A GUERRA E A PAZ NA PÓLIS GREGA · 2013. 6. 5. · A GUERRA E A PAZ NA PÓUS GREGA 73 medo de...

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A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis, UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos. Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s) documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença. Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s) título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do respetivo autor ou editor da obra. Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por este aviso. A guerra e a paz na pólis grega Autor(es): Ferreira, José Ribeiro Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras URL persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/24041 Accessed : 18-Jun-2021 12:25:59 digitalis.uc.pt impactum.uc.pt

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    A guerra e a paz na pólis grega

    Autor(es): Ferreira, José Ribeiro

    Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

    URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/24041

    Accessed : 18-Jun-2021 12:25:59

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  • CATÓLICA PORTUGUESA CENTRO REGIONAL DE VISEU

  • MÁ T H E S I S 1 1992 69-87

    A GUERRA E A PAZ NA PÓLIS GREGA

    JosÉ RIBEIRO FERREIRA

    A guerra e a paz constituiram dois vectores com papel de relevo na sociedade e na cultura gregas, se bem que a importância de uma e de outra não apresente perfeita coexistência temporal nem se possa afirmar que uma precedeu a outra_

    Logo nos primórdios da cultura grega nos aparece a afirmação da guerra como um ideal nobre, mas nela se imiscui também a nostalgia da paz. Estou a referir-me aos Poemas Homéricos - a Ilíada e a Odisseia que, como é sabido, são fruto de uma improvisação oral e, por conseguinte, transmitem possivelmente concepções e dados ante-riores à data da sua composição, o século VIII a.c. 1.

    A Ilíada é um poema de guerra e o ideal ai proposto, simbolizado no seu herói principal, Aquiles. reside na coragem e superioridade em combate. É o que vem explicito num' passo do canto VI, em que se encontram frente a frente um troiano e um aqueu, Glauco e Diomedes respectivamente, e, como é de bom tom entre os heróis homéricos,

    1 Não recuo além dos Poemas Homéricos, até aos Micénios que, como se sabe desde a decifração do Linear B, já eram gregos e falavam grego, por que os dados que possuimos são escassos e os textos omissos, por serem constituídos na sua quase totalidade, de listas e enumerações. Apesar disso, os testemunhos arqueológicos e a lenda permitem afirmar que a guerra não era um fenómeno desconhecido entre as cidadelas micénicas. Sobre o assunto vide J. Ribeiro Ferreira Hélade e Helenos I - Génese e Evolução de um Conceito, Coimbra, 1983, pp. 23-25.

    Poderíamos lançar mãos dos Poemas Homéricos que se referem a aconteci-mentos dos tempos micénicos e nos fornecem dados sobre essa época. No entanto não sabemos em que medida a sociedade neles descrita é históríca e as suas carac-terísticas correspondem às micénicas. Encontramo-nos perante a chamada Questão homéríca e a debatida historicidade dos Poemas Homéricos. Sobre o assunto vide M. H. Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica. I - Cultura Grega, Lisboa, 61988, pp. 49-66 (a partir de agora: M. H. Rocha Pereira, Cultura Grega); J. Ribeiro Ferreira, Op. cit., pp. 29-49.

    Todas as datas deste trabalho são anteriores à nossa era, a não ser que se especifique o contrário.

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    perguntam-se pela linhagem um do outro. Ao falar dos antepassados refele Glauco a respeito do pai:

    Mandou-me para Tróia, recomendando-me com insistência que fosse sempre valente e superior aos outros, a fim de não envergonhar a linhagem paterna, a mais conceituada em Éfira e na vasta Lícia.

    (vv. 207-210)

    Ser sempre valente no combate e superior aos outros, para não envergonhar a linhagem paterna é afinal a excelência ou superioridade - a aretê, como diziam os Gregos - que visa este herói para a sua vida 1. Este ideal é ligeiramente completado por outros dois passos que se referem a Aquiles ou com ele estão relacionados. Um situa-se no canto primeiro, quando o poeta informa que o herói, após a ofensa recebida de Agamémnon, ÍIado se retirou do combate:

    Nem frequentava a assembleia, que dá glória aos homens, nem o combate, mas ali permanecia consumindo o seu precioso tempo, com saudades do alarido e da luta.

    (vv. 490-492)

    o outro passo vem integrado no célebre episódio da Embaixada a Aquiles, no canto IX. Ao dirigir-se ao seu antigo pupilo, Fénix diz-lhe que Peleu lhe dera por missão ensinar o filho

    a saber fazer discursos e a praticar nobres feitos. 2

    (v. 443)

    Aq uiles, o herói máximo do poema, fora portanto preparado para praticar nobres feitos em combate, mas também para conseguir impor-se na assembleia, através da ade de persuadir. O ideal da

    1 A aretê, como é conhecido, indica de início apenas a excelência ou mérito, que pode abranger vários sentidos: a coragem em combate na Ilíada, em Calino e Tirteu; a justiça e o trabalho em Hesíodo; a justiça em Sólon e Teógnis de Mégara, para referir apenas alguns. Só a partir de Sócrates passa a ter o significado prepon-derante de virtude. Sobre a aretê e sua importância na Hélade vide W. Jaeger, Paideio (trad. port.), Lisboa, Editorial Aster, s.d., pp. 21-33; A. W. H. Adkins, Merit and responsibility. A study in Greek values, The Univ. of Chicago Press, 1960, repr. 1975, caps. 3 e 4 e Moral values and politicai behaviour in ancient Greece, London, Chatto and Windus, 1972, passim.

    2 A tradução dos passos da Ilíada é de M. H. Rocha Pereira, Hélade, Coimbra, 51990, pp. 24, 16 e 28, respectivamente.

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    [[{ada não é pois apenas a coragem no combate, mas inclui já uma componente intelectual.

    Na Odisseia a aretê continua a incluir a força, a coragem e a elo-quência, mas o ideal amplia-se: passa a associar, como está bem patente no herói do poema, Ulisses, a astúcia e a habilidade em desenven-cilhar-se, em todos os momentos, das situações mais difíceis. A Odisseia constitui um poema de regresso - de nos tos. É afinal, como anuncia logo o seu primeiro verso, o poema do «homem dos mil expedientes que muito sofreu», nos longos anos que, após a Guerra de Tróia, andou errante pelo Mediterrâneo, sempre a ansiar pelo regresso a casa. Nele predomina o desejo de retorno ao lar, de repouso e de paz. Ainda aponta, como tónica principal do homem, a coragem e a excelência em combate, mas sente-se nele como que uma nostalgia da paz: a his-tória do homem que sente curiosidade de tudo e tudo quer experi-mentar, do homem de espírito aberto que, através de variadas aven-turas e dificuldades que ultrapassa graças ao seu engenho e astúcia, recupera a paz e a harmonia do lar e da farnilia 1.

    Estes dois vectores continuaram presentes, naturalmente, ao longo da história da Grécia, embora com predominância significativa para o tema da guerra, sobretudo até ao dealbar do século IV.

    Um relance pela história da Hélade deixa aos homens de hoje, sensibilizados para o espírito e os problemas da paz, a confrangedora impressão de que as cidades gregas apenas pensavam na guerra e para ela viviam.

    A educação nos primeiros tempos tinha por finalidade a preparação do cidadão para a defesa do seu pais. Era por isso, de inicio, um ensino apenas militar, que incluía evidentemente os exercicios físicos. Pre-tendia adestrar no manejo das armas os futuros defensores da pólis. Só aos poucos o treino militar exclusivo foi sendo substituido por um sistema educativo que visava o desenvolvimento harmónico das faculdades. O lugar onde isso se verifica primeiro é em Atenas, no século VI 2.

    I Para uma análise da Odisseia vide, entre outros, W. Jaeger, Paideia (trad. port.), pp. 34-55; M. H. Rocha Pereira, Cultura Grega, pp. 84-96; J. Griffin, Homer: the Odyssey, Cambridge Univ. Press, 1987; J. Latacz, Omero, il primo poeta delI' occidente (trad. it.), Roma, Laterza, 1990, cap. 4.

    2 Para a educação na época arcaica e sua evolução vide H.-I Marrou, Histoire de l'éducation dans I'Antiquité, Paris, Éditions du Seuil, 61965, pp. 74-86; M. H. Rocha Pereira, Cultura Grega, pp. 351-364.

  • 72 JOsÉ RIBEIRO FERREIRA

    o Grego tinha um espírito particularista e apenas se sentia realizado e livre em pequenas células independentes e autónomas - o sistema de pólis em que gostava de viver e amava profundamente. Consi-derava a pólis a única base possível de uma existência civUizada e livre, como foi acentuado com vigor por Platão e Aristóteles. O pri-meiro toma a pólis como modelo do seu Estado ideal, o segundo ocupa-se do assunto no livro I da Política 1.

    É estranho que a Grécia, em mais de quatro centúrias - dos inícios do século VIII à conquista da Macedónia em 338 -, apesar de várias tentativas nesse sentido, nunca tenha conseguido atingir a unidade. Mesmo quando faziam alianças, como é o caso das simaquias, os seus membros eram considerados Estados soberanos. Em vez de darem passos no caminho da união, as cidades-estado gregas pareciam remar em sentido oposto: passaram o tempo da sua história, quase na totalidade, desavindas; combatiam-se amiúde com empenho feroz. Uma vez declarada a guerra, tudo o que podia aproximar os Gregos era esquecido, os ditames da justiça são abolidos e contra o inimigo todos os meios se utilizam 2. Suspensos com a guerra leis e costumes, cometem-se violências de toda a espécie e as mais bárbaras atrocidades. Por ser uma das caracteristicas mais evidentes e conhecidas da história grega, não interessa aqui repisar o assunto. Basta acentuar, sem

    1 Por dois elucidativos passos de Platão (Críton 50a sqq. e Leis I, 625e) vemos quanto a pólis era apaixonadamente sentida. No primeiro passo citado, Ocorre a célebre prosopopeia das Leis; segundo estas, o cidadão recebe tudo da pólis, pelo que esta, que é ainda mais santa do que a família, tem também o direito de exigir tudo dele. A dada altura as Leis referem que (Crlton 51b)

    «não deve esquivar-se, nem recuar, nem abandonar o seu posto, mas, no combate, no tribunal ou em qualquer lugar, tem obrigação de fazer o que lhe ordenar a pólis ou a pátria».

    Nas Leis, a propósito das instituições de Creta e da Lacedem6nia, Clinias justifica a imposição das refeições em comunidade, sustentando que, desse modo, o legislador condena a insensatez da maioria por ignorar (Leis I, 625e)

    «que a todos, enquanto durar a existência, toca uma guerra contínua contra todas as outras cidades».

    Sobre o particularismo grego e o seu amor à autonomia vide J. Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos I, pp. 86-95.

    2 Cf. Plutarco, Moralia 233b. Tal facto encontra-se bem patente na afirmação de Agesilau de que, se uma acção é útil ao país, é belo realizá-Ia (Plutarco, Moralia 21Oe) e nas palavras dos Atenienses aos Mélios, nas quais postulam que a justiça reside na força (Tucídides 5. 84-116, sobretudo 89, 91, 105).

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    medo de fugir muito à verdade, que sempre na Grécia, aqui ou mais além, se encontrariam focos de lutas entre as cidades, apesar de certas normas humanitárias lhes minorarem a crueza 1. Em vez de a guelra ser uma interrupção da paz, é esta que o é daquela. Com razão observa J. de Romilly que, entre os Gregos, a guerra é «um estado normal» e que a paz é «um intervalo, um parêntesis ... uma trégua». Pelos tratados de paz se vê que nunca concluíam uma paz definitiva, mas limitada (cf. Tucídides l. 112. 1; 3. 114. 3; 5. 18. 3 e 9) 2. Temporários, esses tratados não eram designados pelo termo eirene, que se aplicava apenas ao estado de paz, ou seja o oposto de polemos, guerra. De modo geral bilaterais, esses tratados recebiam o nome de tréguas e pactos (spondai e synthêkai) ou interrupções da guerra. Assim se designavam o tratado de 446/445 (cf. Tucídides l. 35. 1) e o de 421 (cf. Tucídides 5. 18. 1 e 3 e 19. I), concluídos entre Atenienses e Espar-tanos. Pletendeu o primeiro apenas suspender a guerra entre as duas cidades e fixou como prazo de interrupção das hostilidades os trinta anos, pelo que também ficou conhecido por «Paz dos Trinta Anos». As tréguas de 421, designadas por Paz de Nícias, estipulavam um penodo de cessação das hostilidades de cinquenta anos.

    As dissensões começaram cedo, pois desde os primórdios da época arcaica nos chegam noticias da chamada Guerra de Lelanto, que pode ter envolvido a maior parte das cidades gregas dessa altura. Nascida da disputa entre Cálcis e Erétria pela posse da planície de Lelanto em breve viu a maior parte das demais cidades colocarem-se ao lado de uma ou de outra (cf. Tucídides l. 15.3). Embora para a sua datação se hesite entre os fins do século VIII e a primeira metade do século VI, é provável que haja ocorrido pouco antes de 700 3.

    Esparta é um caso paradigmático deste empenho dos Gregos pela guerra. Essa pólis era uma máquina de combate: vivia para ele e em função dele. Verdadeira cidade-quartel, as suas instituições haviam sido pensadas e dispostas para que os cidadãos estivessem sempre preparados e prontos a entrarem em combate.

    1 Vide J. Ribeiro Ferreira, Helade e Helenos I, pp. 169 sqq. 2 Para o facto de os Gregos viverem em estado de guerra permanente e de

    a paz ser apenas uma interrupção daquela vide F. Adcock,

  • 74 JOsÉ RIBEIRO FERREIRA

    Como é sobejamente conhecido, na Lacedemónia as crianças pertencem ao Estado desde que nascem e a partir dos sete anos são edu-cadas pela pólis que lhes dava uma preparação fundamentalmente de índole física, ao ar livre, e toda ela virada para a intervenção na guerra. Proibidos de se dedicarem a trabalhos manuais, os jovens espartanos, sujeitos a uma vida parca e austera, viviam em comum, divididos em grupos, dirigidos pelo mais avisado de cada um desses corpos, e apren-diam a obedecer e a suportar a fadiga e a dor, a falar de forma concisa e sentenciosa, ou seja a serem lacónicos 1. Também as jovens tinham uma educação ao ar livre, em que o exercicio físico predominava. Esparta queria fazer delas mães robustas que pudessem dar à pólis futuros cidadãos robustos 2.

    Atingida a idade adulta, com uma vida familiar muito limitada, continuavam a viver em grupos, tal como combatiam, obtigados a tomarem uma refeição diária em comum nos chamados syssitia, e eram sujeitos a preparação física e a treino militar constantes, de modo a encontrarem-se sempre prontos a entrarem em combate.

    Esparta considerava todas as outras actividades - agrícolas, comerciais, industriais ou artesanais - indignas de homens livres; para essa pólis, apenas a guerra, e a sua consequente preparação, pres-tigiava e dignificava os cidadãos. Por isso proibia estes, os «Iguais» (Homoioi), de se dedicarem a qualquer outra ocupação 3.

    A literatura da época arcaica, em especial a poesia que vive em ligação estreita com a pólis, veicula a cada passo a ideia - na sequência aliás do que já encontrámos em Homero -- de que a guerra é a activi-dade nobre, de que é nos campos de batalha que o cidadão alcança a glória e de que a sua aretê reside na coragem em combate. Vou apontar dois ou três exemplos.

    Calino, um poeta de Éfeso, do século VII, no fr. 1 West dirige-se aos seus concidadãos, em guerra com os Cimérios, e exorta-os a pega-

    I Xenofonte, República dos Lacedemónios 2. 1-11 e 6. 1-2; Plutarco, Licurgo 16-20.

    O laconismo era urna característica tão cultivada pelos Espartanos - os habi-tantes da Lacónia - que passou à posteridade como um substantivo comum para designar a qualidade ou defeito do que é parco em palavras. Plutarco, Licurgo 19-20 dá numerosos exemplos dessas sentenças concisas dos Lacedemónios.

    2 Cf. Xenofonte, República dos Lacedemónios 1. 3 sqq.; Platão, Leis 7, 804d e 813e; Plutarco, Licurgo 14-15.

    3 Para a proibição de os cidadãos espartanos se dedicarem a actividades económicas cf. Xenofonte, República dos Lacedemónios 7; Plutarco, Licurgo 23.2-3.

  • A GUERRA E A PAZ NA PÓLIS GREGA 75

    rem em armas e a manterem-se firmes na frente de batalha, já que a cobardia traz desonra e

    .. , é honra e glória para um homem combater pela pátria, pelos filhos e pela legítima esposa. 1

    (vv. 6-7)

    Tirteu, poeta espartano do mesmo século, afina por igual diapasão. Na altura Esparta estava envolvida numa guerra contra a Messénia e o poeta compunha poemas de incitamento dos concidadãos ao combate, que os soldados, segundo informação de Ateneu 14. 630e, entoavam quando se dirigiam para a batalha. Neles proclamava:

    É belo para um homem valente morrer, caindo nas primeiras filas, a combater pela pátria

    (fr. 10 West, vv. 1-2)

    Ó jovens, permanecei no combate ao lado uns dos outros, não comeceis com a fuga vergonhosa ou com o medo,

    mas criai no vosso espírito um ânimo excelso e valente, deixai o amor à vida ao combater com os homens.

    (fr. 10 West, vv. 15-18)

    Considera que aos jovens compete defender a cidade, já que será grande a sua glória, quer morra, quer conserve a vida:

    . ':' Quando vivo, admiram-no os homens, amam-no

    as mulheres; e é belo, se cai nas primeiras filas, Figue cada um em seu posto, de pernas bem abertas,

    os pés ambos fincados no solo, mordendo o lábio com os dentes. 2

    (fr. 10 West, vv. 29-32)

    Tirteu volta a pôr em relevo o heroismo e a valentia guerreira no fr. 9 Diehl, onde exorta de novo os cidadãos a manterem-se firmes nas primeiras filas, pois essa é a verdadeira superioridade. Para ele, não tem valor a excelência nos jogos, na estatura, na força, na beleza, na riqueza, no poder, na eloquência ou na glória, se lhe faltar a coragem valorosa em combate (vv. 1-9).

    I A tradução de M. H. Rocha Pereira, Hélade, p. 92. 2 A tradução dos passos de Tirteu é de M. H. Rocha Pereira, Hé/ade, pp. 93

    e 94, respectivamente.

  • 76 JOsÉ RIBEIRO FERREIRA

    Alceu, poeta de Lesbos, toma parte activa na vida politica da sua ilha e sente prazer em descrever o equipamento usado pelo cidadão na guerra:

    A enorme casa resplandece de bronze. O tecto está todo adornado com elmos brilhantes, ondeiam os brancos penachos de crinas de cavalo, adorno das cabeças dos guerreiros. As cnémides resplandecentes, defesa contra o dardo potente, ocultam os cabides donde pendem, As couraças de linho novo e os escudos côncavos amontoam-se no chão, Ao lado jazem espadas da Calcídia, cinturões enúmeros e túnicas. Disto tudo não nos esqueçamos, desde que empreendemos esta tarefa. 1

    (fr. 357 Lobel-Page)

    É certo que outros autores não colocavam o seu ideal de superiori-dade na coragem em combate 2. No entanto, mesmo um poeta como Arquiloco, natural de Paros, que renega o ideal heróico

    Algum Saio se ufana agora com o meu escudo, arma excelente, que deixei ficar, bem contra a vontade, num matagal.

    Mas salvei a vida. Que me importa aquele escudo? Deixá-lo! Hei-de comprar outro que não seja pior.

    (fr. 5 West)

    mesmo ele reconhece a importância e o carácter obsorvente da guerra. Afirma com efeito no fr. 1 West:

    Eu sou o servidor do Senhor dos combates e conhecedor dos amáveis dons das Musas.

    E no fi. 2 West:

    Na minha lança está o meu pão amassado, na lança o vinho ismárico; bebo apoiado na lança.

    A guerra não envolvia apenas Gregos contra Gregos. A cada passo era feita entre estes e os que eles chamavam os Bárbaros 3. Neste dominio destacam-se as Guerras Pérsicas, com duas invasões da Grécia, uma em 490 e outra em 480-479. A primeira terminou com a vitória

    1 A tradução de M. H. Rocha Pereira, Hélade, p. 103. 2 Por exemplo, Hesíodo coloca-o no trabalho e na justiça, Sólon e Teógnis

    de Mégara na justiça. 3 Para Q conceito de Bárbaros entre os Helenos vide J. Ribeiro Ferreira,

    Hélade e Helenos I, pp. 185 sqq.

  • A GUERRA E A PAZ NA PÓLIS GREGA 77

    grega em Maratona, na segunda os Helenos saíram vencedores em Salamina, Plateias e Mícale. Estas Guerras, e as vitórias nelas alcan-çadas, foram capitais para a Grécia, e até para o mundo ocidental 1.

    Dando aos Glegos confiança no futuro e na missão que lhes estava reselvada, o acontecimento plOVOCOU uma onda de euforia. A liber-dade havia sido ameaçada, mas à custa de coragem e valor fora con-servada; e esse foi um feito que ficou na memória dos Helenos como um dos maiores marcos de glória e como um ponto de referência no futuro. Se muitos homens morreram por essa liberdade, a sua coragem não mais deixou de ser lembrada e a sua glória de ser cantada.

    Em seu louvor compôs Simónides, o poeta da gesta heróica das Guenas Pérsicas, vários poemas, sobretudo epigramas. Cito apenas quatro exemplos.

    Aos valentes espartanos das Termópilas dedicou um canto coral (fr. 5 Diehl = 26 Page) que, na opinião de Lesky, constitui um pIecioso testemunho da participação poética de Simónides na luta pela liber-dade 2. Ai, considera ele que, para os mortos das Termópilas, o destino é glorioso e bela a morte, o pranto anda unido ao elogio e é seu túmulo um altar a que nem o bolor nem o tempo destruirá.

    Esta sepultura de homens corajosos escolheu para a guardar a fama excelsa da Hélade.

    (vv. 6-7)

    A morte física transformou-se em vida moral: os que agora jazem não são mortos, mas «a glória da Hélade».

    Um epitáfio dos Megarenses (96 Diehl = Page, EG. XVI) refere-se aos que nas Guerras Pérsicas receberam o destino da morte para que prosperasse, na Hélade e entre os Megarenses, o dia da liberdade:

    Que prosperasse na Hélade e entre os Megarenses o dia da liberdade procurámos com afã. Por isso escolhemos o destino da morte.

    Aos Espartanos caídos em Plateias dedicou um epitáfio (121 Diehl = Page, EG. IX), no qual se refere que eles, ao morrerem,

    coroaram a pátria amada de glória inextinguível Mortos, não desapareceram: a aretê que aqui os exornava

    os fará regressar da mansão do Hades.

    I Tenha-se em conta apenas que as mais significativas realizações culturais helénicas ainda se não tinham verificado e não esqueçamos a influência profunda que tais realizações exerceram na posteridade.

    2 Geschichte der griechischen Literatur, Bern, 31971, p. 215.

  • 78 JOsÉ RIBEIRO FERREIRA

    Também para os Atenienses mortos na mesma batalha compôs Simónides um epitáfio (l18 Diehl = Page, EG. VIU) em que se exalta a coragem dos que ali jazem e o contributo que deram à liberdade da Hélade:

    Se uma bela morte é da aretê o melhor galardão, essa sorte a nós coube entre todos.

    Lutámos por coroar a Grécia com a liberdade; agora jazemos aqui, com louvor imarcescível 1•

    o heroismo dos Gregos nas Guerras Pérsicas, também Ésquilo o exalta, ele que tomou parte activa no conflito como combatente. Nos Persas, o poeta expressa a alegria que o afastamento do perigo provocara. A tragédia foi representada em 472, numa altura em que se vivia um momento de euforia e em que a confiança e subsequente dinamismo começara a dar os seus frutos. A Trácia fora libertada e com ela se fechava o ciclo de recuperação das cidades do mundo helénico que um dia se encontraram sob o domínio da Pérsia. Essa ideia de liber-tação está patente num canto do Coro (vv. 585-594). Este, constituído por anciãos persas que pertencem ao conselho do rei, lamenta o desastre que deixou viúvas muitas persas e muitas outras sem filhos. Este canto, um lamento para os Persas, repercutia de modo acariciador aos ouvidos dos Gregos. Para estes - dizem os anciãos, se bem que os não nomeiem - não haverá mais sujeição aos Persas:

    Não mais obedecerão à lei dos Persas, não mais pagarão tributo por imposição do soberano nem, de joelhos postados em terra, mostrarão reverência. O grande Rei perdeu a sua força.

    Não mais têm os homens a língua sujeita a freios. Fica liberto um povo e fala livremente. logo que é afastado o jugo da força.

    Fundamentalmente uma exaltação da vitória de Salamina, os Persas não são uma peça tendenciosa nem louvam estritamente Atenas

    1 A tradução do fr. 26 Page e dos epitáfios 121 e 118 Diehl é de M. H. Rocha Pereira, Hélade, pp. 145 e 148, respectivamente.

  • A GUERRA F A PAZ NA PÓLIS GREGA 79

    como já se pretendeu 1. Decorrendo a acção em Susa e sendo o Coro constituído por anciãos persas, os acontecimentos são vistos, evidente-mente, pela perspectiva dos Persas. Ao longo da peça, Ésquilo inclui, no entanto, muitos elementos que visam no fundo estimular os senti-mentos patrióticos da audiência e recordar os feitos e vitórias dos Gregos. Repercute-se também uma visão dos acontecimentos pela perspectiva destes. Essa dupla visão dos factos manifesta-se com evidência em alguns passos. Cito apenas a enumeração - dolorosa para os anciãos persas, mas gloriosa para os Gregos, e em especial para os espectadores atenienses - dos lugares da Trácia, as cidades da lónia e as ilhas do Egeu, em tempos conquistadas por Dario e agora perdidas por Xerxes (vv. 852-907) 2.

    Para obviar a uma futura invasão persa, as cidades gregas do Egeu resolvem unir-se em redor de Atenas e formam a Simaquia de Delos que estará na base da hegemonia e do imperialismo atenienses 3. Essa Aliança formava no século V um bloco, a que se opunha um outro liderado por Esparta, a Simaquia do Peloponeso, existente aliás desde o século VI. O primeiro compunha-se de cidades que, à imagem de Atenas, optaram de modo geral por um regime democrático, quer o fizessem de livre vontade, quer por coacção. Nos Estados da Simaquia do Peloponeso, por oposição ao bloco anterior, dominava a oligarquia.

    O confronto entre os dois blocos e o receio que um s-entia do outro foram-se acentuando ao longo dos tempos até deflagrar na dolorosa Guerra do Peloponeso, de graves consequências para os Helenos, que, durante cerca de trinta anos - de 431 a 404 a.C. -, assolou a Grécia e a foi depauperando. Guerra longa, assentava, como era táctica da época, na invasão e destruição das culturas do lado inimigo e era feita, além disso, pelos cidadãos, numa boa parte camponeses, que tinham de deixar as terras ao abandono, anos a fio sem cultivo 4. Tudo isto afectou profundamente a economia, sobretudo começou a minar a confiança e a alterar o posicionamento do Grego quanto à guerra.

    I G. Murray, Aeschylus lhe creator of lragedy, Oxford, 1940, p. 121; M. Gaga-rin, Aeschy/ean drama, Berkeley, 1976, pp. 33-36. Sobre estas posições vide H. D. Broadhead, The Persae of Aeschylus, Cambridge, 1960, pp. XV-XVI.

    2 Sobre a análise dos Persas como peça de exaltação pan-helénica vide J. Ribeiro Ferreira, Hé/ade e Helenos I, pp. 324-336.

    3 Já me referi ao assunto no trabalho «Hegemonia Ateniense» Conimbriga 28 (1989) 33-51.

    4 Esparta, como vimos (pp. 5-6), está numa situação diferente de quase todas as outras cidades. Aí aos cidadãos eram proibidas todas as actividades que não a guerra e a preparação para ela.

  • 80 JOsÉ RIBEIRO FERREIRA

    o conflito da Guerra do Peloponeso assolava as cidades gregas, marcado por actos de oportunismo, de injustiça, de ambição e de vin-gança - às vezes momentos até de atrocidade e de selvajaria, de que destaco a chacina e esclavização dos habitantes de Cione em 421 (Tucí-dides 5. 32. 2) e de MeIos em 416/415. A guerra ia deixando atrás de si um cortejo de sofrimento e de dor, um descontentamento crescente. Como consequência, começa a gerar-se uma nova concepção de guerra e de paz. A primeira deixa de ser, como até aí, o estado normal das relações entre os Estados, perdendo essa condição em favor da paz 1.

    É natural que os autores gregos veiculem esse descontentamento e se façam eco das novas concepções que começam a apalecer. São disso exemplo Eurípides, Tucídides, Aristófanes, entre outros. Vou aqui fazer uma alusão breve ao último e uma referência mais desen-volvida a Eurípides.

    Em Aristófanes a guerra origina a destruição da Hélade. Esta só se salvará pela concórdia e pela união. Daí que defenda em algumas das suas peças a paz entre os Gregos que, em sua opinião, trará pros-peridade, alegria, abundância e felicidade. Em contraste, a guerra provoca a penúria, a fome, a dor. O comediógrafo concebia a Hélade como um todo em que habitavam povos ligados por laços de sangue, religião e cultura e por isso considera as lutas entre eles como guerra fratricida e intestina. Via que essas lutas conduziam à ruina dos Helenos e eram aproveitadas pelos Persas. Comprende-se, por isso, que defenda a conciliação e pregue a paz com tanto empenho. Fá-lo nos Acarnenses, nos Cavaleiros, na Paz e na Lisístrata. O poeta não apresenta, no entanto, uma evolução no conceito e proposição da paz: é nos Acarnenses (vv. 175-202, 988-992) ainda tréguas e reconciliação (dialagê), tréguas de novo nos Cavaleiros (vv. 1388-1391); aparece na Paz elevada a imagem de culto - Eirene 2; a Lisisttata apresenta a revelação final da divina Reconciliação (Dialagê), como presença activa e benéfica. Estas diferentes manifestações explicam-se por diversos circunstancialismos, entre os quais avultam os políticos.

    Eurípides é um autor que, a cada passo, nos desconcerta pelas posições diametralmente opostas, ou pelo menos muito díspares que

    1 Cf. S. Payrau, «Guerre et paix dans la Grece ancienne», BAGB (1985) 132; J. de Romilly, «Guerre et paix entre cités», in J.-P. Vernant (ed.), Problemes de la guerre en Grece ancienne, Paris, 1968, pp. 207-211.

    2 Em Atenas a Eirer.e, como veremos mais adiante, passa a ser objecto de culto público desde a «Paz de Cálias» em 371.

    Para uma análise mais pormenorizada destas comédias, como peças empenhadas na promoção da paz vide José Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos I, pp. 413-440.

  • A GUERRA E A PAZ NA PÓLIS GREGA 81

    por vezes encontramos nas suas peças. Embora a critica à guerra constitua um veio significativo nas suas tragédias e a defesa da paz pareça ter sido uma preocupação do poeta, desde os primeiros tempos da Guerra do Peloponeso, também nele encontramos peças que defendem o que poderiamos chamar a «guerra santa» dos Gregos contra os Bár-baros. Esta posição aparece, por exemplo, na lfigénia em Áulide, significativamente, a última peça que dele nos chegou e que a sua morte em 406 parece ter deixado por concluir. Trata-se de um apelo à união dos Helenos contra os Bárbaros - apelo que será frequentes vezes repetido ao longo do século IV -, para que os primeiros fossem livres e não viessem a ser dominados pelos segundos. Ifigénia, a prota-gonista da tragédia, oferece-se por esse ideal l •

    Mas um grupo significativo de peças do autor aborda de forma critica o tema da guerra. Estão neste caso o Cresfonte, a Andrómaca, a Hécuba, as Suplicantas, as Troianas e a Helena.

    No Cresfonte, peça perdida que não pode ser posterior a 425 e de que apenas restam escassos fragmentos (frs. 449-459 N2), havia uma apaixonada invocação da paz

    dispenseira de riquezas e a mais bela dentre os imortais 2.

    (fr. 453 N2)

    A Andrómaca, peça que se situa na mesma época, tem como pano de fundo, se bem que no passado longinquo, o conflito de Tróia que atingiu tanto vencidos como vencedores: todos sofrem os seus efeitos. Nas cidades gregas - refere o COLO nos versos 1037-1044 - as esposas perderam os maridos e muitas mães entoam lamentos pelos filhos 3.

    ~

    A Hécuba, datável de 424/423, é percorrida por um profundo horror à guerra. A acção incide sobre o sofrimento que o conflito trouxe à rainha e às cativas de Tróia, mas não esquece que os seus efeitos atingem também os vencedores: os versos 650 sqq., proferidos pelo COlO, lem-bram as mães da Lacónia que, junto do Eurotas, choram os filhos mortos.

    1 Para o pan-helenismo na lfigénia em Áulide vide J. Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos I, pp. 403-412.

    2 Este fr. de Euripides, de imediato, traz à memória os elogios dos benefícios da paz nas comédias de Aristófanes Acarnenses, Paz e Lis{strata. Sobre o assunto vide J. Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos I, pp. 4l3-440.

    3 Vide J. Ribeiro Ferreira, Eurípides: Andrómaca. Introdução, tradução e notas, Coimbra, 1971, pp. 79-85.

    6

  • 82 JOsÉ RIBEIRO FERREIRA

    Nas Suplicantes estabelece-se na parte inicial da peça uma distinção entre a guerra justa e a guerra injusta e a primeira é admitida no campo dos princípios; postula-se mesmo a sua necessidade em determinadas circunstâncias. Composta a peça provavelmente em finais de 424, a acção decorre em Elêusis, diante do templo de Deméter 1. É bem conhecida a lenda dos Sete contra Tebas, os sete heróis que se aliam para exigir de Etéocles, um dos filhos de Édipo, a entrega do governo da cidade ao irmão Polinices, como ficara combinado. O exército de Argos, comandado pelo seu rei Adrasto, marchara contra Tebas, mas a expe-dição salda-se num fracasso, e os Sete guerreiros perecem em combate. 1nsensível aos rogos dos familiares dos atacantes e contra os ditames do uso e da religião, a cidade, por decreto público, deixa os corpos dos vencidos insepultos, à mercê das feras e das aves de rapina. As mães e os órfãos dos mortos recorrem então a Atenas e, em atitude de súplica, imploram de Teseu ajuda na recuperação dos filhos e pais mortos. É nesta atitude que os encontramos, quando a tragédia começa.

    Depois de algumas hesitações iniciais e apesar das ameaças de Tebas, o rei concede a ajuda solicitada e, numa expedição vitoriosa, alcança o objectivo que visava. A peça termina com o ritual fúnebre da cremação dos corpos dos Sete guerreiros e com a entrega das suas cinzas aos filhos, que juram não mais pegar em armas contra a cidade de Palas.

    Apesar de se admitir a guerra justa no campo dos princípios, a impIessão derradeira remanescente parece ser a evidência amarga das trágicas consequências de tal flagelo. A acção da tragédia ordena-se pelo menos no sentido de sublinhar, na parte final, a dor e a ruína sem remédio que daí resultam. A peça ter~ina com a visão dolorosa da morte e do sofrimento que enchem toda a segunda parte. Lutou-se para manter a justiça humana e divina - a razão mais ponderosa e gloriosa possível -, mas não é de glória a imagem que se patenteia a nossos olhos, quando a peça acaba. Como visão final, as Supli-cantes deixam-nos a desgraça e o sofrimento do povo que foi vítima da guerra.

    I Não há unanimidade quanto ao momento em que teria sido composta a tragédia. Os especialistas têm optado por datas que oscilam desde 424 (Zuntz, The politicai plays of Euripides, Manchester, 1955, repr. 1963, pp. 53-94; Webster, The tragedies of Euripides, London, 1967, pp. 116-117) até 417-416 (Schmid-Stah1in, Geschichte der griechische Literatur I. 3, pp. 454-455). A tendência actual é para admitir a data mais remota. Vide C. Collard, Euripides: Supplices, Croningen, 1975 pp. 8-14.

  • A GUERRA E A PAZ NA PÓLIS GREGA 83

    A solidão e o desespero tornam-se pOl vezes insustentáveis. Evadne, viúva de Capaneu, um dos guerreiros mortos, evoca as núpcias - dia longínquo de felicidade que contrapõe à Cl uel realidade presente -e prefere o suicídio na pira do marido a suportar a existência sem a presença deste (vv. 990-1071). Ífis, seu pai, vê-se confrontado com uPla vida impossivel de solidão (vv. 1095-1096). No palácio, diz ele,

    ...... ... ....... .. ... ... ... encontrarei a solidão dos enormes aposentos e uma vida impossível para mim.

    A guerra levara-lhe o filho, Etéocles, o genro, Capaneu, e a filha, Evadne. Só lhe resta chorar, recordar a ternura da filha perdida e mergulhar na renúncia absoluta que conduzirá à morte (vv. 1080-1113). A cena de Evadne e de Ífis visa assim condenar as expedições militares, quantas vezes evitáveis; mostrando o mal que elas provocam 1.

    Deixando atrás de si um rasto de destruição e de dor, a guerra é um flagelo que não poupa ninguém, tanto a nivel colectivo como a nivel individual. A empresa insensata de Adrasto tanto trouxe dor e des-graça a Argos, enquanto grupo social, como devastou a existência individual de Evadne e, por meio dela, a de Ífis. Sem escolher as vitimas, as trágicas consequências desse flagelo atingem sobretudo os inocentes e os indefesos que em nada contribuiram para o seu desen-cadear.

    Com a guerra - mostra-o Mcdonald 2 -, a felicidade pode sorrir por um momento com a vitória, mas quase sempre acaba por ser des-truida pela guerra, tudo parecendo depender do facto de esta ser evitada ou não. Se alguém a inicia é inevitável o consequente ciclo de dor e sofrimento.

    As Troianas põem mais uma vez em cena as vitimas inocentes al'anhadas pelas malhas da violência cega da guerra. A peça foi apresentada nas Dionisias de 415, pouco tempo passado do cerco e conquista de MeIos em que Atenas chacina os homens válidos e reduz à escravatura as mulheres e crianças (Tucídides 5. 85-116) e no momento em que acabava de ser votada a expedição longínqua e onerosa à Sicília que se vai saldar por um revés.

    1 Sobre as interpretações da cena de Evadne e de Ífis vide H.D.F. Kitto, Greek tragedy, London, Methuen, 31961, pp. 224-225; Strohm, Euripides, pp. 59-60; C. Collard, Euripides: Supplices, Groningen, 1975, pp. 353-356 ad 980-1113; J. de Romilly, L'évolution du pathétique d'Eschyle a Euripide, Paris, 1980, pp. 37-39.

    2 Terms for happiness in Euripides, Gõttingen, 1978, pp. 99-111.

  • 84 JosÉ RIBffiRO FERRffiRA

    Novamente decorre a acção nos dias imediatos à tomada de Tróia e no centro da peça coloca o poeta, como fizera na Hécuba, as mulheres e crianças da cidade conquistada, prisioneiras dos Gregos. A cena passa-se frente às tendas das cativas, tendo por fundo a cidade, silen-ciosa e sem vida, que em breve se desmoronará destruída pelas chamas. Taltibio, arauto dos Aqueus, em cumprimento das decisões do exército, transmite aos cativos o seu cruel destino: Polixena, sacrificada no túmulo de Aquiles; Cassandra e Andrómaca, concubinas de Agamémnon e de Neoptólemo, respectivamente; Astianax, uma criança inocente, precipitado das muralhas da cidade, apenas, por ser filho de Heitor; Helena, a principal culpada, parte pata Esparta sem qualquer punição. Perante este doloroso desfile, Hécuba, sem esperança, tenta lançar se nas chamas que consomem Tróia e ficar sepultada sob os escombros, mas sem êxito; é obrigada a viver para ser escrava de Ulisses.

    Três anos mais tal de, ao que parece em 412, Euripides apresenta a Helena, composta sob o efeito do desastre da Sicilia em 413 que trouxe o desespero e foi de graves consequências para Atenas (Tud-dides 8. 1). É bem conhecida a versão do mito relativa ao rapto de Helena por Páris, com a consequente Guerra de Tlóia e destruição da cidade pelos Gregos - um feito que ficará ao longo dos tempos como uma das mais ilustres glórias da Hélade. Ora Euripides não segue nesta peça tal versão da lenda, mas uma outra - já conhecida de Heródoto 2. 112-120 e provavelmnte de Estesicoro 1 - em que a verdadeira Helena, em vez de partir para Tróia, é levada por Hermes para o Egipto, por ordem da deusa Hera, para defraudar os intentos de Páris e de Afrodite. Em substituição vai para ílion um eidolon seu - um fantasma sem consistência nem realidade. É por esse eidolon que Aqueus e Troianos combatem e se envolvem em dez longos anos de lutas e de sofrimentos. Desse modo a expedição contra Tróia, de empresa noble e louvada pelos Gregos, transforma-se numa guerra louca que tem um motivo fútil e ridiculo - a posse de um fantasma. Ganham assim sentido as palavras indignadas do mensageiro, quando vem noticiar o desaparecimento do eidolon, no momento em que, chegados ao Egipto, se dá o reencontro com a verdadeira Helena: os Gregos pereceram por uma nuvem e Tróia foi destruida por nada (vv. 749-751). Mais tarde, depois do reconhecimento de Helena por Menelau e de haverem os dois planeado a fuga, é o Coro que, em ter-

    1 Fr. 192 Page. Sobre o assunto vide M. O. Pulquério, «o problema das duas palinódias de Estesícoro», Humanitas 25-26 (1973-1974) 265-273.

  • A GUERRA E A PAZ NA PÓLIS GREGA 85

    mos bem expHcitos, condena a insensatez dos que procuram a glória nos combates e buscam nas armas o remédio para os males da huma-nidade:

    Insensatos de vós quantos na guerra buscais glória, e nas lanças robustas,

    nelas julgando encontrar, em vossa ignorância, o remédio para os males dos mortais.

    Se é o combate sangrento a decidir, nunca a discórdia

    se ausentará das cidades dos homens. (vv. 1151-1157)

    Estas afirmações pacifistas e de condenação da guerra, centradas em volta dos acontecimentos de 425, da conquista de MeIos e da expe-dição à Sicilia, são significativas e não deixam de constituir um indicio da posição de Euripides perante o conflito entre Atenas e Esparta. No entanto, não se confina a isso a sua atitude perante a guerra: é mais ampla. No tratamento do tema, o poeta foca os acontecimentos de modo geral pela perspectiva dos vencidos. Atraem-no sobretudo as vitimas sem culpa ou que a têm em mini mo grau: as mulheres e as crianças, seres inocentes e indefesos sobre os quais recaem as conse-quências mais gravosas. São sempre elas as principais vitimas de todas as guerras.

    Ultrapassada a Guerra do Peloponeso, o tema da guerra e da paz continua presente no pensamento grego e move-se dentro de detel-minados vectores, já indiciados no último quartel do século v, que, quais estereótipos, aparecem repetidos ao longo do século IV. Acen-tua-se a noção de que os Helenos estavam unidos por laços de sangue e, consequentemente, condena-se a luta entre si. Preconiza-se por isso a reconciliação de uns e de outros, para que todos unidos enfren-tem em comum os Bárbaros, como já encontrámos defendido aliás no século anterior por Euripides e por Aristófanes. Dai que se veja crescer o desejo de uma paz geral que englobasse todos os Gregos, ou mesmo que fosse mais além 1.

    A Guerra do Peloponeso, continuada por uma série de lutas - caso da Guerra de Corinto (395-386), guerra de Atenas e de Tebas contra Esparta (378·371), invasão do Peloponeso por Tebas (371-361), guerra entre Filipe e Atenas (357/356), Guerra Social entre Atenas e

    1 Sobre estas questões vide J. Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos l, pp. 459-479.

  • 86 JOsÉ RIBEIRO FERREIRA

    os Aliados (357-355), Terceira Guerra Sagrada (355-346) - que culmi~a na conquista macedónica em 338, fora deixando marcas profundas na mentalidade do Grego e no seu modo de vida, a ponto de o século IV apresentar características bem diferentes do antecedente. Esse estado de guerra que se prolongou, quase sem interrupção, por cerca de um século, traz graves consequências para a vida dos Gregos. Dado que as guerras na Antiguidade eram por sistema operações de razia, os mais afectados eram sempre os camponeses que viam as suas culturas e haveres destruídos. Daí o abandono dos campos, o refúgio na cidade e a consequente pauperização que, por sua vez, dá origem a dissensões internas (a stasis) nas cidades 2. O desencanto surge pouco a pouco e apossa-se dos Helenos o desejo de uma paz permanente que os envolva e os abranja a todos - a chamada koinê eirene 3. As ocorrências de tal expressão na literatura grega e nas inscrições subsistentes não são numelosas, umas nove no máximo; Na literatura, a expressão aparece no discurso do Andócides Sobre a Paz, proferido em Atenas em 391 durante a Guerra de Corinto (III. 11, 17 e 34), e em discursos de Ésqui-nes (IH. 254) e do Pseudo-Demóstenes (XVII. 2, 4 e 17), aplicada à paz de 338/337, que se seguiu à batalha de Queroneia e confirmou o domínio da Macedónia sobre a Grécia. No tocante às inscrições, a expressão parece já aparecer aplicada à «Paz do Rei» de 387/386, num decreto ateniense de 377. Em 362/361 já o sintagma koinê eirene surge utilizado nos documentos oficiais, pelo que talvez seja razoável supor-se que a generalização do seu uso se tivesse verificado pouco tempo antes 4.

    Até ao século IV a guena aparecia como já foi referido, como a situação normal e a paz constituía apenas uma interrupção desse estado. Os tratados de paz, temporários, de modo geral recebiam o nome de tréguas e pactos. O primeiro tratado a receber o nome de eirene, de paz propriamente dita, na liguagem oficial, como vimos, foi a chamada «Paz do Rei» (387/386) que estipulava a autonomia de todas as cidades gregas e não fixava qualquer limite de tempo (cf. Xenofonte, Helé-

    2 Sobre as principais características do século IV vide W. Jaeger, Paideia II, pp. 1 sqq.; M. Austin et P. Vidal-Naquet, Economies et sociétés en Grece ancienne, Paris, 1972, pp. 150-177; F. Vannier, Le IV' siecle grec, Paris, 1967.

    3 Vide T. T. B. Ryder, Koine Eirene. General peace and local independence in Ancient Greece, Oxford, 1965.

    4 Dittenberger, Sylloge 182; IG. IV, 556. Sobre estes dois tratados de paz vide Ryder, Koine Eirene, pp. XV, 34-36.

    79-86 e 140-144.

  • A GUERRA E A PAZ NA PÓLIS GREGA 87

    nicas 5. 1. 29-31). No entanto, Ari~tófanes, em 421, já dá o nome de Eirene a uma sua comédia, enquanto Tucidides utiliza o termo algumas vezes (e.g. 5.17.1), o mesmo acontecendo com Lisias (XIII. 5). O vocá-bulo surge num decreto de 405 da Assembleia ateniense. Cefisódoto, escultor da primeira metade do século IV, esculpiu uma Eirene que detém numa das mãos Plutos ainda criança 1. A deusa foi mesmo objecto de culto público, pelo menos a partir da paz de Cálias, em 471 (cf. Pau-sânias 1. 8. 2). Estes dados são significativos e talvez constituissem o afloramento de um pensar comum que se afirmava cada vez com mais insistência e de forma mais vasta: a ideia de que a paz era a razão do Estado e de que os acordos que a estabeleciam e asseguravam a sua manutenção deviam possuir um carácter de permanência. Parece-me por isso ter razão Ryder, ao considerar a hipótese de a terminologia e a linguagem oficial andarem um pouco atrasadas em relação ao pensamento geral e ao falar do dia a dia 2.

    1 Vide M. Robertson A Shorter history ofGreek art, Cambridge, 1981, pp. 138--139. Para o decreto da Assembleia, de 405, lG 112.1.21 (= Meiggs-Lewis, SGBT, pp. 283-287, n.O 94).

    2 Koine Eirene, p. 6.