A Igreja Segundo o Dispositivo de Foucault
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A Igreja Segundo o Conceito de Dispositivo de Foucault1 2
Luiz Guilherme Leite AMARAL3 Universidade de Sorocaba, SP
Resumo Este artigo apresenta o conceito de Dispositivo foucaultiano como instrumento de controle da Igreja Católica perante seus fiéis, seja pela hierarquização da própria instituição quanto pelo seu sistema de crenças e como ele é aplicado desde sua fundação, há mais de dois mil anos. O panóptico, modelo de vigilância em que o observador nunca é visto mas sua presença torna-se constante para o observado, é analisado como um elemento da fé em Deus: toda a estrutura da Igreja se assemelha ao panóptico e ao Dispositivo. O conceito de deus único é absorvido como um modelo de vigilância em função da sua supremacia, mas é também discutido por não servir como o freio moral que se espera. Palavras-chave: Religião. Igreja. Foucault. Dispositivo. Controle. 1. Introdução
Uma das principais características do Cristianismo é a capacidade de hierarquizar-se
em todas as suas estruturas, desde as instâncias mais nucleares até as mais periféricas.
Identificamos este fenômeno quando analisamos a maneira com que a Igreja foi estruturada
burocraticamente: papa, bispos arcebispos, diáconos, freiras, madres superioras, padres,
coroinhas e muitos outros postos que têm como premissa acatar as decisões advindas do
Vaticano, pô-las em prática e garantir a manutenção de tudo que é preconizado.
Mesmo em seus primórdios, o Cristianismo já era estratificado. Jesus escolheu doze
pessoas, os apóstolos, com a tarefa de difundir suas ideias pelo Oriente Médio e, mais tarde,
pela Europa muito em função do processo de Helenização (a unificação de ideias e línguas)
liderado por Alexandre Magno durante seu império (HARNACK, p. 20-21). O Judaísmo
torna-se, aí, o precursor do modelo mais fundamental para o Cristianismo muito em função da
divulgação destas ideias nas sinagogas (HARNACK, p. 10), porém o Cristianismo pode ser
considerado uma dissidência por defender o que é caracterizado como o principal pilar desta
fé: a vinda, morte e ressurreição de seu messias, Jesus Cristo.
1 Trabalho apresentado ao DT08 – Estudos Interdisciplinares da Comunicação do XXI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste realizado de 17 a 19 de junho de 2016. 2 Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Paulo Celso da Silva, graduação em Geografia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Sorocaba (1988), graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Sorocaba (1989), mestrado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo (1995) e doutorado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo (2000). Pós doutoramento pela Universitat de Barcelona (2001-2). E-mail: [email protected]. 3 Graduação em Comunicação Social pela Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação de Sorocaba (2007). Mestrando em Comunicação e Cultura pela Universidade de Sorocaba (bolsa PROSUP/Capes). E-mail: [email protected]
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O Cristianismo, a partir do quarto século, passa a se embrenhar com mais força nas
sociedades com a transposição das lideranças para o Oeste (HARNACK, p. 21). Isto significa
que a transferência do poder para Roma fez com que ela se tornasse o foco das atenções e,
portanto, estivesse suscetível a transformações sociais e políticas. Durante mais de 300 anos,
era tida como uma religião marginal até que Constantino Magno, em 325 da Era Comum,
declarou-a religião oficial de Roma – uma manobra política para restaurar o poder, garantindo
reconhecimento e privilégios (HARNACK, p. 142), pois a sociedade estava bastante dividida
entre o paganismo, o judaísmo e o cristianismo.
A propaganda cristã torna-se eficiente porque o Cristianismo é mais inclusivo que o
Judaísmo, pois, basicamente, o judeu se vê diante dos não-judeus como “nós e eles”
(COHEN, p. 2). O autor ainda enfatiza que o judaísmo está mais próximo a uma etnia que a
uma religião em função do seu forte enraizamento identitário e cultural (COHEN, p. 147).
Enquanto existe uma primeira opção monoteísta que possui barreiras muito espessas para se
atravessar em termos de aceitação, o Cristianismo acaba por se tornar uma segunda opção
monoteísta que reflete um lado humanístico e menos burocrático. Este humanismo também é
reflexo do processo de Helenização do Leste:
Até o final do segundo século da era cristã, o processo de Helenização parecia ter se
exaurido, enquanto no quarto século, quando o trono do Imperador foi levado ao
Oeste, o movimento foi reforçado por mais ímpeto em diversas frentes importantes.
Apesar de o cristianismo aliou-se rapidamente porém incompletamente ao discurso e
espírito Helenistas, ele estava em vias de beneficiar-se com a grande parcela de
sucesso daquele movimento. Ao final, o cristianismo aprofundou-se no Helenismo e
forçou seu fim.4
Há alguns fatores que, em confluência, permitiram que o Cristianismo se alinhasse
cada vez mais com os governos. O primeiro é a comunicação. A comercialização de produtos
4“Not until the close of the second century A.D. does this Hellenizing process appear to have exhausted ifself,
while in the forth century, when the seat of empire was shifted to the East, the movement acquired a still further
impetus in several important directions. As Christianity allied itself very quickly though incompletely to the
speech and spirit of Hellenism, it was in a position to avail itself of a great deal in the success of the latter. In
return it furthered in the advance of Hellenism and put a check to its retreat”. HARNACK, A. The Mission and
Expansion of Christianity in the First Three Centuries. Gloucester: Harper & Row, 1971, pág. 20-21 [tradução
livre].
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entre diferentes cidades fazia com que as pessoas se relacionassem entre si e trocassem
informações a respeito do cotidiano, da política e das crenças particulares de cada lugar. Em
uma época onde crenças eram desorganizadas, era comum assumir elementos místicos de
grupos vizinhos quando fosse conveniente ou fizesse sentido dentro da própria estrutura de
crença adotada. A expansão do cristianismo se dá exatamente por uma comunicação que
carregava um agendamento bastante delineado, e seu êxito residia na homilética – a pregação.
Os primeiros cristãos viajavam por diferentes cidades e falavam sobre esta crença e de como
ela aceitava os que acreditavam nela se optassem abandonar suas convicções atuais. A
conversão é um dos elementos mais importantes no cristianismo. A comunicação falada era
ainda mais importante em uma época em que a maioria era analfabeta. A homilética torna-se a
ferramenta ideal, pois era possível reunir pequenos grupos de pessoas que ouvissem o que um
pregador cristão tinha a dizer e depois disseminar estas ideias no “boca-a-boca”.
Refletindo a experiência da conversão religiosa, vemos sua importância na maneira
como o mundo será resiginificado, tanto na comunicação mundana quanto na comunicação
com a divindade, ou seja, valores, sentimentos, comportamentos que implicam, na concepção
desses indivíduos, em uma melhoria da qualidade de vida. Dessa forma, quando apóstolos e
convertidos peregrinam levando e convencendo pela mensagem católica, instauram um novo
canal de comunicação de valores morais que alteram significativamente a vida das pessoas.
Como um diferencial dessa comunicação temos a recompensa no próprio cotidiano, com
novas ações e reações, como citado por Freitas e Holanda (apud GOMES, p. 138), "o termo
conversão é utilizado também para caracterizar a entrada em uma nova religião, capaz de
transformar a cosmovisão do sujeito, mudar a identidade do converso e alterar sua relação
com a realidade e o mundo".
Destaca-se ainda que a conversão vem acompanhada de um momento anterior de
crise, no qual os ruídos assumem o papel comunicacional, dificultando a compreensão e as
decisões. Em grego, a palavra crise (κρισις - krisis), pode significar “separar”, “decidir”,
“transformar” e também uma situação de agravamento ligado a enfermidades. Em todas as
concepções, a palavra indica um movimento negativo a ser superado na busca de um positivo,
ainda que esses juízos não sejam exatos pois, esse movimento tenso, dito negativo, foi o que
possibilitou a solução seguinte -- positivo.
Assim posto, a força da conversão ocorre dessa dialética comunicacional travada
pelo indivíduo interna e externamente na busca da resolução de suas questões físicas e
metafísicas. Enquanto processo comunicacional, a conversão traz o significado perdido na
crise em que o ser e o não-ser atingem o mesmo status no interior/exterior pessoal e, por meio
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da aceitação do divino, o reencontro consigo mesmo é possibilitado e recompensado no êxtase
e na promessa da eternidade, já que o pecado aqui é a “ausência de vida”, mas:
(...) a eternidade é uma qualidade da vida divina não podendo ser atribuída a um ser
condenado pelo pecado; já a conversão é a experiência pela qual o Homem
experimenta a regeneração e o perdão de seus pecados, livrando-se da condenação,
sendo resgatado do não-ser e tendo a possibilidade de vida autêntica, de
transcendência (FREITAS E HOLANDA apud PEREIRA, 2006, p.124).
A conversão, pelo processo comunicacional, possibilita a transcendência.
O segundo, de acordo com Harnack (2005), é a unidade política promovida por
Roma, que trouxe métodos e condições para uma vida social estável e profícua, com a
possibilidade de vagar por estradas que conectam diferentes regiões, que tinham
primordialmente a função de facilitar o tráfico de produtos, ideias e soldados. Com estradas
prontas, a propaganda do Cristianismo podia penetrar nas cidades. Há também a influência do
orbis Romanus, ou seja, o senso de unidade, direitos e deveres defendidos por Roma. O
Cristianismo acaba por se apropriar desta ideia em suas campanhas de evangelização ao dizer
que também possui estes valores.
A política territorial de Roma cria assim um sistema de comunicação entre os lugares
no qual as ideologias necessárias à manutenção do Império são assumidas pelo discurso dos
missionários cristãos, e este, no limite, possibilitou o cristianismo5. Geograficamente, os
territórios gregos e asiáticos unificados por Alexandre Magno, em sua parte oriental, podem
ser considerados como ligados por uma mesma cultura e valores. As três viagens apostólicas
de Paulo à Ásia Menor, intercaladas entre os anos de 44 e 58, são exemplos dessa missão
evangelizadora que se irradiou da Palestina e da Síria (SCHELESINGER E PORTO, 1987, p.
96-98) e foi possibilitada por uma extensa rede de comunicação existente no Império. Nessas
viagens, Paulo e seus companheiros podem dialogar com adeptos das religiões pagãs, então
toleradas e apropriadas pelo Estado quando de sua conquista. Assim como o cristianismo, os
Mistérios de Elêusis, os Mistérios órfico-dionísicos, os mistérios ligados ao culto de Cibele e
Átis, ao culto de Isís e Serápis, Adônis, Mítra foram também amplamente “comunicados pelos
autóctones que já praticavam em seus países de origem e que foram forçados a imigrar como
comerciantes livres ou como prisioneiros de guerra” (SCHELESINGER E PORTO, 1987, p.
95). 5 Aqui entendemos o ismo como práticas conscientes entre os cristãos e, ainda, o conhecimento das condições mais gerais (social, política, ideológica) que se expressavam no espaço e tempo.
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Dessa forma, a política religiosa de Roma, somada ao declínio das ciências exatas,
talvez sejam os fatores mais decisivos para a empreitada cristã. Enquanto o primeiro pregava
mais tolerância com outras religiões – antes, claro, do Cristianismo se tornar religião oficial
de Roma – como uma compensação pelo severo controle promovido na sociedade em outras
áreas, o segundo tem a ver com a ascensão do místico e do metafísico na direção do
pensamento mágico, a busca por milagres (HARNACK, p. 21-22).
O Século V é marcado pelo início da Idade Média. No entanto, as cidades europeias
investem na manutenção de muitos costumes que se estabeleceram durante o Império
Romano, como as instituições, as línguas, literatura e artes (BISHOP, p. 7). O Cristianismo
torna-se a religião oficial de muitos governos com a conversão de seus líderes, o que coloca o
paganismo no ostracismo. A ideia de um deus único e a hierarquização da Igreja Católica são
fatores que favorecem o inevitável embricamento entre religião e Estado. Este aparelhamento
do governo por parte do Cristianismo faz com que a religião exerça não apenas sua função de
fé e misticismo, mas seja também um dispositivo de punição e ordem social.
Vigiar e Punir dentro da Igreja
O conceito de panóptico foi desenvolvido, em 1785, pelo filósofo e jurista inglês
Jeremy Bentham e, por ser um dispositivo de vigilância e, mais ainda, dispositivo disciplinar,
parece acertado pensar que ele, como um representante do século XVIII, também tenha se
dado conta de que desenhou a esquemática de vigilância divina utilizada pela Igreja Católica.
Michel Foucault (2004) retoma o conceito para as instituições contemporâneas e analisa o
panoptismo como um dispositivo disciplinar (p. 163). No início do capítulo III, o filósofo
francês conta como era feita a desinfecção de residências em épocas de surtos e quarentenas.
Tudo era estritamente registrado em relatórios, havia hierarquias de funcionários municipais
que desempenhavam papéis específicos – levar comida, fazer a chamada diária de porta em
porta, etc. – e garantir que houvesse punição com morte para quem fugisse do que estava
estabelecido.
Apesar do Panóptico se tratar de uma estrutura física, arquitetônica, é a partir de sua
finalidade e seu efeito que podemos traçar uma comparação com o sentido de vigília
constante adotado pela Igreja. A Estrutura arquitetônica consiste em uma prisão com
construção circular ou em forma de anel com uma torre muito alta em seu centro. A luz que
passa pelas vidraças e as persianas da torre não permitem que os detentos vejam se há um
vigia na torre controlando todas as atividades nas celas. A sensação de vigilância constante é
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criada na mente do prisioneiro sem que ela esteja efetivamente acontecendo. Conforme nos
mostra Foucault (2004), “daí o efeito mais importante: induzir no detento um estado
consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder”:
Este espaço fechado, recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos
estão inseridos em um lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados,
onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de
escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma
figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado,
examinado e distribuído(...) – tudo isso constitui um modelo compacto do
dispositivo disciplinar (FOUCAULT, p. 163).
O Panóptico torna-se, dentro de uma lógica de poder, um instrumento eficaz porque
a sensação de vigilância constante, ao menos na teoria, faz moldar o caráter do indivíduo
vigiado para que ele pareça estar cada vez mais dentro dos limites estabelecidos de
comportamento. Bentham, no entanto, utiliza um recurso essencial: o poder visível e
inverificável (p. 167). Isto significa que o detento sabe que está sendo vigiado porém não tem
certeza de quem o está vigiando – mas “sabe” que está sempre sendo vigiado – e, portanto,
restringe-se ao que lhe é incumbido: seguir as regras e não ser punido.
Este estado de “vigilância constante” no Panóptico é o mesmo empregado pela
Igreja: a figura de um deus que vigia cada passo e para quem se prestaria contas após a morte
de um indivíduo, mas que é uma figura que nunca é vista. Um crente afirmar que Deus está
em todos os lugares e que Ele segue todos os seus passos torna-se igualmente aterrorizante
pelo fato de que religiões, assim como prisões ou manicômios, trabalham com sistemas de
recompensas e punições. Se o prisioneiro não se rebela, terá seu alimento e seu banho de sol
como recompensas pelo bom comportamento; se ele se rebela, poderá sofrer punições severas.
Um crente que segue os mandamentos da Igreja e se comporta como Deus espera terá como
recompensa a salvação, como citado na Bília, Livro de Marcos, Capítulo 16, versículo 16:
“Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado”.
Há estágios em que esta influência da Igreja se dá em maior ou menor grau. Durante
a Inquisição, ela tinha ação direta contra os que se desviavam das crenças cristãs, inclusive
por motivos que hoje soam esdrúxulos, como os que eram canhotos ou ruivos. Durante os
vários séculos em que Reis e Papas governavam lado a lado, o conceito de Panóptico era
muito menos desenvolvido, afinal, os legisladores (inquisidores) eram figuras que se podia
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ver a olhos nus. Somente após o enfraquecimento do poder da Igreja enquanto parte do Estado
que a essência do Panóptico criado por Bentham ganha corpo.
O Iluminismo proporcionou que a Igreja não tivesse influência oficial sobre a
sociedade, mas ela continua a exercê-la de maneira cultural por estar intrinsecamente ligada
aos valores mais fundamentais de grande parte das sociedades. A retidão, a caridade e outras
ideias alinhadas aos preceitos cristãos formam o senso de boa conduta do fiel da Igreja.
Assim, qualquer coisa que desvie destes preceitos será sujeita a uma penalidade que constará
nas Escrituras Sagradas. Dentro do conceito Foucaultiano de poder, se Deus é a figura que
está no alto da torre e sua vigilância é visível porém inverificável, e a Igreja torna-se um
dispositivo de poder enquanto assegura que as vontades de Deus sejam atendidas por seus
fiéis, é-nos lícito traçar um paralelo de que a Igreja nada mais é que o Carrasco retratado nas
sentenças de morte da Lei francesa a partir do Século XV. Ilustra isso o fato de que, em 1586,
o jurista e filósofo Jean Bodin lança a obra Demonomania dos Feiticeiros6, na qual as pessoas
reconhecidas como adivinhos e curandeiros, isto é, pessoas simples, mulheres e homens dos
povoados e vilas, com seus conhecimentos seculares da natureza (inclusive humana) são
passados à condição de transgressores da lei, vistos como bruxas e bruxos demoníacos. Nota-
se uma mudança da percepção dos acontecimentos motivada por novas formas de
interpretação dos textos religiosos.
Deus se torna o dono e o vigia da prisão ao mesmo tempo. A Igreja é o sistema
burocrático que averigua se tudo o que Deus pediu está acontecendo. A Igreja também exerce
o papel de dispositivo de poder por criar outros sistemas paralelos que fazem a manutenção
deste sistema burocrático maior. O confessionário é um destes exemplos. Foucault (2004)
analisa a situação de quem confessa a culpa em um crime. Esta confissão não eximia o
criminoso de sua pena; ele seria executado do mesmo jeito e com requintes de crueldade que
somente aquele zeitgeist justificaria:
No interior do crime constituído, o criminoso que confessa vem desempenhar o
papel de verdade viva. A confissão, o ato do sujeito criminoso, responsável e que
fala, é a peça complementar de uma informação escrita e secreta. Daí a importância
dada à confissão por todo este processo de tipo inquisitorial (p. 34-35).
6É possível a consulta online da obra original de Jean Bodin em francês, Démonomanie des sorciers, disponível em <https://ia800304.us.archive.org/23/items/deladmonomanie00bodi/deladmonomanie00bodi.pdf>. Acesso em 10.01.2016. Em 2006 a editora italiana Storia e Letteratura lançou a tradução ‘Demonomania de gli stregoni’.
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Confessar-se é um ritual que segue os moldes trazidos por Foucault. É um processo
comunicacional em que o fiel “fala” com Deus a partir de um mediador – o padre – e,
dependendo da gravidade com que suas atitudes se desviam do esperado dentro da doutrina,
recebe uma punição: repetir orações quantas vezes o padre julgar necessário, e com o “aval”
de Deus. Para tanto, faz-se necessária uma preparação prévia pois, para o catolicismo, trata-se
de um sacramento, ou seja, uma forma de adoração a Deus, e como os demais sacramentos,
deve ser recebido pelo fiel com adoração e orações. Assim também com o Padre, que por
meio de conselhos e orações, participa da adoração. Ainda que pareça um ato individual de
um fiel para com seu líder, o objetivo do sacramento da confissão é a libertação do pecado e,
quando este ocorre, o prejuízo abrange várias escalas sociais, desde o indivíduo, sua família e
a sociedade em que está inserido. Portanto, a confissão não termina com a absolvição feita
pelo Padre, mas o pecador redimido deve procurar as pessoas a quem prejudicou e reparar o
mal feito, como o fez Zaqueu (BÍBLIA, Lc. 19.1-10).
No que tange ao design do confessionário, ele remete ao panóptico em função de sua
estética: em uma estrutura de madeira ou metal, escura e com uma pequena grade, o cristão
ajoelha-se do lado de fora enquanto o padre permanece sentado do lado de dentro. O padre
consegue ver o fiel, mas não o contrário. A ideia do vigilante intocável é representada nesta
cena em uma proporção menor, mas igualmente intimidadora. Em um dos dias santos
considerados pelo catolicismo, o dia 9 de abril, comemora-se São Leopoldo Mandic, um
croata e frade franciscano nascido no século XIX e considerado o herói dos confessionários
pelas muitas horas dedicadas ao recebimento dos fiés em Pádua (Itália). Essa contradição
entre o homem mortal, representante de Deus e santificado após a morte, torna o sacramento
da confissão algo que pode levar o fiel a própria superação de sua humanidade mortal e,
portanto, alcançar o ideal de sua fé católica.
Além da estrutura da Igreja e da confissão, outro elemento que se assemelha ao
Panóptico é a própria relação com Deus. Se na torre existe o vigia, ou a ideia de sua presença,
e que ele vê sem ser visto, é inegável fazer a comparação com os atributos de Deus na religião
monoteísta. O conceito de um deus único e supremo, que tudo vê, premia ou pune é o mesmo
no judaísmo, cristianismo e islamismo porque todos eles vêm da mesma raiz – o conceito de
monoteísmo difundido por Abraão. É onisciente: sabe de tudo que acontece porque está em
constante vigilância sobre as atitudes dos humanos; é onipotente: capaz de interceder na vida
e no cotidiano, inclusive orquestrando os fenômenos naturais; é onipresente: está em todos os
lugares e sabe de tudo, inclusive lê pensamentos. Assim como o vigia, que por sua posição
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privilegiada em relação aos outros tudo sabe, tudo vê e tem a autonomia para punir os que não
seguem as regras.
Deus exige que todos se comportem conforme estipulado nos Dez Mandamentos, as
dez leis que ele próprio escreveu e entregou a Moisés, de acordo com o relato da Bíblia no
livro de Êxodo, capítulo 20, versículos 1-17. Se alguém falha em seguir alguma destas leis –
ou a maioria, ou todas – será punido com a danação eterna. O cristianismo, no entanto,
permite que esta situação se reverta caso haja arrependimento e os rituais de absolvição sejam
seguidos. O sistema se resume, portanto, em um deus que vigia, pode punir mas também pode
absolver.
Existe, porém, uma crítica com relação ao adestramento das pessoas. Este
adestramento, de acordo com Foucault, torna-se algo natural à medida em que o tempo passa
em função da constante pressão psicológica que os vigiados passam. Na religião, no entanto,
nem sempre é o que acontece. Para se ter uma ideia, a maioria da população carcerária
brasileira é adpeta ao cristianismo, seja católico ou protestante:
O campo religioso brasileiro tem se mostrado cada vez mais diversificado. Os
censos do IBGE realizados em 2000 e 2010 apontam, em âmbito nacional, para um
declínio do catolicismo (de 73,6% para 64,6%) e um aumento significativo dos
evangélicos (de 15,4% para 22,2% - sendo 60% destes pentecostais, 18,5% de
missão e 21,8% não determinados), além de uma breve elevação no número de
espíritas (de 1,3% para 2,0%) e dos que se declararam “sem religião” (de 7,3% para
8,0%); lado outro, os adeptos da umbanda e do candomblé mantiveram-se estáveis
em 0,3% (SILVA Jr., p. 1375).
A religião nunca foi um freio moral porque existem dois elementos a serem
considerados: qual tipo de freio e o que é moral. Com relação ao primeiro, entende-se que a
punição de Deus não faz uma pessoa cometer um crime – ou pelo menos não mais nos dias
atuais – porque, apesar da fé, esta punição parece estar muito distante do imediatismo cuja
vida do criminoso é baseada. O roubo, o assassinato e outros crimes solucionam o problema
do agora, e esperar a punição divina não parece mais intimidar estas pessoas. Além do mais,
existe a possibilidade de encarcerados se declararem cristãos para ter algum tipo de benefício
dentro do sistema prisional.
Já o conceito de moral está diretamente relacionado à cultura em que o indivíduo é
integrado. É moral um ataque armado com motivações religiosas? Depende do contexto. No
ocidente constata-se que não é moral, mas para um pequeno grupo islâmico que defende seus
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interesses, sim, é moral. O adestramento poderia acontecer em sociedades mais modestas e
com relações menos intrincadas, mas nos dias atuais esta parece uma meta bastante difícil de
ser alcançada.
Quando analisamos os diferentes momentos da Igreja, entendemos que a confissão
responsabiliza de diferentes maneiras porque também interpreta de diferentes maneiras o que
é pecado. No século XVI, por exemplo, portar um livro que estivesse no Index Librorum
Prohibitorum7 seria passível de pena de morte na fogueira. Após o fim do conluio entre Igreja
e Estado, o avanço de outras religiões, como o islamismo, ou mesmo de dissidências dentro
do próprio cristianismo, como a reforma Lutherana, as punições tornaram-se ideológicas ou
de sentido mais pontual. Um fiel poderia ser excomungado no pior dos casos ou rezar por
inúmeras vezes preces como o Pai-Nosso e a Ave-Maria. Isto não quer dizer, no entanto, que
sejam punições menos importantes pois são aplicadas a pessoas que vivem a rotina religiosa.
CONCLUSÃO
As três principais religiões – judaísmo, cristianismo e islamismo – operam sob a
mesma ideia do sistema panóptico desenvolvido por Jeremy Bentham e difundido na obra de
Michel Foucault. Deus é o vigia que tem autoridade total sobre o local que controla e os seres
humanos são os vigiados que devem seguir suas regras, vivendo em um sistema de
recompensa e punições. Se esta forma de vida era plausível em sociedades menos complexas,
hoje não se vê o mesmo resultado. O apresentador de televisão José Luiz Datena expressando-
se com conclusões do senso comum afirmou que “pessoas que cometem crimes não têm Deus
no coração”. Contudo, os dados indicam que 88,8% da população carcerária se declara cristã.
Quando analisamos as diferentes instâncias do cristianismo, percebemos que elas
também aplicam o conceito de panóptico, ainda que em intensidades variáveis. O ritual do
confessionário traz o padre como mediador de uma relação entre o vigia (Deus) e o vigiado
(fiel católico), fazendo com que ele também esteja na posição do vigia da torre, que vê mas
não é visto. Além disso, ele tem autonomia de aplicar punições para que o fiel possa se
redimir dos pecados que cometeu.
Nessa lógica do panóptico, quando pensamos as religiões monoteístas, uma situação
não ocorre: que não haja ninguém vigiando na Torre. Isso porque tal situação corresponderia
a dizer que Deus deixou de olhar por seus fieis e, dessa forma, não seria mais Deus para eles.
Também implica em considerar que o vigilante da Torre é um guarda que obedece à ordens
7 Index Librorum Prohibitorum, ou Índice de Livros Proibidos, foi uma lista de títulos que eram proibidos pela Igreja Católica por seus conteúdos ditos subversivos à época. A lista foi abolida em 1966 pelo Papa Paulo VI.
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vinda do setor administrativo, o que não pode acontecer com Deus, pois este não é
subordinado de ninguém e não se subordina a nada.
Tais implicações lógicas, ainda assim, nos levam ao panóptico como uma metáfora
interessante para pensar o tema proposto e mesmo supor que o criador do conceito, dado o
momento em que vivia, pode ter incluído, em suas reflexões, uma formação cristã do século
XVIII. Também podemos destacar o papel político, inquisitor e hieriárquico que a Igreja
assumiu durante tantos séculos e que os infiéis se vêem obrigados moralmente a acatar,
obedecer e perpetuar em suas ações cotidianas.
Em sendo assim, o dispositivo disciplinar, composto de muitas formas diferentes de
ações que se somam e, às vezes, se contradizem, parecem indicar uma certa “deficiência” em
sua aplicação prática. Isto é, o mesmo aparelho disciplinar também oferece a possibilidade
da incerteza, como se, no pragmatismo do cotidiano, coisas escapassem do controle de Deus e
os homens, nesses flashes, praticassem os atos contrários à fé. Para esses “intervalos divinos”
os teóricos teriam denominado de “livre-arbítrio”, ou os homens, na banalidade e imediatez
cotidiana, entenderam-no desta maneira. Tais atitudes cotidianas (assassinatos, roubos,
fraudes, etc.) indicam que a sociedade baseada nesse modelo panóptico é uma sociedade
disciplinar utópica, entendendo aqui, simplesmente, utopia como algo impossível de ser
alcançado.
Não obstante, o dispositivo disciplinar praticado pelas religiões monoteístas
funcionam como organizadores do espaço e tempo dos fiéis que a elas recorrem para avalizar
os comportamentos. Para tanto, além dos dias e horários dos cultos e celebrações presenciais,
incluímos, a título de futura reflexão, que tais cultos e celebrações acontecem também pela
televisão e, deste modo, configura-se um “panóptico invertido”, permitindo aos vigiados
verem sem serem vistos e, já não funcionando pela mensagem disciplinar, mas pela
fascinação e sedução (ALLEMAND, 1981, p. 75-76) sem, entretanto, perder as funções
originais de organização e controle do tempo e espaço.
O mesmo pode passar com a confissão. Em 2010, o Papa Bento XVI, em sua leitura
da mensagem “O sacerdote e a pastoral no mundo digital: os novos media a serviço da
Palavra” indicou aos fiéis o uso da tecnologia informacional no Dia Internacional das
Comunicações. Aproveitando a indicação, a Apple desenvolveu o aplicativo Confession: a
Roman Catholic App, aprovado por bispos dos EUA e desenvolvido com o apoio de padres
especialistas no tema. A empresa garante todos os passos de uma confissão presencial –
exame de consciência, arrependimento, firme propósito de emenda, confissão, absolvição e
Intercom–SociedadeBrasileiradeEstudosInterdisciplinaresdaComunicaçãoXXICongressodeCiênciasdaComunicaçãonaRegiãoSudeste–Salto-SP–17a19/06/2016
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até a penitência – e está disponível no iTunes por $1.99 (CONFESSION..., 2016). Com isso,
vemos que o Panóptico se atualiza para manter sua função original: organização disciplinar.
REFERÊNCIAS
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