A Igreja Católica Em Face Da Escravidão

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JAIME BALMES A IGREJA CATÓLICA EM FACE DA ESCRAVIDÃO Tradução de JOSÉ G. M. ORSINI ADENDO JOSÉ GERALDO VIDIGAL DE CARVALHO A IGREJA E A ESCRAVIDÃO NO BRASIL 1988 CENTENÁRIO DA ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA NO BRASIL Editado pelo CENTRO BRASILEIRO DE FOMENTO CULTURAL Caixa Postal 9667 CEP 01051 — São Paulo — SP

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JAIME BALMES URPIA é mundialmente conhecido sobretudo por sua obra El Critério,um dos mais valiosos guias para a disciplina da mente e organização dos estudos, e que em nossosdias continua a ser traduzido para praticamente todas as línguas cultas. Dela — num testemunhoque explica tão marcante êxito editorial — disse outro escritor de gênio, Marcelino Menendez yPelayo (o autor da célebre Historia de los Heterodoxos Españoles), que se trata de uma fonte de“higiene do espírito”.

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  • JAIME BALMES

    A IGREJA CATLICA EMFACE DA ESCRAVIDO

    Traduo de JOS G. M. ORSINI

    ADENDO

    JOS GERALDO VIDIGAL DE CARVALHO

    A IGREJA E A ESCRAVIDO NOBRASIL

    1988 CENTENRIO DA ABOLIO DA ESCRAVATURANO BRASIL

    Editado peloCENTRO BRASILEIRO DE FOMENTO CULTURAL

    Caixa Postal 9667 CEP 01051 So Paulo SP

  • 5NOTA PRVIA DO EDITOR

    JAIME BALMES URPIA mundialmente conhecido sobretudo por sua obra El Critrio,um dos mais valiosos guias para a disciplina da mente e organizao dos estudos, e que em nossosdias continua a ser traduzido para praticamente todas as lnguas cultas. Dela num testemunhoque explica to marcante xito editorial disse outro escritor de gnio, Marcelino Menendez yPelayo (o autor da clebre Historia de los Heterodoxos Espaoles), que se trata de uma fonte dehigiene do esprito.

    No entanto, o significado cultural de Balmes ultrapassa de muito os limites da popularidade.Basta lembrar que, por ocasio do centenrio da publicao daquela sua obra, em 1944, o Institutodo Livro Espanhol promoveu uma srie de conferncias em homenagem ao ilustre sacerdote eescritor, conferncias essas depois enfeixadas num volume editado no ano seguinte pelo ConselhoSuperior de Investigaes Cientficas, de Madri. E os conferencistas que abordaram os aspectosmais salientes de seu pensamento se incluam entre os maiores luminares da cultura espanhola.Assim falaram: Juan Zaragueta sobre Balmes filsofo, Ireneo Ganzalez sobre Balmes socilogo,Salvador Minguijon sobre Balmes apologista e Jos Corts Grau sobre Balmes poltico. A par dessaamplitude da visualizao balmesiana que esses enunciados indicam, muito digno de nota quenosso autor no foi somente filsofo e socilogo e apologista e poltico: ele foi, a um s tempo e emcada instante, filsofo-socilogo-apologista-poltico, pois em todos os temas que abordava jamaisperdia de vista essas mltiplas facetas da realidade, demonstrando uma sensibilidade apurada paraas interaes e os mtuos condicionamentos que na ordem terica e prtica se estabelecem entreesses vrios fatores. Essa compreenso da integralidade da problemtica humana um dos traosque mais contribuem para assegurar a vitalidade e a permanente atualidade de seu pensamento.

    Contemporneo de Marx e de Comte, mas nutrido em melhor filosofia (estudou a fundo eapreciava muito Santo Toms de Aquino), sabia vislumbrar as conexes profundas subjacentes aosacontecimentos e por isso teve intuies geniais que s muito depois a Psicologia, a Sociologia ou aHistoriografia vieram corroborar exaustivamente. Quando o calvinista Franois Guizot publicou naFrana o livro Histoire Gnrale de la Civilisation en Europe (que logo se tornou uma arma deprimeira linha para os ataques de protestantes,

    6maons, agnsticos e ateus contra a Igreja Catlica), escreveu em contradita sua obra principal, ElProtestantismo Comparado con el Catolicismo en sus Relaciones con la Civilizacin Europea (naedio original em 4 volumes), na qual perpassa toda a histria da civilizao ocidental desde osprimrdios do Cristianismo e analisa detidamente cada um dos grandes problemas e episdios quemarcaram a caminhada da humanidade desde ento, a fim de demonstrar a influncia benfica quesobre os rumos dos acontecimentos exerceu a Religio Verdadeira.

    Mas sempre voltado para as mltiplas exigncias dos problemas de seu tempo (que emgrande parte continuam a ser os dos dias atuais), escreveu uma Filosofia Elemental (4 volumes)para proporcionar aos iniciantes uma boa orientao no estudo dessa disciplina, e a FilosofiaFundamental (tambm em 4 volumes), para estudiosos mais avanados. Numa poca de florescenteimpiedade, alimentada principalmente pelos mitos cientificistas ento em plena voga, escreveu umnotvel trabalho de defesa da f: Cartas a un Escptico en Matria de Religin. Inmeros outrosestudos ainda produziu sobre Teologia, Histria Eclesistica e Poltica. Sem falar em sua contnuaatividade como jornalista, em revistas e jornais que fundou ou em que colaborou, influindoconsideravelmente nos acontecimentos. A edio completa de seus escritos pela B.A.C., de Madri,perfaz 8 densos volumes.

    E de espantar que todo esse intenso labor como homem de pensamento e como homem deao se tenha desdobrado em to somente 8 anos. Nascido em 1810, publica sua primeira obra (eda em diante desenvolve persistente atuao pblica) aos 30 anos e morre em 1848, com apenas 38anos, vitimado pela tuberculose. De sua fina percepo das realidades deu abalizado testemunhoLeo XIII, que antes de tornar-se papa o conheceu durante estada de ambos na Blgica (em 1845) e

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  • que o qualificou como o maior talento poltico do sculo XIX e um dos maiores que houve nahistria dos escritores polticos. E na sua Historia de la Filosofia Espaola, o categorizadoespecialista Guillermo Fraile consigna: Balmes preparou o ressurgimento da filosofia crist nosculo XIX. Mas mais exato do que consider-lo como precursor da restaurao escolsticaposterior enquadr-lo dentro da linha de apologistas catlicos da primeira metade daquele sculo,a todos os quais supera em formao filosfica, em erudio histrica e em elevao e solidez depensamento.

    7O texto balmesiano que neste volume se insere, tratando especificamente do problema da

    escravido e da influncia da Igreja para sua abolio, corresponde aos captulos XIV a XIX de suamagna obra El Protestantismo Comparado con el Catolicismo en sus Relaciones con la CivilizacinEuropea.

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    Enriquece e complementa este volume o estudo especialmente escrito pelo cnego JOSGERALDO VIDIGAL DE CARVALHO sobre a mesma problemtica no caso particular do Brasil.Suas credenciais para abordar o tema so bem conhecidas dos especialistas. Mas cabem algumaspalavras de apresentao a um pblico mais amplo.

    Entre seus ttulos e funes, citem-se o de membro do Instituto Histrico e GeogrficoBrasileiro, do Instituto Histrico e Geogrfico de Minais Gerais, da Sociedade Brasileira deFilsofos Catlicos, da Sociedade Interamerica de Filosofia e da Societ Internazionale Tommasod'Aquino, alm de professor de Introduo aos Estudos Histricos, na Universidade Federal deOuro Preto (MG), e de Histria da Igreja, no Seminrio Maior de Mariana (MG).

    Esprito voltado para os vrios aspectos da problemtica humana em nosso tempo (dir-se-iaque tal como Balmes...), de sua visualizao abrangente das realidades, de sua erudio ampla eatualizada, e de sua slida orientao doutrinria, do testemunho os bem lanados estudos queesto reunidos em volumes cujos ttulos falam por si acerca das diversificadas preocupaes doautor unificadas porm pela ateno conferida ao mesmo protagonista que imprime sua presenaem todos esses cenrios: o homem concreto, corpo e esprito, inserido no tempo mas votado eternidade. Ei-los: Temas Histricos (1980), Temas Oratrios (1981), Temas Sociais (1982), TemasFilosficos (1982), Temas Pedaggicos (1984), Temas Teolgicos (1984) e Temas Marianos (1986),aos quais proximamente se juntar Temas Bblicos.

    No campo das pesquisas histricas, entre vrios outros trabalhos, muitos sados em jornais erevistas, publicou o volume Ideologia e Razes Sociais do Clero da Conjurao Sculo XVlll Minas Gerais (1978), e no que se refere ao nosso tema, A Igreja e a Escravido Uma AnliseDocumental (1985) e A Escravido Convergncias e Divergncias (1988).

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    A IGREJA CATLICA EM FACE DAESCRAVIDO

    JAIME BALMES

    I N T R O D U O

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  • Situao religiosa, social e cultural do mundo poca de apario doCristianismo. O Direito Romano. Conjecturas sobre a influncia exercidapelas idias crists sobre o Direito Romano. Vcios da organizao polticado Imprio. Sistema do Cristianismo para regenerar a sociedade: seu primeiropasso se dirigiu modificao das idias. Comparao entre o Cristianismo eo paganismo no ensino das boas doutrinas.

    Em que estado o Cristianismo encontrou o mundo? Nesta questo temos de fixaragudamente nossa ateno se quisermos apreciar devidamente os benefcios proporcionados poressa divina religio ao indivduo e sociedade, se quisermos enfim conhecer o verdadeiro carter daCivilizao Crist.

    Inegavelmente era sombrio o quadro que apresentava a sociedade em cujo centro brotou oCristianismo. Coberta de belas aparncias e ferida em seu corao por enfermidade mortal, ofereciaa imagem da corrupo mais asquerosa, aureolada por brilhante roupagem de ostentao eopulncia. A moral sem base, os costumes sem pudor, as paixes sem freio, as leis sem sano, areligio sem Deus, flutuavam as idias merc das preocupaes imediatas, do fanatismo religiosoe das cavilaes filosficas. Constitua o homem um profundo mistrio para si mesmo, e nem sabiaele avaliar sua dignidade, pois consentia em ser rebaixado ao nvel dos brutos e, mesmo quando seempenhava em ponder-la, no lograva enquadr-la nos parmetros indicados pela razo e pelanatureza. Neste sentido bem significativo que, enquanto uma grande parte da linhagem humanagemia na mais abjeta escravido, se exaltassem com tanta facilidade os heris e at os maisdetestveis monstros fossem venerados nos altares dos deuses.

    12Com tais componentes, teria de ocorrer mais cedo ou mais tarde a dissoluo social. Mesmo

    que no tivesse sobrevindo a violenta arremetida dos brbaros, mais cedo ou mais tarde aquelasociedade teria entrado em decomposio, porque no existia em seu seio nenhuma idia fecunda,nenhum pensamento consolador, nenhum vislumbre de esperana que fossem capazes de preserv-la da runa.

    A idolatria j tinha perdido sua fora: mola propulsora desgastada pelo tempo e pelo usogrosseiro que dela fizeram as paixes, exposta sua frgil contextura ao dissolvente fogo daobservao filosfica, estava extremamente desacreditada. E se, por efeito de arraigados hbitos,ainda exercia sobre o nimo dos povos algum influxo maquinal, este no era suficiente nem pararestabelecer a harmonia da sociedade nem para engendrar aquele fogoso entusiasmo inspirador degrandes aes. A julgar pelo relaxamento dos costumes, pela frouxido dos caracteres, pelaefeminao e pelo luxo, pelo completo abandono s mais repugnantes diverses e aos maisasquerosos prazeres, torna-se claro que as idias religiosas nada conservavam daquelamajestosidade que se notava nos tempos hericos e que, exercendo escassa ascendncia sobre onimo dos povos, agora j serviam at como lamentveis instrumentos de acelerao do processo dedissoluo, Nem era possvel que acontecesse de outro modo: povos que se tinham elevado ao altograu de cultura de que se podem gloriar gregos e romanos, que tinham ouvido seus sbios debater asgrandes questes referentes Divindade e ao homem, no seria normal que permanecessem naquelacandidez que se fazia necessria para acreditar de boa f nos intolerveis absurdos de que estsaturado o paganismo; e, seja qual fosse a disposio de esprito da parte mais ignorante do povo, evidente que no podiam concordar com isso todos quantos se alavam um pouco acima da mdia eles que tinham ouvido filsofos to sensatos como Ccero e que agora se compraziam com asmaliciosas agudezas dos poetas satricos.

    Se a religio era impotente, restava aparentemente outro fator: a cincia. Antes de entrar noexame do que se poderia esperar dela, necessrio observar que jamais a cincia fundou uma

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  • sociedade nem jamais foi bastante para restituir-lhe o equilbrio perdido. Revolva-se a histria dostempos antigos: ser possvel encontrar frente de alguns povos homens eminentes, que, exercendoum mgico influxo sobre o corao de seus semelhantes, ditam leis, reprimem abusos, retificamidias, endireitam costumes e assentam sobre sbias instituies o seu governo; edificando emmaior ou menor escala a

    13tranquilidade e a prosperidade das coletividades entregues sua direo e cuidado, Mas estariamuito enganado quem supusesse que esses homens agiram em funo do que ns denominamoscombinaes cientficas: como regra geral, simples, e at rudes e grosseiros, agiram por fora deimpulsos de seu reto corao e guiados por aquele bom senso, aquele prudente realismo que marcao pai de famlia no manejo dos negcios domsticos; nunca tiveram por norma essas miserveiscavilaes que ns apelidamos de teorias, essa miscelnea indigesta de idias que ns aureolamoscom o pomposo rtulo de cincia. Tanto assim que ningum ter a ousadia de afirmar que osmelhores tempos da Grcia foram aqueles em que floresceram os Plates e os Aristteles. . . Eaqueles frreos romanos que subjugaram o mundo no possuam por certo a extenso e variedade deconhecimentos que admiramos no sculo de Augusto; mas quem trocar aquele tempo por este,aqueles homens por estes?

    Os sculos modernos poderiam tambm proporcionar-nos abundantes provas da esterilidadeda cincia nas instituies sociais, coisa tanto mais fcil de notar quanto mais patentes se fazem osresultados prticos dimanados das cincias naturais. Dir-se-ia que nestas se concedeu ao homem oque naquelas lhe foi negado, se bem que, examinando-se as coisas a fundo, a diferena no togrande como primeira vista poderia parecer. Quando o homem trata de fazer aplicao dosconhecimentos que adquiriu sobre a natureza, se v forado a respeit-la; e como, ainda que oquisesse, no conseguiria com sua dbil mo causar-lhe considervel transtorno, se limita em seusensaios a tentativas de pequena monta e estimulado, pelo prprio desejo de acertar, a obrar emconformidade com as leis a que esto sujeitos os corpos sobre os quais atua. J em se tratando deaplicaes das cincias sociais tudo se passa de modo muito diferente: o homem pode agir direta eimediatamente sobre toda a sociedade; com sua mo pode transtorn-la, no se v constrangido acircunscrever suas tentativas a objetos limitados e nem a respeitar as eternas leis da vida social,podendo mesmo imaginar estas ltimas ao seu paladar, proceder conforme suas cavilaes edeflagrar desastres dos quais se lamente a humanidade. Recordem-se as extravagncias que sobre anatureza correram como muito vlidas nas escolas filosficas antigas e modernas, e veja-se o queteria sido da admirvel mquina do universo se os filsofos tivessem podido manej-la ao seuarbtrio. Por desgraa, no acontece assim com a sociedade: os ensaios se fazem sobre ela mesma,sobre suas eternas bases, e ento

    14da decorrem males gravssimos, a evidenciarem a debilidade da cincia do homem. preciso noesquecer; a cincia propriamente dita vale pouco para a organizao das sociedades e, nos temposmodernos, em que ela se manifesta to orgulhosa de sua pretensa fecundidade, bom recordar quese tem atribudo a seus trabalhos o que fruto do transcurso dos sculos, do sadio instinto dospovos e s vezes das inspiraes de um gnio; e nem o instinto dos povos nem o gnio tm algo quever com a cincia.

    Mas deixando de lado essas consideraes genricas (sempre muito teis porqueconducentes ao melhor conhecimento do homem), o que se poderia esperar dos falsos vislumbres decincia que se conservavam sobre as runas das velhas escolas ao tempo de surgimento doCristianismo? Escassos como eram em semelhantes matrias os conhecimentos dos filsofosantigos, mesmo dos mais esclarecidos, no se pode deixar de reconhecer que os nomes de umScrates, de um Plato, de um Aristteles recordam algo de respeitvel, que, em meio a desacertos eaberraes, contm conceitos dignos da elevao desses gnios, Mas, quando apareceu oCristianismo, estavam sufocados os germes do saber espargidos por esses grandes homens: osdesatinos tinham ocupado o lugar dos pensamentos altos e fecundos, o prurido de disputardeslocava o amor sabedoria, e os sofismas e as cavilaes substituam a maturidade do juzo e a

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  • severidade do raciocnio. Destroadas as antigas escolas e erigidas sobre seus escombros outras toesdrxulas quanto estreis, brotava por toda parte um sem nmero de sofistas, como aqueles,insetos imundos cuja presena anuncia a corrupo do cadver. A Igreja conservou-nos um dadopreciosssimo para julgar da cincia daquele tempo: a histria das primeiras heresias. De fato, seprescindirmos daquilo que nelas causa indignao (ou seja, sua profunda imoralidade), pode havercoisa mais vazia, mais inspida, mais merecedora de lstima? Basta recordar as monstruosas seitasque pululavam por toda parte, naqueles primeiros sculos da Igreja, e que reuniam em suasdoutrinas o emaranhado mais informe, mais extravagante e mais imoral que se possa conceber.Cerinto, Menandro, Ebio, Saturnino, Basilides, Nicolau, Carpcrates, Valentino, Marcio,Montano e outros so nomes que recordam ncleos em que o delrio andava irmanado com aimoralidade. Lanando uma olhada sobre essas seitas filosfico-religiosas, verifica-se que no eramcapazes nem de conceber um sistema filosfico razoavelmente estruturado, nem de idealizar umconjunto de doutrinas e de prticas que pudesse merecer o nome de religio.

    15Distorcem, misturam e confundem tudo. Judasmo, Cristianismo, reminiscncias das antigas

    escolas, tudo se amlgama nas delirantes cabeas de seus adeptos, sem esquecer, porm, de soltar asrdeas para toda linhagem de corrupo e obscenidade. Abundante campo oferecem, pois, aquelessculos verdadeira filosofia para conjecturar sobre o que teria sido do humano saber se oCristianismo no tivesse vindo iluminar o mundo com sua doutrina celestial!

    Por sua vez, a legislao romana, apesar da justia e eqidade nela entranhadas e do tino esabedoria que deixa transparecer, e se bem que possa contar-se como um dos mais preciososesmaltes da civilizao antiga, no constitua fator eficaz para prevenir a dissoluo de que estavaameaada a sociedade. Esta nunca deveu sua salvao a juristas, porque obra de tamanhaenvergadura no se circunscreve ao campo de influncia de legisladores e magistrados. Que sejamas leis to perfeitas como se queira, que os tribunais se elevem ao mais esplendoroso grau defuncionamento, que os juzes estejam animados dos mais puros sentimentos e sejam guiados pelasmais retas luzes, de que servir tudo isso se o corao da sociedade estiver corrompido, se osprincpios morais tiverem perdido fora, se os costumes estiverem em perptuo conflito com osditames legais? A esto os quadros que dos costumes romanos nos deixaram seus prprioshistoriadores e veja-se se neles se encontram retratados a eqidade, a justia, o bom senso quefizeram com que as leis romanas merecessem o honroso epteto de razo escrita.

    Como prova de imparcialidade, omito de propsito toda referncia s ndoas de que noestava isento o Direito Romano, para que no se me assaque que procuro rebaixar tudo aquilo queno seja obra do Cristianismo. A propsito, porm, no se pode deixar sem registro que no verdade que ao Cristianismo no cabe nenhuma parcela de crdito pelo que de admirvel seencontra na legislao romana. E isto no s no perodo dos imperadores cristos (o que est fora dedvida), mas tambm em pocas anteriores. certo que algum tempo antes da vinda de Cristo j eraconsidervel o nmero das leis romanas e que seu estudo e ordenamento mereciam a ateno doshomens mais ilustres. Sabemos por Suetnio (in Caesa., c XLIV) que Jlio Csar se propusera autilssima tarefa de reduzir a poucos livros o que de mais essencial e necessrio se encontravaesparramado na imensa abundncia de leis; pensamento semelhante havia ocorrido a Ccero, queescreveu um livro sobre a metodologia de redao do direito civil (De iure civili in arte redigendo),como

    16atesta Glio (Noct Att., 1. 1, c. XXII); e segundo nos informa Tcito (Ann., 1. 3., c. XXVIII), essetrabalho tinha ocupado tambm a ateno do imperador Augusto. Tais projetos revelam quecertamente j ento a legislao no estava em sua infncia; mas nem por isso deixa de ser verdadeque o Direito Romano tal como nos chegou quase inteiramente um produto de sculos posteriores.Vrios dos jurisconsultos e magistrados mais afamados, cujos pareceres e sentenas formam umaboa parte desse acervo doutrinrio, viveram muito tempo depois da vinda de Cristo.

    Assentados esses fatos, deve-se ter presente que, da circunstncia de serem pagosdeterminados imperadores e juristas, no se infere que as idias crists no exerceram influncia

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  • sobre suas obras. O nmero de cristos era enorme por toda parte e, em meio cruel perseguioque lhes era movida, a herica fortaleza com que arrostavam os tormentos e a morte deveria terchamado a ateno de todos, sendo impossvel que entre os homens de pensamento no se excitassea curiosidade em saber qual era o ensinamento que aquela nova religio transmitia a seus proslitos.E as apologias do Cristianismo escritas j nos primeiros sculos com tanta fora de raciocnio eeloqncia, as obras de vrias categorias publicadas pelos primeiros Padres, as homilias dos bisposdirigidas aos povos etc. encerram um caudal to grande de sabedoria, respiram tanto amor verdadee justia, proclamam to altamente os eternos princpios da moral que sua leitura no pode terdeixado de exercer influncia mesmo sobre aqueles que condenavam a religio do Crucificado.

    Quando se vo espraiando doutrinas que tenham por objeto aquelas grandes questes quemais interessam ao homem, se tais doutrinas so apregoadas com fervoroso zelo, aceitas com ardorpor crescente nmero de discpulos e sustentadas com talento e sabedoria por homens ilustres, elaslanam em todas as direes sulcos profundos e acabam afetando at mesmo aqueles que ascombatem acaloradamente. Sua influncia nessas circunstncias imperceptvel, mas no deixa deser muito real e verdadeira. Assemelham-se quelas exalaes de que se impregna a atmosfera: como ar que respiramos absorvemos s vezes a morte, s vezes um aroma saudvel que nos purifica econforta.

    No poderia deixar de verificar-se o mesmo fenmeno com respeito a uma doutrina pregadade modo to extraordinrio, propagada com tanta rapidez, chancelada por torrentes de sangue edefendida por escritores to ilustres como Justino, Clemente de Alexandria,

    17Irineu e Tertuliano. A profunda sabedoria e a cativante beleza das doutrinas explanadas pelosdoutores cristos teriam de chamar ateno para os mananciais em que eles se abeberavam e normal que essa instigante curiosidade tenha acabado por colocar em mos de muitos filsofos ejuristas os livros da Sagrada Escritura. Que h de estranho que Epiteto tenha consumido muitosmomentos na leitura do Sermo da Montanha, ou que os orculos da jurisprudncia tenhamrecebido, sem disso se darem conta, as inspiraes de uma religio que, crescendo de modoadmirvel em extenso e pujana, estava se apoderando de todos os ramos da sociedade? O ardenteamor verdade e justia, o esprito de fraternidade, as grandiosas idias sobre a dignidade dohomem temas perptuos do ensinamento cristo no eram para ficar circunscritosexclusivamente ao mbito dos filhos da Igreja. Com maior ou menor lentido iam-se inoculando emtodas as classes e quando, com a converso de Constantino, adquiriram influncia poltica epredomnio pblico, o que se deu no foi outra coisa seno a repetio do fenmeno de um sistemaque, tornado muito poderoso na ordem social, passa a exercer senhorio ou pelo menos influnciamarcante no plano jurdico.

    Com inteira confiana deixo estas reflexes avaliao dos homens de pensamento.Vivemos numa poca fecunda em transformaes e que levou a cabo revolues profundas. Por issoestamos em condies privilegiadas para compreender os imensos efeitos das influncias indiretas elentas, a poderosa ascendncia das idias e a fora irresistvel com que as doutrinas abrem caminhonas realidades sociais.

    Voltando falta de princpios vitais para regenerar a sociedade que se registrava ao tempo daapario do Cristianismo, h ainda a ressaltar que, aos poderosos elementos de dissoluo que oImprio Romano abrigava em seu seio, se juntava outro fator, e no de pequena monta, no plano daviciosa organizao poltica. Dobrada a espinha do mundo ante o jugo de Roma, viam-se centenas ecentenas de povos, muito diferentes em usos e costumes, amontoados em desordem como osvencidos num campo de batalha forados a uma formao arbitrria, tal como trofus enfiados nahaste de uma lana.

    A unidade no governo no podia ser proveitosa porque obtida com violncia. Ademais, essaunidade era desptica, desde a sede do Imprio at os ltimos mandarins, e por isso no podiaproduzir outro resultado que no o abatimento e a degradao dos povos, aos quais se tornavaimpossvel desenvolver aquela elevao e energia

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  • de nimo que so os frutos preciosos do sentimento da prpria dignidade e do amor independnciada ptria. Se pelo menos Roma tivesse conservado seus antigos costumes, se abrigasse em seu seioaqueles guerreiros to clebres pela fama de suas vitrias como pela simplicidade e austeridade desua conduta, ento se poderia conceber a esperana de que se irradiasse para os povos vencidos algodos predicados dos vencedores, como um corao jovem e robusto reanima com seu vigor um corpoextenuado pelas mais rebeldes doenas. Mas desgraadamente no era assim: os Fbios, osCamilos, os Cipies no teriam reconhecido sua indigna descendncia, e Roma, a senhora domundo, jazia escrava sob os ps de verdadeiros monstros que ascendiam ao trono pelo suborno epela violncia, maculavam o cetro com sua corrupo e crueldade, e terminavam a vida nas mos dealgum assassino. A autoridade do Senado e a do povo tinham desaparecido: dela restavam apenasvos simulacros, vestigia morientis libertatis (vestgios da liberdade expirante), como os chamaTcito, e aquele povo-rei, que antes distribua o imprio, os cetros, as legies e tudo, agora ansiavato somente por duas coisas: po e circo. Panem et circenses (Juvenal, Satyr., 10).

    Veio por fim a plenitude dos tempos. O Cristianismo apareceu e, sem proclamar nenhumaalterao nas formas polticas, sem atentar contra nenhum governo, sem imiscuir-se em nada quefosse mundano e terreno, trouxe aos homens uma dupla sade, chamando-os ao caminho de umafelicidade eterna ao mesmo tempo que ia distribuindo a mancheias seja o nico preventivo contra adissoluo social, seja o germe de uma regenerao lenta e pacfica, mas grande, imensa, duradoura, prova dos transtornos dos sculos. E esse preventivo contra a dissoluo social, e esse germe deinestimveis melhoras, eram constitudos por um ensinamento elevado e puro, derramado sobretodos os homens, sem exceo de idades, de sexos, de condies sociais, como uma chuva benficaque cai em suavssima torrente sobre uma campina murcha e seca.

    No h religio que se tenha igualado ao Cristianismo, nem em conhecer o segredo dedirigir o homem, nem em desdobrar nessa direo uma conduta que seja testemunho mais solene doreconhecimento da alta dignidade humana. O Cristianismo partiu sempre do princpio de que oprimeiro passo para apoderar-se do homem todo apoderar-se do seu entendimento, de que, quandose trata ou de extirpar um mal ou de produzir um bem, necessrio tomar por objetivo principal asidias, desferindo dessa maneira um golpe

    19mortal nos sistemas de violncia que tanto tm predominado onde quer que ele no esteja presente.Proclamando a verdade benfica e fecunda de que, quando se trata de dirigir os homens, o meiomais indigno e mais dbil o da fora, o Cristianismo abriu para a humanidade um novo eventuroso porvir.

    Somente a partir do Cristianismo se passou a encontrar ctedras da mais sublime filosofiaabertas a toda hora, em todos os lugares, para todas as classes do povo. As mais altas verdades sobreDeus e o homem ou as regras da moral mais pura j no se limitaram a ser comunicadas a umnmero seleto de discpulos, em lies ocultas e misteriosas. A sublime filosofia do Cristianismo foimais intrpida, atreveu-se a dizer aos homens a verdade inteira e nua, e isso em pblico, em altavoz, com aquela generosa ousadia que companheira inseparvel da verdade.

    O que vos digo de noite dizei luz do dia, e o que vos digo ao ouvido apregoai de cima dostelhados. Assim falava Jesus a seus discpulos (Mat., X, 27).

    Logo que se defrontaram o Cristianismo e o paganismo, mostrou-se palpvel a superioridadedo primeiro, no s pelo contedo das doutrinas como tambm pelo modo de propag-las. Pde-seperceber desde logo que uma religio cujo ensinamento era to sbio e to puro, e que para difundi-lo se encaminhava sem rodeios, em linha direta, ao entendimento e ao corao, haveria de desalojarbem depressa de seus usurpados domnios a outra religio de impostura e de mentira. E, com efeito,que fazia o paganismo para o bem dos homens? Qual era seu ensinamento sobre as verdadesmorais? Que diques opunha corrupo de costumes? No que se refere aos costumes, diz a estepropsito Santo Agostinho, como no cuidaram os deuses de que seus adoradores no ospossussem em padres to depravados? O verdadeiro Deus, a quem no adoravam, os repeliu ecom razo. Mas os deuses, cujo culto esses homens ingratos se queixam de que hoje lhes sejaproibido, esses deuses por que no ajudaram seus adoradores com lei alguma para bem viver? J

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  • que os homens cuidavam do culto, justo seria que os deuses no se esquecessem do cuidado com avida e os costumes. Dir-se- que ningum mau seno por sua vontade. Quem o nega? Mas erafuno dos deuses no ocultar aos povos seus adoradores os preceitos da moral, e sim preg-los sclaras, insistir e repreender por meio dos vates os pecadores, ameaar publicamente de punio osque agiam mal e prometer prmios aos que agiam bem. Nos templos dos deuses,

    20quando ressoou uma voz alta e vigorosa que se referisse a tais temas? (De Civitate Dei, I. 2., c.IV).

    Traa em seguida o santo Doutor um negro quadro das torpezas e abominaes que secometiam nos espetculos e jogos sagrados celebrados em homenagem aos deuses, aos quais elemesmo havia assistido em sua juventude, e acrescenta: Infere-se disto que no se preocupavamesses deuses com a vida e os costumes das cidades e naes que lhes rendiam culto, deixando quese entregassem a males to horrendos e detestveis, sem infligir danos nem sequer a seus campos evinhedos, nem s suas casas e fazendas, nem ao corpo sujeito mente, mas ao contrrio atpermitindo-lhes, falta de qualquer proibio imponente, que embriagassem de maldade a diretorado corpo, sua prpria alma. E se algum alegar que vedavam tais males, que apresente as provas.H quem se jacte de no sei que sussurros que soavam aos ouvidos de muito poucos, e nos quais,sob um vu misterioso, se ensinavam os preceitos de uma vida honrada e pura; mas ento que senos mostrem os lugares destinados a semelhantes reunies, no os lugares onde os farsantesexecutavam os jogos com vozes e aes obscenas, no onde se celebravam festas com a maisdesbragada licenciosidade, mas sim onde ouvissem os povos os preceitos dos deuses sobre reprimira cobia, moderar a ambio e refrear os prazeres; onde aprendessem esses infelizes aquela lioque com linguagem severa lhes ministrava Prsio (Satyr., 3) quando dizia: Aprendei, miserveis, aconhecer as causas das coisas, o que somos, para que nascemos, qual deve ser nossa conduta, quoincerto o fim de nossa caminhada, qual a razovel temperana no amor ao dinheiro, qual suautilidade verdadeira, qual a norma de nossa liberalidade para com nossos parentes e nossa ptria,para onde vos chamou Deus e qual o lugar que ocupais entre os homens. Esclarea-se em quelugares costumavam os deuses recitar semelhantes preceitos para que pudessem ouvi-los comfreqncia os povos seus adoradores; mostrem-se esses lugares, assim como ns mostramos igrejasinstitudas para esse fim onde quer que se tenha difundido a religio crist. (De Civitate Dei, 1. 2.,c. VI).

    Essa religio divina, profunda conhecedora do homem, no olvidou jamais a fraqueza einconstncia que o caracterizam, e por esse motivo teve sempre por invarivel regra de condutainculcar-lhe sem cessar, com incansvel persistncia, com pacincia inaltervel, as saudveisverdades de que dependem seu bem-estar temporal e sua felicidade eterna. Em se tratando deverdades morais, o homem

    21esquece com facilidade o que no ressoa continuamente a seus ouvidos e, mesmo quando as boasmximas se conservam em seu entendimento, elas correm o risco de permanecer como sementesestreis, sem fecundar o corao. Por isso muito bom e muito salutar que os pais comuniquemesse ensinamento a seus filhos; muito bom e muito salutar que isso seja um objetivo preferencialna educao privada; mas necessrio que, alm disso, exista um magistrio pblico que no operca nunca de vista, que se estenda a todas as classes e a todas as idades, que supra o descuido dafamlia, que avive as recordaes e as impresses que as paixes e o tempo vo continuamentedebilitando.

    , pois, sumamente importante para a instruo e moralidade dos povos esse sistema depermanente pregao e ensino praticado em todas as pocas e lugares pela Igreja Catlica.

    23P R I M E I R A P A R T E

    9

  • A Igreja no foi s uma grande e fecunda escola, mas tambm umaassociao regeneradora. Objetivos que teve de preencher. Dificuldades queteve de vencer. A escravido. Quem aboliu a escravido. Opinio de Guizot.Nmero imenso de escravos. Com que tino se devia proceder na abolio daescravatura. A abolio repentina era impossvel. Impugna-se a opinio deGuizot.

    Por maior que fosse a importncia dada pela Igreja propagao da verdade, e por maisconvencida que estivesse de que, para dissipar a informe massa de imoralidade e degradao que seoferecia sua vista nos primeiros tempos, o cuidado prioritrio devia orientar-se no sentido desubmeter o erro ao dissolvente fogo das doutrinas verdadeiras, no se limitou a isso, mas sim,descendo ao terreno dos fatos e seguindo um sistema pleno de sabedoria e prudncia, agiu demaneira que a humanidade pudesse saborear o precioso fruto que at nas coisas terrenas do osensinamentos de Cristo. A Igreja no foi s uma escola grande e fecunda, mas tambm umaassociao regeneradora; no espargiu suas doutrinas gerais arremessando-as como ao acaso, naesperana de que frutificassem com o tempo, mas sim as desenvolveu em todas as suas implicaes,aplicou-as a todos os objetos, procurou inocul-las nos costumes e nas leis e concretiz-las eminstituies que servissem de silenciosa mas eloqente diretriz para as geraes vindouras.

    Via-se desconhecida a dignidade do homem, imperando por toda parte a escravido;degradada a mulher, espezinhando-a a corrupo de costumes e abatendo-a a tirania do varo;adulteradas as relaes de famlia, concedendo a lei ao pai faculdades que jamais lhe dera anatureza; desprezados os sentimentos de humanidade, no abandono da infncia e no desamparo dopobre e do enfermo; levadas ao

    24mais alto grau a barbrie e a crueldade, no direito atroz que regulava os procedimentos da guerra; e,por fim, coroando o edifcio social, a odiosa tirania, contemplando com depreciativo desdm osinfelizes povos que jaziam a seus ps atrelados a mltiplas correntes.

    Ante esse quadro, no constitua empresa fcil banir o erro, reformar e suavizar os costumes,abolir a escravido, corrigir os vcios da legislao, moderar o poder e harmoniz-lo com osinteresses pblicos, dar nova vida ao indivduo, reorganizar a famlia e a sociedade e, noobstante, tudo isso a Igreja fez.

    Tal o caso da escravido. Esta uma matria que convm aprofundar, pois encerra umadas questes que mais podem excitar a curiosidade cientfica e falar aos sentimentos do corao.Quem aboliu entre os povos cristos a escravido? Foi o Cristianismo? E foi ele s, com suas idiasgrandiosas sobre a dignidade do homem, com suas mximas e esprito de fraternidade e caridade, eademais com sua conduta prudente, suave e benfica? Sinto-me gratificado por poder afirmar quesim.

    J no se encontra quem ponha em dvida que a Igreja Catlica teve uma poderosainfluncia na abolio da escravatura: uma verdade demasiado clara e que salta aos olhos comgritante evidncia para que seja possvel contest-la. Guizot, reconhecendo o empenho e a eficciacom que trabalhou a Igreja para a melhoria do estado social, afirma: Ningum ignora com quantaobstinao combateu os grandes vcios daquele tempo, a escravido por exemplo. Mas emcontinuao, tal como se lhe incomodasse estabelecer sem nenhuma restrio um fato quenecessariamente teria de carrear para a Igreja Catlica as simpatias de toda a humanidade, observa:Mil vezes se disse e repetiu que a abolio da escravatura nos tempos modernos devidainteiramente s mximas do Cristianismo. Isso , a meu ver, um exagero: por longo tempo subsistiua escravido em meio sociedade crist sem que semelhante situao a confundisse ou irritassemuito. Est errado Guizot ao querer provar que a abolio da escravatura no devidaexclusivamente ao Cristianismo j que tal estado subsistiu por muito tempo em meio sociedadecrist. Se se quisesse proceder em boa lgica seria necessrio primeiro considerar se a aboliorepentina era possvel, e se o esprito de ordem e de paz que anima a Igreja podia permitir que se

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  • lanasse numa empreitada com a qual teria transtornado o mundo sem alcanar o objetivo a que sepropunha. O nmero de escravos era imenso; a escravido estava profundamente arraigada nasidias, nos costu-

    25mes, nas leis, nos interesses individuais e sociais; sistema funesto, sem dvida, mas que era umatemeridade pretender erradicar de um s golpe, pois suas razes penetravam muito fundo,estendendo-se por largo trecho nas entranhas da terra.

    Contaram-se num censo de Atenas vinte mil cidados e quarenta mil escravos; na guerra doPeloponeso, passaram para o lado do inimigo nada menos do que vinte mil, segundo narraTucdides. O mesmo autor diz que em geral era to grande o nmero de escravos por toda parte queno poucas vezes por causa deles estava em perigo a tranqilidade pblica. Por esse motivo eranecessrio tomar precaues para que no pudessem arreglar-se. muito conveniente, diz Plato(Dial. 6., Das Leis), que os escravos no sejam de um mesmo pas e que, na medida do possvel,sejam discordantes seus costumes e vontades; pois repetidas experincias ensinaram, nas freqentesdefeces que se viram entre os messnios e nas demais cidades que possuem muitos escravos deuma mesma lngua, quantos danos da costumam decorrer.

    Aristteles, em sua Economia (1. l , c. V), d vrias regras sobre o modo como devem sertratados os escravos, e de notar que coincide com Plato ao advertir expressamente que no sedevem ter muitos escravos de um mesmo pas. Em sua Poltica (1, 2., c. VII), afirma que ostesslios se viram em graves apuros devido multido de seus escravos penestas, acontecendo omesmo com os lacedemnios em relao aos ilotas. Com freqncia, diz ele, tem sucedido que ospenestas se sublevam na Tesslia, e os lacedemnios, sempre que sofrem alguma calamidade, sevem ameaados por conspiraes dos ilotas. Essa era uma dificuldade que chamava seriamente aateno de polticos, que no sabiam como contornar os inconvenientes que consigo trazia essaenorme multido de escravos. Lamenta-se Aristteles de quo difcil era acertar no melhor modo detrat-los, reconhecendo ser esta uma matria que dava muitas preocupaes. Eis suas prpriaspalavras: Na verdade, o melhor modo de tratar essa classe de homens tarefa trabalhosa e cheia decuidados, porque, se se usa de brandura, eles se tornam petulantes e querem igualar-se a seus donos,e se se age com dureza, engendram dio e maquinam traies.

    Em Roma era tal a multido de escravos que, tendo-se proposto que usassem um trajeindicativo, o Senado se ops a essa medida, com o temor de que, se eles chegassem a conhecer aquantos montavam, viessem a pr em perigo a ordem pblica. E seguramente no

    26eram vos esses temores, pois j h tempos vinham os escravos causando considerveis transtornosna Itlia. Plato, em apoio ao conselho acima citado, recorda que os escravos repetidas vezeshaviam devastado a Itlia com atos de pirataria e latrocnio; e em tempos mais recentes Esprtaco, testa de um exrcito de escravos, chegara a constituir-se em verdadeiro terror para todo o pas,dando muito trabalho a destacados generais romanos.

    Tinha chegado a tais excessos o nmero de escravos em Roma que muitos donos os tinhama centenas. Quando foi assassinado o prefeito romano Pednio Segundo, foram sentenciados morte quatrocentos escravos seus (Tcito, Ann., 1. 14). E Pudntila, mulher de Apuleu, tinha-os emtal abundncia que deu a seus filhos nada menos do que quatrocentos deles. Esta matria chegou aconstituir demonstrao de luxo e, por fora da competio social, os romanos esforavam-se em sedistinguir pelo nmero de seus escravos. Queriam que, ao ser-lhe feita a pergunta Quot pascitservos? (Quantos escravos mantm?), segundo relata Juvenal (Satyr., 3, v. 140), pudessem ostent-los em grande quantidade. As coisas chegaram a tal extremo que, segundo testemunha Plnio, osquito de uma nobre famlia mais se parecia ao desfile de um exrcito.

    No era somente na Grcia e em Roma que abundavam os escravos. Em Tiro, por exemplo,chegaram a sublevar-se contra seus donos e, favorecidos por seu grande nmero, no puderam serimpedidos de degolar todos eles. Passando a povos brbaros e prescindindo de outros maisconhecidos, refere Herdoto (1. 3.) que, ao retornarem da Mdia, os citas defrontaram-se com osescravos sublevados, que tinham tomado conta da situao e banido seus donos para fora da ptria.

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  • E Csar, em seus comentrios (De Bello Gallico, 1. 6.), atesta quo numerosos eram os escravos naGlia,

    Sendo to vultoso em todas as partes o contingente de escravos, j se v que era de todoimpossvel pregar sua libertao sem lanar o mundo em conflagrao. O estado intelectual e moraldos escravos tornava-os incapazes de desfrutar de um tal benefcio em proveito prprio e dasociedade; e, em seu embrutecimento, aguilhoados pelo rancor e pelo desejo de vingana nutridosem seus peitos com o mau tratamento que lhes era dispensado, teriam reproduzido em grande escalaas sangrentas cenas com que j haviam deixado manchadas em tempos anteriores as pginas dahistria. E que teria acontecido ento? Simplesmente que, ameaada por to terrvel perigo, asociedade se colocaria em guarda contra os princpios

    27favorecedores da abolio, passaria a observ-los com preveno e desconfiana, e, longe deafrouxar as correntes dos escravos, as reforaria com mais afinco e tenacidade. Daquela imensamassa de homens embrutecidos e furibundos, era impossvel que, postos sem preparao emliberdade e em movimento, brotasse uma organizao social porque esta no se improvisa, emuito menos com semelhantes elementos. E em tal caso, tendo-se de optar entre a escravatura e oaniquilamento da ordem social, o instinto de conservao que anima a sociedade, como a todos osseres, teria determinado indubitavelmente a continuidade da escravido onde ela ainda existisse e oseu restabelecimento onde tivesse sido abolida.

    Portanto, os que se queixam de que o Cristianismo no tenha atuado mais rapidamente naabolio da escravatura devem tomar conscincia de que mesmo supondo-se possvel umaemancipao repentina ou muito rpida e mesmo prescindindo dos sangrentos transtornos queinexoravelmente da decorreriam a prpria fora das coisas, erigindo obstculos insuperveis,teria inutilizado semelhante medida. Deixemos de lado todas as consideraes sociais e polticas,fixando-nos unicamente nas econmicas. De pronto seria necessrio alterar todas as relaes depropriedade, isto porque, figurando nela os escravos como uma parte principal, cultivando eles asterras, exercendo eles os ofcios manuais, estando, numa palavra, distribudo entre eles o que sechama trabalho, e estando feita essa distribuio no pressuposto da escravido, evidente que, ao seretirar abruptamente do sistema a sua base, se provocaria um deslocamento tal que a mente noconsegue alcanar quais seriam suas ltimas conseqncias.

    Se hoje, depois de dezoito sculos, retificadas as idias, suavizados os costumes, melhoradasas leis, amestrados os povos e os governos, fundados tantos estabelecimentos pblicos para socorroda indigncia, ensaiados tantos sistemas para a boa distribuio do trabalho, repartidas de modomais equitativo as riquezas, ainda subsistem tantas dificuldades para que um nmero imenso dehomens no sucumba vtima de horrorosa misria; se este o mal terrvel que atormenta asociedade e que pesa sobre seu futuro como um trgico pesadelo que teria ocorrido no caso daemancipao universal no princpio do Cristianismo, quando os escravos no eram reconhecidosjuridicamente como pessoas mas sim como coisas, quando sua unio conjugal no era consideradacomo matrimnio, quando a pertena dos frutos dessa unio era estabelecida pelas

    28mesmas regras que se aplicavam aos animais, quando o infeliz escravo era maltratado, atormentado,vendido e at morto conforme os caprichos de seu dono? No salta aos olhos que a cura para malesdessa magnitude tinha de ser obra de sculos?

    Se se tivessem feito insensatas tentativas, no tardaria muito e os prprios escravos estariamprotestando contra elas, reivindicando uma escravatura que pelo menos lhes assegurava po eabrigo, e desprezando uma liberdade que punha em risco sua sobrevivncia. Pois essa a ordem danatureza: o homem necessita antes de tudo ter o indispensvel para viver, e se lhe faltam os meiosde subsistncia no lhe serve de consolo a prpria liberdade. No preciso recorrer a exemplos departiculares que nos so proporcionados em abundncia; em povos inteiros se viu a prova patentedessa verdade. Quando a misria excessiva, difcil que no traga consigo o aviltamento,sufocando os sentimentos mais generosos e desvirtuando os encantos que exercem sobre nossocorao as idias de independncia e liberdade. A plebe, afirma Csar a propsito dos gauleses (De

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  • Bello Gallico, 1. 6.), est quase na situao de escravos, e de si mesma no se atreve a nada, nemseu voto conta para nada; e h muitos que, assoberbados de dvidas e tributos, ou oprimidos pelospoderosos, se entregam aos nobres em escravido. Nos tempos modernos no faltam tampoucoexemplos anlogos, porque sabido que entre os chineses abundam os escravos cuja escravaturano tem outra origem seno que eles prprios ou seus pais no se viram capazes de prover suasubsistncia.

    Estas reflexes, apoiadas em dados que ningum pode contestar, pem em evidncia aprofunda sabedoria do Cristianismo em proceder com tanta circunspeco na abolio daescravido. Fazendo tudo o que era possvel em favor da liberdade do homem, no avanou maisrapidamente nessa direo porque no podia isso ser feito sem ocasionar o malogro de toda aempresa, sem suscitar gravssimos obstculos desejada emancipao. Eis aqui o resultado a queafinal vm dar sempre as crticas que se levantam contra algum procedimento da Igreja: se seexamina o problema luz da razo, se se estabelece o competente cotejo com os fatos, acaba-se porconcluir que o procedimento pelo qual ela inculpada est muito de acordo com o que dita a maisalta sabedoria e com o que aconselha a mais refinada prudncia.

    O que pretende, pois, Guizot quando, depois de ter reconhecido que o Cristianismotrabalhou com afinco pela abolio da escrava-

    29tura, lhe lana na face o consentimento pela sua longa durao? Com que lgica pretende da inferirque no verdade que seja devido exclusivamente ao Cristianismo esse imenso benefciodispensado humanidade? Durou sculos a escravatura em meio ao Cristianismo, certo; masdurante esse perodo foi sendo continuamente minorada, at chegar extino total, e essa duraofoi somente a necessria para que o benefcio visado se realizasse sem violncias, sem transtornos, eassegurando sua universalidade e sua perptua conservao. E desse tempo que durou, deve-seainda deduzir uma parte considervel, em razo dos trs primeiros sculos, nos quais a Igreja estevequase sempre proscrita, olhada com averso e inteiramente privada da possibilidade de exercerinfluxo direto sobre a organizao social. Deve-se tambm descontar muito dos sculos posteriores,porque havia decorrido pouco tempo desde que a Igreja exercia sua influncia pblica e direta,quando sobreveio a irrupo dos brbaros do Norte, que, combinada com a dissoluo de que estavacontaminado o Imprio e que o arrastaria runa completa, ocasionaria tal transtorno, uma mesclato informe de lnguas, de usos, de costumes, de leis, que quase se tornava impossvel exercer commuito fruto uma ao social reguladora. Se em tempos mais prximos custou tanto trabalhoextinguir o feudalismo; se depois de sculos ainda permanecem vivas muitas de suas mazelas; se otrfico de negros, apesar de circunscrito a determinados pases e a peculiares circunstncias,continua resistindo ao grito universal de reprovao que contra tal infmia se levanta nos quatrocantos do mundo como pode haver quem se atreva a manifestar estranheza e a inculpar oCristianismo pelo fato de a escravido ter durado alguns sculos depois de proclamadas afraternidade entre todos os homens e sua igualdade perante Deus?

    31S E G U N D A P A R T E

    A Igreja Catlica empregou, para a abolio da escravatura, nosomente um sistema de doutrinas, mximas e esprito de caridade, mastambm um conjunto de meios prticos. Ponto de vista sob o qual se deveconsiderar esse fato histrico. Idias erradas dos antigos sobre a escravido.Homero, Plato, Aristteles. O Cristianismo se empenhou desde logo emcombater esses erros. Doutrinas crists sobre as relaes entre escravos esenhores. Como a Igreja se dedicou a suavizar o tratamento cruel que eradispensado aos escravos.

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  • Felizmente a Igreja Catlica foi mais sbia que os filsofos e soube proporcionar humanidade o benefcio da emancipao dos escravos, sem injustias nem transtornos. Ela regeneraas sociedades, e o faz sem banhos de sangue. Vejamos, pois, qual foi sua conduta ora relao aoproblema especfico de que ora nos ocupamos.

    Muito j se enfatizou o esprito de amor e fraternidade que anima o Cristianismo, e issobasta para que se admita que deve ter sido grande a influncia que exerceu para que se lograsseaquele resultado. Mas talvez no se tenha ainda esmiuado devidamente os meios positivos,prticos, digamo-lo assim, de que lanou mo para conseguir tal objetivo. Atravs da obscuridadedos sculos, em meio a tamanha complexidade e variedade de circunstncias, ser possvel detectaralguns fatos que sejam como que as pegadas indicadoras do caminho percorrido pela Igreja Catlicapara libertar uma imensa poro da linhagem humana da escravido sob a qual gemia? Serpossvel aduzir algo mais que os encmios gerais relativos caridade crist? Ser possvel assinalarum plano, um sistema, e provar sua existncia e desenvolvimento apoiando-se no simplesmenteem manifestaes particulares, em pensamentos altos, em sentimentos gene-

    32rosos, em aes isoladas de alguns homens ilustres, mas sim em fatos marcantes e em documentosirrefutveis que manifestem qual era o esprito e a tendncia do prprio corpo da Igreja? A resposta afirmativa e, como se ver, em abono dessa tese pode ser invocado o que de mais convincente edecisivo poderia existir, a saber: os monumentos da legislao eclesistica.

    Antes de tudo, no fora de propsito ressaltar que, quando se trata de conduta, dedesgnios, de tendncias da Igreja, no necessrio presumir que esses mveis e esses movimentosestejam presentes por inteiro na mente de qualquer indivduo em particular, nem que todo o mrito eefeito de semelhantes procedimentos fossem perfeitamente compreendidos por todos e cada um dosque intervinham nessas aes. Assim, pode-se dizer que no preciso supor que os primeiroscristos estivessem conscientes de toda a fora latente no Cristianismo relativamente abolio daescravatura. O que convm deixar claro que se obteve o resultado por conseqncia das doutrinase da conduta da Igreja. Pois no seio do Catolicismo, embora se prezem os mritos e a grandeza daspessoas pelo que valem, quando se fala da Igreja desaparecem os indivduos; os pensamentos e avontade destes so nada, porque o esprito que anima, que vivifica e que dirige a Igreja no oesprito de nenhum homem, mas sim o Esprito do prprio Deus. Os que no participam de nossa flanaro mo de outras explicaes: mas estaremos todos concordes pelo menos em que, vistosdessa maneira, sobrelevados aos pensamentos e vontades dos indivduos, os acontecimentosrevelam muito melhor seu verdadeiro carter e no se rompe, no estudo da histria, a cadeiacontnua dos sucessos. Diga-se que a conduta da Igreja foi inspirada e dirigida por Deus, ou prefira-se admitir que foi filha de um instinto, que foi o fruto do desenvolvimento de uma tendnciaentranhada em suas doutrinas, empreguem-se estas ou aquelas expresses, falando-se como catlicoou como filsofo, nessa questo no preciso deter-se agora, pois o que aqui importa constatarque esse instinto foi generoso e bem orientado, que essa tendncia se dirigia a um grande objetivo, eque o alcanou.

    A primeira coisa que fez o Cristianismo com respeito aos escravos foi dissipar os erros quese opunham no s sua emancipao universal mas tambm melhoria de suas condies de vida:isto quer dizer que a primeira fora que desencadeou no ataque foi, como de costume, a fora dasidias. Era esse primeiro passo tanto mais necessrio para curar o mal quanto com ele acontecia como si

    33acontecer estar vinculado a um erro, que o gerava e fomentava. No s havia a opresso, adegradao de uma grande parte da humanidade, como era muito acatada uma opinio falsa queresultava em humilhar ainda mais essa parte da humanidade. Os escravos, dizia-se, constituam umaraa vil, que no conseguia sequer aproximar-se do nvel da dos homens livres. Era uma linhagemdegradada pelo prprio Jpiter, marcada desde o nascedouro com um estigma infamante, destinada

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  • de antemo a esse estado de abjeo e vileza. Doutrina perversa, sem dvida, desmentida pelanatureza, pela histria e pela experincia, mas que nem por isso deixava de contar com destacadosdefensores, e que, para ultraje da humanidade e escndalo da razo, foi sendo proclamada porsculos a fio, at que o Cristianismo veio dissip-la, tomando a seu cargo a afirmao dos direitosdo homem.

    Homero nos diz (Odissia, 17) que Jpiter subtraiu aos escravos metade da mente. EmPlato encontramos o rastro da mesma doutrina pois, se bem que pela boca de outrem (comocostumava fazer), no deixa de asseverar: Diz-se que no nimo dos escravos no existe nada desadio e ntegro, e que um homem prudente no deve fiar-se nessa casta de criaturas, coisa que atestao mais sbio de nossos poetas, citando em seguida a passagem de Homero acima transcrita (Dil.6., Das Leis). Mas onde se encontra exposta essa doutrina com toda a sua lugubridade e nudez naPoltica de Aristteles. No faltou quem quisesse defend-lo, mas em vo, porque suas prpriaspalavras o condenam sem apelao. Explicando, no primeiro captulo da referida obra, aconstituio da famlia e propondo-se a definir as relaes entre marido e mulher e entre senhor eescravo, sustenta que, assim como a fmea naturalmente diferente do macho, o escravo diferentedo dono: E assim a fmea e o escravo se distinguem por sua prpria natureza. Tal conceituaono corresponde a um lapso de linguagem do filsofo, mas sim ele a expressou com plenaconscincia e no constitui outra coisa que no um compndio de sua teoria. Tanto assim que, noterceiro captulo, continua a analisar os elementos que compem a famlia e, depois de consignarque uma famlia perfeita consta de pessoas livres e de escravos, fixa sua ateno em particularsobre estes e comea combatendo uma opinio que parecia favorec-los demasiadamente: Halguns que pensam que a escravido coisa fora da ordem da natureza, visto que procede somenteda lei o fato de este ser escravo e aquele livre, j que naturalmente em nada se distin-

    34guem. Antes de rebater essa opinio, explica as relaes entre senhor e escravo, valendo-se decomparaes entre o artfice e seu instrumento e entre a alma e o corpo, prosseguindo: Se secomparam macho e fmea, aquele superior e por isso manda, esta inferior e por isso obedece. Omesmo ocorre com todos os homens. Assim, aqueles que so to inferiores quanto o corpo o emrelao alma e quanto o bruto o em relao ao homem, e cujas faculdades consistemprincipalmente no uso de seu fsico, sendo este uso o maior proveito que deles se pode extrair, estesso escravos por natureza. primeira vista poderia parecer que o filsofo estivesse se referindoexclusivamente aos mentecaptos, mas veremos em seguida que no essa sua inteno. Mesmoporque, se estivesse falando apenas dos idiotas, nada provaria contra a opinio que se prope aimpugnar pois, sendo o nmero destes to reduzido, no constituem praticamente nada emcomparao com a generalidade dos homens. Ademais, se apenas aos nscios quisesse referir-se, deque valeria sua teoria, ento fundada unicamente sobre uma exceo monstruosa e muito rara?

    Mas no h necessidade de se perder tempo em conjecturas sobre o que teria realmente emmente o filsofo. Ele mesmo se encarrega de esclarec-lo, revelando-nos ao mesmo tempo por quese tinha valido de expresses to fortes que at pareciam subtrair a questo de seu eixo. Segundo seprope a demonstrar, cabe natureza o expresso desgnio de produzir homens de duas categorias:uns nascidos para a liberdade, outros para a escravido. O trecho demasiado importante e curiosopara que deixemos de transcrev-lo: Bem aprouve natureza procriar diferentes os corpos doslivres e dos escravos, de modo que os destes sejam robustos e apropriados para os usos necessrios,e os daqueles bem formados, inteis sim para trabalhos servis, mas adequados vida civil, queconsiste no manejo dos negcios da guerra e da paz; mas muitas vezes ocorre o contrrio, e a unscabe corpo de escravo e a outros alma de livres. No h dvida de que, se no corpo alguns seavantajassem tanto como as imagens dos deuses, todo mundo seria de opinio que deveriam servir-lhes aqueles que no tivessem alcanado tanta galhardia. Se isto verdade falando do corpo, muitomais o em se tratando da alma, se bem que no to fcil ver a formosura desta quanto a daquele.Assim no se pode duvidar de que h alguns homens nascidos para a liberdade, enquanto h outrosnascidos para a escravido escravido que, alm de ser til aos prprios escravos,

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  • tambm justa. (Poltica, I. 2., c. VII).Miservel filosofia que, para sustentar um estado de coisas degradante, tinha de apelar para

    tamanhas cavilaes, assacando contra a natureza a inteno de gerar diferentes castas, nascidasumas para dominar, outras para servir! Filosofia cruel, que assim procurava romper os laos defraternidade com que o Autor da natureza quis vincular toda a linhagem humana, que assim seempenhava em levantar uma barreira entre homem e homem, que assim elucubrava teorias parasustentar uma desigualdade que no aquela que resulta necessariamente de toda organizao social,mas sim uma desigualdade to terrvel e aviltante quanto a da escravido!

    Levanta ento a voz o Cristianismo e, nas primeiras palavras que pronuncia sobre osescravos, declara-os iguais em dignidade de natureza aos demais homens; e iguais tambm naparticipao nas graas que o Esprito Santo vai derramar sobre a terra. notvel o cuidado comque insiste sobre este ponto o apstolo So Paulo; est claro que tinha sob a vista as degradantesdiferenas que, por funesto olvido da dignidade do homem, se queriam assinalar; por isso nunca seesquece de inculcar a nulidade da diferena entre o escravo e o livre. ''Fomos todos batizados nums esprito, para formar um mesmo corpo, judeus ou gentios, escravos ou livres (I Cor., XII, 13).Todos vs sois filhos de Deus pela f em Jesus Cristo, pois todos os que foram batizados em Cristose revestiram de Cristo. No h judeu nem grego, no h servo nem livre, no h homem nemmulher. Todos vs sois um s em Jesus Cristo (Gl., III, 26-28). Onde no h gentio ou judeu,circuncidado ou incircuncidado, brbaro ou cita, servo ou livre, mas sim Cristo tudo em todos(Colos., III, 11).

    Parece que o corao se dilata ao ouvir serem proclamados em alta voz esses grandesprincpios de fraternidade e de santa igualdade. Quando acabamos de ouvir os orculos dopaganismo ideando doutrinas para abater ainda mais os desgraados escravos, parece quedespertamos de um pesadelo angustiante e nos defrontamos com a luz do dia, em meio a umafagueira realidade. A imaginao se compraz em considerar tantos milhes de homens que,curvados sob o peso da degradao e da ignomnia, levantam seus olhos ao cu e exalam um suspirode esperana.

    Acontece com este ensinamento do Cristianismo o que acontece com todas as doutrinasgenerosas e fecundas: penetram at o corao da sociedade, ficam a depositadas como um germeprecioso e,

    36desenvoltas com o tempo, produzem uma rvore enorme que abriga sob sua sombra as famlias e asnaes. S que, difundidas entre homens, no puderam tambm escapar de serem mal interpretadase de serem distorcidas, no faltando quem tenha pretendido que a liberdade crist equivalia proclamao da liberdade universal. Ao ressoar aos ouvidos dos escravos as doces palavras doCristianismo, ao tomarem eles conhecimento de que se os proclamava filhos de Deus e irmos deJesus Cristo, ao verificarem que no se fazia distino alguma entre eles e seus amos, nem quefossem estes os mais poderosos senhores da terra, no de estranhar que homens acostumados tosomente s correntes, ao trabalho e a toda espcie de maus tratos c envilecimento exagerassem osprincpios dessa doutrina nova e fizessem dela aplicaes que nem eram em si justas nem tampoucoexeqveis.

    Sabemos por So Jernimo que muitos, ao ouvirem que eram chamados liberdade crist,pensaram que com esta se lhes estava concedendo a ruptura dos grilhes da escravatura. E talvezfosse a esse erro que aludia o Apstolo quando, em sua primeira carta a Timteo (VI, 1), dizia:Todos os que esto sob o jugo da escravido honrem com todo respeito seus donos para que onome e a doutrina do Senhor no sejam blasfemados. Tamanho eco encontrara esse erro que depoisde trs sculos ainda estava corrente, vendo-se obrigado o Conclio de Gangra, celebrado por voltado ano 324, a excomungar os que, sob pretexto de piedade, ensinavam que os escravos deviamdesligar-se de seus amos e retirar-se de seu servio. No era isso o que ensinava o Cristianismo,mesmo porque ficou j bem evidenciado que no era esse o caminho que realmente permitiriachegar emancipao universal.

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  • Assim que o mesmo Apstolo que ouvimos empregar a favor dos escravos uma linguagemto generosa lhes inculca repetidas vezes a obedincia a seus donos. Mas notvel que, enquantocumpre esse dever imposto pelo esprito de paz e de justia que anima o Cristianismo, explica de talmaneira os motivos sobre os quais se h de fundar a obedincia dos escravos, recorda com tosentidas e vigorosas palavras as obrigaes que pesam sobre os donos, e assenta to expressa eterminantemente a igualdade de todos os homens ante Deus que transparece nitidamente quointensa era sua compaixo para com essa parte desgraada da humanidade e quo diferentes eramsobre esse particular suas idias comparativamente s do mundo endurecido e cego cevado pelopaganismo.

    37Abriga-se no ntimo do homem um sentimento de nobre independncia que no lhe permite

    sujeitar-se vontade de outro homem, a no ser que lhe sejam apresentadas justificativas legtimassobre as quais se apiam as pretenses de mando. Se tais justificativas estiverem bem fundadas e,sobretudo, se estiverem radicadas em altos objetivos que o homem ama e acata, a razo seconvence, o corao se abranda e a vontade cede. Mas se o motivo do mando s o querer de outrohomem, se simplesmente se acham colocados face a face homem com homem, ento fervem namente os pensamentos de igualdade, arde no corao o sentimento de independncia, a fronte seimpe altaneira e as paixes rugem ameaadoramente. Por isso, em se tratando de alcanarobedincia voluntria e duradoura, mister se faz que quem manda se encubra, desaparea o homeme s se veja o representante de um poder superior ou a personificao dos motivos que transmitemao sdito a justia e a utilidade da submisso: dessa maneira no se obedece vontade alheia peloque ela em si, mas sim porque representa um poder superior ou o intrprete da razo e da justia;ento quem deve obedecer no sente ultrajada sua dignidade e a obedincia se lhe afigura suave esuportvel.

    Bem de ver que no eram dessa ndole os ttulos em que se fundava a obedincia dosescravos antes do Cristianismo. Os costumes os equiparavam aos brutos e as leis vinham, se queisso fosse possvel, acentuar a humilhao, usando de uma linguagem que no se pode ler semindignao. O dono mandava porque tal era sua vontade, e o escravo se via compelido a obedecer,no por fora de motivos superiores nem de obrigaes morais, mas sim porque era umapropriedade do seu senhor, era como um cavalo, comandado pelo cabresto, como uma mquina quedevia responder ao impulso do manobrista. Que pode haver de surpreendente, pois, que aquelesinfelizes, carregados de infortnio e de ignomnia, abrigassem em seus peitos uma profunda econcentrada mgoa, uma virulenta ira, uma terrvel sede de vingana, prontas para explodir deforma espantosa na primeira oportunidade? A horrorosa degola em Tiro, exemplo e terror douniverso, na expresso de Justino; as repetidas sublevaes dos penestas em Tesslia e dos ilotas emLacedemnia; as defeces em Atenas, como durante a guerra do Peloponeso; a insurreiocomandada por Herdnio e o terror por ela semeado entre todas as famlias de Roma; os sangrentosepisdios proporcionados pelas hostes de Esprtaco e sua tenaz e desesperada re-

    38sistncia que foram seno o resultado natural do sistema de violncia, de ultraje e de desprezocom que se tratavam os escravos? Tal a natureza do homem que quem semeia ventos colhetempestades.

    Esta verdade no escapou ao Cristianismo e, por isso mesmo, se pregou a obedincia,procurou fund-la em ttulos divinos; se resguardou os direitos dos senhores, tambm lhes ensinoucom nfase suas obrigaes; e assim, onde prevaleceram as doutrinas crists, puderam os escravosdizer: Somos infelizes, verdade; desgraa nos condenaram o nascimento, a pobreza ou osreveses da guerra; mas afinal somos reconhecidos como homens, como irmos, e entre ns e nossosamos h uma reciprocidade de obrigaes e de direitos. Ouamos, a propsito, o que ensinou oApstolo: Escravos, obedecei a vossos senhores temporais com reverncia e solicitude, nasinceridade do vosso corao, como a Cristo, no os servindo s quando sob suas vistas, apenaspara agradar aos homens, mas como servos de Cristo fazendo de corao a vontade de Deus,servindo-os com boa mente, como se servsseis o Senhor e no os homens, sabendo que cada um

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  • receber do Senhor a paga do bem que tiver feito, quer seja escravo ou livre. E vs, senhores, fazeio mesmo com vossos escravos, pondo de parte as ameaas, sabendo que o Senhor, tanto deles comovosso, est nos cus e no faz acepo de pessoas (Efs., VI, 5-9).

    Na carta aos colossenses (c. III) volta a proclamar a mesma doutrina da obedincia,fundando-a nos mesmos motivos; e como que consolando os infelizes escravos lhes diz: DoSenhor recebereis a herana do cu como recompensa. Servi, pois, a Cristo Senhor. E aquele quecometer injustia receber segundo o que fez injustamente, pois no h acepo de pessoas diantede Deus (III, 24-23). E mais abaixo, dirigindo-se aos senhores, acrescenta: Vs, senhores, trataios vossos escravos com justia e eqidade, sabendo que tambm vs tendes um Senhor no cu (IV,1),

    Disseminadas doutrinas to benficas, j se v que teria de melhorar grandemente acondio dos escravos, sendo o seu resultado mais imediato a moderao daquele rigor toexcessivo, daquela crueldade to aguda que nos pareceriam incrveis se a respeito nodispusssemos de testemunhos irrecusveis. Sabe-se que o dono tinha o direito de vida e de mortesobre os escravos e que abusava dessa faculdade at o ponto de mat-los por simples capricho,como o fez Quntio Flamnio em meio de um festim, ou de lan-los s morias

    39apenas por terem involuntariamente quebrado um vaso, como no episdio que narra Vdio Polio. Etamanha crueldade no estava circunscrita a algumas famlias que tivessem chefes especialmentesem entranhas, mas sim estava erigida em sistema resultado funesto mas inexorvel do extraviodas idias e do desvanecimento dos sentimentos de humanidade; regime violento e que s se podiasustentar mantendo continuamente os escravos sob mo de ferro; situao que s se interrompiaquando os oprimidos conseguiam prevalecer e lanar-se sobre seus opressores para faz-los empedaos. Da a razo do antigo provrbio: Tantos inimigos quantos escravos.

    J vimos os estragos que faziam esses homens furiosos e sedentos de vingana toda vez quepodiam romper os grilhes que os oprimiam. Mas no lhes ficavam atrs os senhores quando setratava de inspirar-lhes temor. Em Lacedemnia, suspeitando-se um dia das ms intenes dosilotas, foram estes reunidos prximo ao templo de Jpiter e passados todos pelo cutelo (Tucdides,1. 4.). E em Roma havia o brbaro costume de, sempre que fosse assassinado algum senhor, todosos seus escravos serem condenados morte. Causa arrepios ler em Tcito (Ann., 1. 14, 43) ahorrorosa cena ocorrida depois de ter sido assassinado por um de seus escravos o prefeito da cidade,Pednio Segundo. Eram nada menos que quatrocentos os escravos do defunto e, segundo a norma,deviam todos ser levados ao suplcio. Essa perspectiva to lastimvel e cruel de dar-se morte atantos inocentes suscitou a compaixo do povo, que chegou ao extremo de amotinar-se para impedirtamanha carnificina. Perplexo, o Senado examinava a questo quando tomou a palavra um oradorde nome Cssio, que sustentou com energia a necessidade de levar a cabo a execuo coletiva, nos porque assim o prescrevia o antigo costume, mas tambm porque era a nica maneira deprevenir-se a animosidade dos escravos para com seus donos. Em suas palavras s se fazem ouvir ainjustia e a tirania; v perigos e traies por toda parte; no sabe cogitar de outros preventivos queno a fora e o terror; e particularmente notvel este trecho de seu arrazoado, porque em breveespao retrata as idias e costumes dos antigos sobre o assunto: Suspeita foi sempre para nossosmaiores a ndole dos escravos, mesmo daqueles que, por terem nascido em suas prprias possessese casas, poderiam desde o bero ter engendrado afeio pelos donos; ainda mais agora quedispomos de escravos de naes estrangeiras, com diferentes usos e mltiplas re-

    40ligies, o nico meio de conter essa canalha o terror. No episdio em foco a crueldade acabouprevalecendo: reprimiu-se a ousadia do povo, encheu-se de soldados o caminho para o patbulo, eos quatrocentos desgraados foram executados.

    Suavizar esse tratamento cruel, banir essas horrendas atrocidades, esse era o primeiro frutoque deveriam proporcionar as doutrinas crists. E pode-se assegurar que a Igreja jamais perdeu devista esse importante objetivo, procurando fazer com que a condio dos escravos melhorasse cadavez o mais possvel, que em matria de castigos se substitusse a crueldade pela indulgncia, e que

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  • o que era mais relevante a razo passasse a ocupar o lugar do capricho, trocando-se aimpetuosidade dos senhores pela serenidade dos tribunais. Com isso se iam aproximando osescravos aos livres, passando a reger tambm em relao queles no o fato, mas sim o direito.

    A Igreja no esqueceu jamais a formosa lio do Apstolo quando, escrevendo a Filmon,intercedia por um escravo (e escravo fugitivo!) chamado Onsimo, usando de uma linguagem comonunca at ento se ouvira em favor dessa classe de infelizes: Rogo-te pelo meu filho Onsimo,( . . . ) o qual outrora te foi intil ( . . . ) e que tornei a te enviar. Recebe-o ( . . . ) no j como umescravo mas, muito mais do que isso, como um irmo carssimo. ( . . . ) Se me amas, recebe-o comoreceberias a mim; se ele te causou algum dano ou se te deve alguma coisa, debita tudo em minhaconta (Fil., 10-19). No, a Igreja no esqueceu essa lio de fraternidade e de amor, e procurarsuavizar a sorte dos escravos foi uma de suas tarefas prediletas.

    O Conclio de Elvira, realizado em princpios do sculo IV, sujeita a penitncia a mulher quetenha golpeado e ferido gravemente sua escrava. O de Orleans, celebrado em 549, prescreve (cn.22) que, se se refugiar numa Igreja algum escravo que tenha determinadas faltas, seja ele devolvidoao seu amo, mas exigindo-se previamente deste o juramento de que no lhe far nenhum mal; e casotal juramento seja quebrado e o escravo submetido a maus tratos, ao perjuro se aplique a pena deexcluso da comunho e da mesa dos catlicos. Este cnone evidencia duas coisas: a crueldadecostumeira dos senhores e o zelo da Igreja em suavizar o trato dos escravos. Para pr freio crueldade era necessrio exigir nada menos do que um juramento, e a Igreja, de si muito prudenteem matria de juramentos, considerava o assunto de importncia tal que se justificava a o empregodo augusto nome de Deus.

    41O favor e a proteo que a Igreja dispensava aos escravos estendiam-se rapidamente e, ao

    que parece, introduziu-se em alguns lugares o costume de exigir no juramento que o escravorefugiado no s no receberia danos pessoais, mas tambm que no seria onerado com trabalhosextraordinrios nem receberia qualquer marca ou trao distintivo. Desse costume, procedente semdvida do zelo pelo bem da humanidade, mas que talvez tenha acarretado inconvenientes aoafrouxar com demasiada rapidez os laos de obedincia e dar lugar a excessos por parte dosescravos, encontram-se indcios numa disposio do Conclio de Epaona, celebrado por volta doano 517, e na qual se procura atalhar o mal prescrevendo uma prudente moderao, sem no entantoabrir mo da proteo estatuda. Em seu cnone 39 ordena que, se um escravo ru de algum delitoatroz se refugiar na Igreja, somente seja ele isentado das penas corporais, no se obrigando o dono aprestar juramento de que no lhe impor trabalho extraordinrio ou no lhe raspar os cabelos a fimde que sua condio fique para todos evidente. Mas note-se bem que essa limitao se aplicariasomente quando o escravo tivesse cometido delito grave e, nesse caso, a faculdade que se deixa acritrio do amo to somente a de impor-lhe trabalho extraordinrio ou distingui-lo pela raspagemdo cabelo.

    Talvez no falte quem recrimine semelhante indulgncia, mas mister advertir que, quandoos abusos so grandes e arraigados, o empuxo para arranc-los tem de ser forte e, se bem que primeira vista parea ultrapassar os limites da prudncia, esse aparente excesso no mais do queaquela oscilao que freqentemente sofrem as coisas antes de encontrar seu verdadeiro equilbrio.Aqui no tratava a Igreja de proteger o crime, no reclamava clemncia para quem no a merecesse;o que tinha em vista era pr cobro violncia e ao capricho dos senhores; no podia consentir emque um homem sofresse tormentos e at morte s porque assim o queria outro homem. Oestabelecimento de leis justas e a legtima ao dos tribunais so coisas s quais jamais se ops aIgreja, mas com a violncia dos particulares no pde concordar nunca.

    Desse esprito de oposio ao exerccio da fora privada encontra-se uma mostra que vemmuito a calhar no cnone 15 do Conclio de Mrida, celebrado no ano de 666. sabido, e j odeixamos consignado em outro ponto, que os escravos eram uma das partes principais dapropriedade e que, estando regulamentada a distribuio do trabalho de acordo com essa base, noera possvel prescindir

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  • de ter escravos a quem fosse dono de propriedades, sobretudo se alcanavam estas proporesconsiderveis. A Igreja se achava neste caso e, como no estava em suas mos modificarrepentinamente a organizao social, teve de acomodar-se quela necessidade e possu-los tambm.Ento, se com respeito a eles queria introduzir melhoras, bom seria que comeasse dando elamesma o exemplo; e esse exemplo se encontra no cnone conciliar h pouco citado. Nele, depois dese proibir bispos e sacerdotes de castigar os serventes da Igreja com mutilaes, dispe-se que, seeles cometerem algum delito, sejam entregues a juzes seculares, mas reservando-se autoridadeeclesistica a faculdade de moderar as penas a que fossem condenados. digno de nota que,segundo se deduz desse cnone, estava ainda em uso o direito de mutilao aplicado pelo donoparticular, e devia tal costume conservar-se ainda muito arraigado, j que o conclio se limita aved-lo aos eclesisticos e nada diz com relao aos leigos.

    Nessa proibio influa sem dvida a considerao de que, mesmo derramando sanguehumano, no se tinham tornado os eclesisticos incapazes de exercer aquele elevado ministrio cujoato principal o augusto sacrifcio em que se oferece uma vtima de paz e de amor; mas isto emnada diminui o mrito da deciso ou restringe sua influncia na melhoria da sorte dos escravos:sempre era substituir a vindita particular pela punio pblica; era uma nova proclamao daigualdade dos escravos com os livres, quando se tratava de efuso de sangue; era declarar que asmos que derramassem o de um escravo ficavam to manchadas como se tivessem vertido o de umhomem livre. E se fazia necessrio inculcar de todos os modos essas verdades salutares, j queestavam em to aberta contradio com as idias e os costumes antigos; impunha-se trabalharassiduamente para que desaparecessem as aberraes vergonhosas e cruis que mantinham a maiorparte dos homens privados da participao nos direitos humanos.

    No cnone h pouco citado h uma circunstncia notvel que atesta a solicitude da Igreja emrestituir aos escravos a dignidade e considerao de que se achavam despojados. A raspagem doscabelos era entre os godos uma pena muito degradante e que, segundo informa Lucas de Tuy, quaselhes era mais temvel que a morte. Mas compreenda-se que, qualquer que fosse a preocupao comesse ponto, podia a Igreja permitir a raspagem sem incorrer na ignomnia em que implicava oderramamento de sangue. Mesmo assim, no

    43quis faz-lo, porque procurava apagar qualquer marca de humilhao que se estampasse na frontedo escravo. E ento, depois de ter prescrito aos bispos e sacerdotes que entregassem ao juiz osservos culpados, dispe que no tolerem que se lhes raspem os cabelos com oprbrio,

    Nenhum cuidado era demais nessa matria: era necessrio aproveitar todas as ocasiesfavorveis para conseguir algum progresso na extirpao das odiosas aberraes que afligiam osescravos. Essa necessidade se manifesta bem claramente no modo como se expressa o XI Concliode Toledo, celebrado no ano de 675. Em seu cnone 6 probe aos bispos julgar casos de delitosdignos de morte, bem como de mandar aplicar a pena de mutilao de membros. Mas veja-se quejulgou necessrio advertir que no admitia nenhuma exceo, nem mesmo contra os servos de suaIgreja. O mal era grave e no podia ser curado seno com solicitude permanente. Desse modo, atem relao ao direito mais cruel de todos, qual seja o de vida e morte, verifica-se como extirp-loexigia muito trabalho. Em princpios do sculo VI no faltavam exemplos de excessos nessamatria, tanto que o Conclio de Epaona, em seu cnone 34, dispe que seja privado por dois anosda comunho da Igreja o amo que, por sua prpria autoridade, faa perder a vida seu escravo. Jamos por meados do sculo IX e ainda eram encontradios atentados semelhantes, que o Concliode Worms, celebrado em 868, se props reprimir, sujeitando a dois anos de penitncia o amo que,por sua autoridade privada, tivesse dado morte a seu escravo.

    45T E R C E I R A P A R T E

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  • A Igreja defende com zelo a liberdade dos alforriados. Manumissonas igrejas. Saudveis efeitos desta prtica. Redeno de cativos. Zelo daIgreja em praticar e promover esta obra. Preocupao dos romanos a respeitodeste ponto. Influncia que teve na abolio da escravatura o zelo da Igrejapela redeno dos cativos. A Igreja protege a liberdade dos ingnuos.

    Enquanto se suavizava o tratamento dos escravos e eram eles aproximados o quanto possveldos homens livres, impunha-se no descuidar da obra de emancipao universal, pois no bastavamelhorar aquele estado mas, sim, era preciso aboli-lo. A fora da doutrina crist, de per si, e oesprito de caridade que com ela se ia difundindo por toda a terra golpeavam to vivamente aescravatura que, mais cedo ou mais tarde, teria de sobrevir a completa abolio desta, porque impossvel que a sociedade permanea por longo perodo numa ordem de coisas que esteja emcontradio com as idias de que uma grande maioria de seus membros se ache imbuda. Segundo oCristianismo, todos os homens tm uma mesma origem e um mesmo destino, todos so irmos emJesus Cristo, todos esto obrigados a amar-se desde o ntimo de seus coraes, todos devemsocorrer-se mutuamente nas necessidades, a todos vedado ofender-se mesmo por palavras, todosso iguais perante Deus e sero julgados sem acepo de pessoas. Essas doutrinas se iamestendendo, arraigando em todas as partes, apoderando-se de todos os ramos da sociedade: comoseria ento possvel que continuasse a escravido, esse estado degradante em que o homem propriedade da outro, em que vendido como um bruto, em que privado dos doces laos dafamlia, em que no participa de nenhum dos benefcios da sociedade? Coisas to antagnicaspoderiam viver juntas?

    46As leis estavam a favor da escravatura e, na verdade, o Cristianismo no deflagrou nenhum

    movimento de desobedincia direta a essas leis; mas em troca fez o que? Procurou apoderar-se dasidias e costumes, transmitiu-lhes um novo impulso, deu-lhes uma direo diferente e, feito isso,o que podem as leis? Viu-se ento afrouxar-se seu rigor, ser progressivamente descuidada suaobservncia, comear a ser questionada sua eqidade, proliferarem as discusses sobre suaconvenincia, aguar-se a conscincia de seus maus efeitos, e assim as antigas normas foramcaducando pouco a pouco, de maneira que s vezes nem se fez necessrio um golpe frontal paraderrub-las: elas simplesmente foram postas de lado e esquecidas por se terem tornado inteis. Ou,se mereceram o trabalho de uma abolio expressa, isto foi feito por mera formalidade: como umcadver que se enterra com honrarias.

    Mas no se infira da que, por dar tanta importncia s idias e costumes cristos, se tenhaabandonado o xito da causa aos exclusivos efeitos dessa fora, sem que ao mesmo tempo cuidassea Igreja de, conforme as circunstncias de poca e lugar, tomar medidas concretas conducentes aoobjetivo visado. Nada disso. Conforme j foi anteriormente referido, a Igreja lanou mo de vriosmeios, os mais apropriados em cada caso para surtir os resultados desejados.

    Se se queria assegurar a efetividade da obra de emancipao, era muito conveniente, emprimeiro lugar, colocar a salvo de todo ataque a liberdade dos escravos alforriados liberdade essaque era com freqncia combatida e que se via gravemente ameaada. Deste triste fenmeno no difcil encontrar as causas nos resduos de idias e costumes antigos, na ambio dos poderosos, nosistema de violncia generalizada implantado com a irrupo dos brbaros, e na pobreza, desamparoe despreparo em que com certeza se encontravam os infelizes recm-sados da escravatura (porque de supor que muitos deles no conhecessem todo o valor da liberdade, no se portassem sempre nonovo estado de acordo com o que mandam a razo e a justia, e no soubessem cumprir todas asobrigaes decorrentes dos direitos de homem livre que tinham acabado de recuperar ou dos quaispela primeira vez se tinham tornado possuidores). Mas todos esses inconvenientes, inseparveis danatureza das coisas, no deveriam entravar a consumao de uma obra reclamada pela religio epela humanidade. Era necessrio resignar-se a sofr-los, levando em conta que na parte de culpa quepudesse caber aos manumitidos havia muitos motivos de escusa,

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  • 47porque o estado de que acabavam de sair embargava o desenvolvimento de suas faculdadesintelectuais e morais.

    Cuidou assim a Igreja de colocar a liberdade dos manumitidos a coberto dos ataques dainjustia, vinculando a alforria a objetos que na poca exerciam mais poderosa ascendncia sobre aconscincia coletiva e, de certa forma, revestindo de uma inviolabilidade sagrada a emancipao.Da o costume que se introduziu de realizar-se a manumisso no interior dos templos. Esse ato, aomesmo tempo que revogava e lanava no esquecimento antigos usos, vinha constituir-se numadeclarao tcita do quo agradvel a Deus era a liberdade humana e correspondia a umaproclamao prtica da igualdade de todos perante o Criador. Tanto assim que a emancipao seexecutava no mesmo local onde com freqncia se liam trechos das Escrituras que falavam queperante Ele no h acepo de pessoas, onde desapareciam todas as distines mundanas, ondeficavam misturados todos os homens, unidos por suaves laos de fraternidade e amor. Efetuadadesse modo a manumisso, ficava a Igreja com mais expedito direito para defender a liberdade domanumitido pois, tendo sido testemunha do ato, podia dar f de todas as circunstnciasconfiguradoras de sua validade e, ainda, reclamar sua observncia sob o argumento de que suaviolao equivalia de certa forma a uma profanao do lugar sagrado, ao descumprimento doprometido diante do prprio Deus,

    No esquecia a Igreja de aproveitar todas as oportunidades para reafirmar semelhantescircunstncias favorveis aos manumitidos. Assim que o I Conclio de Orange, celebrado em 441,dispe em seu cnone 7 que preciso impor censuras eclesisticas aos que quiserem submeter aqualquer tipo de servido os escravos emancipados na Igreja. E, um sculo depois, a mesmaproibio repetida no cnone 7 do V Conclio de Orleans, realizado no ano de 549,

    A proteo dispensada pela Igreja aos manumitidos era to manifesta e conhecida de todosque se adotou o costume de recomend-los particularmente ao seu zelo. Fazia-se essa recomendaos vezes em testamento, como no-lo indica o Conclio de Orange h pouco citado, ao ordenar que,por meio de censuras eclesisticas, se impea que sejam submetidos a qualquer gnero de servidoos escravos emancipados recomendados Igreja por testamento. Mas nem sempre se fazia portestamento essa recomendao, segundo se infere do cnone 6 do Conclio de Toledo, celebrado em589, e onde se dispe que, quando tiverem sido recomendados Igreja quaisquer

    48manumitidos, no sejam privados da proteo da mesma no somente eles mas tambm seus filhos;aqui se fala em geral, sem se limitar aos casos em que o instrumento utilizado tenha sidotestamento. O mesmo se pode constatar em outro Conclio de Toledo celebrado no ano de 633: a seestabelece que a Igreja receber sob sua proteo unicamente os emancipados por particulares que aela os tenham recomendado.

    Mesmo quando a manumisso no tenha sido feita no templo nem tenha havidorecomendao particular, a Igreja no deixava de tomar parte na defesa dos manumitidos quandovia perigar sua liberdade. Quem preze em algo a dignidade do homem, quem abrigue no peitoalgum sentimento de humanidade seguramente no levar a mal que a Igreja se intrometesse nessamatria; no lhe desagradar saber que o cnone 29 do Conclio de Agde, no Languedoc, celebradoem 506, determinou que a Igreja, se necessrio, tomasse a defesa de todos aqueles aos quais seusamos tinham legitimamente dado a liberdade.

    Na grande obra de abolio da escravatura efetivamente teve relevante participao o zeloque, em todos os tempos e lugares, a Igreja despendeu pela redeno dos cativos. Considere-se apropsito que uma parcela considervel de escravos devia esta sorte aos reveses da guerra. Ai dosvencidos!, podia-se exclamar nos tempos antigos. Para os derrotados no havia alternativa alm damorte ou da escravido. Agravava-se o mal com uma preocupao funesta que se haviadesenvolvido contra a redeno dos cativos preocupao essa que se apoiava em vislumbres deassombroso herosmo. Admirvel sem dvida a extraordinria fora de nimo de um Rgulo;arrepiam-se os cabelos quando se lem as vigorosas pinceladas com as quais o retrata Horcio (1.3., Odes 5); e o livro cai das mos quando se chega ao terrvel lance em que:

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  • Fertur pudicae coniugis osculum Parvosque natos, ut capitis minor, A se removisse, et virilem Torvas humi possuisse vultum.

    Mas, sobrepondo-se profunda impresso que nos causa tanto herosmo e ao entusiasmoque suscita em nosso peito tudo quanto revela uma grande alma, no podemos deixar de reconhecerque a