A FUGA, A RAIVA, A DANÇA, A BUNDA, A BOCA,A CALMA, A VIDA ...
A Fulminada
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Fernando Correia Pina
A FULMINADA dez sonetos para Santa Teresa de vila
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Este amor que esperana e desespera
doce seta de fogo, taa de ardente gelo,
este nada querer s para t-lo,
esta pomba que me rasga como fera
que com doces arrulhos dilacera
todo o meu ser sem jamais hav-lo,
este perfume que me entrana o cabelo
com espinhos de rosa e folhas de hera,
que fiz eu para o ter? Por que razo
me h-de consumir desumana paixo
que nem palavras h para diz-la?
estranha salvao em que me perco,
suavssima luz que, se me acerco,
em Sol se torna sem me deixar v-la.
-
Este p que ergo ao caminhar
liberto do seu peso por meu peso,
este barro de sbito surpreso
por poder ascender e cintilar
sem ter que bruta terra ficar preso
sem ter que no cho se aniquilar
ardente fogo na fria pedra aceso
humilde chispa onde arde a luz domar
a minha alma sugada na vertigem
de tornar resplandecente sua origem
porque o teu p de leve a quis tocar
e no h sob o cu maior ventura
que ser a lama de onde jorra a gua pura
a negra oliva feita em luz no teu altar.
-
No meio da noite escura, em triste estrada,
saltou-me ao caminho o Roubador
e disse-lhe eu Senhor, no tenho nada
comigo de preo ou de valor.
No temas - murmurou est calada.
No quero ouro, nem prata, nem penhor;
s quero a tua alma transviada.
E ali me feriu com os ferros do Amor.
E foi to doce a dor, to penetrante,
to funda, to intensa, to gostosa
que cuidei ser espinho de rosa
o que era folha de faca lancinanta.
E eu que ali morri da maior morte,
morta me achei louvando a minha sorte.
-
Meu ser como barca em fundo mar
de calmaria vogava na corrente
e eu era um nome apenas entre a gente,
nau sem quilha para as guas apartar.
Assim andava eu a divagar
com o vagar que o tempo nos consente
quando um vento luminoso fez inchar
as velas da minha alma e, de repente,
me achei incertamente em rumo certo
sobre a rosa dos espinhos cardeais
cingindo em minha voz o mar aberto
que antes era s nunca e jamais.
E nunca tanto mar foi descoberto,
nem jamais o que era longe foi to perto
-
Esse carcereiro que com duros ferros
a minha alma sempre traz agrilhoada,
gozos me d por pena de meus erros,
penas me tira por pena mais pesada.
A minha vida, assim, so dois enterros
o da razo, que a graa faz em nada
e o da paixo, rosrio de desterros
de quem no pode amar quanto amada.
Chora, pois, pobre pssaro cativo,
corao que s preso ests vivo,
eternamente devedor a quem te prende.
Foste apanhada pelo Caador Furtivo,
no perguntes a razo nem o motivo
que a paixo s se vive, no se entende.
-
No perguntes que eu sou que eu j no sei
as letras do meu nome, a casa de onde vim,
a estrada que me trouxe e por onde cheguei
s vinhas da altura, ao mais longe de mim.
Se coisas tive, delas me despojei.
Por ti deixei a torre de marfim.
Sou o que fui somado ao que serei,
no meu princpio estava j o meu fim.
Caminho s h um para dentro,
onde doirada a porta e larga a vista;
caminho s h um para o centro
de mim, onde a rosa se conquista
e um nome apenas h, um som, um verso
em cujas letras cabe todo o universo.
-
Porque s gua do rio do pensamento
eu sou a sede em que me consumi,
a febre acesa no cume do momento,
a desterrada no tempo a que fugi.
O meu tempo um eterno casamento
e eu para sempre de noiva me vesti,
sou a lagarta em seu casulo lento,
a pia de gua que com teu nome enchi.
Sou a que espera as asas, pressurosa,
a que anseia por ser a mariposa,
a que se quer morrer em alto voo,
sou a que tem tudo sem ter nada,
a que espera e desespera, a fulminada,
a tua serva, Senhor, eis o que eu sou.
-
Pudesse eu como as outras namorar
o meu amado no caminho da fonte,
pudesse a minha mo ir-lhe limpar,
depois dum beijo, o suor da fronte
Ai, mas eu no posso assim amar,
no tenho sequer ningum que conte
como ele faz para me falar
na voz do vento que sopra do monte.
E trago-o c dentro, como a me ao filho
que por mais que cresa tem no corao
mesa sempre posta que com ele partilho,
cama sempre feita com nuvens, no cho.
E disto me morro mas s disto vivo
e este amor tanto que de mim me privo.
-
Como um raio que do cu cado
o corao fulmina sem matar
vida toda dando outro sentido
incendiando as cinzas do olhar
entraste em minha casa nu e ferido
na cama te deitaste e a sangrar
me tomaste por esposa, meu marido,
e eu que jurara no casar
consumi-me em lgrimas e lume
entreguei-me a ti sem um queixume
como a Lua que sem Sol no tem luar
e at que se consume o casamento
meu fado erguer pedras sobre o vento,
moradas para a alma te encontrar.
~
-
Nas salas do corao
brincas comigo s escondidas,
deixas pegadas no cho,
misturadas, confundidas,
em que tento ler em vo
os rastos das nossas vidas
em perfeita comunho,
em fogo de amor fundidas.
Mas eu sou a que s te olha,
a que te quer e desfolha
teu nome por mais no ter,
a que em segredo te escreve
versos com letras de neve
nos brancos muros do meu ser.