A Festa de Babette

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  A Festa de Babette Um dos meus prazeres é passear pela feira. Vou para comprar. Olhos compradores são olhos caçadores: vão em busca de caça, coisas específicas para o almoço e a janta. P rocuram. O que deve ser comprado está na listinha. Olhos caçadores não param sobre o que não está escrito nela. Mas não vou só para comprar. Alterno o olhar caçador com o olhar vagabundo. O olhar vagabundo não procura nada. Ele vai passeando sobre as coisas. O olhar vagabundo tem prazer nas coisas que não vão ser compradas e não vão ser comidas. O olhar caçador está a serviço da boca. Olham para a boca comer. Mas o ol har vagabundo, é ele que come. A gente fala: comer com os olhos. É verdade. Os olhos vagabundos são aqueles que comem o que vêem. E sentem prazer. A Adélia diz que Deus a castiga de vez em quando, tirando-lhe a poesia. Ela explica dizendo que fica sem poesia quando seus olhos, olhando para uma pedra, vêem uma pedra. Na feira é possível ir com olhos poéticos e com olhos não poéticos. Os olhos não poéticos vêem as coisas que serão comidas. Olham para as cebolas e pensam em molhos. Os olhos poéticos olham para as cebolas e pensam em outras coisas. Como o caso daquela paciente minha que, numa tarde igual a todas as outras, ao cortar uma cebola viu na cebola cortada coisas que nunca tinha visto. A cebola cortada lhe apareceu, repentinamente, como o vitral redondo de catedral. Pediu o meu auxílio. Pensou que estava ficando louca. Eu a tranqüilizei dizendo que o que ela pensava ser loucura nada mais era que um surto de poesia. Para confirmar o meu diagnóstico lembrei-lhe o poema de Pablo Neruda "A Cebola", em que ele fala dela como "rosa d'água com escamas de cristal". Depois de ler o poema do Neruda uma cebola nunca será a mesma coisa. Ando assim pela feira poetizando, vendo nas coisas que estão expostas nas bancas realidades assombrosas, incompreensíveis, maravilhosas. Pessoas há que, para terem experiências místicas, fazem longas peregrinações para lugares onde, segundo relatos de outros, algum anjo ou ser do outro mundo apareceu. Quando quero ter experiências místicas eu vou à feira. Cebolas, tomates, pimentões, uvas, caquis e bananas me assombram mais que anjos azuis e espíritos luminosos. Entidades encantadas. Seres de um outro mundo. Interrompem a mesmice do meu cotidiano. Pimentões, brilhantes, lisos, vermelhos, amarelos e verdes. Ainda hei de decorar uma árvore de Natal com pimentões. Nabos brancos, redondos, outros obscenamente compridos. Lembro-me de uma crônica da querida e inspirada Hilda Hilst que escandalizou os delicados: ela ia pela feira poetizando eroticamente sobre nabos e pepinos. Escandalizou porque ela disse o que todo mundo pensa mas não tem coragem de dizer. Roxas berinjelas, cenouras amarelas, tomates redondos e vermelhos, morangas gomosas, salsinhas repicadas a tesourinha, cebolinhas, canudos ocos, bananas compridas e amarelas, caquis redondos e carnudos (sobre eles o Heládio Brito escreveu um poema tão gostoso quanto eles mesmos), mamões, úteros grávidos por dentro, laranjas alaranjadas (um gomo de laranja é um assombro, o suco guardado em milhares de garrafinhas transparentes), cocos duros e sisudos, pêssegos, perfume de jasmim do imperador, cachos de uvas, delicadas obras de arte, morangos vermelhos, frutinhas que se comem à beira do abismo... Minha caminhada me leva dos vegetais à s carnes: lingüiças, costelas defumadas, carne de sol, galinhas, codornizes,  bacalhau, peixes de todos os tip os, camarões, lagostas. Os vegetarianos estremecem. Compreen do, porque na alma eu também sou vegetariano. Fosse eu rei decretaria que no meu reino nenhum bicho seria morto para nosso prazer gastronômico. Mas rei não sou. Os bichos já foram mortos contra a minha vontade. Nada posso fazer para trazê-los de volta à vida. Assim, dou-lhes minha maior prova de amor: transformo-os em deleite culinário para que continuem a viver no meu corpo. De alguma maneira vivem em mim todas as coisas que comi. Sobre isso sabia muito bem o genial pintor Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), que pintava os rostos

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Cronica de Rubem Alves

Transcript of A Festa de Babette

  • A Festa de Babette

    Um dos meus prazeres passear pela feira. Vou para comprar. Olhos compradores so olhos caadores: vo

    em busca de caa, coisas especficas para o almoo e a janta. Procuram. O que deve ser comprado est na

    listinha. Olhos caadores no param sobre o que no est escrito nela. Mas no vou s para comprar. Alterno

    o olhar caador com o olhar vagabundo. O olhar vagabundo no procura nada. Ele vai passeando sobre as

    coisas. O olhar vagabundo tem prazer nas coisas que no vo ser compradas e no vo ser comidas. O olhar

    caador est a servio da boca. Olham para a boca comer. Mas o olhar vagabundo, ele que come. A gente

    fala: comer com os olhos.

    verdade. Os olhos vagabundos so aqueles que comem o que vem. E sentem prazer. A Adlia diz que Deus

    a castiga de vez em quando, tirando-lhe a poesia. Ela explica dizendo que fica sem poesia quando seus olhos,

    olhando para uma pedra, vem uma pedra. Na feira possvel ir com olhos poticos e com olhos no

    poticos. Os olhos no poticos vem as coisas que sero comidas. Olham para as cebolas e pensam em

    molhos. Os olhos poticos olham para as cebolas e pensam em outras coisas. Como o caso daquela paciente

    minha que, numa tarde igual a todas as outras, ao cortar uma cebola viu na cebola cortada coisas que nunca

    tinha visto. A cebola cortada lhe apareceu, repentinamente, como o vitral redondo de catedral. Pediu o meu

    auxlio. Pensou que estava ficando louca. Eu a tranqilizei dizendo que o que ela pensava ser loucura nada

    mais era que um surto de poesia. Para confirmar o meu diagnstico lembrei-lhe o poema de Pablo Neruda "A

    Cebola", em que ele fala dela como "rosa d'gua com escamas de cristal". Depois de ler o poema do Neruda

    uma cebola nunca ser a mesma coisa. Ando assim pela feira poetizando, vendo nas coisas que esto expostas

    nas bancas realidades assombrosas, incompreensveis, maravilhosas. Pessoas h que, para terem

    experincias msticas, fazem longas peregrinaes para lugares onde, segundo relatos de outros, algum anjo

    ou ser do outro mundo apareceu. Quando quero ter experincias msticas eu vou feira. Cebolas, tomates,

    pimentes, uvas, caquis e bananas me assombram mais que anjos azuis e espritos luminosos. Entidades

    encantadas. Seres de um outro mundo. Interrompem a mesmice do meu cotidiano.

    Pimentes, brilhantes, lisos, vermelhos, amarelos e verdes. Ainda hei de decorar uma rvore de Natal com

    pimentes. Nabos brancos, redondos, outros obscenamente compridos. Lembro-me de uma crnica da

    querida e inspirada Hilda Hilst que escandalizou os delicados: ela ia pela feira poetizando eroticamente sobre

    nabos e pepinos. Escandalizou porque ela disse o que todo mundo pensa mas no tem coragem de dizer.

    Roxas berinjelas, cenouras amarelas, tomates redondos e vermelhos, morangas gomosas, salsinhas repicadas

    a tesourinha, cebolinhas, canudos ocos, bananas compridas e amarelas, caquis redondos e carnudos (sobre

    eles o Heldio Brito escreveu um poema to gostoso quanto eles mesmos), mames, teros grvidos por

    dentro, laranjas alaranjadas (um gomo de laranja um assombro, o suco guardado em milhares de

    garrafinhas transparentes), cocos duros e sisudos, pssegos, perfume de jasmim do imperador, cachos de

    uvas, delicadas obras de arte, morangos vermelhos, frutinhas que se comem beira do abismo... Minha

    caminhada me leva dos vegetais s carnes: lingias, costelas defumadas, carne de sol, galinhas, codornizes,

    bacalhau, peixes de todos os tipos, camares, lagostas. Os vegetarianos estremecem. Compreendo, porque na

    alma eu tambm sou vegetariano. Fosse eu rei decretaria que no meu reino nenhum bicho seria morto para

    nosso prazer gastronmico. Mas rei no sou. Os bichos j foram mortos contra a minha vontade. Nada posso

    fazer para traz-los de volta vida. Assim, dou-lhes minha maior prova de amor: transformo-os em deleite

    culinrio para que continuem a viver no meu corpo. De alguma maneira vivem em mim todas as coisas que

    comi. Sobre isso sabia muito bem o genial pintor Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), que pintava os rostos

  • das pessoas com os legumes, frutas e animais que se encontram nas bancas da feira. (D-se o prazer de ver as

    telas de Arcimboldo. Nas livrarias, coleo Taschen, mais ou menos quinze reais).

    Meus pensamentos comeam a teologar. Penso que Deus deve ter sido um artista brincalho para inventar

    coisas to incrveis para se comer. Penso mais: que ele foi gracioso. Deu-nos as coisas incompletas, cruas.

    Deixou-nos o prazer de inventar a culinria.

    Comer uma felicidade, se se tem fome. Todo mundo sabe disto. At os ignorantes nenezinhos. Mas poucos

    so os que se do conta de que felicidade maior que comer cozinhar. Faz uns anos comecei a convidar

    alguns amigos para cozinharmos juntos, uma vez por semana. Eles chegavam l pelas seis horas (acontecia

    na casa antiga onde hoje est o restaurante Dali). Cada noite um era o mestre cuca, escolhia o prato e dava as

    ordens. Os outros obedeciam alegremente. E a comevamos a fazer as coisas comuns preliminares a

    cozinhar e comer: lavar, descascar, cortar enquanto amos ouvindo msica, conversando, rindo, beliscando

    e bebericando. A comida ficava pronta l pelas 11 da noite.

    Ningum tinha pressa. No por acaso que a palavra comer tenha sentido duplo. O prazer de comer, mesmo,

    no muito demorado. Pode at ser muito rpido, como no McDonald's. O que demorado so os prazeres

    preliminares, arrastados quanto mais demora maior a fome, maior a alegria no gozo final. Bom seria se

    cozinha e sala de comer fossem integradas os arquitetos que cuidem disso para que os que vo comer

    pudessem participar tambm dos prazeres do cozinhar. Sbios so os japoneses que descobriram um jeito de

    pr a cozinha em cima da mesa onde se come, de modo que cozinhar e comer ficam sendo uma mesma coisa.

    Pois precisamente isto que o sukiyaki, que fica mais gostoso se se usa kimono de samurai.

    Quem pensa que a comida s faz matar a fome est redondamente enganado. Comer muito perigoso.

    Porque quem cozinha parente prximo das bruxas e dos magos. Cozinhar feitiaria, alquimia. E comer

    ser enfeitiado. Sabia disso Babette, artista que conhecia os segredos de produzir alegria pela comida. Ela

    sabia que, depois de comer, as pessoas no permanecem as mesmas. Coisas mgicas acontecem. E

    desconfiavam disso os endurecidos moradores daquela aldeola, que tinham medo de comer do banquete que

    Babette lhes preparara. Achavam que ela era uma bruxa e que o banquete era um ritual de feitiaria. No que

    eles estavam certos. Que era feitiaria, era mesmo. S que no do tipo que eles imaginavam. Achavam que

    Babette iria por suas almas a perder. No iriam para o cu. De fato, a feitiaria aconteceu: sopa de tartaruga,

    cailles au sarcophage, vinhos maravilhosos, o prazer amaciando os sentimentos e pensamentos, as durezas e

    rugas do corpo sendo alisadas pelo paladar, as mscaras caindo, os rostos endurecidos ficando bonitos pelo

    riso, in vino veritas... Est tudo no filme A Festa de Babette. Terminado o banquete, j na rua, eles se do as

    mos numa grande roda e cantam como crianas... Perceberam, de repente, que o cu no se encontra depois

    que se morre. Ele acontece em raros momentos de magia e encantamento, quando a mscara-armadura que

    cobre o nosso rosto cai e nos tornamos crianas de novo. Bom seria se a magia da Festa de Babette pudesse

    ser repetida...

    Entre o ruim e o horrendo

    Os males da liberalizao das

  • drogas so menores que os da sua proibio

    RUBEM ALVES

    Diz a psicanlise que quando um impulso consciente proibido de se expressar e reprimido ele no

    desaparece. A agncia repressora, o superego, no tem poder para mat-lo. Pode proibir sua apario

    pblica, mas no consegue destru-lo. Que acontece, ento, com os impulsos proibidos? Eles passam a existir

    na clandestinidade. E desse lugar clandestino, invisvel, que eles burlam as ordens do superego e fazem

    seus ataques.

    As leis da vida social so idnticas. Quando algum impulso se manifesta como lesivo sociedade, uma

    instncia repressora, a lei, determina que ele seja banido. Mas, tal como acontece com a alma, os impulsos

    sociais reprimidos no deixam de existir. Simplesmente assumem um novo tipo de existncia: tornam-se

    igualmente clandestinos. E protegidos pela clandestinidade burlam a lei e fazem seus ataques.

    No dia 1/1/1919 foi aprovada, pelo Congresso dos EUA, uma lei que proibia a fabricao, a distribuio e o

    consumo de bebidas alcolicas. Essa lei foi o resultado de um longo processo de anlise dos efeitos

    destruidores do lcool sobre a vida social. Havia, em primeiro lugar, a condenao vinda da tradio religiosa

    puritana, para a qual a bebida e a embriaguez eram obra do demnio. Havia, em seguida, os fatos sobre os

    efeitos da bebida: alcoolismo, incapacidade para o trabalho, crimes, doenas. Era bvio que a sociedade seria

    beneficiada se as bebidas alcolicas fossem banidas. As pessoas se tornariam mais racionais, agiriam na

    posse plena de suas faculdades mentais, teriam condies para controlar seus impulsos destruidores e a vida

    social melhoraria. Sem lcool haveria mais progresso e mais harmonia. Aprovou-se, assim, a Lei Seca, e

    tomaram-se as providncias para que ela fosse cumprida. Os EUA seriam um pas sbrio.

    Mas o resultado da Lei Seca foi o oposto do que os bem-intencionados legisladores dos EUA haviam

    imaginado. Sua inteno consciente foi abortada pela simples razo de que um mercado no pode ser abolido

    pela fora de uma lei. Na clandestinidade, o mercado de bebidas alcolicas floresceu e criou um monstro que

    os legisladores jamais haviam imaginado: um imprio gigantesco de dinheiro, crimes, corrupo, que se

    infiltrava em todos os setores da vida pblica, tornando-se num verdadeiro Estado dentro do Estado. Foi o

    perodo ureo da Mfia.

    Comentando esse fato, o socilogo Robert K. Merton observou: "Quando a reforma poltica se restringe

    tarefa de "pegar os bandidos" ela no passa de um ritual mgico". Realidades no se abolem com proibies.

    As proibies apenas deslocam os seus lugares. Se as demandas existem, no possvel elimin-las por meio

    de uma lei. Existindo demandas, elas encontraro formas de ser satisfeitas. Em 5/12/1933 a Lei Seca foi

    abolida. Os legisladores aprenderam a lio: o livre comrcio das bebidas, por danoso que fosse, era

    incomparavelmente menos danoso que o que acontece quando ele reprimido.

    Isso tudo a propsito da CPI que corajosamente se entrega necessria tarefa de "pegar os bandidos". Mas a

    lio da sociologia outra: enquanto o comrcio das drogas for proibido ele existir na clandestinidade.

    Assentada a poeira, da clandestinidade novos Hildebrandos surgiro, novas quadrilhas, novas formas de

    crime, novas infiltraes na poltica, nas empresas e na polcia. Por uma razo simples: muito dinheiro

    envolvido. E pelo dinheiro os homens fazem qualquer coisa.

    Os legisladores norte-americanos pensavam que estavam decidindo entre o bem e o mal: bebida alcolica

    mal, abstinncia bem. Assim, por meio de um decreto eliminariam o mal e estabeleceriam o bem.

    Infelizmente essa alternativa no existe. Frequentemente as decises a serem tomadas nos colocam diante

    das alternativas ruim e horrendo. Estamos, assim, diante da seguinte situao:

    1) As drogas existem, h para elas um mercado imenso que movimenta milhes ou bilhes de dlares.

    2) No possvel eliminar esse mercado. Primeiro, pela demanda. Segundo, pelo dinheiro em jogo.

    3) Encontramo-nos diante de duas alternativas. Primeira: as drogas simplesmente liberadas, com todos os

    seus males, semelhana do que acontece com bebidas alcolicas e cigarros. Segunda: as drogas e seu

    mercado proibidos legalmente, mas existindo na clandestinidade, com todas as suas floraes de crime e

    corrupo. A primeira alternativa muito ruim. A segunda horrenda.

  • 4) Se verdade que o mercado das drogas no pode ser eliminado por meio de represso, verdade que as

    consequncias da sua proibio podem. Basta que elas sejam tiradas da clandestinidade. Concluo, assim, que

    os males da liberalizao das drogas so menores que os da sua proibio.

    No gosto dessa concluso. Mas sou obrigado a consider-la. Sei que ela faz estremecer muitas pessoas. Mas

    tais pessoas deveriam considerar o que acontece com a produo e o comrcio livre de bebidas e fumo. No

    tenho dados estatsticos. Mas tenho a impresso de que, quantitativamente, os danos da bebida, no Brasil,

    em termos de crimes, violncia, desastres automobilsticos, doenas, so maiores que os danos das drogas. O

    fumo tambm droga mortal. S que seus efeitos so retardados e ningum leva a srio as advertncias do

    Ministrio da Sade...

    As drogas, liberadas, so um mal pessoal, mdico, psicolgico. No liberadas, so um mal pessoal, mdico,

    psicolgico, acrescido de crime e da corrupo da vida pblica.

    Adolescentes foram pegos fumando um baseado. Conduzidos delegacia, levaram uns tapas no rosto. Seus

    pais foram chamados. A proposta desavergonhada dos policiais: ou pagam R$ 5.000 ou os filhos sero

    enquadrados na lei. Todos os pais pagaram. Por que no denunciaram? Porque a denncia equivaleria a uma

    confisso do "crime" do filho. No me agrada a idia dos jovens como "refns" permanentes dos policiais.

    Esse foi um incidente mnimo cotidiano, rotineiro, um pingo d'gua no oceano de corrupo criado pela

    proibio das drogas.