A estética afro-brasileira no rito nagô -...

32
35 Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014 A estética afro-brasileira no rito nagô Anderson Gonçalves dos SANTOS 1 Everton Luís SANCHES 2 Resumo: Este artigo visa resgatar parte da história afro-brasileira e da estéti- ca, rica e importante para o processo de aculturação no Brasil. Os negros são artífices em uma cultura que, ao longo dos anos, ganhou vida nos moldes e no jeito brasileiro: na música, com o samba; nas festas, com o carnaval; nos jogos, com a capoeira; na culinária, com a feijoada, entre tantas manifestações cultu- rais. O presente artigo demonstra como a cultura afro-brasileira também possui uma crença, uma mitologia, um rito e uma estética, próximo de um panteísmo religioso, delineando uma subjetividade transcendental. Destaca-se, no rito re- ligioso, uma estética empregada na maneira de o africano e o afrodescendente se comunicarem com os deuses. Dentre os diversos povos africanos que vieram para o “Novo Mundo”, selecionamos a cultura nagô para realizar este estudo. Por esse motivo, o artigo faz um estudo de natureza analítica interpretativa, de cunho antropológico-filosófico da estética do rito nagô. Palavras-chave: Cultura Afro-brasileira. Rito Nagô. Estética Brasileira. 1 Anderson Gonçalves dos SANTOS. Graduado em Filosofia pelo Claretiano – Centro Universitário. E-mail: <[email protected]>. 2 Everton Luís SANCHES. Doutor em História pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Licenciado em História pela mesma instituição – onde atualmente é pesquisador. Professor do Claretiano – Centro Universitário. E-mail: <[email protected]>.

Transcript of A estética afro-brasileira no rito nagô -...

35

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

A estética afro-brasileira no rito nagô

Anderson Gonçalves dos SANTOS1

Everton Luís SANCHES2

Resumo: Este artigo visa resgatar parte da história afro-brasileira e da estéti-ca, rica e importante para o processo de aculturação no Brasil. Os negros são artífices em uma cultura que, ao longo dos anos, ganhou vida nos moldes e no jeito brasileiro: na música, com o samba; nas festas, com o carnaval; nos jogos, com a capoeira; na culinária, com a feijoada, entre tantas manifestações cultu-rais. O presente artigo demonstra como a cultura afro-brasileira também possui uma crença, uma mitologia, um rito e uma estética, próximo de um panteísmo religioso, delineando uma subjetividade transcendental. Destaca-se, no rito re-ligioso, uma estética empregada na maneira de o africano e o afrodescendente se comunicarem com os deuses. Dentre os diversos povos africanos que vieram para o “Novo Mundo”, selecionamos a cultura nagô para realizar este estudo. Por esse motivo, o artigo faz um estudo de natureza analítica interpretativa, de cunho antropológico-filosófico da estética do rito nagô.

Palavras-chave: Cultura Afro-brasileira. Rito Nagô. Estética Brasileira.

1 Anderson Gonçalves dos SANTOS. Graduado em Filosofia pelo Claretiano – Centro Universitário. E-mail: <[email protected]>.2 Everton Luís SANCHES. Doutor em História pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Licenciado em História pela mesma instituição – onde atualmente é pesquisador. Professor do Claretiano – Centro Universitário. E-mail: <[email protected]>.

36

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

The Afro-brazilian esthetic in Nagô rite

Anderson Gonçalves dos SANTOS Everton Luís SANCHES

Abstract: This article aims at retrieving part of the African-brazilian history and esthetic, which is rich and important to the acculturation process in Brazil. Blacks are artificers in a culture that, over the years, came to life in the Brazilian mold and way: in music, with “samba”; in parties, with carnival; in games, with “capoeira”; in cooking, with “feijoada”, among many other cultural manifestations. The present article demonstrates that the African-brazilian culture also has a creed, a mythology, a rite and an esthetic, similar to a religious pantheism, outlining a transcendental subjectivity. An esthetic applied in how the African and the African-descendant communicate with gods is highlighted in religious rites. Among the several African peoples that came to the “New World”, we selected the Nagô culture to conduct this study. Therefore, this article comprises a study of analytical and interpretative nature, with anthropological- -philosophic characteristics of the Nagô rite esthetic.

Keywords: African-brazilian Culture. Nagô Rite. Brazilian Esthetic.

37

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

1. INTRODUÇÃO

Do fundo das senzalas vinha o choro convulsoDos negros no bater dos atabaques,

Quando chegava do longínquo das praçasA inquietação dos homens...

Era toda uma raça que sofria,Se desesperava e reagia,

Conservando alguma coisa de seu,Puramente seu.

(Jorge Amado, De: ABC de Castro Alves).

Pensar a cultura afro-brasileira é um desafio instigante. Ve-rificamos uma carência de pesquisas, artigos ou livros que façam conexões entre estudos filosóficos e cultura africana. Diante disso e considerando as possibilidades concernentes ao artigo científico, propomo-nos a fazer uma análise da estética afro-brasileira na cul-tura nagô, traçando um caminho metodológico interdisciplinar que se utiliza, sobretudo, de princípios históricos e filosóficos.

A valorização da cultura negra vem ganhando força ao longo dos anos e rompendo barreiras, como, por exemplo, com a capoei-ra, que foi proibida até a década de trinta e, hoje, é praticada como dança e esporte no Brasil e no mundo; com os tambores nos ilês--axé, com a conquista e o reconhecimento do dia da consciência negra e, recentemente, com a promulgação da Lei 10.639, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira em todos os níveis da educação formal no país.

É fundamental, para abrirmos a discussão, considerarmos a necessidade de romper preconceitos e valorizar a cultura pela sua importância no contexto histórico brasileiro. Assim, podemos de-linear como fundamental a conceituação de cultura e sua relação com o contexto histórico recente.

De acordo com Williams (1969, p. 20), houve diferentes compreensões da palavra “cultura” ao longo da história, ao passo que, ao considerarmos as mudanças decorrentes da grande indus-trialização do final do século XVIII, essa palavra apresentou signi-ficado distinto daquele que foi anterior a esse período de grandes transformações. Para ele, “[...] cultura significava um estado ou um

38

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

hábito mental ou, ainda, um corpo de atividades intelectuais e mo-rais; agora, significa também todo um modo de vida” (WILLIAMS, 1969, p. 20).

De acordo com Unesco (1982), considerando a Declaração do México sobre Políticas Culturais, é fundamental ainda conside-rar, a respeito da definição de cultura, que:

Em seu sentido mais amplo, a cultura pode, hoje, ser consi-derada como o conjunto de traços distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma so-ciedade ou grupo social. Ela engloba, além das artes e das letras, os modos de vida, os direitos fundamentais do ser humano, os sistemas de valores, as tradições e as crenças (UNESCO, 1982, p. 39).

Todavia, pensar o rito nagô como manifestação cultural inclui pensar em arte, estética e mito dando sentido aos simbolismos pre-sentes na liturgia do rito e dando sentido à vivência dos seguidores dessa religião, trazendo consciência àquilo que funda a vivência.

Sobre a definição e importância do rito, Langdon (2007) res-saltou:

[...] no campo de antropologia, o conceito do rito é um dos mais antigos e dos mais caros. No seu início, as discussões enfocaram na expressão simbólica dos ritos sagrados, ou seja, nos ritos religiosos como a representação máxima da sociedade. Hoje a noção abrange um conjunto amplo e heterogêneo de eventos presente na vida contemporânea, sejam estes sagrados ou profanos. Podem ser dos mais banais, como as saudações cotidianas que iniciam e fecham os encontros, mas incluem também os cultos religiosos, atos políticos e cívicos, cerimoniais de todos os tipos, processos jurídicos e uma variedade de outros eventos que constroem e expressam a vida social e individual (LANGDON, 2007, p. 5).

Nessa perspectiva, ao tomarmos o rito como categoria analí-tica, tratamos da significação ampla da vida dos africanos no Brasil e de seus descendentes, até hoje participantes de nossa cultura. Os africanos trouxeram seus conhecimentos e foram se adaptando e apresentando o seu jeito, as suas crenças, suas palavras e costumes ao Brasil. Esse país, por sua vez, se formou a partir de grande mis-

39

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

cigenação, composto por diversas culturas étnico-raciais que con-vivem entre si e se renovam constantemente.

Abandonando a visão dos processos sociais como sendo harmônicos, a antropologia hoje estuda as características que marcam as sociedades complexas: heterogeneidade, hierarquia, poder, identidade étnica e minoritária e violên-cia, entre outras. Os que continuam estudando os grupos pequenos ou tribais também incorporam a visão de que os processos sociais e políticos são movimentados por pers-pectivas diferentes, lutas de poder, hierarquias e conflitos de interesses. Também é reconhecido que situações locais não podem ser entendidas em isolação da sociedade maior que as engloba (LANGDON, 2007, p. 8).

Naturalmente, consideramos o estudo circunstanciado da es-tética e significação do rito nagô consoante a presença do africano no Brasil, sua importância e participação na própria formação da cultura brasileira.

A cultura africana apresenta uma vasta mitologia que foi pas-sada oralmente, apresentando mitologicamente explicações sobre como surgiram o mundo e os deuses, bem como de que forma a natureza foi repartida entre eles. O rito sagrado tornou-se uma ex-pressão rítmica de tudo como aconteceu conforme contado nos mi-tos, uma representação mitológica carregada por uma arte sonora e estética capaz de transformar o templo, num espaço de conexão com o sagrado.

Em sentido geral, numa perspectiva reflexiva e filosófica, Campbell (1990, p. 6) afirmou que “[...] mitos são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana”. Assim, a definição de mito diz respeito à “experiência de vida”. Portanto, podemos con-siderar que ocorreu o resgate da identidade e presentificação do poder do africano a partir de sua representação mitológica. Nes-se sentido, “[...] o mito o ajuda a colocar sua mente em contato com essa experiência de estar vivo. Ele lhe diz o que a experiên-cia é” (CAMPBELL, 1990, p. 6). Todavia, a vida experimentada pelo afrodescendente no Brasil encontrou, muitas vezes, a sua mais profunda significação nos seus ritos, dando forma estética à sua religiosidade, representando amplamente a sua cultura e forjando a cultura brasileira.

40

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

Desse modo, indagamos: quais os elementos estéticos do mito e rito nagô? Que análises filosófico-estéticas podemos fazer de tal manifestação cultural? Esse é o problema que abordaremos na continuidade.

2. MITO E FILOSOFIA

Sabemos que a mitologia sempre foi usada para contar histó-rias da vida dos deuses, explicar o mundo de uma forma didático--pedagógica e em alegorias desde a Grécia Antiga, sendo citada muitas vezes por Sócrates e Platão em seus diálogos, como o mito da criação de Timeu de Platão.

A mitologia surge dos tempos mais antigos da história do pensamento humano e não desaparece. Segundo o filósofo Cassirer (2004, 2004, p. 344):

[...] a forma de causalidade mítica serve nem tanto para explicar o surgimento do mundo, ou de alguns de seus ob-jetos, mas para explicar a procedência dos bens culturais humanos. De acordo com a particularidade da representa-ção mítica, essa explicação evidentemente para na concep-ção de que esses bens não foram criados pela força e pela vontade do homem, mas lhe foram dados.

Para Müller (1876), estudioso de linguística, a mitologia é natural e inevitável e, no sentido mais elevado da palavra, significa o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento. “É de ver que a mitologia brotou, com redobrada força, dos tempos mais antigos da história do pensamento humano; nunca desaparece, porém, de vez” (MÜLLER, 1876 apud CASSIRER: s/d, p. 9).

Para Cassirer (2003, p. 69), “[...] com o mito o homem co-meça a aprender uma nova e estranha arte: a arte de exprimir, e isso significa organizar os seus instintos mais profundamente en-raizados, as suas esperanças e temores”. Assim, a reflexão mítica não deve ser inferida como fantasia ou patologia, mas como forma de valorização da realidade primeira e de caráter exclusivo. Para esse filósofo, mito e religião originam-se da vida, não havendo um ponto em que termina o mito e começa a religião; para ele; os dois fenômenos estão interligados.

41

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

Em todo o curso de sua história, a religião permanece in-dissoluvelmente ligada a elementos míticos e repassada deles. Por outro lado, até em suas formas mais grossei-ras e rudimentares, o mito contém motivos que, em certo sentido, antecipam os ideais religiosos mais elevados que vieram depois. Desde o início, o mito é uma religião em potencial (CASSIRER, 1977, p. 143).

Como vemos, para o filósofo, há uma conexão entre as reli-giões no decorrer da história e os elementos míticos. O mito torna--se, pois, uma religião em potência; porque é nele que estão con-tidos elementos que motivam e dão sentido aos ideais religiosos. Vamos, agora, começar a analisar os povos africanos que vieram para o Brasil, para compreendermos como os negros escravizados que chegaram ao “Novo Mundo” também trouxeram consigo em reminiscências suas mitologias.

3. OS POVOS AFRICANOS

No Brasil, os negros começaram a chegar entre 1516 e 1526; porém, foi com o cultivo e a alta expansão da cana-de-açúcar, entre Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Recôncavo Baiano, que a escravi-dão começou a aumentar de forma significativa, com a chegada dos navios negreiros.

De acordo com Queirozm (1987, p. 18):É no século XVII, no entanto, que se inicia a grande im-portação. O açúcar brasileiro desbancara o da Madeira e demais ilhas portuguesas. Apesar de a ocupação holande-sa de Pernambuco diminuir temporariamente o fluxo do tráfico, calcula-se a vinda de quinhentos a 550 mil negros para o país nesses cem anos.

A mineração provocou novo afluxo de africanos: um mi-lhão e setecentos mil aproximadamente viriam alentar a economia luso-brasileira durante o século XVIII. Segundo Alan K. Manchester, de 1759 a 1803, “os registros coloniais mostram que entre quatorze e quinze mil negros deixaram anualmente Angola” (QUEIROZ, 1987, p. 18).

Segundo Queiroz (1987), mesmo com a lei de 7 de novembro de 1831 proibindo o comércio negreiro, o tráfico perdurou ilegal-

42

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

mente até 1850, cessando definitivamente. Nesse período de quase vinte anos de tráfico proibido, estima-se que quinhentos mil africa-nos adentraram o novo mundo. Certamente, a quantidade pode ter sido maior, pois é notoriamente impossível rastrear números preci-sos em atividades ilegais durante esses três séculos e meio de du-ração. Alguns autores citam um milhão e trezentos e cinquenta mil africanos; Robert Conrad (1985) aponta um total de cinco milhões de escravos para todo o período, mas a maioria dos estudiosos esti-ma a vinda de três milhões e meio aproximadamente. Esse número ao certo jamais será conhecido.

Muitos foram os negros africanos que vieram para o Brasil de diversas nações e aqui se misturaram. Dentre todos os povos, segundo Rodrigues (1977), não foram os bantos que colonizaram o Brasil, mas começou a partir das colônias portuguesas da África meridional e as ilhas do Golfo de Guiné. Para eles, dos Congos, Cabindas e Angolas na Costa Ocidental da África, dos Macuas e Anjicos na oriental, provieram todos os africanos brasileiros, mas principalmente da Costa Ocidental Africana.

Arthur Ramos (1940, 1942, 1946), prosseguindo os es-tudos de Nina Rodrigues (1939, 1945), distingue, quanto aos tipos culturais, três grandes grupos. O primeiro, das culturas sudanesas, é representado, principalmente, pelos grupos Yoruba – chamados nagô –, pelos Dahomey – de-signados geralmente como gegê – e pelos Fanti-Ashanti – conhecidos como minas – além de muitos representan-tes de grupos menores da Gâmbia, Serra Leoa, Costa da Malagueta e Costa do Marfim. O segundo grupo trouxe ao Brasil culturas africanas islamizadas, principalmente os Peuhl, os Mandinga e os Haussa, do Norte da Nigé-ria, identificados na Bahia como negros male e no Rio de Janeiro como negros alufá. O terceiro grupo de africanos era integrado por tribos Bantu, do grupo congo-angolês, provenientes da área hoje compreendida pela Angola e a “Contra Costa”, que corresponde ao atual território de Mo-çambique (RODRIGUES, 1977, p. 18-19).

Dentre as várias “nações” africanas que adentraram o Brasil, estavam presentes negros islamizados. Os chamados comerciantes tuaregues ligavam toda a região do Sael, também conhecida como Sudão e, em árabe, Bilad al-Sudan, que quer dizer “terra de ne-

43

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

gros”. Foram eles os responsáveis principais pela difusão do Islã, os Tuaregues, Azenegues, Berberes e outros. Eram povos arabiza-dos. Esses comerciantes ensinavam a língua árabe e preceitos reli-giosos por meio do alcorão para os povos com que tinham contato.

A influência muçulmana, que chegou cedo aos povos do deserto, levou mais tempo para atingir aqueles que mo-ravam próximo da costa. Na região do rio viviam jalofos, sereres, bambaras, mandingas e fulas, muitos deles con-vertidos à religião islâmica desde o século X (SOUZA, 2007, p. 19).

No Brasil, esses negros islamizados foram chamados de ma-lês. Em janeiro de 1835, houve a chamada Revolta dos Malês, lide-rada por negros letrados islamizados que faziam do árabe a língua predominante para a comunicação, juntamente com os nagôs que lideraram a revolta sem sucesso. Estudiosos, historiadores e antro-pólogos conseguiram documentos escritos em árabe e, após algu-mas tentativas, conseguiram decifrar os documentos que antecede-ram a revolta, os segredos e o plano. Alguns dos segredos foram:

Antes da Revolta [...]

Os trajos de guerra deviam ser, para maior estímulo, os mesmos das cerimônias religiosas, isto é, um saio branco apanhado por uma faixa vermelha, uma camisa igualmen-te vermelha e os barretes azuis circundadas por turbantes brancos.

Convinha trajar, pelo menos, de branco, e não esquecer os búzios, os corais, as miçangas e os anéis brancos. Como também as armas espirituais poderiam ser de grande pro-veito, cada qual deveria trazer ao pescoço os seus “patu-ás”, para se tornar invulnerável (IGNACE, 1907, p. 124).

Nota-se a importância da dimensão estética atrelada ao reli-gioso para esse grupo de negros mulçumanos ou, como alguns os chamavam, “maometanos”. Na formação da cultura afro-brasileira, os candomblés e as religiões afrodescendentes utilizam-se de ves-timentas com turbantes, roupas brancas, alakas, fios de miçangas, entre outros.

Seguindo por esse viés, para Verger (1955), os negros trazi-dos da África para as Américas pertenciam a diferentes “nações”:

44

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

Nagô, Angola, Dahomé, Axantí, Aussá, Congo, Moçambique e ou-tras. Cada uma dessas “nações” tinha sua língua, suas tradições, suas divindades, porém, aqui, na Bahia, a dos iorubás (Nagôs) foi a que, entre todas, manteve mais vivo e impôs o seu acervo espiritual.

Os iorubás, conhecidos como nagôs, são um dos povos com tradição, cultura e história mais ampla de toda a África Negra.

O termo “yorùbá”, escreve S. O. Biobaku, “aplica-se a um grupo linguístico de vários milhões de indivíduos”. Ele acrescenta que, “além da linguagem comum, os yorùbá estão unidos por uma mesma cultura e tradições de sua origem comum, na cidade de ifé, mas não parece que te-nham jamais constituído uma única política e também é duvidoso que, antes do século XIX, eles se chamassem uns aos outros pelo mesmo nome” (VERGER, 1997, p. 3).

Para Verger, “Lucumi” e “nagô” são os nomes pelos quais os iorubás são geralmente conhecidos em Cuba e no Brasil. A expres-são “anago” é, no entanto, conhecida em Cuba: ela figura no título de um livro publicado por Lydia Cabrera: Anagó, vocabulário lu-cumi (1996), de onde se deduz que ali Lucumi seria um nome de nação e anago o de sua língua.

Pierre Verger, em seu livro “Orixás – Deuses Iorubás na Áfri-ca e no Novo Mundo” (2002), diz que:

No Novo Mundo encontramos os primeiros vestígios da palavra “nagô” em um documento enviado da Bahia em 1756, antes mesmo que esta palavra aparecesse na corres-pondência da África. É, todavia, provável, como sugere Vivaldo Costa Lima, que o termo “nagô” no Brasil seja inspirado naquele correntemente empregado no Daomé para designar os iorubás de qualquer origem (VERGER, 2002, p. 5).

Os negros escravizados que aqui chegavam, além de se tor-nar a massa substancial de fazer o Brasil, simultaneamente, foram se aculturando nos modos e no jeito brasileiro de ser e de fazer, tal como eles eram representados no universo cultural simplificado dos engenhos e das minas.

Por estarem rigidamente prescritos pela estrutura da colô-nia como sociedade estratificada, a que se incorporava na condição de escravo, sobrevivera principalmente no plano

45

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

ideológico, porque ele era mais recôndito e próprio. Quer dizer, nas crenças religiosas e nas práticas mágicas, a que o negro se apegava no esforço ingente por consolar-se do seu destino e para controlar as ameaças do mundo azaroso em que submergira. Junto com valores espirituais, os ne-gros retêm, no mais recôndito de si, tanto reminiscências rítmicas e musicais, como saberes e gostos culinários (RI-BEIRO, 2006, p. 104-105).

Os africanos trouxeram consigo sua cultura e suas crenças, que incorporaram e ganharam vida na cultura brasileira, como as comidas, o samba, a capoeira, a língua, os mitos e a arquitetura, uma tradição passada oralmente e baseada fortemente na ancestra-lidade. Como Darcy Ribeiro (2006) descreve na citação anterior, os africanos escravizados cantavam e dançavam para seus deuses, buscando na memória suas canções e ritmos, a fim de amenizar o destino que os esperava.

Os daomeanos conhecidos como jejes trouxeram seus vo-duns; os nagôs, seus orixás e oriquis. Os nagôs (termo então usado para designar todos os negros de fala iorubá) dominaram sem con-testação o conjunto das seitas africanas, impondo seus deuses, a estrutura de suas cerimônias e sua metafísica aos daomeanos, aos bantos (BASTIDE, 2001).

Nota-se que os negros tiveram, também, grande influência na arte barroca brasileira; esse movimento artístico foi importado da Europa e aqui no Brasil os recursos oriundos do ouro foram inves-tidos na arte sacra, que acabou adquirindo algumas características próprias de africanidade à arte sacra católica. Personagens impor-tantes da cultura brasileira como Aleijadinho, Machado de Assis, o compositor de música sacra Pe. José Mauricio Nunes Garcia e o músico de “choro” Paulo Moura foram afrodescendentes e partici-pantes ativos da cultura oficial do Brasil.

É com os nagôs que estão presentes as mais puras essências da religião do candomblé; essas cerimônias eram chamadas de ca-lundus no século XVIII; a partir do século XIX, elas passaram a ser chamadas de candomblés, e seus líderes ficaram conhecidos como pais e, principalmente, mães de santo (SOUZA, 2006). O candomblé é, portanto, um termo adotado na Bahia para designar

46

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

as cerimônias religiosas de origem africana. Nele, as relações entre os orixás e os mortais têm um caráter bastante familiar. Segundo Verger (1997, p. 9):

O Orixá seria, em princípio, um ancestral divinizado, que em vida, estabelecera vínculos que lhes garantiam um controle sobre certas forças da natureza, como o trovão, o vento, as águas doces ou salgadas, ou, então, assegurando--lhe a possibilidade de exercer certas atividades como a caça, o trabalho com metais ou, ainda, adquirindo o co-nhecimento das propriedades das plantas e de sua utiliza-ção o poder, àse3. O ancestral-orixá teria, após a sua morte, a faculdade de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes durante um fenômeno de possessão por ele provocada.

Os nagôs trouxeram uma crença próxima de um panteísmo que acredita que os deuses estão presentes em todas as partes da natureza. Iremos agora conhecer quem são os principais deuses que os nagôs cultuavam em seus ritos, que ao longo dos anos passaram a ser conhecidos em todo o território brasileiro.

4. DEUSES NAGÔS – OS ORIXÁS

Definir os orixás para os nagôs é uma tarefa muito audaciosa e difícil. A maioria dos orixás era em sua origem, seres privilegiados, que possuíam poderes sobre as forças da natureza e que, em vez de morrer, se transformarão em pedras, rios, árvores ou lagoas. “Os ori-xás são imateriais, são forças que só se tornam perceptíveis aos seres humanos incorporando-se através de certos seres de sua escolha. Es-ses seres são os iaôs ou filhos de santo” (VERGER, 1955).

Pode-se afirmar que, no panteão africano, cerca de 400 orixás eram cultuados nos mais diversos aspectos; porém, como o objeti-vo deste artigo são os nagôs, serão citados aqui os orixás segundo Pierre Fatumbi-4Verger.

3 Àse: conhecido em português como “axé”. Significa: 1. Força, poder. 2. Palavra usada para definir o respeito ao poder de Deus, pela crença de que é Ele que tudo permite e dá a devida aprovação.

4 Fatumbi significa “aquele que nasceu de novo (pela graça de) Ifá”, segundo a nomeação dada pelo mestre Oluwo africano que tornou Pierre Verger um babalaô por volta dos anos 1950.

47

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

As pesquisas antropológicas de Verger em seu livro Orixás: deuses Iorubás na África e no Novo Mundo dirão que acima dos orixás reina um deus supremo, Olódùmarè ou Olorum, um deus distante e inacessível; por ele, os orixás teriam sido criados para go-vernar e supervisionar o mundo. É, pois, aos orixás que os homens devem dirigir suas preces e fazer oferendas.

Os dezesseis grandes orixás originam-se no ventre incestuoso de Iemanjá. Segundo a mitologia africana, da união de Obatalá (o céu) e Odudua (a terra) nasceram Aganju (a Terra firme) e Iemanjá (as águas). Desposando seu irmão Aganju, Iemanjá deu à luz Orun-gã (o ar e as alturas). Mas, certo dia, na ausência do pai, Orugã possuiu a mãe Iemanjá. Após o ato incestuoso, Iemanjá caiu morta e de seu ventre nasceram os demais orixás (PRANDI, 2001). É por isso que ela é considerada a mãe de todos os orixás.

O nome de Exu não aparece entre eles. Todavia, Exu é con-siderado irmão de Ogum, de Xangô, de Oxóssi e, portanto, deveria figurar nesse mito o décimo sétimo orixá, o mais jovem de todos (BASTIDE, 2001, p. 161).

Segundo Verger (1997, p. 39-40):Exu é guardião dos templos, das casas, das cidades e das pessoas. É também ele que serve de intermediário entre os homens e os deuses. Por essa razão é que nada se faz sem ele e sem que oferendas lhes sejam feitas, antes de qualquer outro orixá, para neutralizar suas tendências a provocar mal-entendidos entre seres humanos e em suas relações com os deuses e até mesmo dos deuses entre si.

Exu é um orixá relacionado a características de jovialidade, virilidade e irreverência, gosta de suscitar dissensões e disputas; vaidoso, é ele o intermediário entre o homem e o sobrenatural, entre o físico e o metafísico, o intérprete que conhece ao mesmo tempo a língua dos mortais e a dos orixás. Pelo comportamento desse ori-xá, ele foi erroneamente comparado ao diabo quando os primeiros missionários ficaram assustados com essas características. Antro-pólogos anglicanos que não conheciam a existência de um culto anamartesi, ou seja, uma concepção sem pecado, relacionaram esse orixá com o diabo devido a suas características com uma visão ca-tolicista. Exu é o orixá sempre presente, pois o culto de cada um

48

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

dos demais orixás depende de seu papel de mensageiro. Sem ele, os orixás e humanos não podem se comunicar.

Ogum governa o ferro, a metalurgia, a guerra e os caminhos. Oxóssi é o orixá da caça, dos caçadores e da fartura. Ossain é a divindade das plantas medicinais e litúrgicas. Oxumaré é a mobili-dade e atividade comparado com a serpente-arco-íris. Logum Edé é o orixá da riqueza e da fartura, filho de Oxum e Oxossi. Obaluaê (Omolu) é o deus da varíola e das doenças contagiosas, senhor da morte e da vida. Xangô é o orixá do fogo e do trovão, que represen-ta a realeza e a justiça. Oya ou Yansan é o orixá dos ventos, raios e tempestades. Euá, orixá feminino das fontes, preside o solo sagrado onde repousam os mortos. Oxum é a rainha das águas doces, di-vindade da fecundidade, da riqueza e da prosperidade. Obá é a di-vindade feminina relacionada a força, persistência e outros valores relativos a engajamento e luta. Iroko é a representação da dimensão do tempo; governa o tempo e o espaço. Nanã Buruku é uma das divindades que se têm registros mais antigos, orixá dos pântanos, da lama, da vida e da morte. Ibejis é o Orixá-Criança, em realidade, duas divindades gêmeas infantis, ligadas a todos os orixás e seres humanos. É a divindade da brincadeira, da alegria; a sua regência está ligada à infância. Iemanjá é a senhora das grandes águas, mãe dos deuses, dos homens e dos peixes; talvez seja o orixá mais co-nhecido no Brasil. “É uma das mães primordiais e está presente em muitos mitos que falam da criação do mundo” (PRANDI, 2001, p. 22). Oxalá encabeça o panteão da criação, formado de orixás que criaram o mundo natural, a humanidade e o mundo social, orixá rei do pano branco; o “grande orixá” foi o primeiro a ser criado por Olodumaré, o deus supremo.

Cada orixá pode ser cultuado segundo diferentes invocações, que, no Brasil, são chamadas qualidades e, em Cuba, caminhos. Pode-se, por exemplo, cultuar uma Iemanjá jovem e guerreira, de nome Ogunté; outra velha e maternal, Iemanjá Sabá; ou outra cha-mada Iemanjá Assessu, muito voluntariosa e respeitável.

49

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

5. MITOLOGIA AFRICANA

Podemos considerar que “O transe religioso está regulado se-gundo modelos míticos; não passa de repetição dos mitos. A dança torna-se uma ‘ópera fabulosa’” (BASTIDE, 2001, p. 188-189). Desse modo, a dança, a música e o canto são fundamentais para a realização do rito sagrado. O chamado dos deuses acontece em uma cerimônia após o padê5 de Exu, que é o primeiro orixá a receber sua oferenda, por ser o intermediário necessário entre o homem e o sobrenatural, o intérprete que está entre os dois mundos, que conhe-ce a língua dos homens e a dos orixás. Trata-se de um princípio de ordem humana, reflexo da ordem cósmica, e não de um princípio de desordem moral, reflexo de degradação humana (BASTIDE, 2001).

Exu não é, todavia, o único intermediário entre os homens e os deuses. O rito possui três tambores denominados por Rum, Rumpi e o Lé, que é o menor. Não são tambores comuns ou pagãos: foram batizados e a eles um ritual específico fora denominado. Es-ses instrumentos apresentam algo de divino, pois são os grandes responsáveis por evocar a vinda dos orixás, os aguidavis, ou seja, as baquetas que são usadas para tocar os instrumentos “dormiram” junto dos deuses para receber toda a força sagrada. Há, também, outro instrumento importante: o agogô, um sino simples ou duplo, e o adjá, usado muitas vezes quando o transe custa acontecer, pro-vocando um ruído agudo e alucinante fazendo que a divindade se decida por possuir ou não aquela pessoa (BASTIDE, 2001).

A “ópera fabulosa” das danças, a linguagem gestual e a marcação rítmica expressam a “complexidade da alma”, que as metamorfoses do corpo e da personalidade eviden-ciam. O que está em jogo nessa dramaturgia particular é uma concepção alargada do “ser”, que rejeita a concepção Kantiana de que não existiriam estágios intermediários entre o “ser” e o “nada”. Mais próxima de uma ontologia medieval, a filosofia africana revelada no candomblé in-troduz gradações no ser, “desde o ser divino, que se con-

5 Comida ou oferenda oferecida nos rituais de candomblé para os Exus, normalmente feita com farinha, dendê e bife, sendo depositada em uma encruzilhada, que é um dos lugares preferidos de Exu.

50

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

funde com a perfeição absoluta, até o ser das coisas mate-riais” (BASTIDE, 2002, p. 12).

O ritual acontece em uma ordem de deuses africanos, a come-çar por Exu e terminar por Oxalá, que é o senhor do céu e o mais elevado dos orixás. Essa ordem é conhecida como xirê.6 Cada di-vindade recebe, no mínimo, três cânticos regulamentares.

Nina Rodrigues analisa e faz uma narrativa de uma saída:7

[...] a orquestra, composta de cinco tabaques (tambores pe-quenos) e quatro cabaças [...], começava, na sala onde eu me achava, a invocação do santo. A um sinal ou ordem do regente, todos os tabaques foram colocados reunidos no centro da sala e ao lado vieram depor um prato com obi (noz-de-cola) e moedas de cobre, e uma quartinha de água de santo, tirados do santuário. O regente levantou-se, fez ligeira genuflexão sobre o joelho esquerdo e concentrou-se como em oração. Depois tomou da quartinha, lançou um pouco de água de cada lado dos tabaques, e em seguida deitou na boca um punhado de obi. Mastigou os obis, e, to-mando os tabaques um a um, invertendo-os, foi lançado de cada um o obi mastigado. Aos tabaques seguiram-se as ca-baças com que empregou processo semelhante. O regente passou então o prato de obi aos outros músicos, dos quais cada qual tomou a sua noz e pôs-se a mastigá-la. Música e canto começaram então a invocar o santo (RODRIGUES, 1977, p. 81).

As palavras nos candomblés nagôs ou daomeanos são na língua iorubá, variando de acordo com a origem étnica da “nação”. Os cânticos são apenas cantados e “dançados”, pois constituem a evocação de certos episódios da história dos deuses; são fragmentos de mitos – e o mito deve ser representado ao mesmo tempo em que é falado para adquirir todo o poder evocador (BASTIDE, 2001, p. 36). Os gestos adquirem uma grandiosa beleza, os passos de dança alcançam estranha poesia, os rostos metamorfoseam-se em máscaras. Eis aqui presentes os orixás do rito nagô, saudando os tambores

6 Ordem em que são realizadas as invocações aos orixás para que desçam à terra.7 A festa de saída de Iaô ou saída de santo é a festa em que um orixá está nascendo. Após a iniciação do candidato ou filho de santo, são feitas quatro saídas no templo sagrado, a primeira saída é interna sem a presença do público e as três últimas partes com presença de público.

51

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

fazendo icá ou dòbálè8 diante dos sacerdotes supremos. Não existem mais fronteiras entre natural e sobrenatural: o êxtase realizou a comunhão desejada.

Estamos diante de uma manifestação do sagrado, o que Mir-cea Eliade deixa mais explícito em seu livro:

O sagrado manifesta-se sempre como uma realidade intei-ramente diferente das realidades “naturais”. [...] O homem toma conhecimento do sagrado por que este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. A fim de indicarmos o ato da manifestação do sagrado, propusemos o termo hierofania. Este termo é cômodo, pois não implica nenhuma precisão suplementar: exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos revela. Poder-se-ia di-zer que a história das religiões – desde as mais primitivas às mais elaboradas – é constituída por um número con-siderável de hierofanias, pelas manifestações das realida-des sagradas. A partir da mais elementar hierofania – por exemplo, a manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma pedra ou uma árvore – e até a hierofania suprema que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuidade. Encontramo-nos dian-te do mesmo ato misterioso: a manifestação de algo “de ordem diferente” – de uma realidade que não pertence ao nosso mundo “natural”, “profano” (ELIADE, 2008, p. 17).

O homem ocidental moderno experimenta certo mal-estar diante de inúmeras formas de manifestações do sagrado: é difícil para ele aceitar que, para certos seres humanos, o sagrado possa manifestar-se em pedras ou árvores, por exemplo. Porém, Eliade salienta que não se trata de uma “veneração” da pedra como pedra, ou da árvore como árvore, ou uma “adoração”, mas justamente porque são hierofanias, porque “revelam” algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado.

O homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o mais possível no sagrado ou muito perto dos obje-tos sagrados. Essa tendência é compreensível, pois para os “primitivos”, como para o homem de todas as sociedades

8 Dòbálè: prostrar-se no chão em sinal de respeito a uma pessoa ou divindade, reverência.

52

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

pré-modernas, o sagrado equivale ao poder e, em última análise, à realidade por excelência (ELIADE, 2008, p. 18).

As religiões afrodescendentes têm como papel fundamental a música, o som, o toque dos instrumentos percussivos. O rito sagra-do dos nagôs tem seu chamado através do toque musical em que o iaô ou o candidato cai em transe. Essa festa é feita dentro do ilê--9axé, o espaço sagrado, e é sabido que axé designa em nagô a força invisível, a força mágico-sagrada de toda divindade, de todo ser animado, de todas as coisas (BASTIDE, 2001). “Os pontífices cui-dam para que, em cada um desses atos, o deus protetor seja chama-do pelo seu nome correto e que a totalidade dos deuses seja invoca-da na ordem correta” (CASSIRER, 2004, p. 341). Dentro desse campo sagrado, cada divindade que vem participar da festa com seus filhos traz consigo suas cores, seus símbolos, suas ferramen-tas, vestes e fio de contas, respeitando uma mitologia. Nesse senti-do, Eliade (2008) entende como mito aquilo que é contado como uma história sagrada, um acontecimento primordial que equivale a revelar um mistério, pois as personagens do mito não são seres hu-manos: são deuses ou heróis civilizadores.

Por esta razão suas gesta constituem mistérios: o homem não poderia conhecê-los se não fossem revelados. O mito é pois a história do que se passou in illo tempore, a narra-ção daquilo que os deuses ou os seres divinos fizeram no começo do tempo. “Dizer” um mito é proclamar o que se passou ab origine. Uma vez “dito”, quer dizer revelado, o mito torna-se verdade apodítica: funda a verdade absoluta (ELIADE, 2008, p. 84.)

Os mitos dos orixás fazem parte dos poemas oraculares culti-vados pelos babalaôs. Falam da criação do mundo, da natureza, de como essa natureza foi repartida entre os orixás.

Os nagôs acreditam que é através dos mitos que buscamos respostas para a origem de tudo; é pelo mito que se interpreta o presente e se prediz o futuro, nesta e na outra vida. Vários são os registros de mitos africanos, primeiramente transmitidos oralmente e que aos poucos foram ganhando uma formalidade e incorporando

9 Ilé: idioma iorubá significando “casa”.

53

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

o texto escrito. Os primeiros mitos escritos apareceram já nas pri-meiras obras que trataram da religião dos orixás na África no século XIX. Nesse sentido, as pesquisas do padre Noel Baudin (1884) e do coronel Ellis, de 1894, iniciaram uma contribuição que não parou de crescer. Reginaldo Prandi reuniu cerca de 301 mitos, compondo uma das maiores coleções organizadas até hoje. Os mitos da criação do mundo são vários, dentre os quais segue um exemplo. “Trata-se de um mito corrente em terreiros nagô do Recife e terreiros queto do Rio de Janeiro e de São Paulo. Fragmentos em Arno Vogel et alii, 1993, p. 88, 105, 113” (PRANDI, 2001, p. 561).

No começo não havia separação entreo Orum, o céu dos orixás, e o Aiê, a Terra dos humanos.Homens e divindades iam e vinham,coabitando e dividindo vidas e aventuras.Conta-se que, quando o Orum fazia limite com o Aiê,um ser humano tocou o Orum com as mãos sujas.O céu imaculado de Obatalá se perdera.Oxalá foi reclamar a Olorum.Olorum, senhor do Céu, Deus supremo,irado com a sujeira, o desperdício e a displicência dos mor-tais,soprou endurecido seu sopro divinoe separou para sempre o Céu da Terra.Assim, o Orum separou-se do mundo dos homens e nenhum homem poderia ir ao Orum e retornar de lá com vida.E os orixás também não poderiam vir à Terra com seus corpos.Agora havia o mundo dos homens e o dos orixás, separa-dos.Isolados dos humanos habitantes do Aiê,as divindades entristeceram.Os orixás tinham saudade de suas peripécias entre os hu-manose andavam tristes e amuados.Foram queixar-se com Olodurame, que acabou consentindo

54

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

que os orixás pudessem vez por outra retornar à Terra.Para isso, entretanto, teriam que tomar o corpo de seus devotos.Foi a condição imposta por Olodumare

Oxum, quem antes gostava de vir à Terra brincar com as mulheres,dividindo com elas sua formosura e vaidade,ensinando-lhes feitiços de adorável sedução e irresistível encanto,recebeu de Olorum um novo encargo:preparar os mortais para receberem em seus corpos os ori-xás.Oxum fez oferendas a Exu para propiciar sua delicada mis-são.De seu sucesso dependia a alegria dos seus irmãos e ami-gos orixás.Veio ao Aiê e juntou as mulheres à sua volta,banhou seus corpos com ervas preciosas,cortou seus cabelos, raspou suas cabeças,pintou seus corpos.Pintou suas cabeças com pintinhas brancas,como as penas da galinha-d’angola.Vestiu-as com belíssimos panos e fartos laços,enfeitou-as com joias e coroas.O ori, a cabeça, ela adornou ainda com a pena ecodidé, pluma vermelha, rara e misteriosa do papagaio-da-costa.Nas mãos as fez levar abebés, espadas, cetros,e nos pulsos, dúzias douradas indés. O colo cobriu com voltas e voltas de coloridas contase múltiplas fieiras de búzios, cerâmicas e corais.Na cabeça pôs um cone feito de manteiga de ori,finas ervas e obi mascado,com todo condimento de que gostam os orixás.Esse oxo atrairia o orixá ao ori da iniciada e o orixá não tinha como se enganar em seu retorno ao Aiê.Finalmente as pequenas esposas estavam feitas,

55

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

estavam prontas, e estavam odara.As iaôs eram as noivas mais bonitasque a vaidade de Oxum conseguia imaginar.Estavam prontas para os deuses.

Os orixás agora tinham seus cavalos,podiam retornar com segurança ao Aiê,podiam cavalgar o corpo das devotas.Os humanos faziam oferendas aos orixás,convidando-os à Terra, aos corpos das iaôs.Então os orixás vinham e tomavam seus cavalos.E, enquanto os homens cantavam e davam vivas e aplau-diam,convidando todos os humanos iniciados para a roda do xirê, os orixás dançavam e dançavam e dançavam.Os orixás podiam conviver com os mortais.Os orixás estavam felizes.Na roda das feitas, no corpo das iaôs, eles dançavam e dançavam e dançavam.

Estava inventando o candomblé.

6. RITO SAGRADO

Para fazer a abordagem da forma como acontece o rito, foram usadas imagens cedidas pelo Centro Cultural do Candomblé Pai Toninho de Xangô, localizado em São Paulo e pelo Ilê Opô Olo-gum edé – Axé Ajagunna, que fica em Piedade – SP. Em sequência, são apresentadas as fotos obtidas e destacados os elementos que constituem o rito, assim como a descrição de seu simbolismo.

56

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

Foto 1. Orixá Oxum.

Na Foto 1, vemos a imagem do Orixá Oxum, sendo a sua qualidade: Opará, deusa da beleza e da riqueza.

No rito sagrado, simbolicamente, esse é o ato em que a Oxum está se banhando nas águas dos rios e com a lama do “Osibatha” (folha sagrada) que esfrega pelo seu corpo para ficar sempre bela. Depois se olha no Abebê (leque de metal, espelho). Em sua cabeça, carrega uma coroa composta pelas cores do orixá, chamada de Adê.

Nesse ato, os devotos seguram uma grande renda da veste que a Oxum usa, suplicando as bênçãos do orixá. Os fios de contas coloridas identificam o orixá e protegem a filha que os usa.

57

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

Fotos 3, 4 e 5. Crianças participando do rito.

O rito sagrado dos iorubás não está ligado somente às pessoas mais velhas; é possível ser iniciado na religião ainda quando crian-ça. São “feitos no santo” conforme o próprio orixá determina atra-vés de ifá10. Usam vestes e fios de contas conforme as cores daque-le que rege o “Ori” (cabeça). As crianças com vestes solenes cantam, dançam e entram em transe com seus orixás nas festas sagradas. Alimentam-se dos alimentos sagrados, pois são os futuros herdei-ros que aprenderão os ritos, os fundamentos e que darão seguimen-to à religião. Como religião panteísta, as folhas sagradas (ramos e arbustos) fazem parte solene do rito.

Fotos 6 e 7. Participantes durante rito.

10 É o nome de um oráculo africano, sistema divinatório; a comunicação com os orixás e feita através de ifá.

58

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

A miscigenação dos povos de diferentes etnias mostra que o rito sagrado que foi difundido por negros quebrou barreiras e criou relações inter-raciais, deixando de lado o preconceito. Na roda do xirê (circulo), canto e dança fazem-se presentes, seguidos pelo som dos atabaques e agogô durante o canto. O orixá pode se fazer presen-te no seu filho. A comunhão com o sagrado alcança o seu êxtase no momento em que todos se alegram e festejam a chegada do orixá.

O templo sagrado é o lugar onde as cores do orixá do ilê (casa) são mais explícitas, tendo, pois, um papel fundamental den-tro do rito. As cores determinam o orixá regente; entretanto, por motivos de igualdade (todos são iguais perante o orixá), a cor bran-ca é adotada em todos os ritos. Como os símbolos sagrados que estão nos templos fazem parte de tradições e são carregados de sig-nificado, aquele que se inicia na religião e é exposto a eles passa naturalmente a ser conhecedor dessas tradições.

Fotos 8 e 9. Os tambores usados no rito.

Como já vimos, esses são os três tambores denominados rum, que é o maior, rumpi, de tamanho médio, e lé, que é o menor. São instrumentos sagrados, portanto, são usados unicamente para cha-mar os deuses, assim como o agogô, que desempenha papel impor-tante dentro do candomblé. As pessoas que tocam esses instrumen-

59

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

tos são os Ogans, os sacerdotes escolhidos pelo orixá para estarem lúcidos durante o rito. Os Ogans assim como as Equedes11 não en-tram em transe e são fundamentais no rito. O som dos tambores é o condutor do axé dos orixás, compondo sinfonias africanas sem par-tituras, próximo de um som de povos primitivos. É esse som que conduz o rito do começo ao fim.

É através do desempenho desses atabaques que o orixá vai executar a sua dança, mais precisamente do rum, que comanda os outros dois tambores.

Os orixás expressam suas características através dos rit-mos particulares, criando um momento musical em que elas se tornam inteligíveis e plenas de sentido religioso. A sincronia entre dança, cores e ritmo é tão perfeita que é possível entender o orixá como esse conjunto de cor, ritmo e movimento (AMARAL, 2005, p. 54).

Os tambores dentro do rito dos nagôs são tocados com os aguedavis (varetas) e não com a mão, como acontece nos candom-blés dos bantos em ritmo de angola.

Fotos 10 e 11. Dança do orixá.

11 Função feminina, ocupada na religião dos orixás. Responsável pela segurança física e conforto das pessoas manifestadas, presentes em todas as liturgias fundamentais na comunidade, não entram em transe e são fundamentais no rito.

60

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

É na festa que os orixás vêm à terra, no corpo de suas fi-lhas, com a finalidade de dançar, de brincar no xirê, termo que em Iorubá significa exatamente isto: brincar, dançar, divertir-se. É através dos gestos, sutis ou vigorosos, dos ritmos efervescentes ou cadenciados, das cantigas que “falam” das ações e dos atributos dos orixás, que o mito é revivido, que o orixá é vivido, como a soma das cores, brilhos, ritmos, cheiros, movimentos, gostos. A vida dos orixás é o principal tema (e a vinda dos orixás é o prin-cipal motivo) da festa. Os deuses incorporam seus eleitos e dançam majestosamente: usam roupas brilhantes, ricas, coroas e cetros, espadas e espelhos; são os personagens principais do drama religioso (AMARAL, 2005, p. 48).

Os deuses vestem-se simbolicamente com suas armas de guer-ra e símbolos de acordo com a mitologia. Cada orixá carrega a sua cor, como na Foto 10, em que vemos um Oxalá “rei do pano bran-co” sendo a sua qualidade “Osogyan”, carregando dois símbolos que caracterizam esse deus africano, a espada e a “mão de pilão”. Suas cores são o branco com um leve tom de prata e azul claro.

Na Foto 11, vemos o orixá Oxumaré carregando caracterís-ticas que revelam o seu símbolo: o da “serpente”. O orixá da mo-bilidade representa o ciclo da vida. A ele todas as cores do arco-íris foram entregues, podendo-se vestir com cores que representam a sua qualidade.

Fotos 12, 13 e 14. O transe.

61

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

“A festa é o momento em que a experiência visual do can-domblé é mais intensa, em que sua dimensão estética se revela com mais força e maior amplitude” (SOUZA, 2007, p. 8). Os colares chamados de “fios de conta” ou “Ilequê” estão sempre presentes com os adeptos e têm o papel fundamental de dizer qual é o orixá da pessoa, bem como de protegê-los. Os turbantes, compondo as vestimentas, mostram a influência que os negros muçulmanos tive-ram no rito africano. Magia e estética caminham lado a lado dentro da religião dos nagôs, assim como as cores das roupas estão sempre ligadas à divindade.

7. RITO E ESTÉTICA

Podemos considerar que a religião é uma grande motivado-ra da arte, uma vez que, no decorrer da história, tivemos grandes movimentos religiosos que se tornaram referência para obras de grandes artistas como Michelangelo, Leonardo da Vinci e vários outros, tanto no campo da pintura sacra quanto na música, arquite-tura, esculturas, dentre outras áreas. Como Santos destaca:

Identifico a existência de uma estética barroca no interior dos terreiros, uma ideia de belo que revela o gosto pelo aparato, pelo luxo, pelo ornamento, pelo brilho, pelo faus-to. A elaboração estética de muitas festas de candomblé, tal como na arte barroca, visa igualmente maravilhar, sur-preender. A adoção desse estilo barroco faz com que o belo muitas vezes seja identificado com o extravagante. Essa estética reflete-se entre outros aspectos na idealização e na confecção de roupas rituais (SANTOS, 2005, p. 76).

Todavia, a mitologia e a estética africana vêm consolidando com o passar do tempo explicações para a vida na religião, o que estimulou os descendentes africanos e outras pessoas a tornarem-se adeptos e a praticarem a religião. Vários estudiosos do mundo in-teiro passaram a se interessar e pesquisar a ritualística africana, tais como: os franceses Pierre Verger, fotógrafo e etnólogo; Roger Bas-tide, sociólogo que pesquisou na Bahia; René Ribeiro, Nina Rodri-gues e Artur Ramos. Carybé, nascido na Argentina, tornou-se um artista baiano retratando vários quadros da cultura afro-brasileira.

62

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

Podemos lembrar, ainda, Darcy Ribeiro e Rubem Valentim, dentre tantos outros.

De acordo com Prandi (2001, p. 19):Esse novo segmento, que em geral associa culturalmente religião com a palavra escrita, encontrou nos mitos expli-cações e sentidos para práticas e concepções do candom-blé, descobrindo que o mito está impregnado nos objetos rituais, nas cantigas, nas cores e desenhos das roupas e colares, nos rituais secretos de iniciação, nas danças e na própria arquitetura dos templos e, marcadamente, nos ar-quétipos ou modelos de comportamento do filho-de-santo, que recordam no cotidiano as características e aventuras míticas do orixá do qual se crê descender o filho humano (PRANDI, 2001, p. 19).

Esse pensamento africano vai se desvendando por etapas, por “obrigações de santo”, pela experiência adquirida a cada ano nos seus rituais particulares e festas para toda a comunidade.

A religião do candomblé, embora africana, não é só de ne-gros; é preciso dissociar religião e cor da pele, uma vez que é pos-sível participar da religião africana sem ser negro.

Hoje o candomblé não é mais uma religião étnica circuns-crita à população negra, pois já se espalhou pela sociedade branca abrangente, rompendo preconceitos e fronteiras ge-ográficas, inclusive fora do país (PRANDI, 2004, p. 23).

Assim, os mais de três milhões de negros que para o Brasil vieram nos deixaram um legado de valores: mitos, ritos, costumes, arte, culinária, sonoridades, palavras e cultura. Cotidianamente, é comum permanecermos desatentos à importância da incorporação e do reconhecimento da participação do negro na formação e orga-nização do Brasil. Nesse cenário, resgatar e valorizar “[...] a extra-ordinária plasticidade das culturas africanas, que sabem se adaptar aos mais diversos meios sociais e culturais para sobreviver em ou-tros ambientes que não o seu original” (CONDURU, 2007, p. 68), tornou-se papel indelével de todos aqueles que pretendem reconhe-cer o Brasil, sua diversidade, sua cultura e composição social.

A partir do olhar atento e qualificado, podemos identificar a imersão dos africanos na história e nas manifestações estéticas

63

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

presentes no Brasil, participando dos misticismos, mistérios, mito-logias e simbolismos que até hoje fazem parte do nosso dia a dia e integralizam a formação cultural brasileira.

Nesse sentido, “[...] é possível pensar na fertilidade de pro-cessos visando a explicitar e incorporar as dimensões artísticas das culturas afrodescendentes no Brasil” (CONDURU, 2007, p. 105). Numa perspectiva interdisciplinar, é vasto e variado o campo estéti-co afrodescendente a ser explorado: antropologia, religião, arte, ar-quitetura, história, filosofia, dentre outras, constituem áreas de co-nhecimento que se interpelam na análise da cultura afro-brasileira.

8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, procurou-se realizar uma rápida análise interdis-ciplinar da estética do ritual nagô e de sua significação. Enquanto parte da cultura afrodescendente, a estética nagô apresenta uma arte profundamente ligada ao ritual, de modo que a estética constitui um elemento indispensável, sem o qual não há rito.

Há uma união litúrgica entre cada elemento que compõe o rito: as cores dos colares, as cores das roupas, as cores dos panos – como o turbante; os tambores e instrumentos sonoros, o canto próprio na língua iorubá. Em tudo há um sentido de ser, um sentido fenomenológico com relação àquilo que é transcendente. Porém, tudo precisa ficar odara (bonito, belo) para agradar aos deuses. No momento das festas religiosas, ocorre aquilo que podemos deno-minar com a busca pelo fausto, ou seja, por aquilo que agrada aos olhos, que é belo e, portanto, agrada igualmente aos deuses.

O filósofo Cassirer (2004) defende que do embate entre “sentido e imagem” só haveria um equilíbrio puro e pleno quando olhássemos para a esfera da arte e da expressão artística. Assim, somente a consciência estética deixaria o problema da “existência” tranquilizado, na medida em que desde o início ela (a existência) se entregou à pura contemplação.

Todavia, mostram-se fundamentais as análises das manifesta-ções estéticas das culturas – e, de modo particular, a estética africa-

64

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

na e afrodescendente – como intuito consciente de oferecer ou res-gatar o sentido para tudo que compõe a ritualística religiosa. Neste estudo, o foco de preocupação definido foi o rito nagô.

No que diz respeito ao objeto em estudo, a arte dentro da ri-tualística nagô funde-se com a mitologia, com a indumentária, com o templo sagrado, e é impensável uma dissociação dos elementos estéticos, pois cada um deles torna-se tão importante, de modo a levar a arte e o rito a se fundir.

Considerando a ampla diversidade cultural humana, tal qual a brasileira, a educação estética pode favorecer a compreensão do fenômeno social e o próprio desenvolvimento da cidadania, atri-buindo significado à vida e estimulando a alegria de viver. Dessa maneira, as culturas afro-brasileiras contribuem para tal reflexão, na medida em que suas raízes africanas propõem a superação da separação forçosa ocorrida pela escravização de negros no conti-nente americano – a diáspora africana – retratando a resistência cultural pacífica e que integra aqueles que dela desejam participar (sem constranger para ou obrigar a tal).

REFERÊNCIAS

ADÃO, Maria Cecília de Oliveira; SANCHES, Everton Luís. História e cultura afro-brasileira, africana e indígena: elaboração do conhecimento acadêmico e práticas de ensino. In: BATISTA, Eraldo Leme; SILVA, Semíramis Corsi; SOUZA, Tatiana Noronha de. Desafios das ciências humanas na atuação e na formação docente. Jundiaí: Paco Editorial, 2012, p. 191-214.

AMADO, Jorge. Abc de Castro Alves. São Paulo: Livraria Martins, 1971.

AMARAL, Rita. Xirê! O modo de crer e de viver no candomblé. Rio de Janeiro: Pallas; São Paulo: EDUC, 2005.

BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

BENISTE, José. Dicionário yorubá. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

CABRERA, Lydia. Anagó, vocabulário lucumi. Havana: Ediciones Universal, 1996.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990.

65

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

CASSIRER, Ernest. Antropologia filosófica. São Paulo: Mestre Jou, 1977.

______. A filosofia das formas simbólicas: II O Pensamento Mítico. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

______. Linguagem, mito e religião. Porto – Portugal: Rés, s/d.

______. O mito do estado. São Paulo: Códex, 2003.

CONDURU, Roberto. Arte afro-brasileira. Belo Horizonte: C/Arte, 2007.

CONRAD, Robert. Tumbeiros - “O tráfico de escravos para o Brasil”. São Paulo: Brasiliense, 1985.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

IGNACE, Etienne. A revolta dos malês. 1907. Disponível em: <http://www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia_n10_11_p121.pdf>. Acesso em: 27 jan. 2014.

LANGDON, Esther Jean. Rito como conceito chave para a compreensão de processos sociais. In: Antropologia em primeira mão. Revista do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina – Florianópolis: UFSC, n. 13, 2007. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/~antropos/97.pdf>. Acesso em: 27 de jan. 2014.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

QUEIROZ, Suely Robles de. Escravidão negra no Brasil. São Paulo: Ática, 1987.

RODRIGUES, Nina. Africanos no Brasil. 5. ed. São Paulo: Companhia Nacional, 1977.

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

SANTOS, Eufrázia Cristina Menezes. Religião e espetáculo. Análise da dimensão espetacular das festas públicas do Candomblé. São Paulo: FFLCH/USP, 2005. (Tese de doutorado).

SOUZA, Marina de Mello e. África e Brasil africano. São Paulo: Ática, 2006.

SOUZA, Patrícia Ricardo de. Axós e Ilequês rito, mito e a estética do candomblé. São Paulo USP, 2007. (Tese de doutorado).

UNESCO. Mexico City Declaration on Cultural Policies. Paris: UNESCO, 1982.

66

Ling. Acadêmica, Batatais, v. 4, n. 2, p. 35-66, jul./dez. 2014

VÉRGER, Pierre. Orixás. Salvador: Progresso, 1955.

______. Orixás – Deuses Iorubás na África e no novo mundo. São Paulo: 6. ed. Corrupio, 2002.

VOGEL, Arno; MELLO, Marco Antonio da Silva; BARROS, José Flávio Pessoa. A galinha-d angola: iniciação e identidade na cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas, Eduff e Flacso, 1993.

WILLIAMS, Raymond. Cultura e sociedade. São Paulo: Nacional, 1969.

Imagens cedidas por:

Ilê Opô Ologum edé – Axé Ajagunna, Piedade – SP. Babalorisá Efraim Stefani. Disponível em: <http://www.facebook.com/efraim.stefani.5?fref=ts>. Acesso em: 27 jan. 2014.

Centro Cultural do Candomblé Pai Toninho de Xangô, São Paulo – SP. Disponível em: <http://www.facebook.com/paitoninho.dexango>. Acesso em: 27 jan. 2014.