A HISTÓRIA DE GAROPABA PELAS LENTES DA HISTORIOGRAFIA ... · historiografia, que carrega as marcas...
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A HISTRIA DE GAROPABA PELAS LENTES DA HISTORIOGRAFIA: "1830-
1980 - SO JOAQUIM DE GAROPABA: RECORDAES DA FREGUESIA"
(1980)
Rosiane Marli Antonio Damazio1
1 Introduo
Este estudo tem por objetivo apresentar e analisar a obra 1830-1980 - So Joaquim
de Garopaba: Recordaes da Freguesia, escrita por Jos Artulino Besen (1980),
procurando verificar sua ressonncia na cultura escolar dos anos iniciais da rede municipal
de ensino de Garopaba/SC. A obra em questo foi escrita de acordo com o sentido de
Histria assumido por seu autor bem como seu lugar social.
Inicialmente, abordo os sentidos que o termo histria adquiriu ao longo do tempo,
propondo, tambm, uma discusso sobre a historiografia, entendida com a escrita histrica
pertinente ou filiada ao meio acadmico, tendo por suporte terico as obras de Ricoeur
(2007) e Certeau (2002). Em seguida passo a apresentao e anlise do livro de Besen
(1980) na perspectiva de evidenciar os aspectos que lhe conferem a qualidade de obra
historiogrfica e as singularidades que do a ver o modo pela qual a Histria de Garopaba
representada.
2 Histria e historiografia
O vocbulo histria um termo ambivalente ou, no dizer de Arstegui (2006), uma
palavra que possui sentidos anfibolgicos, expressando tanto os fatos e acontecimentos
quanto o conhecimento elaborado acerca destes. A palavra emerge em meio s culturas
latina (histora) e grega (), sendo utilizada, publicamente, como ttulo da pica obra
de Herdoto, designando os relatos que compunham os volumes e no os acontecimentos
em si, ou seja, a palavra histria nasce para expressar os resultados de uma pesquisa, de
1 Doutoranda em Educao pelo Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade do Estado de Santa Catarina
PPGE/UDESC. Mestre em Histria. Graduada em Pedagogia e Histria. Vinculada ao Grupo de Pesquisa Ensino de
Histria, memria e culturas (CNPq/UDESC), associado ao Laboratrio de Ensino de Histria (LEH/UDESC). Bolsista
CAPES/FAPESC.
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uma busca de informaes acerca de um tema. Mas logo a palavra Histria passou a ter
um significado muito mais amplo e a identificar-se com o transcurso natural das coisas
(AROSTEGUI, 2006, p. 28).
A princpio, a palavra histria designava uma narrao de eventos considerados,
pelos historiadores, como dignos de serem registrados, com o tempo essas narrativas
passaram a requerer reflexo terica e definio metodolgica para que fossem entendidas
como conhecimento, o que daria a Histria seu carter cientfico uma disciplina do
conhecimento. A imposio de categorias de anlise, tcnicas de pesquisa e organizao
narrativa faz com que a Histria se distancie da pura empiria ao mesmo tempo em que no
permite que seja confundida com a literatura de fico, como alguns filsofos da Histria a
classificaram no final do sculo passado (XX).
A obra do historiador polons Jerzi Topolski (1992) contribui, sobremaneira, para a
compreenso da anfibologia da Histria. O autor indica que para o entendimento moderno
do termo histria preciso conhecer as variaes etimolgicas e semnticas da palavra
como, tambm, conferir as definies utilizadas por historiadores, filsofos da Histria e
metodologistas. Entre os gregos antigos, a palavra Histria era empregada com trs
significados: investigao e informao sobre a investigao, uma Histria potica ou uma
descrio exata dos feitos. Ao migrar para o latim, seu significado manteve-se semelhante
ao grego, chegando s diferentes lnguas sucessoras do latim e adquirindo, no processo, um
significado mais preciso.
Na chamada Idade Mdia, a palavra Histria era usada para designar algo no
muito distante temporalmente, pois era considerado impossvel conhecer os velhos tempos
sem documentos escritos que lhes conferissem veracidade. Ento, os termos, cunhados na
antiguidade, anais e crnicas, eram os mais apropriados para indicar, ms corrientamente,
tanto um recuerdo de hechos importantes como uma narracin escrita da historia
(TOPOLSKI, 1992, p. 49). Alm disso, o termo histria foi amplamente utilizado para
descrever os grandes feitos bblicos.
O sculo XVI sinaliza o declnio do uso dos termos anais e crnicas e o termo
Histria se livra das referncias e passa a designar a prpria Histria e o processo de
reconstituio da mesma por meio de uma narrao apropriada. Porm, em geral o termo
era utilizado no plural, sendo que sua transio para o singular coincidiu com o surgimento
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da cincia histrica. Foi na esteira do positivismo que a Histria adquiriu uma clara
disticin entre la historia como acontecimentos passados e histria como narracin sobre
los acontecimientos passados (TOPOLSKI, 1992, p. 49). Portanto, a Histria adquiriu seu
carter metodolgico quando se fez cincia. Topolski (1992, p. 52) elaborou um esquema,
reproduzido a seguir (Figura 1), que sintetiza a evoluo etimolgica do termo Histria.
Figura 1 Evoluo etimolgica do termo Histria
Fonte: TOPOLSKI (1992)
Toda essa digresso permite, a meu ver, resolver, em parte, a problemtica da
anfibologia da palavra Histria, que no decorrer do tempo, adquiriu, pelo menos, dois
significados: a) Histria como feitos passados res gestae; b) Histria como narrao dos
feitos passados historia rerum gestarum. Historiografia o termo que mais se distancia
dessas definies e que satisfaz, com maior distino, o resultado das pesquisas
desenvolvidas por historiadores profissionais, ou seja, a historiografia compreende a
narrativa histrica que revela os resultados de uma pesquisa. Tanto do ponto de vista
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profissional quanto do leigo, a Histria diz respeito a acontecimentos do tempo passado, no
entanto, h muito do tempo presente na Histria e, ainda mais especificamente, na
historiografia, que carrega as marcas indelveis de seu lugar social, ou seja, a
conformao da historiografia filha de seu ambiente.
Na concepo de Ricoeur (2007, p. 240), a histria uma escrita de uma ponta a
outra, dos arquivos aos livros de histria, traduzida por meio de uma representao
historiadora. A representao, em formato de escrita, d a ver o que fez o historiador
durante sua pesquisa, ou seja, exprime em forma de artigo ou livro a relao que o
historiador estabeleceu com os documentos. Porm, mesmo o fato de estar inserida na
ordem do discurso ou, num sentido mais amplo, na ordem literria, no afasta a Histria de
seu compromisso epistemolgico com a verdade. Pois, como afirma Ricoeur (2007, p.
240), no momento da expresso literria, o discurso historiador declara sua ambio, sua
reivindicao, sua pretenso, a de representar em verdade o passado.
3 A Histria de Garopaba pelas lentes da historiografia: 1830-1980 - So Joaquim de
Garopaba: Recordaes da Freguesia (1980)
O livro 1830-1980: So Joaquim de Garopaba Recordaes da Freguesia - 1980
foi escrito por Padre Jos Artulino Besen (Antnio Carlos/SC - 1949), numa edio
comemorativa dos 150 anos da criao da Freguesia de So Joaquim de Garopaba. A
iniciativa partiu do ento proco de Garopaba, Padre Francisco de Assis Wloch, tendo
como motivao os 150 anos da criao da Freguesia de So Joaquim (BESEN, 2016).
Seu autor Doutor em Histria da Igreja, Scio Emrito do Instituto Histrico e
Geogrfico de Santa Catarina (IHGSC) e Membro da Academia Catarinense de Letras
(ACL), instituies para as quais foi eleito em 19822. O breve currculo do autor deixa
claro sua vinculao institucional: sua voz autorizada pela igreja catlica. A prefeitura
municipal de Garopaba, tambm, apoiou a iniciativa, custeando um percentual dos livros
publicados, como informou Besen (2016): Meu trabalho no teve custos. A parte da
impresso foi custeada pela Parquia e pela Prefeitura de Garopaba. Assim, o poder
2Informaes obtidas na pgina virtual do autor: https://pebesen.wordpress.com/. Acesso em: 23 abr. 2015.
https://pebesen.wordpress.com/
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pblico municipal, tambm, apoiou a iniciativa da igreja, demonstrando que se afinava
com seu discurso.
Para situar a obra de Besen (1980) dentro do contexto historiogrfico catarinense,
recorri a tese defendida Janice Gonalves. A historiadora indica que a partir da dcada de
1990 surgiu junto ao departamento de Histria da UFSC um grupo que se auto-intitulava
como a nova gerao de historiadores catarinenses, que embora no explicitasse,
colocava-se em oposio a uma antiga gerao, principalmente a de historiadores ligados
ao IHGSC e ACL, pois estes escreviam de modo tradicional. A Histria a ser ultrapassada
era, justamente, a do tipo que Besen (1980) escreveu sobre Garopaba: identificada como
uma produo que adotaria perspectiva linear, factual, acrtica, excludente, positivista
(GONALVES, 2006, p. 24). No prefcio, assinado por Padre Ney Brasil Pereira,
possvel identificar o sentido de Histria que orientou o trabalho de pesquisa e escritura de
um livro
dedicado ao estudo do passado de uma das pequenas comunidades da
microrregio catarinense correspondente ao territrio da Arquidiocese de
Florianpolis. Por que esse interesse? Histria magistra vitae, a histria a
mestra da vida, diriam os romanos. No mera curiosidade o que move essa
pesquisa, mas a convico de que o conhecimento do passado de uma
comunidade possibilita a melhor compreenso de seu presente e viabiliza
melhores projetos de futuro. (PEREIRA apud BESEN, 1980, p. 07, grifos
meus):
Conceber a Histria como magistra vitae, expresso cunhada por Ccero, uma
tradio que permaneceu por longo perodo, vindo a ser questionada, de acordo com
Koselleck (2006), somente na experincia moderna. Isso significa que a Histria era
considerada uma escola na qual os homens deveriam aprender com os exemplos e no
cometer os mesmos erros do passado, numa similitude eterna. Assim a histria seria um
cadinho contendo mltiplas experincias alheias das quais nos apropriamos como um
objeto pedaggico; a histria deixa-nos livres para repetir sucessos do passado, em vez de
incorrer no presente, nos erros antigos (KOSELLECK, 2006, p. 42). Foi essa concepo
que orientou o fazer dos historiadores, de acordo como Koselleck (2006), at o sculo
XVIII. Porm, sabido que formas tradicionais de entendimento no so varridas do meio
social sem deixar vestgios, sendo, simplesmente, substitudas por outras formas de pensar.
Assim, como em outras reas de estudo, ainda h muitas permanncias no campo da
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Histria, tal qual a compreenso de que se deve olhar para o passado buscando instrues
em proveito da posteridade, tal qual alertou Padre Pereira na apresentao do livro 1830-
1980 So Joaquim de Garopaba: Recordaes da Freguesia (1980), ao enfatizar que a
Histria mestra da vida.
O livro, que mede 15x22 centmetros e possui 197 (cento e noventa e sete) pginas,
possui poucas ilustraes, num total de 16 (dezesseis). As imagens so em preto e branco,
destacando objetos sacros, a igreja, a praa, o arrasto de peixes, a procisso de Navegantes,
alm de trs lideranas religiosas e polticas, a saber, Padre Rafael Faraco e o Padre da
parquia de Garopaba poca da publicao: Francisco Assis Wloch como, tambm, o
prefeito em exerccio, Adlio Incio de Abreu. O contedo est organizado de acordo com
os fatos que marcaram a Histria poltica do municpio de Garopaba. Evidentemente, a
maior parte das pginas dedicada a narrar acontecimentos ligados a igreja, dentre os
quais esto intercalados os demais eventos histricos, inclusive nacionais, tal qual a
Repblica Juliana.
Primeiramente apresentado um mapa e os aspectos geogrficos gerais do lugar:
coordenadas, clima, relevo, tipos de solo e vegetao. A Histria Local inserida num
contexto maior de ocupao do litoral catarinense, passando pelos primeiros visitantes,
ainda no sculo XVI; porm, Besen (1980, p. 10), enfatiza: Se chegou o espanhol e o
portugus, no encontraram o que a historiografia colonialista chama de terra de
ningum, pelo simples fato de no ser habitada pelo branco europeu. Ali vivia o ndio, o
ndio Carij, povo que, segundo o autor, tinha por ideal de vida muita comida e pouco
trabalho. Porm, Besen se contradiz ao seguir elencando as aptides dos mesmos:
construam suas moradias, tranavam cestos, redes e esteiras, eram exmios arqueiros,
produziam bebidas, organizavam rituais com danas e msicas utilizando os instrumentos
que produziam e possuam uma lngua da qual teve origem o nome Garopaba que vem
grafado Cahopapaba na Carta de Turim, pela primeira vez, em 1523. O padre tambm se
refere s confuses pertinentes ao significado do nome Garopaba, para muitos enseada das
garoupas, sendo que O verdadeiro significado est no guarani, a lngua local: Yg,
Ygara, Igarat, significa barco, embarcao, canoa; mpaba, paba, estncia, paradeiro,
lugar, enseada. Garopaba ento significa Lugar dos Barcos, Enseada dos Barcos
(BESEN, 1980, p. 12).
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O restante do contedo prioriza o protagonismo da igreja, mas no se distancia da
Histria Local, visto que so histrias entrelaadas e cambiantes. Os acontecimentos
polticos dos sculos XVIII e IXX, como tambm de boa parte do sculo XX, so
marcados pela participao de integrantes da igreja. Besen (1980) cita, dentre outros, o
exemplo de Padre Vicente, proco de Enseada de Brito, que foi eleito como vice-
presidente da Repblica Juliana, chegando a assumir como presidente, mas que diante do
fracasso da empreitada, tornou-se vigrio de Garopaba; o Padre talo-brasileiro Rafael
Faraco, vigrio de Garopaba entre 1862 e 1917, sendo, tambm, deputado estadual por
quatro legislaturas pai de oito filhos; e outro padre italiano, Cesar Rossi, que seguindo o
caminho de outros padres italianos veio cumprir sua misso no Brasil, mas no foi para as
colnias italianas, sua misso foi no litoral, entre Imbituba e Garopaba, tendo dificuldade
para compreender essa cultura mais livre em relao f crist, tendo muitos atritos com o
povo.
Ainda a respeito dos contedos abordados no livro de Besen (1980), destaco que o
espao dedicado a educao, sade e economia bastante reduzido, at por que esse no
era o mote da narrativa, porm, o conjunto da obra tem muito a oferecer em termos de
miudezas, pois, mesmo que o pano de fundo seja a igreja, possvel recolher vestgios dos
modos de viver e estar no mundo dos moradores de Garopaba desde a chegada dos
primeiros invasores europeus. Dentro das 197 (cento e noventa e sete) pginas h um
extenso apndice (da pgina 152 a pgina 189) no qual transcrito o registro de todas as
visitas realizadas por Bispos e Arcebispos entre 1895 e 1976 e o Cdigo de Posturas,
datado de 1890. Esse ltimo documento se constitui em fonte potencial para o
conhecimento dos costumes locais, j que, ao que parece, as posturas proibidas tinham
fortes possibilidades de acontecer. Segurana pblica e das propriedades, salubridade,
abandono de menores, funcionamento do comercio, abastecimento de alimentos, pesca,
ofensas a moral, trfego e manuteno de ruas, estradas, caminhos e pontes, jogos e
reunies ilcitas, ensino e rendas municipais compem os 124 (cento e vinte e quatro)
artigos do Decreto assinado por Manoel Antonio da Silva Cascaes, Presidente da
Intendncia Municipal.
O cdigo tem algumas proibies pitorescas, tal qual Fica proibido o uso
escandaloso de andarem os tarrafeadores sem calas ou tangas tarrafeando na praia da Vila
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[...]. proibido banhar-se nu de dia na praia da Vila, qualquer pessoa maior de 10 anos
(BESEN, 1980, p. 181). Outras proibies dizem respeito a situaes que ainda causam
desentendimentos na atualidade, tal qual a invaso dos espaos reservados a pesca da
tainha; a contaminao de fontes de gua potvel; as brincadeiras de boi na vara, ou as
chamadas farras do boi; as brigas de galo; determinados tipos de edificaes, dentre outros.
Do total de artigos, os quarenta e dois finais so dedicados a regulamentar a cobrana de
impostos, mola que move o poder pblico tanto ontem quanto hoje.
Para obter informaes complementares sobre o livro, estabeleci contato com o
sacerdote, padre Jos Artulino Besen, por meio digital. Ele informou como aconteceu
distribuio do livro e a importncia da obra para o municpio de Garopaba, na poca de
sua publicao: Boa parte da edio foi distribuda e outra parte foi colocada venda.
Houve certo interesse, pois foi o primeiro livro sobre a comunidade e Pe. Francisco julgava
importante que a comunidade conhecesse sua histria (BESEN, 2016). Resguardar a
Histria da cidade perante as investidas do turismo deve ter sido uma das preocupaes do
vigrio em exerccio na parquia da, at ento, pacata vila de pescadores e agricultores.
Como visto, qualquer pesquisa historiogrfica carrega as marcas de um lugar
socioeconmico, poltico e cultural, sendo esse lugar definidor da metodologia que
orientar o estudo, dos recortes e das questes epistemolgicas delineadas, bem como, da
forma como os documentos sero selecionados, organizados e explorados. Porm, como
lembrou Certeau (2002), essa situao tornou-se pblica a bem pouco tempo, j que a
relao entre o historiador e seu produto a historiografia foi, insistentemente, silenciada.
Nada de rudos de uma fabricao, de tcnicas, de imposies sociais, de posies
profissionais ou polticas perturbava a paz dessa relao: um silncio era o postulado desta
epistemologia (CERTEAU, 2002, p. 67). O dizer da Histria est indelevelmente marcado
por seu lugar de pertena social, ou seja, no existe neutralidade, mas leis do meio.
Utilizando um referencial explicitado por notas e referncias, o historiador desliza
num espao de representao do ausente, numa busca do real que jamais ser alcanado,
mas, que, no entanto, apesar de utilizar artifcios lingusticos da fico, no o . Sim, a
fico uma forma narrativa, no entanto, como pontuou Paul Ricoeur (2007), o que
diferencia a narrativa histrica da ficcional a pretenso de verdade por parte da Histria,
que tem nas fontes, nos vestgios, no acontecimento, seu limite; por outro lado, a fico
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tem na suspenso da verdade o meio mais audaz de prender o leitor em um jogo solto,
inventivo, livre. Porm, quando realiza a leitura de determinada narrativa (histrica ou
ficcional), o leitor insere nela seu prprio horizonte cultural, assim, a narrativa expressa
por meio da linguagem escrita oferece margem a distintas interpretaes.
No livro 1830-1980: So Joaquim de Garopaba Recordaes da Freguesia
(Besen,1980), so o prprio ttulo e a capa que, primeiramente, do a ver seu lugar de
produo, um pertencimento que se circunscreve nas dimenses da igreja catlica. Logo,
os recortes, as fontes, a seleo de documentos, a organizao literria, ou seja, a
metodologia que guiou todo processo de produo da escrita vem demarcada pelo vnculo
institucional de seu autor e os no-ditos de seu meio. Essa anlise das premissas, das
quais o discurso no fala, permitir dar contornos precisos s leis silenciosas que
organizam o espao produzido como texto (CERTEAU, 2002, p. 66).
As leis do meio no so casuais, na verdade elas constituem a textura dos
procedimentos cientficos (CERTEAU, 2002, p. 72). A produo historiogrfica no
opera no vazio, no h acaso. Mesmo silenciado ou oculto, h um grupo, um estatuto, um
no dito prprio da constituio da disciplina Histria. Nesse sentido, fica claro que a
historiografia no algo que nos chega pronto do passado, mas uma construo demarcada
por articulaes do presente, pois a historiografia comea com a ao intencional do
historiador e se configura de acordo com seu ambiente. De parte a parte, a histria
permanece configurada pelo sistema no qual se elabora (CERTEAU, 2002, p. 77).
Percebi em Besen (1980) uma preocupao, bastante clara, em evidenciar as fontes
de pesquisa, pois todas as informaes so corroboradas por notas que indicam o arquivo
ou a obra consultada. A representao histrica produzida por Besen (1980) obedece,
portanto, aos critrios que qualificam a Histria como uma disciplina, um conhecimento
cientfico, evidenciando que sua narrativa histrica no pode ser confundida com fico,
pois no inventada aleatoriamente, sendo levada ao pblico leitor envolta por um enredo,
uma forma de apresentar o ausente que no mais, pois perdeu-se algo que no voltar
(CERTEAU, 2002, p. 2006), assim, a Histria representao, um relato [que] pretende
uma encenao [verdadeira] do passado (CERTEAU, 2002, p. 20). Alm das fontes
arquivstica e literrias, as fontes orais contribuem, sobremaneira, com a elaborao da
narrativa historiogrfica e Besen explorou essa possibilidade para dar ao livro uma
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aproximao mais efetiva das vivencias locais: foi por meio das fontes orais que conseguiu
narrar as confuses entre Padre Rossi e a populao bem como as crenas e devoes
populares e outras prticas.
Pensar na ressonncia dessa obra entre os diferentes atores que compem a cultura
escolar implica, primeiramente, em respaldar teoricamente a noo de ressonncia.
Greenblatt (1991) refere-se ressonncia como o poder de um objeto exposto atingir um
universo mais amplo, para alm de suas fronteiras formais, o poder de evocar no
expectador as foras culturais complexas e dinmicas das quais ele emergiu
(GREENBLATT, 1991, p. 250). Nessa perspectiva, o entendimento sobre a ressonncia de
Besen (1980) nas escolas deve levar em conta as circunstncias que se entrecruzam, no
como um pano de fundo estvel e pr-fabricado com o qual se projetam os textos [...], mas
como uma densa rede de foras sociais em evoluo e muitas vezes em conflito
(GREENBLATT, 1991, p. 250). Essa densa rede de foras pode ser comparada as
tenses do ambiente escolar e as estratgias que se colocam perante o currculo prescrito e
outras intervenes externas bem como perante metodologias de ensino, materiais
didticos, utilizao de recursos financeiros e uma mirade de outras situaes que
suscitam disputas, mesmo que veladas.
Atualmente, o livro de Besen (1980) vem adquirindo o status de verdadeiro entre
aqueles que o utilizam como fonte de pesquisa: Quando a gente precisa saber alguma
coisa com certeza, como uma data, a gente pega o livro do padre. Ele fica sempre aqui pra
quem precisar. T cheio de anotaes; informou Rosa Maria de Souza (48 anos), diretora
da Escola Municipal de Ensino Fundamental - EMEF Ary Manoel dos Santos Costa do
Macacu3. O livro visto como um documento no qual se pode confiar, como tambm
pontuou a professora dos anos iniciais aposentada, Maria Eugnia Alves (57 anos): Dos
livros que tem sobre Garopaba o nico verdadeiro o do Padre Besen, ele fez um pesquisa
sria, os que vieram depois dele so fracos e o que tm de bom foi copiado dele.4 Creio
que muito da Histria Local que se cristalizou sobre Garopaba, deve-se a pesquisa e obra
de Padre Besen (1980), principalmente, no que diz respeito aos aspectos polticos e
3Entrevista realizada em 03/02/2016 na EMEF Ary Manoel dos Santos Costa do Macacu,
Garopaba/SC, com 17 min. de durao. 4 Conversa informal realizada em 17 de abril de 2014, na Secretaria Municipal de Educao de Garopaba/SC.
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religiosos. Alm disso, sua leitura desperta a curiosidade e instiga o leitor mais interessado
a buscar outras Histrias, aquelas que ficaram subentendidas ou as que foram esquecidas.
No entanto, so poucas as escolas que possuem o livro de Besen (1980) em seu
acervo bibliogrfico, pois s o encontrei em somente trs das treze escolas municipais
visitadas. Mas, isso no significa que os conhecimentos edificados por Padre Besen (1980)
no encontrem ressonncia no ambiente escolar, visto que a obra foi referenciada em trs
outros livros que tratam da Histria Local de Garopaba, e que, embora no o tenham em
mos, muitas professoras indicaram que o conhecem e j realizaram a leitura de algumas
partes. Essa situao recorrente, principalmente, entre as professoras que atuam h mais
de vinte anos na educao do municpio. Alm disso, a edio do livro (1000 cpias na
primeira edio e um nmero ignorado na segunda5) encontra-se esgotada, transformando a
obra, em sua materialidade, em patrimnio cultural. A professora Maria Helena Pereira da
Silva de Aguiar (32 anos) disse com orgulho que possui o livro: O livro era da minha av,
quando foram demolir a casa para fazer uma nova muita coisa antiga foi jogada fora, mas
eu corri e salvei o livro, que agora est comigo.6 Certamente, as Recordaes da
Freguesia, por sua pesquisa apurada, muito tem a subsidiar o ensino da Histria Local.
Resta fazer ver as professoras que o material precisa ser lido a contrapelo, como j
pontuava Benjamin (1987) e socializado junto s crianas, solidificando os estudos
relativos Histria Local.
4 Consideraes Finais
A historiografia compreende a narrativa histrica que revela os resultados de uma
pesquisa. Tanto do ponto de vista profissional quanto do leigo, a Histria diz respeito a
acontecimentos do tempo passado, no entanto, h muito do tempo presente na Histria. O
livro de Besen (1980) corresponde aos padres historiogrficos de seu tempo e sinaliza
para uma Histria Local de Garopaba concebida a partir do lugar social do autor: a igreja
catlica. Fruto de uma pesquisa apurada tem nas fontes o respaldo de sua escrita. Tal
narrativa encontra certa ressonncia na cultura escolar da rede municipal de ensino de
Garopaba/SC, pois apesar de no estar presente, materialmente, na maior parte das escolas,
5 BESEN, 2016. 6Entrevista realizada em 03/02/2016, na EMEF Constncia L. Pereira Gamboa, Garopaba/SC (23 min. de durao)
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h reconhecimento de que a obra foi elaborada com rigor e que possvel confiar nas
assertivas do padre.
Referncias
ARSTEGUI, Jlio. A pesquisa histrica: teoria e mtodo. Bauru, SP: EDUSC, 2006.
BESEN, Jos Artulino. 1830-1980 So Joaquim de Garopaba (Recordaes da
Freguesia). Passo Fundo (RS): Grfica e Editora BERTHIER, 1980.
______. Questionrio sobre a obra 1830-1980: So Joaquim de Garopaba
Recordaes da Freguesia (1980) [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por
em 22 fev. 2016.
CERTEAU, Michel de. A escrita da histria. Rio de Janeiro: Editora Forense
Universitria, 2002.
GONALVES, Janice. Sombrios umbrais a transpor: arquivos e historiografia em
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GREENBLATT, Stephen. O novo historicismo: ressonncia e encantamento. Estudos
Histricos. Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8, 1991, p. 244-261.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuio semntica dos tempos
histricos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Contraponto, 2006.
RICOEUR, P. A memria, a histria, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da
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TOPOLSKI, Jerzy. Metodologa de la Historia. 3ra. ed. Madrid, Ediciones Ctedra, 1992.
pp. 309-321. Disponvel em: http://pt.slideshare.net/alfredo447/metodologia-de-la-historia-
jerzy-topolski. Acesso em: 04/01/2016.
http://pt.slideshare.net/alfredo447/metodologia-de-la-historia-jerzy-topolskihttp://pt.slideshare.net/alfredo447/metodologia-de-la-historia-jerzy-topolski