A identidade, a Arte e a Vida de Ana Mendes «...
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Ano 1 | Nº 3 | Mar 2013
ISSN 2316-8102
A IDENTIDADE, A ARTE E A VIDA DE ANA MENDES por Tales Frey
Self-portrait (2011), performance de Ana Mendes
As inspirações para um artista desenvolver os seus métodos criativos advêm de
diferentes meios e cada artista edifica a sua obra com as bases temáticas que lhe perfazem
sentido. Ana Mendes, artista portuguesa, diz que a vida como um todo é estímulo para suas
criações. Com obviedade, certos tópicos são recorrentes nas suas obras – como o argumento,
por exemplo, em torno da noção de identidade e da crença em Deus –, mas, apesar das
propagações de um mesmo tema, os trabalhos de Ana Mendes não têm um arquétipo e não
são concretizados em um mesmo tipo de suporte artístico. A hibridez é recursiva quase
sempre nas suas obras, não permitindo, inclusive, que rotulemos com facilidade o gênero
artístico proporcionado em cada uma de suas invenções. A performance para ela é um meio
frequente de manifestação, até porque é uma expressão artística que rejeita amarras, que nega
definições intransigentes e, pelo que percebemos, essa ideia soa aprazível para a artista que se
apoia em um território mais versátil.
Na conceituada escola alemã da Bauhaus, Ana foi uma “guest student” e, como
sabemos a respeito da tradição de ensino desta escola, antes de ser fechada pelos nazistas em
1932, a instituição buscava estabelecer uma síntese entre a arte e a tecnologia para atingir as
formas “puras”. Uma extensão da Escola da Bauhaus, após seu encerramento, ocorreu nos
E.U.A. em 1933 com a criação do Black Mountain College, onde a metodologia de ensino
propunha um estudo geral de fenômenos fundamentais, tais como espaço, forma, cor, luz,
som, movimento, música, tempo, etc. O curso não pretendia oferecer “formação em nenhum
segmento específico do teatro contemporâneo” [1]; tratava-se, portanto, de um ensinamento
interdisciplinar e, talvez, tenha sido justamente esse perfil de doutrina que movimentou Ana
Mendes a se enquadrar na Bauhaus University em 2012 para aprimorar seus conhecimentos e
aplica-los com mais perceptibilidade nas suas obras.
Self-portrait (2011), performance de Ana Mendes
O primeiro trabalho da artista que presenciei, sob intermédio do vídeo, foi o Self-
portrait, durante o Rapid Pulse International Festival em Chicago em 2012. Tão potente
quanto a uma apresentação ao vivo, a obra nos remetia a entrevistas feitas em zonas de
fronteira, tal qual a que enfrentei para entrar nos E.U.A. para ali expor meu trabalho ao vivo e
conhecer o de Ana Mendes através de uma exibição de videoperformances. Na sua
performance, a artista mostrava-se em um palco livre de quaisquer ornamentos; além do corpo
e da voz da artista, havia um microfone e uma pequena garrafa de água. Uma voz em off
perturbava Ana Mendes com perguntas intermináveis sobre a sua nacionalidade, sobre sua
vida sexual, doenças que pudesse ter, entre outras questões. Na iluminação cênica,
observávamos os tons de cores que iam gradativamente sendo alterados até restar a escuridão
preenchida pela voz que perguntava e pela voz que respondia. Com este trabalho, que
abordava sobretudo motes em torno da identidade e da territorialidade, Ana ultrapassou
diversas demarcações territoriais para apresentar essa performance: na Espanha, na Suécia,
em Portugal, na Inglaterra, na Irlanda, na Holanda, na Bósnia e, sob o formato de vídeo, nos
Estados Unidos.
O próprio diálogo estabelecido com a artista através de e-mail marcou a reminiscência
do que falávamos sobre identidade e territorialidade. Iniciei de Portugal as perguntas a artista
e terminei do Brasil, enquanto ela me respondeu da Inglaterra e da Alemanha. Quatro
territórios distintos inteiraram a conversação virtual que era escrita e lida nesses diferentes
países. Partindo de mim, um português tipicamente brasileiro – agarrado a gerúndios –,
enquanto Ana Mendes registrava a informalidade no uso impecável da segunda pessoa.
Da nossa troca de e-mails, destaco a seguinte pergunta e resposta:
TALES FREY – A arte da performance, que tem o corpo como fundamental suporte,
é um meio recursivo de expressão para a elaboração dos seus trabalhos dentro de uma
temática que gira em torno da noção de identidade, que é tão abundante neste presente
momento. Comente isso e, se possível, comente os seus trabalhos que mais abordam essa
ideia.
ANA MENDES – O meu trabalho é baseado na ideia de movimento e ritmo. Quando
começo um trabalho, muitas vezes não tenho um objectivo ou ideia ou tema concreto,
trabalho com intuição. Apenas no final do trabalho, ou pelo menos, do primeiro esboço,
consigo ter uma noção do que estou a fazer e dos vários layers envolvidos. Procuro não
dominar todos os sentidos do meu trabalho, defini-lo ou limitá-lo. Quero que as pessoas o
possam interpretar livremente. Por isso, trabalho com uma linguagem tão contida…
Neste contexto, eu não tenho temas definidos. A vida como um todo interessa-me…
Mas, é verdade, que a identidade é um tema recorrente. No caso da peça Self-portrait, foi um
acidente, porque eu nunca quis falar sobre mim própria, sempre achei que as minhas peças
eram sobre o outro… No entanto, ao fazer uma residência na Irlanda, um dos mentores
sugeriu que eu fizesse um trabalho sobre a minha identidade. Eu recusei no início, mas acabei
por aceitar precisamente por ser algo tão impensável para mim. Achei que podia ser um
desafio interessante. Por outro lado, eu sempre coleccionei os meus dados pessoais, e
questionei-me a mim própria acerca do peso que a nossa herança (genética, o sítio onde
nascemos, a história da nossa família etc.) tem na nossa vida. Resolvi fazer então uma
performance que funciona como um questionário de polícia. Uma voz off faz-me perguntas
sobre a minha vida pessoal, desde o local de nascimento até ao historial de doenças na minha
família. Eu respondo a todas as questões de forma automática, usando dados verídicos, mas a
forma como eu respondo às questões faz com que a realidade pareça ficção.
Depois de fazer Self-portrait, escrevi outra peça chamada Outro Homem para um
encontro de novas dramaturgias organizado pelo Colectivo 84 no Teatro São Luís, em Lisboa,
sobre a identidade portuguesa vista do ponto de vista de dois imigrantes. Neste momento,
estou a desenvolver outra performance chamada Dance Play que cruza a identidade alemã,
vista sobre a perspectiva de um estrangeiro, com a relação entre o inglês e o alemão, enquanto
duas línguas que derivam uma da outra, e a identidade de homem versus mulher, enquanto
dois géneros que derivam um do outro…
Por isso, sim, acho que a identidade é um tema que tem muito a ver com o meu
trabalho. Não sei se vou continuar a trabalhar neste tema, porque como disse não é
propriamente uma busca… acho que o momento em que vivemos agora no mundo é propício
para esse tipo de abordagens, porque a identidade é uma questão que se coloca em tempos de
mudança. Se mudas sempre, perguntas-te quem sou eu, porque é preciso permanência para
construir uma identidade.
À esquerda, consta a instalação Backspace (2011) de Ana Mendes
Ana Mendes trabalha principalmente nas artes cênicas: teatro – escrevendo peças – e
performance. Também, desenvolve projetos artísticos em vídeo, som e fotografia. E por
explorar diferentes suportes, opta por vezes por assumir as concepções multidisciplinares em
que mistura as diferentes modalidades que ela vem realizando nos últimos anos. No Canadá, a
artista expôs Backspace, uma instalação composta por um espelho (que distorce a imagem das
pessoas) juntamente com um texto em áudio e, então, os visitantes ouvem a peça gravada
através de fones de ouvido ao mesmo tempo que ridicularizam ou apreciam positivamente as
suas imagens deformadas diante do espelho. Conforme explica a artista, o áudio funciona
como um ensaio acerca da anorexia – “no início a gravação é mais divertida e interativa, mas
termina com uma listagem de descrições técnicas e bibliográficas”.
Embora a vida como um todo seja a mola propulsora para as criações de Ana Mendes,
seu interesse pela identidade do indivíduo é incomensurável, seja ela referente aos padrões de
beleza e a sua busca por uma construção corporal que lhe dá uma determinada especificidade,
seja ela referente aos limites territoriais e ao multiculturalismo, ou ainda, às crenças que
constroem o indivíduo e lhe dão alguma identificação particular na sociedade.
Das Ist Mein Gott (2012). Série de fotos e videoperformances de Ana Mendes
Das Ist Mein Gott (2012). Série de fotos e videoperformances de Ana Mendes
Das Ist Mein Gott, ou Este é o meu Deus é uma série de fotografias e
videoperformances em que Ana Mendes, com a colaboração de outros artistas, expôs tanto a
ideia de identidade territorial quanto a religiosa em um trabalho que cada um dos imigrantes,
cúmplices da obra, escolheu um objeto que pudesse representar a ideia de Deus de forma
abstrata.
Dentre os artistas que colaboraram com este trabalho estão: Ali Kilniç, da Turquia,
ateu, estudante de filosofia na Alemanha, o qual escolheu um tênis Nike como forma de expor
o seu Deus. Uma forma irônica que mostra uma marca ícone do capitalismo brutal em
conformidade com um nome que corresponde ao deus da Fortuna em Grego, representado na
imagem como um tênis tão comum na sociedade de consumo. Já Hsinyen Cynthia Wei, de
Taiwan, estudante de performance em Chicago, usa arroz e incenso para representar o seu
Deus, pois estes são os elementos usados para a reza em seu país. Marija Ančić, da Sérvia,
expõe a sua total descrença em Deus na ausência de algo que possa representá-lo ao mesmo
tempo que afirma a sua crença convicta, quando sem nada nas mãos pode afirmar que tudo é
Deus quando mostra nada como Deus. Shailor González, do México, cozinheiro, escultor e
pintor, expõe um pedaço de carne como Deus. Tão pungente como todos os outros
contribuintes desse trabalho, o artista oferece ao observador um pedaço de um ser morto, ou
seja, um pedaço de um corpo desprovido de alma em sua forma pura e bruta, meio de
expressão que revela a sua posição com relação ao pensamento religioso que condena a
matéria em prol do espírito.
Em seus trabalhos, que emergem de forma orgânica – poucas vezes de forma mais
sujeitada a encomenda, como no caso do Backspace, que nem por isso deixam sua
organicidade de fora – Ana Mendes procura expor suas indagações sem extravasar seu
sarcasmo ou sua brandura, partindo de um micro para um macrocosmo, buscando
averiguações que toam como um retrato da sua própria vida quando sacode os preceitos que
definem o estrangeiro fora de seu território. Embora ela não queira revelar em seu trabalho a
sua própria identidade, conforme observamos em seu discurso sobre o Self-portrait, por
exemplo, acaba por fazer isso, não só porque a arte é inerente à vida, mas porque a artista
parece se sustentar nas suas próprias vivências fora de Portugal para refletir condições que
dizem respeito a outras pessoas que vivem em condições similares. Faz o mesmo quando
pensa na existência de Deus e na aparência pessoal perante ao mundo.
E do universo tão reservado dessa artista de identidade que ultrapassa a sua condição
de portuguesa – nela está timbrado um caráter multiculturalista por excelência – ela produz
arte sem se preocupar com os meios e os fins, mas unicamente, com o princípio que parte do
movimento e do ritmo, de onde advém a sublime expressão que é coesa ao nosso tempo e por
isso a identidade, a arte e a vida de Ana Mendes nos fazem sentido.
Nota [1] GOLDBERG, Roselee. A arte da performance: do futurismo ao presente, pág. 111.
Bibliografia Disponível em: <www.anamendes.com> Acessado em: 02 de Fevereiro de 2013.
GOLDBERG, Rose Lee. A arte da performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
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