A Historiografia Brasileira Sobre o Trabalho Entre Thompson e Foucault

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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85- 288-0061-6 A historiografia brasileira sobre o trabalho: Entre Thompson e Foucault Igor Guedes Ramos * As mudanças teórico-metodológicas ocorridas na década de 1980 na produção acadêmica brasileira sobre a história do trabalho, foram, há muito, notadas e diagnosticadas por diversos intelectuais. A maioria dos diagnósticos, muitas vezes generalizantes, indica que essa produção até o início da década de 1980, se concentrava no estudo das “macrofísicas do poder” (estrutura econômica, Estado, sindicato e partidos); e, posteriormente, passou a se concentrar nas “microfísicas do poder” (as formas individuais e cotidianas de dominação e resistência). Como os próprios termos evidenciam, uma das variáveis que favoreceu essas mudanças foi a apropriação dos pensamentos de Edward Palmer Thompson e Michel Foucault, pelos acadêmicos brasileiros (Cf. COSTA, 1994; BATALHA, 2003; PAOLI et al., 1984). Segundo a perspectiva de interpretação de Thompson: A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe. (THOMPSON, 1987: 10) Portanto, a classe surge quando, por meio das relações humanas e da luta de classes 1 , um grupo de pessoas passa a se comportar repetidamente de modo classista; partilhando, não somente a mesma posição nas relações de produção, mas também comportamentos, cultura e instituições que condizem com seus interesses. A experiência – conhecimento apreendido historicamente por meio das práticas reais e diretamente determinado pelas relações de produção – ao se articular com a cultura (idéias, valores, tradições, instituições, etc.) do grupo social, constitui a “consciência de classe” deste grupo. Destarte, em Thompson a “consciência * Mestre em História Social pela Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected] e/ou [email protected] 1 Thompson assinala que a “luta de classe” precede a própria “classe”, tendo o primeiro conceito caráter mais universal que o segundo. (Cf. THOMPSON, 1989: 37) 1

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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6

A historiografia brasileira sobre o trabalho: Entre Thompson e Foucault

Igor Guedes Ramos *

As mudanças teórico-metodológicas ocorridas na década de 1980 na produção

acadêmica brasileira sobre a história do trabalho, foram, há muito, notadas e diagnosticadas

por diversos intelectuais. A maioria dos diagnósticos, muitas vezes generalizantes, indica que

essa produção até o início da década de 1980, se concentrava no estudo das “macrofísicas do

poder” (estrutura econômica, Estado, sindicato e partidos); e, posteriormente, passou a se

concentrar nas “microfísicas do poder” (as formas individuais e cotidianas de dominação e

resistência). Como os próprios termos evidenciam, uma das variáveis que favoreceu essas

mudanças foi a apropriação dos pensamentos de Edward Palmer Thompson e Michel

Foucault, pelos acadêmicos brasileiros (Cf. COSTA, 1994; BATALHA, 2003; PAOLI et al.,

1984).

Segundo a perspectiva de interpretação de Thompson:

A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe. (THOMPSON, 1987: 10)

Portanto, a classe surge quando, por meio das relações humanas e da luta de classes 1,

um grupo de pessoas passa a se comportar repetidamente de modo classista; partilhando, não

somente a mesma posição nas relações de produção, mas também comportamentos, cultura e

instituições que condizem com seus interesses. A experiência – conhecimento apreendido

historicamente por meio das práticas reais e diretamente determinado pelas relações de

produção – ao se articular com a cultura (idéias, valores, tradições, instituições, etc.) do grupo

social, constitui a “consciência de classe” deste grupo. Destarte, em Thompson a “consciência

* Mestre em História Social pela Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected] e/ou [email protected] 1 Thompson assinala que a “luta de classe” precede a própria “classe”, tendo o primeiro conceito caráter mais universal que o segundo. (Cf. THOMPSON, 1989: 37)

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de classe” tem caráter temporal e geográfico, é constituída pela articulação histórica entre

experiência e cultura de um determinado grupo social, não pode ser imputada ao grupo social

por um partido, seita e/ou intelectual portadores da consciência “verdadeira” e,

conseqüentemente, não deve ser julgada ou avaliada como mais ou menos verdadeira, mais ou

menos revolucionária.

Para Thompson, a “classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história

e, ao final, esta é sua única definição” (THOMPSON, 1987: 12). Por isso, a classe deve ser

compreendida por meio de evidências históricas tratadas, isto é, o historiador deve iniciar sua

análise pelos dados empíricos e, posteriormente, organizá-los por meio da teoria. Desta

maneira, a classe é expressa como uma “categoria histórica”, em oposição à parte da tradição

marxista (especialmente leninista), que muitas vezes define classe por meio de um modelo

ideal – que precede as evidências históricas – e medidas quantitativas, produzindo uma noção

de classe como “categoria estática” (Cf. THOMPSON, 1989: 33-39).

Essa perspectiva de interpretação está presente na obra A formação da classe operária

inglesa (The Making of the English Working Class); na qual Thompson vasculha os becos

sem saída, as causa perdidas e a história dos perdedores, “tentando resgatar o pobre tecelão de

malhas, o meeiro luddita, o tecelão do ‘obsoleto’ tear manual, o artesão ‘utópico’ e mesmo o

iludido seguidor de Joanna Southcott, dos imensos ares superiores de condescendência da

posteridade” (THOMPSON, 1987: 13). Destarte, produz uma história que se preocupa com o

“fazer-se da classe operária”, em oposição às histórias que obscurecem a atuação dos

trabalhadores e/ou se fundamentam na evolução posterior para criticar o passado (Cf.

THOMPSON, 1987: 9-14).

A perspectiva de interpretação de Foucault é bastante distinta a de Thompson e

apresenta dificuldades quando apropriada pelos historiadores. Segundo André Luiz Joanilho,

apesar da perspectiva de análise foucaultiana e a pesquisa histórica não serem incompatíveis,

existem duas dificuldades sérias nessa relação:

A primeira, diz respeito à forma como Foucault trata as fontes históricas, pois seu

trabalho “não privilegia a pesquisa exaustiva sobre determinado assunto, prisões ou

sexualidade, por exemplo, deixando lacunas na sua explicação” (JOANILHO, 2003: 16). Isto

é, enquanto o historiador busca exaurir as fontes históricas em busca de confirmação de suas

hipóteses; “Foucault, de modo algum, buscou exaurir as fontes em relação aos objetos sobre

os quais se debruçava, ou pelo menos, sequer tentou confirmação sistemática dos dados que

utilizava no sentido tradicional” (JOANILHO, 2003: 16).

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A segunda, diz respeito ao sujeito; pois diferente de Foucault, para o historiador “é

fundamental o sujeito produtor de determinado documento [...]. A não existência de uma

autoria ou de um autor não faz parte do horizonte do pesquisador e do que almejamos

enquanto explicação histórica” (JOANILHO, 2003: 16-17). Isto é, para dar coerência à

narrativa historiográfica é necessária a existência de um sujeito responsável pelos

acontecimentos.

Superada essas dificuldades, como assinala Paul Veyne (1998: 251), Foucault não fala

de um mundo diferente do qual fala o historiador. Apenas busca descrever todo o “relevo”,

todos os contornos, por mais pontiagudos que sejam, desse mesmo mundo descrito pelos

historiadores, de forma “plana”, completamente coerente e, algumas vezes, com sentido

único:

Contudo, compreende-se facilmente por que essa filosofia [foucaultiana] é difícil para nós: ela não se assemelha nem a Marx nem a Freud. A prática [ou o discurso] não é uma instância (como o id freudiano) nem um primeiro motor (como a relação de produção), e, aliás, não há em Foucault nem instância nem primeiro motor [...]. É por isso que não há inconveniente grave em denominar provisoriamente essa prática [ou discurso] de ‘parte oculta do iceberg’, para dizer que ela só se apresenta à nossa visão espontânea sob amplos drapeados e que é grandemente preconceptual; pois a parte escondida de um iceberg não é uma instância diferente da parte emersa: é de gelo, como esta, também não é o motor que faz movimentar-se o iceberg; está abaixo da linha de visibilidade, e isto é tudo. (VEYNE,1998: 251).

Em relação à produção acadêmica sobre o trabalho, Edgar Salvadori de Decca

diferencia e define as contribuições de Thompson e Foucault, da seguinte forma:

As diferenças de abordagens em se tratando de Thompson e Foucault são significativas. Para o primeiro, as classes trabalhadoras são sujeitos de sua própria história, e por isso, a ênfase dada à questão da experiência de classe e do fazer (making) de uma cultura de classe. Com os seguidores de Foucault desloca-se significativamente o eixo da experiência e/ou da cultura das classes trabalhadoras, acentuando-se o significado da ação disciplinar de inúmeros agentes sociais na produção do cotidiano e da identidade dos trabalhadores, através da criação das instituições basilares da sociedade, tais como a família nuclear, a escola e a fábrica. (DECCA, 1987: III)

Desta forma, com a apropriação das reflexões de Foucault, a respeito dos múltiplos

locais de conflito existentes na sociedade; e de Thompson, a respeito do “fazer-se” da classe

operária, os acadêmicos brasileiros da década de 1980, adquiriram outras “ferramentas”

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(temáticas, teorias, metodologias, etc.) para pensarem as formas de dominação e resistência,

presentes na história do trabalho.

Entretanto, alguns intelectuais viram com preocupação o deslocamento da atenção das

“macrofísicas do poder” para as “microfísicas do poder”, como explica Emília Viotti da

Costa:

O resultado foi que apesar da extraordinária expansão das fronteiras da história e do enriquecimento inegável da nossa compreensão da multiplicidade da experiência humana através dos tempos, a macro-física do poder permaneceu na sombra. Quando o poder está em toda a parte, acaba por não estar em lugar algum. Além de que, o método de análise derivado de uma leitura simplificada e seletiva da obra de Foucault embora tenha contribuído para esclarecer e ampliar a compreensão dos vários locais onde o poder se exerce, recusa-se a explicar como e porque ele se constitui, se reproduz e se transforma. (COSTA, 1994: 15)

Essa relação conflituosa entre as perspectivas de interpretação da história do trabalho,

não é apenas “bipolares” e não se restringe a diferenças teórico-metodológicas, mas também a

representações de mundo e práticas distintas. Nas palavras de Emilia Viotti da Costa: “o que

está em questão não é apenas qual a melhor interpretação do passado, mas também qual a

melhor estratégia no presente” (COSTA, 1994: 20).

No decorrer da década de 1970, diferente do que ocorria anteriormente na produção

acadêmica brasileira sobre o trabalho, as práticas operárias ganham importância em relação às

determinações estruturais. Isto é, os acadêmicos brasileiros descobrem que os operários

possuem alguma consciência, constroem suas próprias práticas políticas e exercem alguma

resistência em relação à dominação burguesa e possuem alguma mobilidade em relação à

estrutura socioeconômica do país. Contudo, é uma classe desarticulada, dividida, e ainda

incapaz de compreender a realidade do Brasil, conhecida apenas pelos intelectuais, único

grupo sociocultural capaz de transcender os limites da sociedade brasileira e capaz de julgá-la

a partir de critérios científicos, racionais e universais (Cf. BATALHA, 2003; PAOLI et al.,

1984; PÉCAUT, 1990).

Ainda, é importante notar, que a produção acadêmica desse período, estabeleceu como

indispensáveis práticas de pesquisa de caráter “empirista”, até então pouco seguidas. Isto é, as

interpretações são ampla e rigorosamente fundamentadas em fontes jornalísticas, relatórios de

empresas, arquivos de militantes, etc. Dois exemplos dessa produção acadêmica são as obras

História da indústria e do trabalho no Brasil: das origens aos anos vinte (1982) de Francisco

Foot Hardman e Victor Leonardi e Trabalho urbano e conflito social (1976) de Boris Fausto.

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Nessas obras surgem as algumas referências a Thompson e Foucault. Contudo, a

apropriação do pensamento de Thompson não gera uma mudança significativa no modelo

interpretativo; certamente fortalece a postura “empirista” e leva a uma maior preocupação

com a descrição e a análise das práticas e da cultura operária, mas os autores não adotam as

noções de cultura, experiência ou consciência de classe presentes no pensamento de

Thompson. Uma vez que fazem críticas à consciência de classe e ao movimento operário

brasileiro do início do século XX, fundamentados em critérios de outro tempo e lugar (Cf.

HARDMAN & LEONARDI, 1981: 351; FAUSTO, 1976: 247-248); o que se opõe a noção de

consciência de classe presente nas reflexões de Thompson.

Ainda, em sua obra, Fausto dedica apenas uma breve seção denominada A subcultura

para analisar a cultura operária e a crítica da cultura e das instituições vigentes (sistema

educativo, Igreja, família burguesa, etc.) feita pelos libertários; conforme já assinalou Sílvia

Pertesen, desde o título, essa seção destoa do modelo interpretativo de Thompson (Cf.

PETERSEN, 2008: 62).

Em relação a Foucault, a referência mais profunda aparece em Fausto; que, em um

breve parágrafo, aponta a importância do estudo dos micropoderes (desvendados por

Foucault) para compreensão da relação de dominação (Cf. FAUSTO, 1976: 81), mas não

analisa o tema em sua obra.

Em suma, a produção acadêmica brasileira, da década de 1970, sobre o trabalho está

intimamente ligada à produção acadêmica anterior, herdando algumas de suas representações

e práticas, como a “tendência de julgar negativamente o movimento operário do início do

século” (BATALHA, 2003: 151). Destarte, impossibilitando uma apropriação mais profunda

das reflexões de Thompson e Foucault.

É na década de 1980, que ocorreu uma grande mudança (ou ruptura) na produção

historiográfica brasileira sobre o trabalho. Foi uma época de contestar e sonhar, os

acadêmicos (discentes e docentes) estavam deslumbrados pelas inúmeras alternativas de

compreender a sociedade e estratégias de luta política. Nessa época ocorreu a re-significação

do político e a percepção da heterogeneidade sociocultural existente no Brasil, elementos de

outra representação de mundo, que possibilitou o surgimento de outro modelo acadêmico de

interpretação do trabalhador; que procura dar conta dos múltiplos grupos socioculturais,

formas de organização e resistência e lugares de conflito, presentes na sociedade brasileira.

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A postura dos acadêmicos da década de 1980 em relação à sociedade e,

especificamente, em relação ao trabalhador brasileiro, pode ser entendida a partir da

explicação de Michel Foucault sobre os intelectuais em geral:

[...] o que os intelectuais descobriram desde o avanço recente [desde 1968] é que as massas não têm necessidade deles para saber; e elas o dizem bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida este discurso e este saber [...]. Eles próprios, os intelectuais, fazem parte deste sistema de poder; a idéia de que eles são agentes da ‘consciência’ e do discurso, ela própria, faz parte deste sistema. FOUCAULT & DELEUZE, 1974: 140-141)

Um pensamento que surge em 1968, na Europa, deslumbra os acadêmicos por volta de

1980, no Brasil. Destarte, os acadêmicos brasileiros – grande parte deles – descobrem que

não são os organizadores da sociedade, os porta-vozes do povo, a vanguarda esclarecida ou os

portadores da ciência e da compreensão universal. Descobrem, também, que a “massa”, o

“povo” ou a classe operária possuem práticas e saberes independentes, tão “verdadeiros”

quanto os possuídos pelos acadêmicos. E, possivelmente a mais dolorosa das descobertas, que

eles (acadêmicos) são também repressores desses saberes e práticas. Para esses “novos”

acadêmicos brasileiros, restou o “resgate” dos saberes e das práticas operárias, aniquilados

durante séculos de tirania intelectual. Entre os exemplos da historiografia da década de 1980,

citamos: Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-1930 (1985) de Luzia

Margareth Rago e O sonhar libertário: movimento operário nos anos de 1917 a 1921 (1988)

de Cristina Hebling Campos.

Segundo Rago, a luta pela transformação/manutenção da sociedade não passa

necessariamente pela instância política formal, pela luta político-partidária, como quer a

produção acadêmica anterior. Em sua obra, não existe sequer a dicotomia entre instância

política formal e informal, existem múltiplas formas políticas, que não se hierarquizam ou se

centralizam em uma única “instância verdadeira ou superior”. A dominação e a resistência

políticas estão em todos os espaços e todos os momentos da vida operária. Daí, não é difícil

imaginar, que entre as referências teóricas da autora estejam Foucault e Thompson:

Embora situados em campos teóricos e metodológicos diferenciados, Thompson e Foucault chamam a atenção para outros momentos do exercício da dominação burguesa, possibilitando recuperar as práticas políticas ‘não-organizadas’ do proletariado e desfazer o generalizado mito do atraso e do apoliticismo dos libertários. (Cf. RAGO, 1985: 14)

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Destarte, é restituído às “práticas políticas não-organizadas” da classe operária – até

então consideradas banais, economicistas ou inconscientes –, sua exata capacidade de

transformação social, econômica e política. Rago, nesta obra, se propõe a estudar todas essas

manifestações de resistência cotidiana e a cultura produzidas pelos trabalhadores brasileiros,

entre 1890 e 1930; bem como, as normas disciplinares a eles impostas pela fábrica, pelas

várias agências do poder público ou privado regulando a sua maneira de morar, a sua saúde, a

sua educação, a sua sexualidade, etc. (Cf. RAGO, 1985: 11-14).

Acompanhando a tendência da década de 1980, na obra de Rago predomina a descrição

e a interpretação das práticas operárias e da cultura operária e os diversos mecanismos de

dominação do capital. Seu modelo interpretativo é muito semelhante ao de Foucault, suas

referências a Thompson parecem ter, maiormente, a função de legitimar o texto dentro do

campo de produção sobre o trabalho, onde predominava (ou predomina) as concepções

marxistas da história.

Na perspectiva de Campos, entre os anos de 1917 e 1921, o trabalhador brasileiro

sonhou com a liberdade, se organizou e lutou para tentar conquistá-la. Esse momento só pode

ser compreendido por meio de um estudo aprofundado das diversas formas de dominação,

exercidas pelo patronato e pelo Estado; e das diversas formas de resistência, empregadas

pelos operários (Cf. CAMPOS, 1988: 17-22). Para sua análise, a autora se fundamentada nos

pressupostos de Thompson e Foucault:

Pois, tanto para Thompson quanto para Campos, “a classe só se constitui no processo de

luta, quando, ao criarem-se laços de solidariedade entre indivíduos, enfrenta o patronato e o

Estado. A consciência que é produzida nesse momento é registrável, às vezes comparável,

mas não existem ‘desajustes’ na história, nem atrasos, nem falsa consciência” (CAMPOS,

1988: 12).

Ainda, para compreender principalmente o fenômeno de descenso do movimento

operário do período, Campos se utiliza das reflexões de Michel Foucault sobre as relações de

poder, buscando pensar as múltiplos locais de dominação e resistência, desde a fábrica e o

processo de produção até a vida privada e os sentimentos conjugais, parentais e filias (Cf.

CAMPOS, 1988: 17-21). Contudo, as reflexões de Foucault parecem estar mais presentes

onde não existe referência direta a ele; quando a autora define sua concepção de história:

A tentativa revolucionária dos anos de 1917 a 1920, além de ter sido esquecida pela historiografia oficial, foi ‘malvista’ pela historiografia marxista (leninista).

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Esta postura ligou-se essencialmente ao fato dos libertários terem se negado a criar o partido revolucionário e por não participarem do processo político-eleitoral, estabelecendo alianças com outras camadas sociais. Teoricamente isto é insustentável, a tarefa do historiador é a de fazer da história um uso que a liberte para sempre de qualquer absoluto. Não se pode permitir que a história se deixe levar por nenhuma obstinação e tampouco que se deixe obstinar pela idéia de continuidade. [...] Não existe nada imortal no homem, nada escapa a ter uma história. A história não é um continuum, com um sentido estabelecido, as forças que se encontram em jogo obedecem ao acaso da luta. (CAMPOS, 1988: 23)

Portanto, entendemos que a perspectiva de análise de Campos está muito próxima à de

Thompson. Já que a autora se propõe a resgatar as formas organizativas e de resistência do

movimento operário, lhes restituindo o significado que tinham em sua época, por meio da

descrição detalhada da constituição das classes em luta, evitando julgamentos fundamentos

em saberes posteriores. As referências a Foucault feitas pela autora, parecem funcionar muito

mais como formar de marcar um lugar distinto, isto é, uma oposição à produção acadêmica

anterior, por meio da constituição de outra concepção de história; do que como modelo

teórico-metodológico, salvo parcela da análise a respeito do “descenso”.

Logo, é possível notar, que em vez de uma apropriação homogênea das formas de

interpretação de Thompson e Foucault, pela historiografia brasileira da década de 1980;

ocorreram distintas apropriações das representações de mundo (de história, de classe operária,

etc.) que emergem no pensamento daqueles autores, favorecendo mudanças na produção

historiográfica sobre o trabalho. Essas apropriações não ocorreram de forma imediata,

homogenia ou irrepreensível; não existiu unanimidade entre os intelectuais, muitos rejeitaram

e criticaram os historiadores (e acadêmicos em geral) que enveredaram por este outro

caminho.

BIBLIOGRAFIA

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