A Evolução Da Técnica Antecipatória e Da Tutela Preventiva No Brasil

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A Evolução da Técnica Antecipatória e da Tutela Preventiva no Brasil Luiz Guilherme Marinoni Professor Titular de Direito Processual Civil da Universidade Federal do Paraná - Brasil A suposição de que a jurisdição deveria dar atenção apenas a direitos patrimoniais, suscetíveis de conversão em pecúnia, aliada à necessidade de se garantir a liberdade em face do exercício do poder judicial, fez surgir um processo civil em que o juiz somente deveria tutelar contra o dano ou proferir sentenças constitutiva e declaratória. O juiz não podia constranger a vontade do demandado a não violar um direito não apenas porque isso não era necessário para a tutela de direitos que podiam ser convertidos em pecúnia 1 , mas também porque o princípio da autonomia da vontade e o conceito de liberdade então vigentes impediam-lhe de assim agir 2 . Não é por outro motivo que a sentença declaratória, a regular formalmente uma relação jurídica determinada pela autonomia das partes, é vista como o modelo típico do processo civil do direito liberal 3 . 1 ? Salvatore Mazzamuto. L’attuazione degli obblighi di fare. Napoli: Jovene, 1978, p. 37 e ss. 2 ? Adolfo Di Majo. La tutela civile civile dei diritti. Milano: Giuffrè, 1993, p. 156. 3

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Artigo Jurídico

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A Evolução da Técnica Antecipatória e da Tutela Preventiva no Brasil

Luiz Guilherme Marinoni

Professor Titular de Direito Processual Civil da Universidade Federal do Paraná - Brasil

A suposição de que a jurisdição deveria dar atenção apenas a direitos patrimoniais, suscetíveis de conversão em pecúnia, aliada à necessidade de se garantir a liberdade em face do exercício do poder judicial, fez surgir um processo civil em que o juiz somente deveria tutelar contra o dano ou proferir sentenças constitutiva e declaratória.

O juiz não podia constranger a vontade do demandado a não violar um direito não apenas porque isso não era necessário para a tutela de direitos que podiam ser convertidos em pecúnia1, mas também porque o princípio da autonomia da vontade e o conceito de liberdade então vigentes impediam-lhe de assim agir2. Não é por outro motivo que a sentença declaratória, a regular formalmente uma relação jurídica determinada pela autonomia das partes, é vista como o modelo típico do processo civil do direito liberal3.

1

? Salvatore Mazzamuto. L’attuazione degli obblighi di fare. Napoli: Jovene, 1978, p. 37 e ss.

2

? Adolfo Di Majo. La tutela civile civile dei diritti. Milano: Giuffrè, 1993, p. 156.

3

? A relação entre sentença declaratória e tutela preventiva, que foi posta à luz pela doutrina chiovendiana, decorreu, em primeiro lugar, de uma exigência de construção sistemática. Não importava, de fato, se a sentença declaratória exercia função realmente preventiva, mas sim que a sentença declaratória, ao ser pensada em contraposição à sentença de condenação, demonstrava o princípio da autonomia da ação, o qual se ligava à marca nitidamente publicista que Chiovenda imprimiu à jurisdição. Não é possível esquecer que a escola sistemática formou-se sob a influência de um modelo de Estado de Direito de matriz liberal, o que significa que a doutrina chiovendiana de certa forma ainda estava sob a influência da orientação que inspirou os juristas do século XIX. Esse modelo institucional de Estado, marcado por uma acentuação dos valores de liberdade individual em relação aos poderes de intervenção estatal, reflete-se sobre a concepção de sentença declaratória, enquanto

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Se o bem jurídico a ser protegido é a “coisa” dotada de valor de troca e o juiz deve ter os seus poderes limitados em nome da autonomia privada, o processo não precisa e não pode dar tutela preventiva aos direitos. O processo de conhecimento, dotado de sentença ligada à execução forçada e de sentenças declaratória e constitutiva, é incapaz de adequadamente atender aos “novos direitos”.

A tutela cautelar, por pertencer a essa mesma dimensão de processo civil, foi instituída porque a violação do direito, objeto da sentença do processo de conhecimento, pode trazer conseqüências que podem constituir prejuízos não reparáveis por meio da tutela final4. Afinal, é certamente contraditório admitir uma tutela que, pensada como instrumento, possa ter um alcance maior do que o do processo que almeja garantir a utilidade. Uma tutela preventiva que garante uma tutela repressiva é uma contradição em termos.

No Brasil, o atual Código de Processo Civil (de 1973) possui, ao lado dos livros que tratam dos processos de conhecimento e de execução, um livro para regular o processo cautelar5. O Livro III do Código brasileiro, dedicado inteiramente ao processo cautelar, possui procedimentos cautelares especiais

sentença que regula apenas formalmente uma relação jurídica já determinada em seu conteúdo pela autonomia privada. Não parece errado afirmar, assim, que a contraposição sentença declaratória-tutela inibitória expressa diferentes necessidades e valores, sendo a primeira marcada pelo desejo de não permitir a intervenção do Estado nas relações dos particulares e a segunda por uma exigência praticamente oposta, ou seja, por uma real necessidade de impedir a violação de direitos considerados fundamentais dentro de um contexto de Estado que, deixando de lado a necessidade de apenas preservar a liberdade do cidadão, passa a apostar não só na consagração formal, mas sobretudo na tutela efetiva e concreta de direitos imprescindíveis para uma organização social mais justa e equânime. Cf. Luiz Guilherme Marinoni, Tutela Inibitória, 3ª. ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 242. V. Vittorio Denti, Diritti della persona e tecniche di tutela giudiziale. L’informazione e i diritti della persona. Napoli: Jovene, 1983, p. 267; Cristina Rapisarda, Profili della tutela civile inibitoria, Milano: Giuffrè, 1987, p. 67-68.

4

? V., nesse sentido, Adolfo di Majo, La tutela civile dei diritti, cit., p. 144.

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? O Código brasileiro possui livros destinados aos processos de conhecimento, de execução e cautelar, além de um livro destinado aos procedimentos especiais.

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e a previsão de ação cautelar inominada6. O art. 8067 do Código afirma expressamente a relação de instrumentalidade da ação cautelar com uma ação dita principal, deixando claro que a ação cautelar não pode ser vista como uma ação autônoma, mas sim como um instrumento dos processos de conhecimento e de execução.

Porém, diante da evolução do Estado e do surgimento de novos direitos, a prática forense viu-se diante da necessidade de admitir a distorção do uso da ação cautelar inominada para permitir a efetiva tutela jurisdicional dos direitos. A elaboração dogmática do direito constitucional à tutela jurisdicional adequada8, além das pressões sociais por tutela jurisdicional efetiva e tempestiva, obrigou o advogado a requerer, mediante as vestes da liminar da ação cautelar, a tutela que, em princípio, apenas poderia ser alcançada ao final do processo de conhecimento9.

6

? CPC, Art. 798. “Além dos procedimentos cautelares específicos, que este Código regula no Capítulo II deste Livro, poderá o juiz determinar as medidas provisórias que julgar adequadas, quando houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação”.

7

? CPC, Art. 806. “Cabe à parte propor a ação, no prazo de 30 (trinta) dias, contados da data da efetivação da medida cautelar, quando esta for concedida em procedimento preparatório”.

8

? Andrea Proto Pisani, Sulla tutela giurisdizionale differenziata. Rivista di Diritto Processuale, 1979, p. 575 e ss; Andrea Proto Pisani, Brevi note in tema di tutela specifica e tutela risarcitoria. Foro Italiano, 1983, p. 128 e ss.; Michele Taruffo, Note sul diritto alla condanna e all’esecuzione. Rivista Critica del Diritto Privato, 1986, p. 635 e ss.; Luigi Paolo Comoglio, Commentario della Costituzione (a cura di G. Branca). Bologna-Roma, Zanichelli-Foro italiano, 1981, p. 1 e ss.; Ferruccio Tommaseo, Appunti di diritto processuale civile. Torino: Giappichelli, 1995, p. 169 e ss.

9

? Luiz Guilherme Marinoni, Tutela cautelar e tutela antecipatória. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1992; Luiz Guilherme Marinoni, Antecipação da Tutela. 12ª. ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011

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Isso ocorreu fundamentalmente por duas razões: em virtude da demora inerente ao processo de conhecimento e em razão desse processo não permitir a obtenção de tutela preventiva. Diante disso, a ação cautelar inominada passou a funcionar como técnica de sumarização do processo de conhecimento e para suprir a sua inaptidão para alcançar a tutela preventiva dos direitos. A tutela cautelar perdeu, mediante o uso distorcido que a prática lhe impôs, o caráter da instrumentalidade.

No momento em que surgiu a necessidade de impedir a violação dos direitos da personalidade, a ação cautelar inominada foi utilizada como antecedente da ação declaratória, demonstrando-se a necessidade de um procedimento de conhecimento em que fosse possível a obtenção de tutela inibitória na forma antecipada10. Evidenciou-se a necessidade de uma ação inibitória autônoma, dotada de técnica antecipatória e provimento final capazes de constranger o demandado a não fazer.

Várias outras situações, como a em que o jurisdicionado necessitava retirar valores depositados em conta corrente que foram bloqueados por ato do 10

? Loriana Zanuttigh, escrevendo sobre o uso da tutela cautelar atípica na proteção dos direitos da pessoa, afirma que graças à progressiva alteração da estrutura e da função da tutela cautelar inominada, criou-se um modelo de proteção mais avançado e eficaz, “com resultados de incisa aderência a especificidade dos direitos da pessoa” (Loriana Zanuttigh, La tutela cautelare atipica. L’informazione e i diritti della persona. Napoli: Jovene, 1983, p. 281). Vittorio Denti, após lembrar que o art. 700 do CPC italiano permitiu que os tribunais suprissem a ausência de tutela jurisdicional adequada, adverte que também emergiu a necessidade de uma “tutela de urgência com função não cautelar, ou seja, não vinculada instrumentalmente com a tutela que o art. 700 define ordinária” (Vittorio Denti, Diritti della persona e tecniche di

tutela giudiziale. L’informazione e i diritti della persona, Napoli: Jovene, 1983, p. 263). Denti

admite que o ponto de partida dessa evolução da utilização do art. 700 foi indubitavelmente a reconhecida viabilidade de um possível efeito antecipatório da tutela cautelar em relação à sentença de mérito, característica esta que – segundo ele – teria induzido Calamandrei, no seu clássico estudo sobre as medidas cautelares (Introduzione allo estudio sistematico dei provvedimenti cautelari. Padova: Cedam, 1936) “a tratar destas medidas de urgência juntamente com as declarações com predominante função executiva”. A necessidade de uma tutela efetiva dos direitos não patrimoniais levou Proto Pisani (La tutela giurisdizionale dei diritti della personalità: strumenti e tecniche di tutela. Foro Italiano, 1990, p. 17 e ss) a insistir para a

oportunidade de um procedimento sumário não cautelar, o que, segundo Denti, superaria o “o

equívoco que vicia a atual aplicação do art. 700, submetido a exigências de tutela que não têm

a característica da instrumentalidade, própria das medidas cautelares”. Assim, reconhece-se

não só que a tutela inibitória sumária não é marcada pela instrumentalidade, mas também que a admissão dessa forma de tutela com base no art. 700 do CPC deriva da necessidade de uma “tutela de urgência com função não cautelar”, o que dá suporte à tese de que a tutela inibitória

deve ser diferenciada da tutela cautelar e, ainda, evidencia que a categora da “decisão

antecipada e provisória do mérito”, elaborada por Calamandrei, mais se aproxima das declarações com predominante função executiva do que da tutela cautelar. Ver, sobre a importância da obra de Calamandrei para o desenvolvimento da teoria da tutela cautelar, Remo Caponi, Piero Calamandrei e la tutela cautelare, Rivista di Diritto Processuale, settembre-ottobre 2012, p. 1250 e ss.

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governo federal, levaram não só ao uso da ação cautelar inominada para desde logo se obter a tutela do direito material, mas fizeram com que os tribunais dispensassem o Autor de propor a ação que seria a de conhecimento. Na realidade, o jurisdicionado novamente invocou a ação cautelar inominada para obter imediatamente a tutela do seu direito, pois o procedimento comum de conhecimento não lhe dava a oportunidade de requerer tutela antecipada, embora os fatos pudessem ser demonstrados mediante prova documental e o direito, por isso mesmo, estivesse quilômetros além de um mero fumus boni iuris.

A percepção de que a ação cautelar inominada, em todas essas situações, era bastante e suficiente para conceder a única tutela pretendida pelo jurisdicionado, fez surgir falsas discussões acerca da autonomia e da “satisfatividade” da ação cautelar. Isso porque a ação, embora chamada de cautelar, na verdade constituía uma ação de cognição exauriente em que era possível a obtenção da antecipação da tutela final.

Portanto, as necessidades de tutela adequada das situações de direito substancial evidenciaram a imprescindibilidade de se instituir, no procedimento comum de conhecimento, uma técnica de antecipação da tutela. Não apenas porque só o procedimento cautelar admitia provimento liminar e sempre dependia de uma ação de conhecimento, como também porque os tribunais se negavam a admitir tutela antecipada do direito material a partir de pedido de tutela cautelar.

Em 1994, reforma do Código de Processo Civil instituiu a chamada tutela antecipatória, ou seja, a possibilidade de o juiz, mediante provimento liminar, antecipar a tutela final no procedimento comum de conhecimento11. A norma do artigo 273 do Código de Processo Civil passou a admitir a antecipação da tutela em duas hipóteses: i) diante de fundado receio de dano irreparável e de difícil reparação e ii) em caso de “abuso de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu”12.

11

? Defendi, em 1990, a tese que deu origem à intituição da tutela antecipatória no Brasil. O livro, fruto da tese defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, foi publicado em 1992 sob o título de “Tutela Cautelar e Tutela Antecipatória” pela Editora Revista dos Tribunais. O livro foi objeto de resenha na Itália pelo Professor Angelo Dondi (Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 1996) e na Argentina pelo Prof. Roberto Berizonce (Revista del Colegio de Abogados de La Plata, 1995).

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O jurisdicionado foi muito beneficiado pela possibilidade de o juiz antecipar a tutela com base em receio de dano13. Já a partir de 1994 a prática forense assimilou a novidade e hoje é impossível pensar a justiça civil brasileira sem tal instrumento de tutela dos direitos. Trata-se, sem qualquer dúvida, não apenas de técnica processual que resultou de delicada e criativa tarefa dogmática, mas de mecanismo que trouxe grande contribuição para um melhor rendimento da justiça civil e para a realização das necessidades de tutela dos direitos.

? Eis a redação do art. 273, na versão de 1994: “Art. 273 - O juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação e:

I - haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou

II - fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.

§ 1o Na decisão que antecipar a tutela, o juiz indicará, de modo claro e preciso, as razões do seu convencimento.

§ 2o Não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado.

§ 3º A execução da tutela antecipada observará, no que couber, o disposto nos incisos II e III do art. 588.

§ 4o A tutela antecipada poderá ser revogada ou modificada a qualquer tempo, em decisão fundamentada.

§ 5o Concedida ou não a antecipação da tutela, prosseguirá o processo até final julgamento”.

13

? Sobre o tema da tutela antecipatória, no direito brasileiro, ver por todos Ovídio Baptista da Silva, Curso de Processo Civil, v. 3, 3a. ed., São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000; Ovídio Baptista da Silva, A ação cautelar inominada no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1979; Luiz Fux, Tutela de segurança e tutela da evidência, São Paulo: Saraiva, 1996; Daniel Mitidiero, Antecipação da Tutela, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2012. Na Argentina, ver Augusto Morello, Anticipación de la Tutela, La Plata, Platense, 1996; Roberto Berizonce, S. Patricia Bermejo e Zulma Amendolara, Tribunales y Proceso de Familia, La Plata, Platense, 2001, p. 50-59; Jorge W. Peyrano, “Reformulación de la teoría de las medidas cautelares: tutela de urgencia – medidas autosatisfactorias”, Revista de Direito Processual Civil 9; Jorge W. Peyrano, “Régimen de las medidas autosatisfactivas, nuevas propuestas”, Revista de Direito Processual Civil 7; Jorge Rojas, “Los límites de la tutela anticipada”, in Sentencia Anticipada, Buenos Aires, Rubinzal-Culzoni Editores, 2001; Carlos Alberto Carbone, “Los procesos urgentes y la anticipación de la tutela”, Revista de Direito Processual Civil 21; Abraham Luiz Vargas, “Teoría general de los

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A nova técnica passou a ser utlizada, inclusive, para a antecipação de soma em dinheiro, admitindo-se a sua execução mediante penhora on line e sanção coertiva pecuniária. Demonstrou-se que a execução da tutela antecipada de soma não poderia se submeter aos meios de execução da sentença de condenação não só porque a urgência que legitima a sua concessão é incompatível com a demora inerente à execução forçada, como também porque não há qualquer motivo que possa impedir a coerção da vontade do devedor que possui patrimônio para a realização de um crédito pecuniário, especialmente quando esse se mostra imprescindível para o atendimento de um direito não patrimonial ou de uma necessidade primária14.

Porém, os advogados brasileiros ainda não souberam fazer uso da tutela antecipada baseada em “abuso de direito de defesa”, o que retirou dos tribunais a possibilidade de colaborar para o desenvolvimento dessa imprescindível técnica de distribuição do ônus do tempo do processo.

A tutela antecipada com base em abuso de direito de defesa só pode ser compreendida por quem tem sensibilidade para intuir que o tempo do processo é um ônus, que, assim, não pode ser jogado nas costas do autor, como se ele fosse o culpado pela demora inerente à investigação dos fatos e à sedimentação do juízo decisório15.

Essa forma de tutela antecipada tem racionalidade especialmente quando parte do pedido, ou um dos pedidos cumulados, torna-se incontroverso

procesos urgentes”, in Medidas Autosatisfactivas, Buenos Aires, Rubinzal-Culzoni Editores, 1999; Jorge Rojas, “Los límites de la tutela anticipada”, in Sentencia Anticipada, Buenos Aires, Rubinzal-Culzoni Editores, 2001. No direito uruguaio: Jaime Greif, “Las medidas anticipativas”, in Temas de Derecho Procesal Civil, Montevidéu, Cauce Editorial, 2000; No direito peruano, ver Juan José Monroy Palacios, “Cinco temas polémicos en el proceso civil peruano”, Revista de Direito Processual Civil, 21.

˜

14

? Luiz Guilherme Marinoni, Antecipação da Tutela. 12ª. ed., cit., p. 219 e ss.

15

? Luiz Guilherme Marinoni, Tutela antecipatória, julgamento antecipado e execução imediata da sentença. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1997; Luiz Guilherme Marinoni, Abuso de defesa e parte incontroversa da demanda. 2ª. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011.

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no curso do procedimento que deve caminhar adiante para a elucidação da outra parcela da demanda16, bem como na situação em que a única controvérsia do processo reside na “defesa de mérito indireta”. Se os fatos articulados pelo Autor são incontroversos, seja por terem sido provados mediante documento ou por não terem sido contestados, e o réu alega fatos impeditivos, modificativos ou extintivos que se mostram infundados, não há racionalidade em obrigar o Autor a pagar pela demora que serve unicamente para o Réu tentar se desincumbir do seu ônus de provar 17. Trata-se, bem vistas as coisas, de pensar no aspecto dinâmico do próprio ônus da prova, ou seja, no tempo necessário à produção da prova, propondo-se a distribuição do tempo do processo com base no mesmo critério estabelecido para a repartição do ônus da prova18.

Também é possível pensar em abuso de defesa quando se dá a devida relevância aos precedentes das Cortes Supremas. Se cabe a essas atribuir

16

? Para esclarecer essa possibilidade, a Lei 10.444/2002 inseriu no art. 273 do CPC o seguinte dispositivo: “§ 6o A tutela antecipada também poderá ser concedida quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso”.

17

? De acordo com Proto Pisani, “a técnica que pode satisfazer a exigência de evitar o abuso do direito de defesa é a da condenação com reserva das exceções. Com base nela, o juiz, reconhecidos apenas os fatos constitutivos do direito, emite um provimento jurisdicional sobre o mérito, deixando a uma fase processual sucessiva a cognição das exceções do demandado” (Andrea Proto Pisani, Lezioni di diritto processuale civile. Napoli: Jovene, 1994. p. 627).

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? Giuliano Scarselli, La condanna con riserva, Milano: Giuffrè, 1989, p. 560-561.

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sentido ao direito19, definindo-o mediante as “melhores razões”20, a defesa que não demonstra que o caso sob julgamento não se enquadra na moldura de um precedente ou não traz relevantes e específicas razões para evidenciar a necessidade de sua revogação não pode protelar a parcela do direito que, por conta disso, mostra-se evidente no curso do processo, mas que, em virtude da regra da “unità e unicità della decisione”, em princípio teria que aguardar o encerramento da instrução probatória que diz respeito aos fatos controvertidos relativos à outra parcela da demanda.

A mesma reforma que instituiu a tutela antecipatória introduziu no Código de Processo Civil técnicas processuais destinadas a permitir o que chamou de “tutela específica”, aí compreendidas as tutelas que garantem a integridade do direito material, seja evitando a sua violação, seja propiciando a reintegração do direito violado ou o ressarcimento na forma específica21. O artigo 461 do Código de Processo Civil22, além de novamente repetir a

19

? A função de garante da interpretação adequada da lei, como observa Elisabetta Silvestri, pode ser vista como pertencente ao “patrimônio genético” das Cortes Supremas em geral – de cassação, de revisão etc -, uma vez que a sua colocação no ápice da pirâmide judiciária necessariamente comporta o exercício de poderes de controle sobre a atividade interpretativa realizada pelos juízes inferiores (Elisabetta Silvestri. Corti Supreme Europee: Accesso, filtri e selezione. In Le Corti Supreme. Milano: Giuffrè, 2001, p. 110).

20

? Michele Taruffo. La Corte di Cassazione e la legge. Il vertice ambiguo. Saggi sulla Cassazione civile, Bologna: Il Mulino, 1991, p. 105. V. Pierluigi Chiassoni. Tecnica dell’interpretazione giuridica, Bologna: Il Mulino, 2007, p. 16; Jerzy Wróblewski, Legal syllogism and rationality of judicial decision. Rechtstheorie, v. 5, parte 1, cit., p. 40 e ss.

21

? Luiz Guilherme Marinoni. Tutela Específica. 2a. ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002; Luiz Guilherme Marinoni, Técnica processual e tutela dos direitos, 3a. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

22

? Eis a redação do art. 461, em sua versão atual: “Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica

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possibilidade de tutela antecipatória em face de receio de dano, prevê a possibilidade de o juiz utilizar o meio executivo que reputar necessário para a efetividade da tutela específica. Confere-se também ao juiz o poder de ordenar sob pena de sanção pecuniária, em valor que entender suficiente para constranger o demandado a não fazer e a fazer, assim como utilizar meio executivo não requerido pelo Autor, desde que adequado à tutela do direito em vista das regras do meio idôneo e da menor restrição possível23.

da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

§ 1o A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.

§ 2o A indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (art. 287).

§ 3o Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada.

§ 4o O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito.

§ 5o Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.

§ 6o O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da multa, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva”.

23

? Quebrou-se a regra da tipicidade dos meios executivos, dada a necessidade de outorga de maior poder de execução ao juiz. O controle do poder executivo, no entanto, passou a ser realizado mediante a regra da proporcionalidade, especialmente mediante as regras do meio idôneo e da menor restrição possível. É evidente que o meio executivo deve ser adequado e idôneo para a tutela do direito. O problema está na escolha do “meio mais suave”, isto é, daquele que, além de adequado e idôneo à tutela jurisdicional, é o menos prejudicial ao demandado. Apenas as circunstâncias do caso concreto podem indicar a medida executiva necessária ou mais suave, vale dizer, aquela que, sendo boa para o autor, é também a melhor para o réu. Porém, as regras do meio idôneo e da menor restrição não teriam importância se não fosse a necessidade de o juiz justificar a sua decisão. O equívoco, revelado pela justificativa, é que evidenciará a ilegitimidade do meio de execução. Sem a racionalidade da

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A instituição dessa nova modalidade de execução abriu oportunidade para a generalização da execução indireta diante de qualquer ação em que não se pede tutela em pecúnia e, por consequência, à elaboração teórica de um modelo adequado à tutela inibitória. Antes de tudo, porém, demonstrou-se a necessidade de desfazer a velha associação, de origem romana, entre ilícito e dano, ou melhor, entre tutela contra o ilícito e responsabilidade civil. A confusão entre ilícito e dano é resultado da ideia de que o bem jurídico a ser tutelado é a res dotada de valor troca, para o que seria suficiente a tutela ressarcitória pelo equivalente24.

A distinção entre ilícito e dano ou a demonstração de que o fato danoso é uma consequência não necessária25 do ato contrário ao direito surgiu ao lado

justificativa, a legitimidade do exercício do poder de execução ficaria comprometida e não seria possível concretizar o direito constitucional das partes participarem adequadamente do processo. Para compreender a racionalidade do controle do novo poder executivo do juiz, convém analisar a doutrina de Karl Larenz: “Entre os princípios com forma de proposição jurídica podem contar-se também os princípios do ‘meio mais idôneo’ e da ‘restrição menor possível’ que, como vimos, servem muitas vezes aos tribunais de pauta de ‘ponderação de bens’. São ‘em forma de proposição jurídica’, enquanto exista um meio ‘mais idôneo’, apenas uma restrição ‘menor possível’ – a que protege suficientemente o bem preferido – do bem postergado, não se requerendo, portanto, uma ulterior concretização da pauta” (Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, p. 585).

24

? V. Michele Mòcciola, Problemi del risarcimento del danno in forma specifica nella giurisprudenza. Rivista Critica del Diritto Privato, 1984, p. 367 e ss; Cesare Salvi, Legittimità e ‘razionalità’ dell’art. 844 Codice Civile. Giurisprudenza italiana, 1975, p. 591; Michele Giorgianni, Tutela del creditore e tutela “reale”. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 1975, p. 853 e ss; Renato Scognamiglio, Il risarcimento del danno in forma specifica. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 1957, p. 201 e ss.

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? Imaginou-se que a lei, por obrigar quem comete um dano a indenizar, considerasse o

dano como elemento essencial e necessário da fattispecie constitutiva do ilícito. Porém, o dano

não é uma consequência necessária do ato ilícito, mas sim requisito para o surgimento da obrigação de ressarcir. Se o dano não é elemento constitutivo do ilícito, podendo o último existir independentemente do primeiro, não há razão para não admitir uma tutela que leve em consideração apenas o ilícito, deixando de lado o dano. Da mesma forma que se pode pedir a cessação de um ilícito sem aludir a dano, é possível requerer que um ilícito não seja praticado sem a demonstração de um dano futuro. Cf. Luiz Guilherme Marinoni. Tutela Inibitória, 5a. ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 92 e ss. V. Aldo Frignani, Azione in

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da percepção de que a tutela civil contra o ato contrário ao direito havia se tornado imprescindível para a atuação das normas legais de proteção aos direitos fundamentais26. Restou claro que a realização do conteúdo dessas normas dependeria de tutelas capazes de inibir a violação, a repetição ou a continuação da violação da norma e de restabelecer a situação que existiria caso a norma não houvesse sido violada.

Tais tutelas independem de discussão sobre o dano ou sua probabilidade, uma vez que objetivam impedir o ato contrário ao direito ou suprimir os seus efeitos concretos. Assim, por exemplo, a ação inibitória, para tutelar direitos difusos, pode ser prestada para impedir a violação de norma que proíbe conduta para a proteção do direito fundamental ao meio ambiente. Enquanto isso, ainda por exemplo, a ação de remoção do ilícito pode ser proposta para se retirar do mercado produto com conteúdo nocivo à saúde ou mesmo em desacordo com as regras que dão proteção ao consumidor. Note-se que, tanto na ação inibitória quanto na ação de remoção do ilícito, não é preciso invocar, respectivamente, probabilidade de dano à saúde ou dano ao consumidor. Aliás, a “descoberta” das ações contra o ilícito evidencia, ainda, que a tutela contra a concorrência desleal, da patente de invento ou de marca comercial também nada têm a ver com o dano ou com a sua probabilidade,

cessazione. Novissimo Digesto Italiano, 1980, p. 655; Cristina Rapisarda, Profili della tutela civile inibitoria, cit; Michele Taruffo e Cristina Rapisarda, Inibitoria, Enciclopedia Giuridica Treccani, v. 17.

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? Quando o Estado assume novas preocupações sociais, e assim passam a importar a proteção do meio ambiente, da saúde, da educação e da posição do consumidor no mercado, além de um enfoque dos direitos da personalidade à luz da evolução das técnicas de comunicação, surgem normas que, objetivando realmente tutelar essas situações de direito substancial, passam a impor deveres, cientes de que a sua observância é fundamental para a consagração desses “novos direitos”. Isso é obtido não só através de normas que consagram um não fazer, mas também por meio de normas que determinam uma ação positiva. Tais normas partem da premissa de que determinados atos devem ser vedados ou necessariamente praticados, pouco importando os efeitos concretos da sua violação, se danosos ou não. Na realidade, parte-se do pressuposto de que a violação da norma é causadora de prejuízo. Ou seja, a preocupação é com a simples observância da norma e não com o efeito concreto da sua violação, não mais importando a idéia que associava o ilícito à responsabilidade civil. Nos casos em que a tutela dos direitos fundamentais, desejada pela lei, exige a propositura de ação judicial, há tutela jurisdicional que realiza a conduta imposta pela lei. Nesse sentido, a ação inibitória revela preocupação com as normas que estabelecem comportamentos fundamentais para o adequado desenvolvimento da vida social. A possibilidade de se requerer uma tutela independentemente da existência de dano tem relação com o próprio conceito de norma jurídica, uma vez que se a única sanção contra o ilícito fosse a obrigação de ressarcir em virtude do dano, a própria razão de ser da norma estaria comprometida. Cf. Luiz Guilherme Marinoni. Tutela Inibitória, 5a. ed., cit., p. 54-55.

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exigindo apenas a demonstração de ato contrário ao direito ou da sua probabilidade.

A percepção teórica da relevância da distinção entre ato contrário ao direito e fato danoso para a tutela civil dos direitos fez ver o absurdo de pensar em ação cautelar inominada para as situações antes descritas. A ação cautelar não escapa do velho pressuposto do receio de dano, delineado em todas as leis e obras doutrinárias que tratam da tutela cautelar, e por consequência dá aos advogados mal formados ou que atuam de má-fé a possibilidade de inserir a discussão do dano no âmbito da cognição judicial de uma ação que se volta apenas contra o ato contrário ao direito, confundindo o juiz e protelando o processo. Hoje é muito comum a discussão do dano, inclusive com equivocada produção de prova sobre ele, em ações voltadas a tutela de interesses difusos em que se alega apenas a violação de norma de proteção a direito fundamental.

No presente momento, em que se discute o projeto de um novo Código de Processo Civil para o Brasil, tenta-se nele inserir regras que evidenciem que as ações inibitória e de remoção do ilícito exigem apenas a demonstração do ato contrário ao direito, excluindo a discussão do fato danoso. A Câmara dos Deputados, influenciada por lobistas de interesses privados, rejeitou a proposta de inserção da ação inibitória no projeto do Código, sob o argumento, que bem evidencia a má compreensão do instituto e a não percepção da sua imprescindibilidade para a tutela dos direitos, de que o seu uso poderia colocar em risco a liberdade de imprensa. É realmente chocante, mas é a verdade, o que demonstra a falta de preparo dos processualistas e dos parlamentares, que preferem circular em torno de discussões irrelevantes sobre institutos processuais seculares, talvez para não fugir da lógica de que a alteração da legislação é a melhor forma de conservar o status quo.

Interessa lembrar, ademais, que após a introdução da tutela antecipatória no Código de Processo Civil (em 1994), a tutela cautelar incidental continuou a depender de ação cautelar. Por isso e por ser mais fácil ao jurisdicionado obter tutela cautelar mediante mero requerimento no processo de conhecimento, não houve preocupação em distinguir tutela antecipatória e tutela cautelar. Isso ficou claro diante das ações declaratórias e constitutivas, dada a impossibilidade técnico-jurídica de declarar ou constituir de forma sumária ou provisória27.

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? Luiz Guilherme Marinoni, Antecipação da tutela, 12a ed., cit., p. 46 e ss. Sobre o ponto, no direito italiano, ver Ferruccio Tommaseo, I provvedimenti d’urgenza. Padova: Cedam, 1983, p. 257-259; Gianpiero Samori, La tutela cautelare dichiarativa, Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 1995, p. 949 e ss; Federico Carpi. La provvisoria esecutorietà della sentenza. Milano: Giuffrè, 1979, p. 59 e ss.

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Porém, qualquer bom observador sabe que a dificuldade de diferenciação entre as tutelas antecipatória e cautelar resultou de uma manobra da prática forense, dirigida a permitir a obtenção de tutela cautelar mediante mero requerimento no processo de conhecimento. Somente em 2002 nova alteração no Código de Processo Civil estabeleceu a possibilidade de também se requerer tutela cautelar no processo de conhecimento28. Essa alteração do Código, no entanto, não delineou o significado de tutela antecipatória diante de tutela cautelar, o que é necessário para evitar o uso indevido dessas formas de tutela, que, inclusive, exigem justificativas dotadas de racionalidade completamente diversas29.

Ora, a história do processo civil mostra que a tutela cautelar foi pensada para garantir a efetividade da tutela do direito material30. A tutela cautelar nunca

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? Inseriu-se um § 7o ao art. 273: “§ 7o - Se o autor, a título de antecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado".

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? O equívoco em supor que as categorias do direito processual podem ser tratadas e conceituadas sem considerar o direito substancial traz, como consequência, a suposição de que não seria preciso identificar as peculiaridades e os pressupostos das diferentes tutelas fundadas em perigo, bastando conceituá-las como tutelas “de urgência” – que, assim, deixaria de ser um gênero que engloba várias realidades, mas sim uma realidade homogênea. Acontece que a idéia de tutela de urgência somente pode explicar algo que é interno ao processo e não como ele trata do direito material e dos casos concretos. A falta de identificação das tutelas que dão composição ao gênero “tutela de urgência” elimina a possibilidade de se explicar a convicção de verossimilhança e a justificação da decisão antecipatória, pois essas não são uniformes, ao contrário do conceito de urgência. A circunstância de a tutela antecipatória, na perspectiva processual, poder ser conceituada como urgente, obscurece o fato de que a tutela urgente pode ser repressiva e preventiva (inibitória) e as importantes implicações que essa constatação tem para o assunto que aqui interessa. Cf. Luiz Guilherme Marinoni, Antecipação da tutela, 12a ed., cit., p. 181 e ss.

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? A distinção entre tutela cautelar e tutela antecipatória é evidente. Como advertiu Giovanni Verde, “seria sinal de escassa honestidade intelectual, ou ainda de ingenuidade não escusável, pensar que o pagamento que satisfaz um crédito alimentar, ainda que fundado em um provimento cautelar, não implique satisfação do direito de crédito, ma serva meramente a cautelarlo”. (Giovanni Verde, L’attuazione della tutela d’urgenza. La tutela d’urgenza. Rimini: Maggioli, 1985, p. 92). “Nel tirare le somme, avviandomi a concludere, mi accorgo di avere tenuto un discorso confuso, disarticolato e in qualche parte incoerente. Ma la verità è che sono stato travolto dalla stessa maniera disorganica con la quale l’istituto del provvedimento d’urgenza si è

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foi ou poderia ter sido pensada para dar tutela ao direito material nem, muito menos, para inibir a violação do direito ou remover os seus efeitos concretos. Admitir a tutela do direito material mediante cognição sumária seria o mesmo do que admitir execução antes do exaurimento do exercício do direito de defesa, algo incompatível com o princípio da nulla executio sine titulo, um dos princípios que sustentou a lógica da estrutura do direito processual do século XX. Por outro lado, a compreensão da história das doutrinas também evidencia que a tutela cautelar não poderia, quando delineada, tutelar contra o ato contrário ao direito não apenas porque se supunha que isso atentaria contra a liberdade, mas também porque as categorias do ilícito e da responsabilidade civil eram associadas.

Portanto, para não se fugir do compromisso com a teoria do processo civil e, especialmente, para não se atentar contra conceito básico de teoria de direito, de que um instituto não deve ser desfigurado para se manter uma nomenclatura ou de que um novo instituto não deve ser designado com um nome que sempre serviu e serve a outro31, a doutrina deveria ter advertido o legislador sobre a importância de se deixar claro que a tutela antecipatória antecipa a tutela final, ao passo que a tutela cautelar assegura o resultado útil do provimento final32.

venuto modificando e adattando alle concrete esigenze. E mi pare che le indicazioni fornite, dalle quali si sono volutamente tralasciate le ricchissime serie di provvedimenti a tutela dei diritti della personalità (in senso tradizionale) e della concorrenza, che rappresentano il campo naturale di applicazione dei provvedimenti in esame, abbiano confermato che non ci sia stata vicenda di qualche rilievo (...) che non sia passata per tale forma di giustizia. Ne è venuta fuori una tipologia assai varia e che forse meriterebbe di essere organizzata secondo criteri sistematici, che non sono stato in grado di elaborare. Si potrebbero, così, isolare accertamenti sommari con prevalente funzione cognitiva, accertamente sommari con prevalente funzione esecutiva, ingiunzione, inibizione oltre che meri provvedimenti cautelari” (Giovanni Verde, Considerazioni sul procedimento d’urgenza – come è e come si vorrebbe che fosse. I processi speciali – Studi offerti a Virgilio Andrioli dai suoi allievi. Napoli: Jovene, 1979, p. 458-460).

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? Uma mesma palavra não pode trazer significados diversos quando se pretende um real desenvolvimento da ciência. Deixar de elaborar a distinção entre tutela cautelar e tutela antecipatória é não permitir a identificação de diferentes realidades. Ou pior do que isto: é permitir que elas sejam confundidas. V. Genaro R. Carrió, Notas sobre derecho y lenguaje. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1990, p. 98.

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O mais curioso e absurdo é que parte da doutrina brasileira alega que não há mais razão para distinguir tutela antecipatória de tutela cautelar sob o argumento de que ambas são tutelas baseadas em “receio de dano”. Esquece-se que, enquanto a tutela cautelar tem como pressuposto receio de dano, a mais importante forma de tutela antecipada, no direito contemporâneo, é a que se destina a inibir o ato contrário ao direito ou a remover os seus efeitos concretos, sem cogitar a respeito de fato danoso. Ademais, nem toda tutela antecipatória é fundada em periculum in mora; a tutela antecipada também se destina a distribuir o tempo do processo e, nessa dimensão, não tem qualquer

? Edoardo Ricci, em trabalho em que analisou especificamente a tutela antecipatória brasileira, assim observou: “Ao expor as minhas reflexões sobre o tema irei privilegiar, na comparação, a experiência italiana. Isso, sobretudo porque o direito italiano é aquele de meu país e, portanto, o conheço melhor. Mas o cotejo entre o direito brasileiro e o direito italiano tem também outra justificação: a comunhão de linguagem, de problemas e de idéias que as respectivas doutrinas enfrentam sob o ponto de vista científico. Desde há muito tempo a doutrina brasileira e a doutrina italiana são irmãs: às vezes tem-se a impressão de que se trata de uma mesma doutrina, a despeito de serem diversos os ordenamentos estudados por uma e por outra. É assim impossível para italianos e brasileiros tentarem uma visão de conjunto, que ultrapasse os limites do próprio ordenamento jurídico, se o primeiro passo não for dado em direção à doutrina vizinha; e ao considerar a nova tutela antecipatória brasileira, sobretudo em relação à experiência de meu país, quase que não me sinto um verdadeiro e próprio estrangeiro. Sinto-me mais em posição intermediária entre a própria dos juristas brasileiros e a própria dos juristas estrangeiros. (...) A nova tutela antecipatória brasileira, para mim, tem um mérito fundamental: oferecer a melhor solução do problema de iure condendo, no sentido de a tutela antecipada ser organicamente inserida no bojo do procedimento ordinário, ou de ser estruturada como uma forma de tutela autônoma, destacada do processo ordinário sob o ponto de vista formal. (...) O legislador brasileiro seguiu desde logo a melhor via mediante o novo art. 273 do CPC. Com essa norma, o direito brasileiro, sob o aspecto estrutural, impõe-se ao mundo como um exemplo da melhor solução. Os fundamentos, com base nos quais deve ser deferida ou negada a tutela antecipada, são os mesmos que deverão ser considerados pela sentença. Esses fundamentos e argumentos são colhidos sob as garantias típicas do processo civil ordinário: e é nessa tutela antecipatória que é preciso ter confiança. Para mim, visto que sempre me bati por uma solução estrutural semelhante, verificar que o legislador brasileiro escolheu esse rumo constitui motivo de particular satisfação. (...) A questão de saber se a tutela antecipatória integra ou não integra a mais vasta categoria da tutela cautelar é debatida no Brasil e suscita um sinal de discussão também na Itália. E não falta para o surgimento do problema uma específica justificação. Quando nasce um novo instituto é praticamente inevitável perguntar se ele pode ou não ser sistematizado no âmbito de categorias já conhecidas; e o instituto novo da tutela antecipatória parece vizinho à já conhecida categoria da tutela cautelar, dada uma sua característica muito peculiar: a provisoriedade. Tudo depende dos limites mais ou menos amplos que se pretende atribuir ao conceito de tutela cautelar; as dúvidas atinentes à aptidão de a tutela cautelar encerrar em seu próprio âmbito a tutela antecipatória emergem sobretudo de um dado típico da tutela cautelar, consistente na instrumentalidade em relação à tutela de mérito. Essa instrumentalidade pode variar no seu aspecto positivo. Mas oferece seguramente um aspecto negativo: só pode ser instrumental em relação à tutela de mérito uma tutela que não coincida com esta. A tendência da tutela antecipatória a encontrar sistematização em uma categoria própria e autônoma, não reconduzível à categoria da tutela cautelar, decorre exatamente de seu caráter antecipatório: entre a tutela antecipatória e a tutela de mérito, a rigor, não deveria haver diferença . (...) Em suma e para concluir: a autonomia da tutela antecipatória em relação à tutela cautelar deve também ser conquistada e sustentada com determinadas opções de direito positivo. Trata-se

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relação com periculum in mora. Fora isso, há evidente distinção entre a tutela que realiza um direito mediante cognição sumária e a tutela que assegura a utilidade do provimento final. Finalmente, a ideia de assimilar as tutelas a partir do requisito da urgência contradiz a história da prática forense e da ordem normativa brasileiras, uma vez que a tutela antecipada foi introduzida no Código de Processo Civil em razão das pressões sociais por tutela jurisdicional adequada e especialmente em virtude da negação dos juízes em concedê-la sob o manto protetor da tutela cautelar. Portanto, pretender “voltar atrás” constitui algo despido de qualquer racionalidade.

Por outro lado, não há como deixar de lembrar que, em qualquer processo civil, há uma disputa por um bem da vida, em relação à qual o tempo incide de modo inverso conforme a posição em que esteja a parte. O tempo do processo prejudica o autor na exata proporção em que beneficia o demandado e, bem por isso, não pode deixar de ser visto como um ônus. Como as hipóteses de tutela antecipatória em nome da distribuição do tempo processual constituem elaborações dogmáticas criadas a partir do conceito de “abuso de direito de defesa”, é preciso que o novo Código de Processo Civil brasileiro não perca a oportunidade de delinear as situações que abrem oportunidade à distribuição do ônus do tempo. Isso fornecerá critérios para se visualizar os casos em que o tempo não deve ser suportado pelo autor e facilitará o controle da racionalidade das decisões judiciais, evidenciando que a técnica antecipatória hoje também é imprescindível para tutelar a igualdade no processo mediante a distribuição do ônus do tempo processual.

Em resumo: o processo civil brasileiro partiu da tutela cautelar para chegar na técnica antecipatória e na tutela contra o ato contrário ao direito. A ação cautelar foi delineada nos Códigos de Processo Civil de 1939 e 1973, cuja função sempre foi a de garantir a utilidade do processo destinado à tutela do direito material. Com o surgimento dos novos direitos e diante da intolerância em relação à demora da justiça civil, a ação cautelar inominada passou a ser utilizada como instrumento de sumarização do processo de conhecimento, viabilizando a obtenção imediata, e mediante cognição sumária, da tutela do próprio direito material. Diante disso, instituiu-se no Código de Processo Civil a técnica antecipatória, cujos resultados para o rendimento da justiça brasileira das mesmas escolhas de direito positivo pelas quais a tutela antecipatória pode lograr toda a utilidade de que é capaz: opções portanto que, além de assinalar etapas de um caminho que tende à efetividade da tutela jurisdicional, têm ainda um valor teórico e conceitual digno de nota. É esse um dos temas em que a aspiração à melhor disciplina possível e o refinamento das categorias científicas devem andar juntos (Edoardo Ricci, A tutela antecipatória brasileira vista por um italiano, Revista de Direito Processual Civil, Genesis Editora, v. 6, p. 222 e ss).

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foram extraordinários. A mesma reforma processual instituiu a técnica antecipatória contra o abuso de direito de defesa, que, a partir de elaboração dogmática, tornou-se técnica de distribuição do ônus do tempo do processo, independentemente da existência de periculum in mora. Por fim, em vista das técnicas processuais também instituídas com a reforma de 1994 e em razão de criativa elaboração teórica demonstrou-se a imprescindibilidade de se admitir tutela civil contra o ato contrário ao direito, quando ficou claro que não se podia confundir ação cautelar como ação inibitória não apenas porque a primeira tem como pressuposto a probabilidade de dano e a segunda o ato contrário ao direito, mas também porque a ação inibitória confere tutela ao direito material e, por isso, não guarda o caráter da instrumentalidade.