A Estética e o Poder Formativo da Recepção

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O artigo aborda a estética da recepção pelo ângulo de seu potencial formador do ser humano

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A ESTÉTICA E O PODER FORMATIVO DA RECEPÇÃO

Valéria Moura Venturella1

A leitura é criação dirigida (SARTRE, 1989, p. 38).

A teoria da estética da recepção resultou de um movimento iniciado no final dos anos

60 na Universidade de Constança, na Alemanha, por pensadores liderados por Hans Robert

Jauss e Wolfgang Iser, como uma reação aos padrões positivistas e idealistas do século XIX

para o estudo e a abordagem da literatura (ZILBERMAN, 1989).

Até então, o consumidor da obra literária – o leitor – era considerado um elemento

pouco relevante na teoria da literatura. A estética da recepção rompeu com essa perspectiva

ao propor uma investigação sobre a recepção e os efeitos da obra literária no leitor. A

estética da recepção apresenta-se como uma teoria em que a investigação muda de foco:

do texto enquanto estrutura imutável, ele passa para o leitor (ZILBERMAN, 1989, p. 10-11).

A estética da recepção não aborda, assim, o texto a partir das intenções do autor ou

das condições do meio em que a obra foi produzida. Abandonando as interpretações

consideradas “corretas” – baseadas na imanência do texto – ou as que buscam um sentido

fixo na obra, essa teoria também não faz uma aproximação descritiva ou explicativa da

produção literária. Em vez disso, ela aborda a potencialidade da obra.

Para a estética da recepção, todo texto é uma obra em potencial, que se realiza

através da ação do leitor e dos efeitos que nele provoca. Iser (1999) mostra que os sentidos

do texto não são fixos, intocados, gerados a partir de elementos do texto, mas sim

originados na atuação do leitor. Seu sentido é construído, desconstruído e reconstruído pelo

leitor à medida que ele interage com a obra. Assim, pessoas diferentes lerão a obra de

maneiras distintas, e um mesmo leitor pode atribuir diferentes sentidos ao texto se tiver a

chance de interagir com ele em diferentes momentos de sua trajetória.

Segundo essa teoria, uma obra literária não tem sua existência entendida como

fechada e acabada, mas sim como uma realidade que pode ser constantemente

reformulada, uma vez que ela abarca múltiplas projeções que se concretizam no ato da

leitura. O autor, ao invés de impor uma ótica única ao leitor, deve despertar diferentes

pontos de vista e deixar perspectivas em aberto. A tarefa do autor é despertar no leitor o

desejo de ler. Já a tarefa do leitor é a de formar a partir do texto uma interpretação original

que não é necessariamente aquela formulada pelo autor da obra.

A estética da recepção representou um rompimento com a tradicional teoria literária

1 Mestre em Educação e doutoranda em Teoria da Literatura pela PUCRS; professora dos cursos de Pedagogia e Letras na PUCRS – Uruguaiana.

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por integrar o receptor no próprio processo de criação literária, isto é, por realçar a

intervenção fundamental do leitor na produção dos sentidos que emergem do texto. Para os

pensadores de Constança, a obra só se realiza ao ser recepcionada pelo leitor.

Assim, nessa teoria, a leitura não se limita à decifração de signos e sinais escritos,

mas é um ato de comunicação. Mais do que isso, a leitura é uma ação criativa e construtiva.

Ao ler, o receptor participa da construção da obra, se apropriando de uma das múltiplas

perspectivas possíveis em seu interior.

A teoria da estética da recepção explora a dinâmica que se estabelece na relação

entre o leitor e o texto literário, que é essencialmente interativa. Nessa interação, tanto a

obra quanto o receptor se engajam em uma relação recursiva (MORIN, 2002) marcada por

uma causalidade circular, em que os dois elementos se influenciam e se modificam

mutuamente.

Desse modo, ao mesmo tempo em que o leitor interfere no texto, colaborando na

construção de seus sentidos, o texto influencia o leitor, abrindo a possibilidade de uma

reflexão filosófica e de uma re-elaboração de suas próprias significações. No momento em

que o leitor assume sua tarefa de co-criador, o próprio conteúdo do texto sofre importantes

modificações, que são únicas para cada leitor. Simultaneamente, pode-se dizer que a obra

tem o potencial de causar no leitor transformações marcantes, ao preencher os “espaços

vazios” de seu ser.

Segundo Iser (1999) a característica da obra que permite que essa relação interativa

entre o leitor e o texto se estabeleça é sua estrutura comunicativa, ou estrutura apelativa,

que consiste em um convite, um chamamento para que o leitor participe de seu processo de

concretização.

Toda a obra de arte – categoria em que se enquadra a literatura – apresenta sentidos

indeterminados ou ambíguos, em que reside sua riqueza. Esses elementos de

indeterminação são necessários à atividade reflexiva do receptor. Eles incitam a recepção e

estimulam o receptor a buscar aquilo que a obra pode efetivamente produzir.

No caso das obras literárias, esses elementos de indeterminação, conforme Iser

(1999), consistem na presença de espaços abertos, ou espaços vazios, impulsionadores da

potencialidade da obra. Os espaços vazios não podem ser descritos como pausa do texto

[...] não são nada, mas sem dúvida deste nada brotam um importante impulso da atividade

constitutiva do leitor (ISER, 1999, p. 280). A presença dos espaços vazios provoca uma

ativação nas experiências e nos conhecimentos prévios do leitor, que passa então a compor

parte da obra através de suas representações mentais. Os espaços vazios induzem a

participação do leitor no texto, que é a condição essencial para a comunicação.

A estética da recepção, através da estrutura apelativa, coloca a obra de arte como

um permanente processo. Ela é apreendida e interpretada pelo receptor que a modifica

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constantemente segundo sua percepção, seu referencial, sua visão de mundo, suas

experiências prévias, sua intencionalidade. Uma obra de arte, assim, não é uma reprodução

objetiva do mundo, mas é uma das abordagens possíveis para a realidade no contexto da

recepção.

Assim, segundo essa visão, nenhuma perspectiva particular pode representar um

objeto. Para Iser (1999), o sentido estético é um produto da experiência e da re-elaboração

do receptor, o que caracteriza os conceitos estéticos dessa teoria como abertos, uma vez

que eles não se orientam segundo definições restritas ou regras fixas de interpretação. É

importante ressaltar, porém, que com isso Iser não pretendeu romper com a estética

tradicional, mas sim lhe oferecer um modelo interpretativo alternativo.

Segundo a estética da recepção, devemos buscar em uma obra não o que ela é, ou

aquilo sobre o qual ela trata, mas sim o que ela pode fazer, ou seja, as reações e as

transformações que ela é capaz de provocar em nós. E é aqui que reside o poder formador

de uma obra de arte: o potencial de gerar em nós aquilo que nós ainda não temos, de nos

transformar, de provocar nossa reflexão e de ampliar nossa consciência.

Definiremos formação como um processo integral, abrangente e permanente de

realização de nossas potencialidades, de descoberta de nós mesmos, do mundo em que

vivemos e da relação que estabelecemos com ele, de sensibilização e conscientização para

a realidade que nos cerca, de reflexão, de abertura para o novo, para o belo e para o

surpreendente. Acreditamos que a formação é um processo contínuo, porém não linear, e

que não tem vistas a um objetivo determinado, mas que encontra sua razão de ser em seu

próprio desenrolar.

O pensador francês Edgar Morin defende uma abordagem da arte, especialmente a

literatura, poesia e cinema (MORIN, 2002, p. 48) como uma preparação para a vida, ou seja,

como um processo de formação. Segundo o autor, as obras de arte, em vez de serem

consideradas apenas – ou principalmente – como objetos de estudo formal nas diferentes

disciplinas, deveriam se constituir como escolas de vida em seus múltiplos sentidos

(MORIN, 2002, p. 48).

O autor defende o desenvolvimento de um processo educativo que, pela via da

recepção de obras de arte, provoque nos educandos a construção de conhecimentos sobre

si mesmos, sobre a complexidade humana, sobre a necessidade de compreensão mútua

entre os seres humanos e especialmente sobre a urgência de se resgatar a o que ele

denomina a qualidade poética da vida (MORIN, 2002, p. 48).

Morin afirma que, através do conhecimento das delicadas metáforas e dos

multifacetados personagens de obras literárias ou cinematográficas, é possível que

possamos experienciar idéias e sentimentos que não nos ocorrem no dia-a-dia, e que nem

mesmo os estudos formais podem nos transmitir. Ao confrontar, através da ficção, nossos

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valores e concepções mais arraigadas, uma obra de arte pode ter o poder de nos fazer

repensá-las e reformulá-las. Ao mesmo tempo, essas obras podem nos arrancar de nosso

prosaico quotidiano e nos fazer refletir sobre nossas escolhas e planos. Ao nos fazer sonhar,

um livro ou um filme pode mudar nossa trajetória de vida.

A proposta do paradigma da complexidade para o estudo das artes, assim, se volta

para a construção de valores geralmente deixados de lado na educação tradicional, como

auto-conhecimento, a auto-avaliação, a flexibilidade de espírito e a abertura para o novo e o

inusitado. Contrariamente às aproximações tradicionais à leitura e à literatura que, nas

palavras de Barbara Freitag constituem uma barreira para que o aluno aprenda a ter o

prazer da leitura, a curiosidade pela literatura e o gosto pelo aprendizado através dos textos

literários (FREITAG, 1997, P. 114), essa proposta busca, além de formar seres humanos

integrais, éticos e conscientes de seu papel na sociedade, resgatar a dimensão estética e

lúdica que a literatura pode oferecer a nossas vidas.

REFERÊNCIAS:

FREITAG, Barbara. O livro didático em questão. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1997.

ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Ed. 34, 1999.

MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 7. ed.. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2002.

SARTRE, Jean Paul. Que é literatura? São Paulo: Ática, 1989.

ZILBERMAN, Regina. Estética da recepção e história da literatura. São Paulo: Ática, 1989.