decorreriam da necessida-de de romper com a opressão impos-ta aos moradores das favelas pelosagentes do comércio varejista dasdrogas ilícitas lá instalados, o fato éque tais preocupações só aparecemquando a violência dos conflitos tra-vados nas desorganizadas disputas depontos de comércio de drogas, no Riode Janeiro, se mostra ameaçadora-mente próxima dos locais de moradiadas classes médias, assustadas com as"balas perdidas", perturbadas em seusanseios de paz e tranqüilidade.

Compactuando com a repressão,não procurando qualquer alternativamais sólida e menos perniciosa doque a reação punitiva, apressando-se

em aderir ao discurso dominante (tal-vez para não dissentir dos reclamosrepressores e punitivos da opinião pú-

.blica, em tempos de sonhadas vitó-rias eleitorais), nem mesmo o antigoinstrumental de análise, que antes pa-recia lhes permitir desvendar as leisda economia e do desenvolvimentosocial, conseguiu estimular estes se-tores da esquerda a buscar uma com-preensão mais profunda da realidade,para assim encontrar a melhor formade transformá-la.

Fazendo sua a política de guerrainterna contra as drogas, sem notar asemelhança com a política externa deseus antigos arquiinimigos nos anos80, optando pela falsa e fácil soluçãopenal, não enxergam aqueles setoresda esquerda a contradição (que, emtempos outros, se diria antagônica)entre a pretendida utilização de ummecanismo provocador de um proble-ma como solução para este mesmoproblema. Ao optarem pela reaçãopunitiva, não percebem que, no cam-po de negócios ilícitos, é exatamenteesta mesma reação punitiva a criado-ra da criminalidade (organizada ounão) e da violência por ela gerada;não percebem que é o processo decriminalização que, produzindo a ile-galidade do mercado de bens e servi-ços de grande demanda (como as dro-gas ilícitas ou o jogo), igualmente pro-

As preocupações com a opressãoimposta pelo tráfico aos moradores

das favelas só aparecem quandoa violência dos conflitos se mostra

ameaçadoramente próximados locais de moradia

das classes médias

duz a inserção neste mercado de or-ganizações criminosas, simultanea-mente trazendo a violência e a cor-rupção como subprodutos necessá-rios das atividades econômicas assimdesenvolvidas. Tampouco conseguemperceber que, por mais rigorosa queseja a repressão, estas atividades eco-nômicas ilegais subsistirão enquantoestiverem presentes as circunstânciassocioeconômicas favorecedoras deuma demanda criadora e incentivado-ra do mercado, o que, no mínimo,deveria sugerir uma alteração de ru-mos, buscando-se instrumentos me-nos perniciosos e mais eficazes decontrole de uma tal demanda.

Desvinculados de uma análise sé-ria da realidade e acompanhando aexacerbação do desejo punitivo, quesegue o ideal imediatista de "viver empaz", sequer estranham aqueles seto-res da esquerda esse desejo de pazque admite até a guerra, como expres-sado na proposta de transferir as ta-refas de segurança pública para asForças Armadas, concretamente en-saiada, no Rio de Janeiro, no final de1994, e só abandonada porque, comoseria de esperar, não se produziram osresultados concretos com que a fanta-sia da ideologia repressora sonhava.

Nem mesmo esta explícita (e, de-certo, antagônica) contradição entreo ideal de viver em paz e o apelo àguerra — contradição, sem dúvida,mais facilmente percebível .do queaquela mais sutil, mas, de todo modo,certamente existente, entre paz e pu-nição — despertou maiores questio-namentos sobre os estreitos limitesclassistas deste novo ideal, sobre suatransformação em um ideal de ordem

— e, portanto, de manutenção do sta-tus quo — a requerer medidas imedia-tas de repressão e controle, medidascomo, de regra, dirigidas contra asclasses subalternizadas.

Trocando quaisquer inquietaçõesde um passado próximo pela adesãoà suposta necessidade inadiável deaprofundamento do combate à crimi-nalidade, os mais amplos setores daesquerda tranqüilamente aceitaramaquela indevida utilização das ForçasArmadas nas tarefas de segurança pú-blica, em nenhum momento levantan-do suas vozes (talvez, ainda uma vez,não querendo dissentir da opiniãopública — ou, mais propriamente, daopinião publicada — provavelmentepreocupados com os efeitos de umtal dissenso na campanha eleitoralque então se.desenrolava), nem mes-mo se impressionando com a táticada repressão militarizada, centrada nocerco e ocupação das favelas cario-cas, conquistadas como se fossem ter-ritórios inimigos, tática que sequer dis-farçava a genérica identificação das clas-ses subalternizadas como classes peri-gosas> tradicionalmente feita de formamais sutil através do normal funciona-mento do sistema penal.

Preocupada com a criminalidade,embotada pelo desejo repressor e pu-nitivo, deixou a esquerda passar des-percebido o editorial de um grandejornal, que, preocupando-se em mini-mizar a falta de resultados visíveis daOperação Rio e justificar as ilegais,violentas e humilhantes revistas pes-soais dirigidas até contra crianças,bem esclarecia a real finalidade da re-pressão militarizada, sugerindo queseus objetivos teriam sido atingidos,

ao permitir que os moradores das fa-velas reavaliassem suas relações coma autoridade pública, em explícitadefesa da necessidade de uma violen-ta educação das classes subalterniza-das para a submissão.

Mas, talvez este imobilismo nãodeva ser assim tão surpreendente, re-fletindo a mesma postura (quem sabe,como em outros tempos também sediria, determinada por condiciona-mentos de classe) de quem, antes,com suas associações, não se incomo-dara em apartar os moradores dosmorros dos habitantes do asfalto, dequem não hesita em dar sua adesãoa uma pretendida "paz" classista eexcludente, de quem, priorizando ocombate à criminalidade, parece terdefinitivamente relegado a segundoplano as medidas mais profundas e delongo prazo que, aptas a criar melho-res condições de vida e maiores opor-tunidades sociais para as classes su-balternizadas, simultaneamente con-tribuam para o rompimento com osmecanismos excludentes (tão eficaz-mente reproduzidos pelo sistema pe-nal) e conduzam a uma — não impor-ta quão distante — transformação so-cial, voltada para a construção de re-lações mais iguais e mais solidáriasentre todas as pessoas, que assim pos-sam efetivamente viver em paz.

3. O discurso simplista contra acorrupção e a violência policiais

Em seus acenos com a violênciareal ou imaginária de uma suposta cri-minalidade organizada, a clamar pormaior repressão, os setores criminali-zantes da esquerda recheiam suas re-flexões com a necessidade de uma

melhor estruturação dos aparelhos d<repressão do sistema penal. Semprefazendo suas as palavras do discursodominante, fazem coro aos que di-zem que "a polícia está podre" e pre-cisa ser reestruturada (aqui também,como quer a mídia, referem-se espe-cialmente à polícia do Estado do Riode Janeiro), reivindicando medidas ur-gentes, adotando as mesmas razões— ou desrazões — que abriram espa-ço para a ja comentada utilização dasForças Armadas em um suposto com-bate ao crime, no Rio de janeiro, nofinal de 1994.

Repetindo aquela simplista afirma-ção de que "a polícia está podre", ne-cessitando de urgente reestruturação(admitindo-se até mesmo sua disso-lução), em verberações que, nestecampo da atuação -do aparelho poli-cial, priorizam os males da corrupçãoque estaria a deteriorar aquela atua-ção e enfraquecer o desejado com-bate ao crime (especialmente e, comosempre, o crime organizado), não sedetêm nas razões dos desviados com-portamentos de alguns agentes poli-ciais, ou de muitos, ou mesmo damaioria — não é isto o mais importan-te.

Não notam estes setores da esquer-da que toda forma de corrupçío(como ocorre com aquela mais refi-nada, objeto central de suas campa-nhas contra a criminalidade dourada)tem sempre dois vértices, não se per-turbam com as cotidianas e fnúmêraspráticas desonestas repetidas e inte-riorizadas pela maioria das pessoas,desejosas de atender às exigências eobter os favores e reconhecimentosde uma sociedade egoística e cxclu-

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dente, que certamente não aposentoua velha máxima do "levar vantagemem tudo".

Por que apenas a polfcia estariapodre e seria, a partir de uma supos-ta reestruturação, transformada,como num passe de mágica, em umailha de honestidade? Não conseguemver estes setores da esquerda que odiscurso histérico e vazio contra acorrupção policial é análogo ao dis-curso mais geral sobre a criminalida-de, selecionando preferencialmentenas classes subalternizadas (de ondevem a imensa maioria dos agentes po-liciais) personagens que, convenien-temente estigmatizados, desempe-nham o papel de maus, para que osdemais possam seguir desempenhan-do seu papel de "cidadãos de bem".

Tão nefasto quanto este discursoestigmatizante contra a corrupção éo discurso, igualmente simplista e hi-pócrita, contra a violência policial.

Seguindo a linha da individualiza-ção e demonização de alguns auto-res de condutas definidas como cri-mes, como determina a opção pelareação punitiva, limitam-se estes se-tores da esquerda a clamar contra aimpunidade de policiais acusados deatos violentos ou a exigir maior rigorem eventuais punições, especialmen-

Em 1988, a ÜERJ analisou 42inquéritos de homicídio e 2 de

. lesão. Das 44 vítimas, 33 eramnegras e 19 foram mortas

com tiros pelas costas. 35 dessesinquéritos foram arquivados, esequer indiciados os policiais

te diante de ações mais divulgadas emais particularmente cruéis, comoaconteceu com o massacre do Caran-diru, em São Paulo, com os extermí-nios coletivos da Candelária e de Vi-gário Geral, no Rio de Janeiro, ou como homicídio atribuído a um policialmilitar, em frente ao shopping Rio-Sul,também no Rio de Janeiro.

Não percebem que o clima geralde exacerbação do desejo punitivo,que conta com seu decidido apoio, éo grande incentivador da violência darepressão informal, dirigida contraaqueles que correspondem à imagemde criminosos. Não percebem que oapelo à autoridade e à ordem e a am-pliação do poder punitivo do Estado— resultado da demanda de maior re-pressão à criminalidade — embuteuma crescente desumanidade nocombate ao crime, favorecendo oaprofundamento e a crueldade da re-pressão informal, seja através da atu-ação ilegal de agentes policiais, sejaatravés da ação de grupos de exter-mínio, seja através de linchamentos.

O que alimenta a repressão infor-mal, desenvolvida à imagem e seme-lhança da repressão formal, é a pró-pria ideologia que sustenta o sistemapenal. A idéia de pena, de afastamen-to do convívio social, de punição, ba-seia-se no maniqueísmo simplista, quedivide as pessoas entre boas e más:o criminoso passa a ser visto como omau, o outro, o diferente, o que irápermitir e alimentar a violência puni-tiva realizada fora do direito (a repres-são informal). Produz-se, neste cam-po, um processo semelhante ao quealimenta a repressão política das di-taduras, em que a idéia de que é pre-

ciso manter a ordem aqui se traduzna idéia de que é preciso combater ocrime, gerando todo tipo de violên-cia — da tortura ao extermínio — nasditaduras, contra os dissidentes, e,nas democracias mais ou menos re-ais, contra os "delinqüentes", vistoscomo os inimigos, os maus, os peri-gosos.

Quando se concilia com a idéia deque o enfrentamento da criminalida-de corresponde a uma situação deguerra, não se pode, ao mesmo tem-po, hipocritamente pretender que osagentes da repressão pautem sua atu-ação pelo respeito aos direitos deeventuais violadores da lei. Em guer-ras, como é sabido, o combate ao ini-migo significa sua eliminação, não pa-recendo assim lá muito coerente exi-gir rigorosa punição para quem, atu-ando, como se estivesse em guerra,ponha em prática tal ensinamento. Enão há dúvida de que amplos setoresda esquerda parecem convencidos deque o combate à criminalidade efeti-vamente corresponderia a uma situa-ção de guerra. Não bastassem a pas-siva aceitação da convocação das For-ças Armadas para assumir, no Rio deJaneiro, no final de 1994, as tarefasda segurança pública, ou a adoção dadenominação de Vietnam para luga-res supostamente perigosos, tal con-cepção fez-se mostrar ainda mais cla-ramente na escolha de oficiais-gene-rais das Forças Armadas para assumi-rem os cargos de Secretários de Esta-do na área da segurança pública, pe-los dois Governadores eleitos pelo PTnas últimas eleições, um deles aca-bando por exonerar seu Secretário,quando, somente diante de declara-ções explícitas de estímulo a uma atu-

"Os policiais exercitavam suamissão, bem como tinham a

obrigação de evitar a fuga doperigoso indivíduo que era um

verdadeiro micróbio social(...)absolvido assim, neste Planeta,

pela sua morte" (Registro deOcorrência, 8.7.1982)

ação mais violenta da repressão, con-seguiu perceber a inadequação daescolha.

Os agentes policiais, que ilegal-mente eliminam os supostos crimino-sos ou suspeitos com que se defron-tam, da mesma forma que os integran-tes de grupos de extermínio ou os pa-catos cidadãos autores de linchamen-tos, na realidade, apenas reproduzeme concretizam a divulgada idéia — queconta com o apoio de amplos seto-res da esquerda — de que o combateà criminalidade há que se fazer a qual-quer preço, com leis excepcionais,com condenações sistemáticas (ain-da que arbitrárias), ou até mesmocom lições extraídas da guerra.

Esquecidos desta sua inconscientecontribuição para o incremento da vi-olência policial e já acostumados coma fácil e falsa solução penal, os seto-res criminalizantes da esquerda dire-cionam suas reivindicações, nestecampo, pelo repisado clamor contraa impunidade, pretendendo pôr fimàquela violência com o rigor puniti-vo que querem se despeje contra ospoliciais eventualmente alcançadospelo sistema penal. Assim se mobili-zam, prioritariamente, com questõessecundárias, simples decorrências deoutras questões maiores, como a pre-

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As vítimas, quando não sãomortas,transformam-se em réus,

acusados de tentativa de homicídiocontra os policiais e até de crime

de formação de quadrilha, no casodos trabalhadores rurais

tendida extinção das Justiças Milita-res Estaduais, ou, mais modestamen-te, a transferência para a Justiça co-mum da competência para o conhe-cimento de causas relativas a homicí-dios atribuídos a policiais militares.

Dominados pelo desejo da repres-são e do castigo, deixam de lado —como ocorre sempre que se opta pelamonopolizadora e superficial reaçãopunitiva — a questão maior consubs-tanciada na militarização da ativida-de policial, a sugerir, dentre outrostemas, o questionamento da existên-cia de polícias militares, instituídascomo forças auxil iares do Exército,este sim — e não a derivada existên-cia de uma justiça especial — consti-tuindo um ponto relevante no deba-te em torno daquela atividade, que,entretanto, é bom ressaltar, certamen-te não se esgota na forma de realiza-ção do policiamento ostensivo e pre-servação da ordem pública.

Mantido o quadro ditado por umasuposta necessidade de combate im-placável à criminalidade, não serãoeventuais punições rigorosas, seleci-onadamente impostas (como é da re-gra da imposição de penas), que irãoreduzir o elevado número de homicí-dios praticados por policiais contrasupostos crimjnosos ou suspeitos, ouromper com a rotineira permanênciada tortura como método de investi-

gação. A sólida resistência de tais prá-ticas a mudanças políticas gerais oua trocas de comandos nas instituiçõespoliciais, que nenhuma repercussãoapresentam na redução destes aten-tados aos direitos fundamentais deconservação da vida e da integrida-de física, já bastaria para demonstrara inutilidade e a injustiça de medidasque, como o rigor punitivo que aque-les amplos setores da esquerda que-rem fazer abater sobre um ou outropolicial acusado da prática de taisatentados, deixam intacta a concep-ção ideológica traduzida no desejogeral da repressão e do castigo.

4. A luta por transformaçõessociais e a necessidade de

rompimento com aideologia da repressão

A adesão de amplos setores da es-querda à ideologia da repressão, dalei e da ordem, seu interesse por umimplacável combate à criminalidade,sua "descoberta" do sistema penalsurgem em um tempo em que os sen-timentos de insegurança e o medo co-letivo difuso, provocados pelo proces-so de isolamento individual e de au-sência de solidarização no convíviosocial, aliam-se à decepção enfraque-cedora das utopias e à necessidadede criação de novos inimigos e fan-tasmas capazes de assegurar a coe-são em formações sociais que, como desmoronamento das traduções re-ais do social ismo, não mais têmexigida a demonstração de sua supe-rioridade democrática.

O quadro vivido neste novo tem-po, proporcionando campo extrema-mente fértil para a intensificação do

controle social, proporciona e alimen-ta o crescimento da demanda de mai-or repressão, de maior rigor punitivo,de maior intervenção do sistema pe-nal, trazendo desmedida ampliaçãodo poder punitivo do Estado.

Sofrendo mais diretamente aqueladecepção enfraquecedora das utopi-as, conseqüente ao desmoronamen-to das traduções reais do socialismo,amplos setores da esquerda voltam-se para objetivos mais imediatos,abandonando a perspectiva de cons-trução de uma nova sociedade e seentregando a um pragmatismo políti-co extremamente distante dos princí-pios e ideais que a viram nascer.

O equivocado discurso sobre a cri-minalidade, encerrando a entusiasma-da crença no sistema penal e as rei-vindicações repressoras, na linha des-te pragmatismo político-eleitoral, semprincípios e sem ideais, favorecedorda ampliação do poder punitivo doEstado, hoje faz de amplos setores daesquerda uma reacionária massa demanobra da "direita penal" e do sis-tema de dominação vigente, parecen-do dar suporte aos que enganadora-mente sustentam que a contraposiçãoentre direita e esquerda teria perdi-do sua razão de ser.

Entretanto, esta contraposição, cer-tamente, ainda se faz fundamental.

A ordem injusta de sociedadesinigualitárias, nas quais os privilégiosdos que se colocam no topo da esca-la social se contrapõem às privaçõese às discriminações sofridas pelos quesão subalternizados, o isolamentoegoísta e a desumana falta de solida-

rização no convívio entre as pessoasque avultam nas sociedades contem-porâneas, certamente, estão a clamarporque se reavive a generosidade dosideais de transformação social paraconstrução de sociedades melhores emais justas, que historicamente distin-guiram as lutas da esquerda.

A compreensão de novas contradi-ções que se põem nas sociedadescontemporâneas e o rompimentocom as diversas formas de autorita-rismo, que desvirtuaram a concretiza-ção do socialismo, são passos indis-pensáveis na necessária retomada docaminho histórico das lutas da esquer-da pela transformação social, pelaconstrução de sociedades melhores emais justas, que, sendo mais genero-sas e solidárias, necessariamente de-vem ser mais tolerantes.

Este caminho transformador nãopode ser trilhado com a reproduçãodos mecanismos excludentes caracte-rísticos das sociedades que se quertransformar. Não há como alcança rsociedades mais generosas e solidá-rias, utilizando-se dos mesmos méto-dos que se quer superar.

Quando se aceita a lógica da rea-ção punitiva, está se aceitando a ló-gica da violência, da submissão e H -iexclusão, em típica ideologia de clas-

"É preciso sujeitar o gentio efazê-lo guardar a lei natural.

Sem sujeição, os gentioscontinuam a matar e comer corpos

humanos sem exceção depessoas."(Cartas dos Primeiros

Jesuítas do Brasil)

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se dominante — ideologia presentenos trágicos e nefastos equívocos queconduziram às perversidades totalitá-rias do socialismo real. Convivendocom a dominação, ao contraditoria-mente pretender aprofundar a demo-cracia através da ditadura do proleta-riado, assim apenas substituindo a do-minação de uma classe pela domina-ção de outra (ou de seus supostos re-presentantes), certamente não pode-ria a proposta socialista assim mate-rializada representar a tradução dosgenerosos ideais transformadores eemancipadores de que nasceu a es-querda.

Uma esquerda adjetivável de puni-tiva, cultivadora da lógica antidemo-crática da repressão e do castigo, sófará reproduzir a dominação e a ex-clusão cultivadas, seja na formaçãosocial capitalista, seja na contrafaçãodo socialismo, que se fez real.

Na retomada da utopia e das lutaspela transformação social, não há lu-gar para uma tal esquerda. A realiza-ção dos generosos e solidários ideaisigualitários, que a todos assegure oatendimento das necessidades funda-mentais para a sobrevivência e asmesmas oportunidades de acesso àsriquezas e ao desenvolvimento pes-soal, há que se fazer de forma a esta-belecer a síntese que incorpore osideais libertários, asseguradores dalivre expressão e realização dos direi-tos da personalidade de cada indiví-duo. O rompimento com a excluden-te e egoística lógica do lucro e domercado, há que ser acompanhadodo rompimento com qualquer formade autoritarismo, para que a bens eco-nômicos socializados corresponda a

indispensável garantia da liberdade in-dividual e do direito à diferença, paraque a solidariedade no convívio su-pere e afaste a crueldade da repres-são e do castigo, para que um exercí-cio democratizado do poder faça doEstado tão somente um instrumentoassegurador do exercício dos direitose da dignidade de cada indivíduo.

CRIMINOLOGIA

A violência contraos oprimidos:

seis tipos de análiseLEONARDO BOFF

A violência é crescente no Brasil.Os fatos conhecidos dos seqüestres,do extermínio de crianças de rua e dechacinas por parte de policiais nãopodem ser entendidos como episó-dios. Uma análise mais cuidadosamostra uma conexão de tais fatoscom a total idade social. Esta émarcada por um modelo altamentepredatório de capitalismo levando auma extrema degradação da força detrabalho. O número dos excluídos écada vez maior. É um luxo hoje serexplorado pelo sistema do capital quecompra de forma aviltada a força detrabalho, remunerando-a miseravel-mente com a pequena vantagem, depor lei, o fe recer um mínimo deseguridade social. Cerca de 35% dapopulação é excluída. Está, quandomuito, no mercado informal, mas forade qualquer benefício social que lhes

tranqüilize o futuro. Tal situação con-figura, objetivamnete, um estado deviolência. Mais que atos de violên-cia, temos a ver com atitudes perma-nentes e continuadas de violência. Éseu caráter estrutural. Vamos anali-sar-lhe as causas por seis caminhos di-ferentes.

1. Causas históricas: um pecadode origem, nosso passado

colonial

O Brasil tem no seu começo umpecado original: a violência da con-quista e da invasão. Fomos e conti-nuamos a ser colônias. A colonizaçãoimplica um ato de extrema violênciaorganizada, sistemática e continuada:é colocar toda uma nação, com suapopulação, com sua cultura, comtudo o que tem à depedração do ou-

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