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KRISTIN HANNAH

A HORA MÁGICA

Tradução deLÍDIA GEER

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Este é para o meu filho, Tucker.Parece que foi apenas há alguns anos que eu podia ter-te

nos meus braços. Agora andamos a visitar universidades ea falar sobre o teu futuro. Sinto-me tão orgulhosa do rapaz

que foste e do homem em que te estás a transformar. Nãotardarás a deixar o teu pai e a mim para descobrires o teupróprio caminho de vida. Quero que saibas que faças o quefizeres, vás para onde fores, o nosso amor por ti perdurará

para todo o sempre.

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AGRADECIMENTOS

Várias pessoas foram importantes na escrita deste romance.Os meus agradecimentos vão para:

Lindsey Brooks, coordenadora de investigação e chefe de departa-mento da Child Quest International;

Luana S. Burnett, oficial da polícia da cidade de Newport, estadode Washington;

Kany Levine, advogado de defesa de direito criminal e amigo;

e Kim Fisk e Megan Chance; ambas ajudaram mais do que pen-sam ter ajudado.

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«Real não é como foste feito», disse o Cavalo Skin. «É uma coisaque te acontece. Quando uma criança te ama durante muito,muito tempo, não apenas para brincar, mas quando te ama

REALMENTE, então passas a ser REAL.»«E dói?», perguntou o Coelho.

«Às vezes», disse o Cavalo Skin, porque nunca faltava à verdade.

The Velveteen RabbitMARGERY WILLIAMS

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CAPÍTULO 1

«Tudo terá acabado dentro em pouco.»Julia Cates já tinha perdido conta ao número de vezes que dissera

isto a si mesma, mas hoje — finalmente — seria verdade. Dali a algu-mas horas, o mundo ficaria a saber a verdade a seu respeito.

Isto é, se conseguisse chegar à baixa da cidade. Infelizmente, a au-toestrada da costa do Pacífico assemelhava-se mais a um parque deestacionamento do que a uma via rápida. Uma vez mais, as colinaspor trás de Malibu voltavam a ser pasto das chamas; o manto de fu-mo mantinha-se suspenso acima dos telhados, transformando o arcosteiro, normalmente límpido, dando-lhe um tom acastanhado de lo-do. Por toda a cidade, as crianças aterrorizadas acordavam a meio danoite, chorando lágrimas acinzentadas e com muita dificuldade emrespirar. Até mesmo a rebentação das ondas dava a impressão de terabrandado, como se exausta devido àquele calor tão extemporâneo.

Manobrou por entre o engarrafamento do trânsito que arrancavae parava constantemente, ignorando os condutores que lhe faziamgestos obscenos com a mão e que se metiam à sua frente sem aviso.Era de esperar que tivessem essas atitudes; na estação do ano maisperigosa no sul da Califórnia, o estado de espírito das pessoas ficavaao rubro com tanta facilidade quanto o fogo que grassava pelos quin-tais. O calor fazia com que toda a gente ficasse com os nervos emfranja.

Por fim, Julia conseguiu sair da autoestrada e seguiu em direçãoao tribunal.

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Os carros de exteriores de diversos canais de televisão encontra-vam-se por toda a parte. Havia dúzias de repórteres que se amontoa-vam na escadaria do tribunal com os microfones e câmaras de filmara postos, aguardando a chegada da reportagem. Em Los Angeles, aoque tudo indicava, o caso passara a ser um acontecimento diário; pro-cedimentos jurídicos como entretenimento. Michael Jackson. Court-ney Love. Robert Blake.

Julia dobrou uma esquina e seguiu para uma entrada lateral ondeera aguardada pelos seus advogados.

Estacionou na rua e saiu do automóvel, na expectativa de poderseguir em frente com confiança, mas durante um segundo terrível nãofoi capaz de se mexer. Estás inocente, recordou a si própria. Eles constata-rão isso mesmo. O sistema vai funcionar. Obrigou-se a dar um passo e depoisoutro. Tinha a sensação de que caminhava por entre arames invisíveisenquanto se esforçava por subir uma ladeira. Quando chegou juntodo grupo, foi com extrema dificuldade que conseguiu esboçar um sorri-so, mas de uma coisa estava ciente: parecia genuíno. Todos os psiquia-tras sabiam como fazer com que um sorriso parecesse genuíno.

— Olá, doutora Cates — saudou Frank Williams, o principal ad-vogado da equipa que tratava da sua defesa. — Como é que se sente?

— Vamos andando — retorquiu Julia, perguntando-se se seria aúnica a aperceber-se da hesitação na sua voz. Detestava aquela provados seus receios. Hoje, mais que em qualquer outro dia, precisava deser forte para mostrar ao mundo que era a médica que todos acredita-vam que era, que não tinha feito nada de mal.

A equipa de advogados formou um círculo protetor à volta dela.Apreciou o apoio que lhe davam. Muito embora fizesse os possíveispor se mostrar confiante e com uma atitude profissional, isso nãopassava de uma fachada muito frágil. Uma palavra inapropriada pode-ria deitar tudo a perder.

Ela e os seus advogados transpuseram as portas de acesso aotribunal.

Os flashes das máquinas fotográficas como que explodiram em es-pasmos de luz de um branco-azulado ao mesmo tempo que as câma-ras de filmar entravam em ação e os gravadores eram ligados. Os re-pórteres apressaram-se a avançar, todos a gritar ao mesmo tempo.

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— Doutora Cates! Como é que se sente em relação ao sucedido?— Porque é que não salvou as crianças?— Tinha conhecimento da arma de fogo?Frank passou o braço por cima dos ombros de Julia, puxando-a

para junto de si. Ela encostou a face à lapela do casaco, permitindoque ele a conduzisse enquanto caminhava.

Já na sala do tribunal, Julia sentou-se à mesa da defesa. Um a um,os seus advogados juntaram-se a ela. Mais atrás, na primeira fila doslugares da galeria, os advogados estagiários ocuparam os seus lugares.

Julia tentou ignorar o burburinho que se ouvia atrás de si; as portasque rangiam quando se abriam e batiam quando se fechavam, passosapressados que ressoavam no chão de mármore, vozes sussurradas.Os lugares vazios eram ocupados rapidamente; sabia que era assimsem precisar de se voltar para trás. Aquela sala de tribunal em LosAngeles, hoje, era o lugar mais falado em toda a cidade e uma vez queo juiz não tinha permitido câmaras de filmar no interior da sala, de-certo que os jornalistas e desenhadores se apinhariam na galeria comas canetas em riste.

Durante o ano passado, tinham escrito uma sucessão de artigos arespeito dela. Os fotógrafos tiraram-lhe milhares de fotografias —quando punha o lixo na rua, quando se sentava no alpendre da sua ca-sa, as idas e vindas do consultório. As fotografias que mais a desfavore-ciam eram sempre as que publicavam na primeira página dos jornais.

Poder-se-ia dizer que os repórteres tinham acampado defronte doprédio onde ela morava e embora nunca tivesse falado com eles, talnão tinha a mínima relevância. As histórias continuavam a ser publi-cadas. Escreviam artigos sobre o facto de ter nascido numa pequenacidade, sobre a sua educação académica que fora brilhante, o andar defrente para a praia que tinha sido caríssimo. Chegaram ao ponto deespecular, dizendo que sofria de anorexia ou ficara viciada em lipoas-piração recentemente. Aquilo sobre que não escreviam era a únicaparte da sua vida que era importante: a paixão pelo seu trabalho.Tinha sido uma criança solitária e desajeitada e recordava-se de cadanuance do sofrimento que isso lhe causara. A sua própria juventudefizera dela uma psiquiatra excecional.

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Como seria de esperar, esse aspeto da verdade nunca chegou aoconhecimento da imprensa. Tão-pouco a lista de todas as crianças eadolescentes que ela tinha ajudado.

O silêncio abateu-se sobre a sala do tribunal quando a juíza CarolMyerson ocupou o seu lugar. Era uma mulher de aparência austera,com o cabelo pintado de um castanho-acobreado luzidio e óculosbastante fora de moda.

O oficial de justiça anunciou o número do processo judicial.Subitamente, Julia desejou ter pedido a alguém que a acompa-

nhasse naquele dia, alguma amiga ou familiar que se mantivessem aoseu lado, alguém que talvez a reconfortasse quando tudo tivesse aca-bado, mas a verdade é que ela sempre pusera o trabalho à frente dequaisquer relações familiares e de amizade. Nunca se permitira muitotempo para dedicar aos amigos. O seu próprio terapeuta apontara,com bastante frequência, esta carência na sua existência; verdade fos-se dita, até ao momento nunca concordara inteiramente com ele.

Frank encontrava-se ao seu lado. Era um homem que se impu-nha, alto e esguio, com um cabelo que ia do preto ao grisalho numaordem perfeita, as patilhas em primeiro lugar. Julia escolhera-o devidoà sua mente brilhante, todavia, a sua conduta, muito provavelmente,havia sido o fator determinante. As mais das vezes e em circunstân-cias como aquela, tudo se resumia ao facto de a forma ser mais im-portante do que a substância.

— Meritíssima — começou ele num tom de voz suave e persuasi-vo como ela nunca lhe ouvira —, o facto de a doutora Julia Cates tersido indiciada como ré neste processo judicial é absurdo. Muito em-bora os limites exatos da confidencialidade no foro da psiquiatria se-jam, muitas vezes, objeto de disputa, existem determinados preceden-tes, nomeadamente o caso Tarasoff contra Regents da Universidade daCalifórnia. A doutora Cates não tinha conhecimento das tendênciasviolentas da sua paciente, tal como não se encontrava de posse dequaisquer informações relativas a ameaças específicas feitas a indiví-duos que constam do processo. Na verdade, esse conhecimento espe-cífico nem sequer é alegado no processo judicial em questão. Assim,solicitamos respeitosamente que ela seja dispensada deste processo ju-dicial. Obrigado. — Com estas palavras, o advogado sentou-se.

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Na mesa da parte queixosa, levantou-se um homem de fato preto.— Morreram quatro crianças, meritíssima. Nunca terão oportuni-

dade de crescer, de ir para a universidade ou de virem a ter os seuspróprios filhos. A doutora Cates era a psiquiatra de Amber Zuniga.Durante três anos, a doutora Cates dedicou duas horas por semana aAmber, período em que a ouviu falar dos seus problemas e lhe pres-creveu medicamentos para combater o seu estado depressivo que seagudizava. Mas não obstante toda essa proximidade, agora queremque acreditemos que a doutora Cates não sabia que Amber estava a fi-car cada vez mais violenta e deprimida. Que não existiram quaisquersinais de que a sua paciente iria comprar uma arma de fogo automáti-ca e que se apresentaria na reunião do seu grupo juvenil na igreja, co-meçando a disparar indiscriminadamente. — Dito isto, o advogadosaiu de trás da mesa e posicionou-se no centro da sala do tribunal.

Muito vagarosamente, virou-se de frente para Julia. Aquele era omomento supremo; o que seria desenhado por todos os artistas pre-sentes na sala do tribunal e divulgado por todo o mundo.

— Ela é a perita, meritíssima. Tinha obrigação de prever esta tra-gédia e de a impedir, advertindo as vítimas ou tratando de internarMiss Zuniga para que recebesse tratamento adequado. Se, de facto,não tinha conhecimento das tendências violentas de Miss Zuniga, de-via ter tido. Face ao exposto, solicitamos respeitosamente que a dou-tora Cates seja mantida como acusada neste processo judicial. É umaquestão de justiça. As famílias das crianças que foram chacinadas têmdireito a ser ressarcidas por parte da pessoa que, mais plausivelmente,podia ter previsto e impedido o assassínio dos seus filhos — concluiuo advogado voltando para a mesa e ocupando o seu lugar.

— Não é verdade — murmurou Julia, sabendo que a sua voz nãoseria ouvida. Contudo, tinha de o dizer em voz alta. Amber nuncamanifestara o mais pequeno indício de violência. Todas as adolescen-tes que sofriam de estados depressivos diziam que odiavam os colegasdas suas escolas. Situação que se encontrava a anos-luz da compra deuma arma e abrir fogo com ela.

Por que razão é que eles não conseguiam ver tudo isso?A juíza Myerson leu a documentação apensa ao processo defronte

dela. Em seguida, tirou os óculos e pousou-os na superfície de madei-ra dura da sua mesa.

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Fez-se silêncio na sala do tribunal. Julia sabia que os jornalistas es-tavam prontos para começar a escrever de imediato. Fora do tribunalhavia mais, todos a postos para relatarem uma de duas reportagens.Os cabeçalhos de ambas já estavam escritos. Só precisavam de um si-nal dado pelos colegas no interior do tribunal para optarem por umaou pela outra.

Os pais das crianças, agrupados nas filas de trás, eram a imagem dodesgosto, à espera de que lhes confirmassem que aquela tragédia po-dia ter sido evitada, que alguém numa posição de autoridade podia termantido os filhos vivos. Tinham processado toda a gente por mortepor negligência — a polícia, os paramédicos, a indústria farmacêutica,o pessoal médico e a família de Zuniga. O mundo moderno deixarade acreditar em tragédias sem sentido. Não aconteciam coisas más àspessoas sem mais nem menos; alguém teria de ser responsabilizado.As famílias das vítimas tinham esperança em que aquele processo ju-dicial fosse a resposta, mas Julia sabia que só lhes daria mais algumacoisa em que pensar durante algum tempo, talvez lhes permitisse par-tilhar algum do sofrimento por que estavam a passar. Contudo, não oaliviaria. O desgosto sobreviveria a todos eles.

A juíza começou por fitar os pais.— Não resta a mínima dúvida de que o que aconteceu no dia de-

zanove de fevereiro na igreja batista de Silverwood foi uma tragédiaterrível. Apesar de eu própria ser mãe, não sou capaz de imaginaro mundo em que viveram durante os últimos meses. No entanto, aquestão que cabe a este tribunal decidir é apurar se a doutora Catesdeve continuar a ser indiciada neste processo judicial ou não. — Fezuma pausa entrelaçando as mãos em cima da mesa. — É minha con-vicção, no espírito da lei, que a doutora Cates não tinha a obrigaçãode advertir, ou proteger de qualquer outra maneira, as vítimas nesteconjunto de circunstâncias. Cheguei a esta conclusão com base emvárias razões. Em primeiro lugar, os factos não provam, tão-pouco osqueixosos alegam, que a doutora Cates tenha tido qualquer conheci-mento específico relativo a possíveis vítimas que pudesse nomear; emsegundo lugar, a lei não impõe a obrigação de advertir, excetuandonos casos em que as vítimas possam ser claramente identificadas; e,por fim, em matéria de deontologia, há que manter o sigilo que rege arelação entre psiquiatra e paciente, salvo se existir qualquer ameaça

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específica e concreta que obrigue à quebra dessa confiança. A doutoraCates, com fundamento nos seus registos clínicos e nas declaraçõesdos próprios queixosos, não tinha a obrigação de advertir, ou de pro-teger de qualquer outra maneira, as vítimas neste caso. Assim, decididispensá-la deste processo sob todas as reservas.

As pessoas na galeria ficaram frenéticas. Antes de ter tido tempode se aperceber do que se passava, Julia pôs-se de pé e viu-se envolvi-da em abraços dos seus advogados de defesa, que a congratulavam.Atrás dela, ouvia os jornalistas que corriam para as portas e os passosdeles a percorrerem o átrio de mármore.

— Ela safou-se! — gritou alguém.Julia sentiu-se invadida por um sentimento de alívio. Graças a

Deus.Mas então ouviu os pais das crianças que choravam atrás de si.— Como é que isto pode estar a acontecer? — perguntou-se um

dos pais em voz alta. — Ela tinha obrigação de saber.— Devia estar a sorrir. Ganhámos — disse-lhe Frank tocando-lhe

no braço.Julia olhou de relance para os pais, apressando-se a desviar o

olhar. Os seus pensamentos enveredaram pela floresta sombria do re-morso. Teriam eles razão? Devia ter sabido?

— Você não teve culpa e chegou a altura de dizer isso mesmo àspessoas. Esta é a sua oportunidade de falar aos...

Ficaram rodeados por uma multidão de repórteres.— Doutora Cates! O que tem a dizer aos pais que a consideram

responsável por...— Acha que outros pais lhe confiarão os seus filhos...— Importa-se de comentar o comunicado emitido pelos serviços

da Procuradoria da República de Los Angeles, informando que a reti-raram do quadro de psiquiatras forenses?

Frank decidiu intervir naquela confusão, voltando a pegar na mãode Julia.

— A minha cliente deixou de ser indiciada num processo judicial...— Com base num pormenor técnico! — gritou alguém.Enquanto se mantinham concentrados em Frank, Julia conseguiu

esgueirar-se e correu para a porta. Sabia que Frank queria que fizesse

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uma declaração à imprensa, mas isso era-lhe indiferente. Não se sentiatriunfante. Só queria afastar-se de tudo aquilo... retomar a normalida-de do seu dia a dia.

O casal Zuniga encontrava-se em frente da porta, bloqueando-lheo caminho. Eram uma versão muito pálida das pessoas que conheceraem tempos. O desgosto despojara-os de cor e envelhecera-os.

A senhora Zuniga fitou-a por entre um véu de lágrimas.— Ela amava-vos a ambos — disse Julia suavemente, sabendo

que as suas palavras não bastavam. — E ambos foram bons pais. Nãopermitam que alguém vos diga o contrário. A Amber estava doente.Quem me dera...

— Não diga isso — atalhou o senhor Zuniga. — Desejar o quenão aconteceu magoa mais do que tudo. — Passou um braço por ci-ma dos ombros da mulher, puxando-a para junto de si.

O silêncio abateu-se sobre os três. Julia esforçou-se por encontraras palavras mais adequadas, mas só lhe ocorria dizer Lamento muito,o que já dissera tantas vezes que lhes perdera a conta, além de «Adeus».Agarrando a mala de mão junto do corpo, contornou o casal e afas-tou-se do tribunal.

Na rua, o mundo apresentava-se sombrio e em tons de castanho.Um espesso manto de nevoeiro escurecia o firmamento, obliterandoo sol, o que se coadunava com o seu estado de espírito.

Sentou-se ao volante do seu carro e arrancou. Quando entrou notrânsito, perguntou a si mesma se Frank teria dado pela sua ausência.Para ele tratava-se de um jogo, muito embora a parada fosse bastanteelevada, e como vencedor do dia, estaria a voar muito alto. Provavel-mente, o advogado pensaria nas vítimas e nas suas famílias naquelanoite quando já estivesse na sua sala de estar, depois de ter bebidouns quantos Dewar’s com gelo. Decerto que também pensaria nela, tal-vez perguntasse a si mesmo o que é que aconteceria a uma psiquiatraque comprometera de maneira tão grave a sua reputação com aqueledesaire; todavia, não pensaria nos intervenientes naquele caso durantemuito tempo. Não se atreveria.

Mas agora, ela própria também teria de pôr o assunto para trásdas costas. Esta noite, deitar-se-ia sozinha na sua cama, a ouvir a re-bentação das ondas e a pensar em como aquele som se parecia tanto

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com o bater do seu coração e, uma vez mais, esforçar-se-ia por ultra-passar a mágoa e o sentimento de culpa. Era imperativo que descobris-se o indício que lhe passara despercebido, qual o sinal que não haviasido capaz de detetar. Sofreria com isso — recordar —, mas, em últi-ma análise, todo esse sofrimento faria com que passasse a ser umaprofissional mais competente. E depois, às sete horas da manhã, ves-tir-se-ia e retomaria o seu trabalho.

Ajudar as pessoas.Era assim que Julia iria conseguir ultrapassar aquela situação ad-

versa.

A menina mantém-se agachada na extremidade da caverna a olharpara a água que cai do céu. Quer chegar a uma das latas vazias espa-lhadas à sua volta, talvez para voltar a lamber o interior, mas já fezisso demasiadas vezes. A comida acabou-se. Acabou há mais luas doque aquelas que ela consegue contar. Atrás dela, os lobos estão in-quietos e esfaimados.

O céu ruge e retumba. As árvores tremem de medo e a água con-tinua a cair inexoravelmente.

Ela adormece.Desperta subitamente e olha em redor, cheirando o ar. Sente um

cheiro estranho na escuridão. Devia atemorizá-la, fazer com que serefugiasse no fundo daquele buraco negro, mas quase não conseguemexer-se. Sente o estômago tão contraído e vazio que lhe dói.

Naquele momento, a água que cai já não o faz com tanta fúria; émais como um chuvisco. Desejava poder ver o sol. A vida é melhorquando se encontra banhada pela luz do dia. A sua caverna é tão es-cura.

Ouve o estalar de um galho.E depois de um outro.Deixa-se ficar muito quieta, desejando que o seu corpo pudesse

desaparecer pela parede da caverna. Como que se transforma na som-bra de si própria, uma forma indistinta e imóvel. Sabe o quão impor-tante a imobilidade pode ser.

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Ele está a chegar. Há já muito tempo que ele não aparece. Nãotem mais comida. Os dias soalheiros já lá vão e apesar de se sentir sa-tisfeita por Ele se ter ido embora, sem Ele, ela tem medo. Em temposidos (já faz muito tempo) Ela teria servido de algum conforto, masEla está MORTA.

Quando o silêncio volta a abater-se sobre a floresta, ela inclina-separa a frente e estende o rosto para a luminosidade mortiça que faziaLá Fora. A escuridão do sono da noite não tardará; dentro em poucotudo ficará mergulhado em trevas cerradas. A água cai suave e doce-mente. Ela gosta do seu sabor.

O que deve fazer?Baixa o olhar até ao cachorrinho ao seu lado. Ele também se

mantém em estado de alerta, a farejar o ar. Passa a mão pela pelagemmacia e sente que o animal está a tremer. Estará a perguntar-se a mes-ma coisa: Estaria Ele de volta?

Até há pouco, Ele tinha-se ausentado sempre durante uma ouduas luas no máximo. Mas tudo se alterou quando Ela morreu e desa-pareceu. Quando Ele partiu, chegou mesmo a falar com a Rapariga.

«VAISPORTAR-TEBEMENQUANTOEUESTIVERAUSENTECASOCONTRÁRIO.»Ela não compreendeu todas as palavras, mas sabe qual o significa-

do de Caso Contrário.Ainda assim, há demasiado tempo que ele não aparece. Não tem

nada para comer. Ela conseguiu libertar-se e embrenhou-se na florestapara procurar frutos secos e bagas, mas a estação é a do escurecimento.Não tardará que ela fique demasiado enfraquecida para poder procurarcomida, mas, seja como for, não encontrará nada quando o branco co-meçar a cair, transformando a sua respiração em nevoeiro. Apesar de terreceio, de se sentir aterrorizada por causa dos Estranhos que vivem LáFora, a verdade é que está esfaimada e se Ele descobrir que ela se liber-tou outra vez, isso não será nada bom. Ela tem de fazer alguma coisa.

A cidade de Rain Valley, entalada entre as terras ermas da OlympicNational Forest e a violenta rebentação cinzenta do oceano Pacífico,era o último bastião da civilização que demarcava o começo da flores-ta cerrada.

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Existiam lugares não muito distantes da cidade que nunca haviamsido tocados pelos raios dourados do sol, onde as sombras escure-ciam o solo lamacento e negro ao longo de todo o ano, as suas for-mas tão densas e substanciais que os escassos caminhantes mais afoi-tos que se embrenhavam pelo arvoredo, muitas vezes, pensavam quetinham encontrado o covil de ursos em hibernação por mero acaso.Até mesmo hoje em dia, nesta época moderna de maravilhas científi-cas, estes bosques permaneciam inalterados há séculos, por explorar esem que fossem pisados pelo homem.

Há menos de cem anos, os colonizadores chegaram a este local degrande beleza entre a floresta setentrional e o mar, tendo abatido ape-nas o número suficiente de árvores para desbravar as terras de que ne-cessitavam para as suas sementeiras. Com o passar do tempo, aprende-ram o que os povos nativos da América do Norte tinham aprendidoantes deles: aquele era um lugar impossível de domar. Assim, puseramde lado as suas alfaias agrícolas e dedicaram-se à pesca. O salmão e amadeira transformaram-se nas indústrias locais e a cidade prosperoudurante algumas décadas. No entanto, na década de 1990, os ambien-talistas descobriram Rain Valley. Determinadamente, empreenderama tarefa de salvar as aves, os peixes e as árvores mais antigas. Os ho-mens que viviam do que a terra dava foram esquecidos nesta luta ecom o decorrer dos anos, a pouco e pouco, a cidade como que foi vo-tada ao abandono. Um a um, os sonhos grandiosos que os cidadãosmais proeminentes da cidade acalentavam foram-se desvanecendo.A muito esperada iluminação pública nunca chegou a ser instalada; aestrada de acesso ao lago Mystic continuou a ser uma via muito peri-gosa, com apenas duas faixas pavimentadas com uma camada muitofina de asfalto e com um número crescente de buracos; as linhas tele-fónicas e elétricas continuaram onde se encontravam — no ar —frouxamente suspensas entre postes deteriorados pelo tempo, umconvite para que cada ramagem de árvore os derrubasse durante to-dos os vendavais, cortando o abastecimento de eletricidade à cidade.

Em outras partes do mundo, em lugares onde o homem há muitohavia asseverado os seus direitos, um tal desmembramento de uma ci-dade talvez tivesse desferido um golpe de morte ao sentido de comu-nidade dos seus cidadãos, mas não aqui. Os residentes de Rain Valley

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eram pessoas intrépidas, capazes e determinadas a viverem num lugaronde chovia durante mais de duzentos dias do ano e onde o Sol eratratado como se fosse um tio rico que só muito raramente é que seencontrasse de visita. Resistiam aos dias cinzentos e aos relvados ala-gados que se recusam a definhar, assim como aos meios de subsistên-cia cada vez mais reduzidos, sem nunca terem deixado de ser, apesardas adversidades, os filhos e filhas dos primeiros pioneiros que ousa-ram instalar-se entre aquelas árvores de grande porte.

No entanto, hoje constatavam que a sua força de espírito era pos-ta à prova. Era o dia dezassete de outubro e havia pouco que o outo-no perdera a corrida a favor do inverno que se aproximava. É verdadeque as árvores continuavam vestidas com as suas cores de festa e osrelvados haviam readquirido a sua cor verdejante depois dos dias par-dacentos de finais do verão, contudo, não havia que enganar: o inver-no encontrava-se à porta. O céu mantivera-se baixo e com uma corplúmbea durante toda a semana, coberto por um manto de nuvensameaçadoramente escuras. Choveu quase sem parar durante sete dias.

Na esquina de Wheaton Way com a Cates Avenue havia uma es-quadra da polícia, um edifício baixo de pedra cinzenta, encimado poruma cúpula e com o mastro de uma bandeira no relvado cheio de er-vas na parte da frente. No interior do edifício de traça austera, a ilu-minação, por meio de tubos fluorescentes, já muito antiga, mal tinhaforça para manter a penumbra afastada. Eram quatro da tarde, mas omau tempo fazia com que parecesse quase noite.

As pessoas que trabalhavam dentro da esquadra tentavam não darpor isso. Caso lhes perguntassem — e ninguém o fizera — teriam ad-mitido que quatro ou cinco dias consecutivos de chuva eram aceitá-veis. Mais do que isso era considerado apenas um aguaceiro. Todavia,havia qualquer coisa de errado naquele prolongado período de mautempo. Ao fim e ao cabo, não se estava em janeiro. Durante os pri-meiros dias, cada um sentava-se à sua mesa de trabalho, queixando-se,com algum bom humor, da caminhada desde os respetivos automó-veis até à porta da frente da esquadra. Mas agora, essas conversas fa-ziam-se num ambiente saturnino devido ao constante bater da chuvano telhado.

Ellen Barton — Ellie para os amigos, ou seja, todos os habitantesda cidade — encontrava-se à janela a olhar fixamente para a rua.

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A chuva dava uma aparência irreal a tudo. Via o seu reflexo no vidroda janela por onde a água corria; não era exatamente um reflexo, masmais uma sensação momentânea de que se refletia no vidro. Via-se asi própria como sempre se vira, como a mulher jovem que fora emtempos idos — cabelos pretos abundantes e compridos, uns olhos deum azul de centáurea e um sorriso radiante sempre pronto a assomar--lhe aos lábios. A jovem que fora votada rainha do baile anual dos an-tigos alunos e chefe da claque de apoio da equipa de futebol. Comosempre que recordava a sua juventude, via-se toda vestida de branco.A cor das noivas, a cor da esperança no futuro, de famílias à espera denascerem.

— Preciso de fumar um cigarro, Ellie. Sabes que sim. Tenho-meportado muito bem, mas nesta altura estou a chegar ao meu pontocrítico. Se não acender um cigarro, vou direitinha ao frigorífico.

— Não a deixes fumar — disse Cal do seu lugar, a central de co-municações. Estava sentado, curvado por cima do telefone, com umamadeixa de cabelo preto caída para os olhos. Quando andavam no li-ceu, ela e as amigas tinham-no alcunhado de «Corvo» devido ao cabe-lo preto-azeviche e às feições angulares. Desde sempre que ele tinhatido uma estrutura física de carácter ósseo, como que desconchavada,dando a impressão de que não se sentia inteiramente bem na sua pele.Com quase quarenta anos, Cal continuava a ter uma aparência juvenil.Só os seus olhos — escuros e de expressão intensa — é que revela-vam os quilómetros que percorrera ao longo da sua vida. — Experi-menta o amor duro. Todas as outras alternativas fracassaram.

— Vai-te lixar! — ripostou Peanut fazendo um gesto obsceno.Ellie suspirou. Há quinze minutos que tinham tido aquela mesma

discussão e dez minutos antes disso. Levou as mãos à cintura, apoian-do as pontas dos dedos no pesado cinto da arma que descaía à larguradas ancas. Virou-se e olhou para a sua melhor amiga.

— Vamos lá a ver, Peanut; sabes bem o que te vou dizer. Esta-mos num edifício público. Sou a comandante desta esquadra. Como éque posso permitir que infrinjas a lei?

— Precisamente — corroborou Cal. Abriu a boca preparado paradizer mais, mas foi interrompido por um telefonema que foi forçadoa atender. — Polícia de Rain Valley.

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— Estou a ver — disse Peanut. — De um momento para o outropassaste a ser a Menina Lei e Ordem. E o que é que tens a dizer acer-ca do Sven Morgenstern... ele estaciona defronte da loja todos os dias.Exatamente diante da boca de incêndio. Quando foi a última vez querebocaste o carro dele? E quanto à Marge «Gorda», todos os domin-gos, depois da missa, ela rouba duas caixas de picolés congelados eum frasco de verniz para as unhas. Há já algum tempo que não tratoda papelada para a sua detenção. Imagino que desde que o marido pa-gue o que ela roubou não importa... — disse sem concluir o que lhe iano pensamento. Ambas sabiam que ela poderia citar mais uma dúziade exemplos. Ao fim e ao cabo, estava-se em Rain Valley e não nabaixa de Seattle. Havia quatro anos que Ellie era comandante de polí-cia e antes disso fora agente de patrulha durante oito anos. Embora semantivesse a postos para o que desse e viesse, nunca se vira envolvidanum crime mais perigoso do que arrombamento e furto.

— Vais permitir que eu fume um cigarro ou vou buscar um donute uma Red Bull?

— Tanto um como o outro serão a tua morte.— Sim, mas não nos matarão — interveio Cal desligando a cha-

mada. — Mantém-te firme, El. Ela é a funcionária dos agentes de pa-trulha. Não devia fumar num edifício público.

— Andas a fumar demais — disse Ellie finalmente.— É verdade, mas ando a comer menos.— Porque é que não retomas a tua dieta de salmão seco? Ou a

das toranjas? Ambas eram mais saudáveis.— Para de falar e responde-me. Preciso de fumar um cigarro.— Começaste a fumar há quatro dias, Peanut — disse Cal. —

Não se pode dizer que necessites de um cigarro.Ellie abanou a cabeça. Se não interviesse, aqueles dois passariam o

dia com questiúnculas.— Devias retomar as tuas reuniões — disse com um suspiro. —

As sessões de perda de peso estavam a resultar.— Seis meses a sopa de couves para perder cerca de cinco quilos?

Não me parece. Vá lá, Ellie, sabes que não tarda nada e vou buscarum donut.

Ellie sabia que tinha perdido a batalha. Ela e Peanut — PenelopeNutter — trabalhavam lado a lado naquela esquadra há mais de dez

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anos, além de serem grandes amigas desde os tempos de liceu. Aolongo dos anos, a amizade que as unia mantivera-se firme em todosos momentos mais adversos, desde o fim dos dois casamentos poucosólidos de Ellie até à recente decisão de Peanut, ou seja, que os cigar-ros eram a chave para a perda de peso. Dizia que era a dieta de Holly-wood, nomeando todas as celebridades com figuras de pau de virartripas que fumavam.

— Está bem. Mas só um cigarro.Com um sorriso de triunfo dirigido a Cal, Peanut apoiou as mãos

no tampo da secretária e ergueu-se, pondo-se de pé. Os cerca de vintee cinco quilos de peso a mais que ganhara nos últimos anos faziamcom que se deslocasse com um pouco mais de lentidão. Encaminhou--se para a porta, que abriu, embora todos soubessem que não haviabrisa nenhuma que dissipasse o fumo do cigarro num dia tão chuvosoe sombrio como aquele.

Ellie percorreu o corredor até ao gabinete nas traseiras, que, teori-camente, era o seu. Era raro usá-lo. Numa cidade como aquela, os as-suntos oficiais eram quase inexistentes, além de que preferia passar osseus dias de trabalho na sala principal com Cal e Peanut. Procuroupor baixo dos folhetos que anunciavam o pequeno-almoço de pan-quecas do mês passado e encontrou uma máscara de gás. Ajustou-aao rosto e voltou a sair para o corredor.

Cal desatou a rir às gargalhadas.— Muito engraçado — disse Peanut esforçando-se por conter o riso.Ellie afastou a máscara da boca para poder falar.— É possível que um dia queira ter filhos. Portanto, estou a pro-

teger o meu útero.— Se eu fosse a ti, preocupava-me menos com o fumo em segun-

da mão e mais em encontrar um namorado.— Ela já tentou toda a gente desde Mystic até Aberdeen — adian-

tou Cal. — No mês passado, até saiu com aquele tipo da UPS. Aquelefulano bem-parecido que nunca se lembra do lugar em que estacio-nou a carrinha.

— Está-me a parecer que vais ter de baixar os teus padrões, Ellie— disse Peanut tossindo quando expeliu o fumo do cigarro.

— Não há dúvida de que pareces estar a adorar esse cigarro —disse Cal com um sorriso irónico.

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— Estávamos a falar da vida amorosa da Ellie — ripostou Peanut,fazendo-lhe um gesto obsceno.

— Vocês duas só sabem falar disso — salientou Cal.O que era verdade.Era mais forte do que Ellie: ela adorava homens. Geralmente —

muito bem, sempre — os homens menos adequados.Peanut costumava dizer que era a maldição da rainha de beleza

das cidades pequenas. Quem dera que Ellie fosse mais parecida com airmã, a qual aprendera a confiar na sua inteligência e não na sua be-leza. Mas a verdade é que o destino determinava o rumo das coisas.Ellie gostava de se divertir; gostava de romance. O problema era queisso nunca dera origem a um amor verdadeiro. Peanut dizia que issose devia ao facto de Ellie não saber como fazer cedências, mas tal nãocorrespondia à verdade. Os casamentos de Ellie tinham falhado porela se ter casado com homens bem-parecidos com pés que não para-vam e olhos errantes. O seu primeiro marido, o antigo capitão daequipa de futebol do liceu, Al Torees, devia ter sido suficiente paraque ela desistisse dos homens durante vários anos, mas Ellie tinhauma memória muito curta e apenas alguns anos depois do divórciocasou com outro falhado igualmente bem-parecido. Escolhas poucocriteriosas, verdade fosse dita, mas tal não fizera com que as suas es-peranças esmorecessem. Continuava a acreditar no romance e à espe-ra de que alguém a arrebatasse com o seu amor. Sabia que era possí-vel; tinha visto esse amor verdadeiro nos seus pais.

— Qualquer padrão mais abaixo, Pea, e eu começaria a sair comseres fora da minha espécie. Talvez aqui o Cal possa arranjar-me umencontro com um dos seus amigos coca-bichinhos da convenção debanda desenhada.

Cal deu mostras de ter acusado o toque.— Não somos nenhuns coca-bichinhos!— Sim, sim — retorquiu Peanut exalando o fumo. — São ho-

mens adultos que pensam que os outros homens parecem bem vesti-dos com collants.

— Pelo que estás a dizer, até parece que somos maricas.— Nem pouco mais ou menos — redarguiu Peanut rindo-se. —

Os maricas têm relações sexuais. Os teus amigos usam fatos Matrix

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em público. Como é que conseguiste encontrar a Lisa é coisa quenunca serei capaz de compreender.

À menção da mulher de Cal, fez-se um silêncio de grande mal-estarna sala. Toda a cidade sabia que ela andava metida com outros. O fa-latório era constante; os homens sorriam, as mulheres mostravam ex-pressões de reprovação abanando a cabeça quando o nome dela eramencionado. Mas ali na esquadra, nunca se falava sobre esse assunto.

Cal retomou a leitura do seu livro aos quadradinhos, rabiscandono caderno de desenho. Ambas sabiam que ele se manteria calado du-rante algum tempo.

Ellie sentou-se à sua secretária e apoiou os pés em cima do tampo.Peanut encostou-se à parede e ficou a olhar para ela através da co-

luna de fumo.— Ontem vi a Julia no noticiário da televisão.— A sério? — perguntou Cal erguendo a cabeça. — Vou ter de

ligar o televisor mais vezes.Ellie tirou a máscara, pousando-a em cima da mesa.— Ela foi dispensada do processo judicial.— Já lhe telefonaste?— Claro que sim. A gravação do atendedor de chamadas tinha

uma entoação muito agradável. Estou em crer que ela anda a evitar-me.Peanut deu um passo em frente. As tábuas de carvalho do soalho

antigo, originalmente pregadas na viragem do século, quando BillWhipman exercera o cargo de comandante de polícia da cidade, oscila-ram com o movimento dela, mas à semelhança de tudo em Rain Valleyeram mais sólidas do que aparentavam ser. O West End era um lugaronde as coisas — e as pessoas — eram construídas para durar.

— Devias tentar outra vez.— Sabes bem como a Julia tem ciúmes de mim. Agora, muito es-

pecialmente, ela não há de querer falar comigo.— Pensas que toda a gente tem ciúmes de ti.— Isso não é verdade.Peanut brindou-a com um daqueles olhares de Quem é que pensas

que estás a enganar?, que eram a pedra basilar de qualquer amizade.— Deixa-te disso, Ellie. A tua irmã mais nova deu-me a impres-

são de estar a sofrer. Tencionas fazer-me crer que não podes falar