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A igualdade de direitos entre homens e mulheres deve traduzir-se nas práticas do dia a dia. Esta edição tem dois destaques: a Lei de Família e a guerra no Iraque. A Lei de Família, porque a proposta só agora foi discutida no Parlamento, apesar da enorme importância que tem para o país e das pressões exercidas pelas organizações de mulheres, nomeadamente as que são membros do Fórum Mulher. O debate teve lugar nos dias 28, 29 e 30 de Abril e a Lei foi aprovada na sua generalidade, devendo agora os grupos de trabalho discutir a mesma na especialidade. Apresentamos aqui uma colectânea de seis artigos que foram publicados sobre o assunto. A guerra no Iraque aparece também como temática central, porque o atropelo ao direito internacional que ela representa traz consequências gravíssimas para o mundo. Quando se privilegia o conflito armado como modo de resolução de conflitos, quando se mascaram os interesses económicos através de uma estratégia que chamam de “guerra preventiva”, todo o planeta deve temer pela sua liberdade. A população civil no Iraque, homens, mulheres e crianças, morreram afinal em nome de quê? Porque é que alguns mortos são mais importantes do que outros? Com que autoridade se decide que há deuses bons e deuses maus e se age como se o Islão fosse uma religião maldita? A guerra no Iraque diz respeito a todos nós. Pela sua importância, é como se ela estivesse aqui mesmo ao lado, fronteira com fronteira. Há também outros dois destaques que convém mencionar. O primeiro é a proximidade do dia 28 de Maio, Dia Internacional de Acção Pela Saúde da Mulher, que este ano decorre sob o lema “Mortalidade materna: um assunto de direitos humanos, uma questão de justiça social”. Vale a pena assinalá-lo e lembrar qual é a situação que temos no país. O segundo é, outra vez e ainda, um apelo à solidariedade a favor de Amina Lawal Kurima, condenada a morrer apedrejada pelo crime de adultério. Renovamos o nosso convite para a colaboração de todos(as) os(as) interessados(as). Essa colaboração pode tomar a forma de sugestões de temas a serem tratados, críticas ao conteúdo e estrutura do boletim ou envio de textos para publicação. WLSA Moçambique u VEJA NESTE NÚMERO… ] Lei de Família: Falemos de igualdade e de justiça - Fórum Mulher e WLSA Moçambique ] WLSA MOÇAMBIQUE V Fase de Pesquisa, 2003-2005: Género e HIV/SIDA. A feminização da SIDA ] Recortes de Imprensa: Assédio sexual e violações nas escolas ] 28 de Maio Dia Internacional para a Acção pela Saúde das Mulheres 1

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A igualdade de direitos entre homens e mulheres deve traduzir-se nas prticas do dia a dia.

Esta edio tem dois destaques: a Lei de Famlia e a guerra no Iraque. A Lei de Famlia, porque a proposta s agora foi discutida no Parlamento, apesar da enorme importncia que tem para o pas e das presses exercidas pelas organizaes de mulheres, nomeadamente as que so membros do Frum Mulher. O debate teve lugar nos dias 28, 29 e 30 de Abril e a Lei foi aprovada na sua generalidade, devendo agora os grupos de trabalho discutir a mesma na especialidade. Apresentamos aqui uma colectnea de seis artigos que foram publicados sobre o assunto.

A guerra no Iraque aparece tambm como temtica central, porque o atropelo ao direito internacional que ela representa traz consequncias gravssimas para o mundo. Quando se privilegia o conflito armado como modo de resoluo de conflitos, quando se mascaram os interesses econmicos atravs de uma estratgia que chamam de guerra preventiva, todo o planeta deve temer pela sua liberdade. A populao civil no Iraque, homens, mulheres e crianas, morreram afinal em nome de qu? Porque que alguns mortos so mais importantes do que outros? Com que autoridade se decide que h deuses bons e deuses maus e se age como se o Islo fosse uma religio maldita? A guerra no Iraque diz respeito a todos ns. Pela sua importncia, como se ela estivesse aqui mesmo ao lado, fronteira com fronteira.

H tambm outros dois destaques que convm mencionar. O primeiro a proximidade do dia 28 de Maio, Dia Internacional de Aco Pela Sade da Mulher, que este ano decorre sob o lema Mortalidade materna: um assunto de direitos humanos, uma questo de justia social. Vale a pena assinal-lo e lembrar qual a situao que temos no pas. O segundo , outra vez e ainda, um apelo solidariedade a favor de Amina Lawal Kurima, condenada a morrer apedrejada pelo crime de adultrio.

Renovamos o nosso convite para a colaborao de todos(as) os(as) interessados(as). Essa colaborao pode tomar a forma de sugestes de temas a serem tratados, crticas ao contedo e estrutura do boletim ou envio de textos para publicao.

WLSA Moambique

u VEJA NESTE NMERO

]

Lei de Famlia: Falemos de igualdade e

de justia - Frum Mulher e

WLSA Moambique ]

WLSA MOAMBIQUE V Fase de Pesquisa,

2003-2005: Gnero e HIV/SIDA.

A feminizao da SIDA ]

Recortes de Imprensa: Assdio sexual e

violaes nas escolas ]

28 de Maio Dia Internacional para a Aco pela Sade das

Mulheres

Outras Vozes, n 3, Maio de 2003 1

No mbito das suas actividades para agilizar a discusso da proposta de Lei de Famlia no Parlamento, o Frum Mulher e a WLSA Moambique prepararam e publicaram um conjunto de artigos sobre o assunto. Estes artigos procuram discutir alguns aspectos da referida proposta que tm sido objecto de debate pblico, com a finalidade de destacar as necessidades, as expectativas e os interesses das mulheres em Moambique, em relao a esta Lei.

I - OS FUNDAMENTOS LEGAIS DA PROPOSTA DE LEI DE FAMLIA

Perspectivamos o direito e a lei como instrumentos de mudana,

para nos levarem a respeitar cada vez mais os direitos de todos os cidados e cidads, dos mais velhos e dos mais novos, independentemente da raa,

do local de origem e do credo religioso.

Depois de um ano e meio de espera (desde Agosto de 2001), a proposta de Lei de Famlia est finalmente agendada como o 13 ponto da agenda da sesso da Assembleia da Repblica que teve o seu incio em Fevereiro deste ano. O anncio pblico desta ocorrncia alegrou-nos. Na realidade, depois de um longo processo de trabalho e de discusso (a proposta de Lei de Famlia comeou a ser discutida em 1998), tnhamos dificuldade em compreender porque que os poderes polticos no achavam prioritrio levar imediatamente a proposta discusso no Parlamento, com vista sua rpida aprovao. Com efeito, desde que o Governo criou a Comisso de Reforma Legal, com a respectiva Sub-Comisso de Reforma Legal para a Lei de Famlia, a tarefa de elaborar uma nova Lei de Famlia tem estado na agenda da maioria das organizaes de mulheres do pas, com um estatuto de prioridade. Foram muitos anos, muitas horas e muitos recursos empenhados neste processo, que concluiu com a finalizao da presente proposta. Pensamos que os principais momentos deste processo devem ser conhecidos. Neste artigo comearemos por

discutir os fundamentos e a maneira como perspectivamos uma nova Lei de Famlia. Em primeiro lugar, era preciso decidir exactamente que contedo deveria ter a nova lei. Tratava-se de tomar em considerao vrios aspectos: O respeito pela Constituio da Repblica que,

nos seus artigos 66 e 67, consagra a no discriminao com base no sexo. Assim, qualquer lei que viole esta disposio inconstitucional.

Depois, havia que ter em conta os instrumentos legais internacionais que o Governo de Moambique ratificou ao longo de vrios anos. Dois em especial eram de grande relevncia: a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e a Conveno Internacional Contra Todas as Formas de Discriminao da Mulher (CEDAW). Como se sabe, uma vez ratificadas, estas convenes ganham fora de lei.

Finalmente, mas no menos importante, era preciso garantir que a nova lei se adequasse s realidades sociais e econmicas do pas, numa altura de grandes transformaes polticas, econmicas e sociais.

Este ltimo aspecto requer que nos debrucemos um pouco mais sobre ele.

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Quando se afirma que a Lei de Famlia deve reflectir as realidades do pas, isto no quer dizer que a Lei de Famlia deva ser um espelho das prticas existentes. Isso significaria tentar fixar no papel as realidades actuais (o que seria de certeza difcil porque a nossa sociedade caracterizada pela pluralidade), de modo a tentar impedir novas transformaes. Seria assumir que a maneira como hoje as famlias em Moambique se estruturam o tipo ideal e que, por isso, a lei deveria obrigar todos a viver de acordo com esse(s) modelo(s). No isso que pretendemos. No queremos fixar limites legais para as novas geraes, no que respeita maneira como se devem relacionar na famlia e nas posies respectivas de cada um no seio familiar. O que pretendemos, isso sim, estabelecer os princpios de uma normatividade onde as expectativas, as esperanas e os sonhos de cada um e de cada uma, se encontrem reflectidos. Com uma ressalva: ningum, mas absolutamente ningum, tem o direito de querer impor aos outros a sua viso do mundo, da sociedade e da famlia. Porqu? Porque perspectivamos o direito e a lei como instrumentos de mudana. Instrumentos de uma mudana que nos deve levar a respeitar cada vez mais os direitos de todos os cidados e cidads, dos mais

velhos e dos mais novos, independentemente da raa, do local de origem e do credo religioso, tal como o decretam a nossa Constituio e os instrumentos legais internacionais que Moambique subscreveu. Foi tendo em conta estes considerandos que as organizaes de mulheres se envolveram activamente na elaborao e na discusso das sucessivas propostas de Lei de Famlia. Para alm dos instrumentos legais de que j falmos, um dos importantes suportes neste trabalho foram os resultados de pesquisa levados a cabo desde a independncia, e que discutem as dinmicas sociais a nvel das famlias, tanto no campo como na cidade. Este foi, pois, o nosso compromisso como activistas dos direitos humanos: participar activamente na elaborao de uma lei que respeite os princpios de igualdade e de justia e que garanta a dignidade e o respeito de todos e de cada um na famlia. Uma lei que ajude a corrigir as actuais assimetrias e as desigualdades e que sirva de suporte legal para combater a violncia domstica. Uma lei que contribua para fazer da famlia um lugar de acolhimento, de conforto e de segurana. O que que todos ns, homens e mulheres, precisamos para nos sentirmos amados e respeitados.

II CULTURA E LEI A proposta de Lei de Famlia que vai ser discutida no Parlamento contm mudanas significativas em relao Lei actualmente vigente que, lembremos, data de 1966. Ou seja, foi elaborada e aprovada num dos perodos mais duros da ditadura salazarista, quando o controle da moral e dos costumes estava nas mos da Igreja Catlica e era rigoroso na defesa de uma moral conservadora que limitava severamente os direitos das mulheres. Em Portugal, poucos anos aps o golpe de Estado do 25 Abril, a lei de 1966 foi substituda por uma Lei de Famlia mais progressista e mais de acordo com o respeito pelos direitos humanos das mulheres. Aqui em Moambique o processo foi lento, apesar das tentativas de reviso legal em 1978. S vinte anos mais tarde, em 1998, que se iniciou o processo de reviso que culminou com a elaborao da actual proposta de Lei de Famlia.

Se tomarmos em considerao as promessas e o iderio poltico da Frelimo, que dava nfase emancipao da mulher, este enorme atraso representa um enigma difcil de resolver. Mas se olharmos com mais ateno no s para os discursos mas tambm para a prtica poltica, se calhar poderemos encontrar algumas das respostas possveis. Na realidade, o que se disse a nvel das intenes no coincidiu exactamente com o que se realizou e realiza na prtica. E ento no que se refere aos direitos humanos das mulheres, a situao bem visvel. O problema que se levanta com uma lei que trate de um domnio como o da famlia, que tudo o que diga respeito ao mbito familiar visto como fazendo parte do ntimo e do privado. Ou seja, h relutncia em considerar que o que se passa a nvel da famlia tenha a ver com o resto da sociedade e do pas, regidos por uma lei fundamental, a Constituio, e pelos princpios inscritos nas Convenes internacionais ratificadas,

Quando se ouve dizer que a igualdade de gnero na proposta de Lei de Famlia um atentado cultura moambicana, pensa-se logo que, na ausncia de outros argumentos, se busca a cultura para negar os direitos humanos das mulheres.

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que instituem os direitos humanos bsicos de todos os cidados, sejam eles homens ou mulheres. As prticas e o imaginrio social, onde esto firmemente ancoradas as assimetrias de gnero, entram assim em tenso com o normativo nacional e internacional. Esta tenso geralmente expressa como sendo um confronto de culturas. E, no caso concreto desta proposta de Lei de Famlia que vai discusso no Parlamento, a questo equacionada da seguinte maneira: Essa proposta vai contra a nossa cultura, ou ento, contra a nossa religio. A cultura e a religio so ento invocadas para limitar os direitos das mulheres e ganham expresso na violao dos direitos humanos. Nestas reivindicaes, em que a cultura esgrimida como algo de sagrado e, logo, intocvel, fica claro que a concepo que se tem de que a cultura alguma coisa que se fixa para todo o sempre. S que partida recusamo-nos a pens-la desta maneira. A cultura tem que ser vista na mudana e na diversidade. tambm o legado que nos deixaram os nossos pais e avs, mas que ns usamos da melhor maneira possvel, para conseguirmos viver em condies to adversas como as que temos tido nos ltimos anos. Por isso se pode dizer que a cultura igualmente a arte de sobreviver com nada ou quase nada, a criatividade que usamos no dia a dia para conseguirmos alimentar, cuidar e educar os nossos filhos. A cultura s pode ser apreendida neste

movimento e nesta diversidade. um monumento coragem e bravura dos seres humanos, um hino aos que no desistem, sua fora e perseverana. Neste sentido, a cultura de todos ns, homens e mulheres, novos e velhos. l onde assentam as nossas identidades e lealdades e se fundamenta a nossa comum humanidade. Utilizar a cultura como represso monstruoso. Us-la para justificar a violao dos direitos humanos criminoso e s pode revelar interesse na conservao de velhas hierarquias. A cultura converte-se assim numa arma de poder, que os poderosos esgrimem para controlar os outros. Por isso, quando se ouve dizer que a igualdade de gnero na proposta de Lei de Famlia um atentado cultura moambicana, pensa-se logo que, na ausncia de outros argumentos, se busca a cultura para negar os direitos humanos das mulheres. Implicitamente est-se a dizer que a cultura moambicana feita e controlada pelos homens e que as mulheres se devem submeter a ela. Mascara-se portanto a dominao de gnero, falando nos imperativos da cultura. Gostaramos de concluir dizendo que ns, mulheres, temos o direito de viver com dignidade e em igualdade com os homens, na famlia e na sociedade. A nossa viso do mundo, a maneira como olhamos para a vida e as nossas prticas, so parte integrante da cultura moambicana.

III AS MULHERES E A PROPOSTA DE LEI Quando o processo de reviso da Lei de Famlia se iniciou, logo no incio, houve um jurista que perguntou o que que ns, sociedade civil, tnhamos a ver com a elaborao de leis, e afirmou mesmo que deveramos deixar essa tarefa para pessoas formadas em direito. Respondemos que no concordvamos, pois uma coisa ter os conhecimentos tcnicos para saber escrever o texto da lei, e outra o direito inalienvel dos cidados e cidads, de propor, discutir e aprovar os contedos de toda a legislao. Foi este esprito que ditou a nossa participao em todo o processo. Ficou tambm claro, desde o princpio, que, para alm da interveno directa nos seminrios organizados pela Sub-Comisso de Reforma Legal para discutir as sucessivas propostas de lei, era necessrio alargar o debate, dar a conhecer o projecto de reviso da Lei de

Famlia a outras mulheres para alm das activistas dos direitos humanos. E foi isso que fizemos. Fomos aos bairros da cidade de Maputo, aos distritos em redor e s restantes provncias. Algumas ONGs ligadas ao Frum Mulher, como a MULEIDE, a AMMCJ e a WLSA Moambique, entre os anos 1999 e 2000, organizaram workshops e encontros dirigidos a homens e a mulheres. Os temas da agenda eram: (1) como que a nova lei pode contribuir para acabar com a discriminao e as desigualdades entre homens e mulheres dentro da famlia, (2) auscultao das propostas de mudana na lei vigente. O objectivo comum era fazer o levantamento das expectativas em relao a uma Lei de Famlia, tantas

Uma Lei de Famlia representa muito para ns, mulheres, e por isso, na medida das nossas disponibilidades, dispendemos recursos materiais e humanos para garantir

a ampla difuso das propostas.

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vezes prometida e ansiosamente aguardada. O cometimento era em seguida encaminhar estas expectativas para o debate, dando voz aos que no podiam intervir directamente neste processo, apesar da prpria Sub-Comisso ter j alargado as bases da discusso, organizando mesas redondas e seminrios, onde estavam presentes representantes das provncias. Em alguns casos, inclusive, decidimos realizar pesquisas pontuais para medir a extenso de tal ou tal fenmeno e compreender as lgicas de produo e de reproduo do mesmo. Por exemplo, quando se defendia que a nova lei deveria reconhecer outras formas de casamento como o tradicional, o religioso e a unio de facto, desde que respeitassem os requisitos previstos na lei, alguns argumentavam que este ltimo tipo de unio no tinha expresso fora da cidade de Maputo e que, por isso, a lei no deveria incluir o seu reconhecimento. Pesquisas realizadas, no entanto, demonstraram a crescente prevalncia das unies de facto em zonas rurais, como resultado da desestruturao familiar. Mas voltando ao processo de discusso da proposta de Lei de Famlia, alguns dos resultados merecem ser debatidos. Em primeiro lugar, foi apontada com muita insistncia a questo da partilha de bens em caso de divrcio ou de separao, sendo que, para as mulheres vivendo em unies de facto, a situao muito pior pois nem proteco da lei h. Normalmente estas vem-se privadas de tudo, da terra que trabalharam durante anos, dos bens da casa e em alguns casos at dos bens pessoais. Em seguida, um outro aspecto que preocupava bastante as mulheres, era a poligamia. Apesar da viso comummente aceite de que em zona rural a poligamia bem vista pelas mulheres porque as alivia do fardo do trabalho domstico, no encontramos uma s que a defendesse. Uma participante de Maringu, inclusive, afirmou que as mulheres num casamento poligmico eram o tractor dos pobres. Outros temas debatidos foram: Idade nbil a preocupao central eram os

casamentos prematuros, defendendo-se que se deveria fixar a idade de 18 anos para os jovens de ambos os sexos. Falou-se muito nos direitos das crianas, embora de maneira abstracta

porque os participantes no conheciam nenhum instrumento legal em particular.

Formas de casamento salientou-se que, mesmo sabendo que a nica forma de casamento vlida pela lei vigente o casamento pelo civil, este nem sempre representa uma possibilidade. Por isso se achou que as pessoas deveriam poder optar por qualquer forma de casamento, e exigir o seu reconhecimento, desde que respeitassem os princpios consagrados na lei: ser uma unio voluntria e singular.

Chefia de famlia o consenso de que homens e mulheres devem ter o mesmo estatuto no casamento e nenhum deve mandar no outro.

Residncia da famlia tambm aqui a deciso deve ser tomada pelos dois cnjuges e no somente pelo marido.

Para acompanhar a discusso produzimos brochuras e cartazes, focando aspectos especficos. O facto que uma Lei de Famlia representa muito para ns, mulheres, e por isso, na medida das nossas disponibilidades, despendemos recursos materiais e humanos para garantir a ampla difuso das propostas. No entanto, agora, que j se completaram cinco anos desde que este processo se iniciou, estamos a ouvir dizer que preciso recomear tudo de novo e ir novamente s provncias para discutir o assunto. Mas afinal isto quer dizer o qu? Quanto a ns, parece-nos que esta mais uma prova da m-vontade em, finalmente, aprovar uma lei que garanta a igualdade de homens e de mulheres na famlia. Depois de um ano e meio de atraso em agendar a proposta de Lei de Famlia no Parlamento, agora encontra-se mais um motivo de adiamento. Achamos que tempo dos poderes polticos mostrarem maior compromisso para com as necessidades e os interesses dessa parte da populao, as mulheres, que normalmente excluda dos direitos humanos. Dessa parte da populao que continua a ser privada do respeito que lhe devido na famlia e na sociedade. Esperamos sinceramente que os mtodos utilizados pelo presidente Bush para declarar guerra ao Iraque no se tornem moda, e que o assunto da Lei de Famlia no seja tratado margem dos fundamentos legais garantidos pela Constituio.

O que diz a proposta de Lei de Famlia:

Artigo 1576 (Noo de famlia) 1. A famlia a clula base da sociedade, factor de socializao da pessoa humana. 2. A famlia constitui o espao privilegiado no qual se cria, desenvolve e consolida a personalidade dos

seus membros e onde devem ser cultivados o dilogo e a entreajuda. 3. A todos reconhecido o direito a integrar uma famlia e de constituir famlia.

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IV CHEFIA DE FAMLIA Muitas pessoas que nem sequer leram a proposta de Lei de Famlia, tm, no entanto, ideias muito firmes a esse respeito. Umas das coisas que mais se tem propalado nos bares, no intervalo do ch nos servios e at nos corredores do Parlamento que esta lei quer pr as mulheres a mandar nos homens. Como se pode imaginar, perante esta informao, homens e mulheres ficam escandalizados e lamentam que se chegue a tais extremos de radicalismo. Na realidade, esta afirmao no corresponde verdade e deliberadamente espalhada s para denegrir uma proposta de lei que levou tantos anos a ser concretizada, custou imensos recursos financeiros e humanos e to importante para melhorar a situao dos direitos humanos das mulheres. Achamos por isso importante esclarecer o leitor e todos os que estejam interessados neste aspecto especfico, que, na proposta de Lei de Famlia, ele aparece com a designao de Representao de Famlia (Artigo n 1674). No Cdigo Civil actualmente vigente (de 1966), est prescrito que o cnjuge de sexo masculino detm o que chamam de Poder Marital. Como tal, determinado que: O marido o chefe da famlia, competindo-lhe nessa qualidade represent-la e decidir em todos os actos da vida conjugal comum, sem prejuzo do disposto nos artigos seguintes. No , pois, de espantar que este aspecto concreto tenha merecido a ateno das mulheres. Deveremos continuar a aceitar que dentro de casa sejamos tratadas como seres humanos de segunda categoria? Porque que trabalhando tanto como os homens, assumindo at por vezes responsabilidades mais pesadas, tenhamos no final que nos submeter sua autoridade? Por isso, na proposta de Lei de Famlia, elimina-se a expresso Poder marital substituindo-a por Representao da famlia, estabelecendo que A famlia pode ser indistintamente representada por qualquer dos cnjuges, a menos que estes decidam em contrrio. Claro que no faltam argumentos para defender na lei a manuteno da supremacia do marido em relao mulher. Uma parte deles muito grosseira e refere-se a uma natureza feminina e masculina: fazem-se

comparaes com o mundo animal e afirma-se que Onde h galos no cantam galinhas. Se ns nos calarmos, se calhar a seguir vo dizer que um galo numa capoeira no se contenta s com uma galinha e que, por isso, devemos inscrever a poligamia na lei! Outros argumentos dizem que a chefia de famlia deve caber ao homem, porque ele que tem as responsabilidades maiores no sustento da casa. No entanto, nada mais falso do que este argumento. verdade que pela diviso do trabalho o papel do homem seria esse, de garantir a subsistncia familiar, enquanto s mulheres caberia o cuidado dos filhos, dos idosos e dos doentes, e os variados trabalhos domsticos que fazem funcionar uma casa. Mas, se formos a ver os resultados de diversos inquritos ao nvel nacional, constatamos que 80% da fora de trabalho feminina esto na agricultura familiar, que quem assegura a subsistncia das populaes em Moambique. Poderamos pois afirmar que as mulheres so quem alimenta esta terra. No entanto, mesmo conhecendo este facto, isso no nos d o direito de exigir a inverso da lei vigente, de modo a garantir que a chefia da famlia seja apenas das mulheres. Que fique claro: ns, mulheres, lutamos pela igualdade e somos acrrimas defensoras dos direitos de todos os cidados. Homens e mulheres devem gozar de direitos iguais e do mesmo acesso aos recursos. A ambos devem ser dadas oportunidades iguais, para que se realizem como seres humanos. O que se prev na proposta de Lei de Famlia uma forma de famlia em que homens e mulheres sejam companheiros, e juntos organizem a sua vida tendo em vista o bem comum. Isso aparece expresso quando se fala da Representao Familiar, mas tambm no Artigo n 1677, quando se trata da Administrao de Bens: A administrao dos bens do casal incumbe aos cnjuges em igualdade de circunstncias devendo o casal privilegiar o dilogo e o consenso na tomada de decises que possam afectar o patrimnio comum ou os interesses de filhos menores. Quem pode estar contra a ideia de que uma famlia deve funcionar harmoniosamente, regendo-se pela justia e pela igualdade?

Que fique claro: ns, mulheres, lutamos pela igualdade e somos acrrimas defensoras dos direitos de todos os cidados. Homens e mulheres devem gozar

de direitos iguais e do mesmo acesso aos recursos.

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V A IDADE NBIL Se o casamento um acto que implica das partes interessadas um envolvimento consciente, ento a idade com que os rapazes e as raparigas so autorizados a contrair matrimnio (idade nbil) muito importante. Por isso, na actual Proposta de Lei de Famlia prope-se que seja fixada igual idade nbil para ambos, pondo fim s disparidades que existem no actual Cdigo Civil. Esta proposta tem sido muito debatida e algumas pessoas esto radicalmente contra ela. Os argumentos apresentados situam-se em torno de duas grandes questes: a primeira que, do ponto de vista biolgico, a rapariga alcana mais cedo do que o rapaz a maturidade fsica; a segunda questo prende-se com o facto de que se acha que quando os rapazes se casam, devem j ter uma situao econmica estvel, de modo a assegurar o sustento da nova famlia. O primeiro argumento insultuoso para as mulheres, porque sugere que estas s tm que estar fisicamente aptas a procriar para se poderem casar. Ou seja, reduz o casamento a fins reprodutivos. Por outro lado, hoje ns sabemos, atravs de estudos cientficos, que no existe de facto nenhuma sustentao para se considerar como verdadeira a precocidade do desenvolvimento fsico e psquico da mulher. Como se v, no h sustentabilidade cientfica para defender a manuteno na lei de tratamento diferencial em relao idade nbil do rapaz e da rapariga. O segundo argumento, de que os rapazes quando se casam tm que estar em condies de sustentar a nova famlia, igualmente muito utilizado. Tal como constatmos relativamente chefia da famlia, a questo central que os papis e as funes que as mulheres e os homens desempenham na casa e na sociedade so classificados de forma diferente e desigual. O destino principal das mulheres a maternidade e o trabalho da casa. O destino dos homens velar para que as mulheres sejam boas mes, boas donas de casa e boas esposas. Para isso, uns e outras devem aprender desde pequenos a conhecerem o seu lugar no mundo e a no sair dele. A famlia, a igreja e a sociedade encarregam-se de ensinar, de fazer cumprir e de sancionar todos e todas que um dia tiveram (e tm) a ousadia de lutar por um sonho de igualdade.

No nosso pas temos muitos e variados exemplos da aplicao do princpio da desigualdade. Embora as mulheres sejam 51% da populao moambicana, apenas 1/3 dos alunos de sexo feminino concluem o primeiro nvel do ensino primrio. Embora as mulheres sejam 51% da populao, mais de 80% so camponesas pobres. Embora as mulheres sejam 51% da populao, muito mais de metade nunca viu uma escola, nunca agarrou num lpis nem escreveu a palavra liberdade. Muitas de ns, jovens meninas de 8, 9 e 10 anos somos tiradas da escola e casadas prematuramente. Na realidade, somos entregues como um objecto a um homem que nos rouba a juventude e os sonhos. Famlias e lderes religiosos em nome de uma ordem divina e da desigualdade fundadora, continuam a defender que os deuses e a natureza nos fizeram assim: emotivas, pouco inteligentes e vocacionadas para o lar. Mas que deuses e que natureza so estes que dividem assim os seres humanos? Uma idade nbil diferente para rapazes e para raparigas no significa mais do que a cumplicidade com a violao dos direitos humanos, com a excluso das mulheres da escola a que temos direito, do crescimento harmonioso, da capacidade de opo. Aos rapazes e s raparigas devem ser dadas as mesmas oportunidades de crescer, de estudar e de se afirmarem como seres humanos. A nossa humanidade de mulheres no se esgota na maternidade. Queremos escolher em liberdade ser esposas e mes. Queremos ter os mesmos direitos e as mesmas possibilidades de os exercermos. No basta que a Constituio da Repblica defenda a igualdade entre todos os seres humanos. necessrio que haja mecanismos legais de proteco dos direitos. necessrio que sejam punidos todos aqueles que atropelam na prtica quotidiana e familiar os direitos humanos. Por isso exigimos a aprovao da Lei de Famlia. Por isso nos batemos e bateremos contra a hipocrisia de todos aqueles que, em nome da cultura e da religio, nos querem roubar o direito de fazermos parte integrante da humanidade.

Uma idade nbil diferente para rapazes e para raparigas no significa mais do que a cumplicidade com a violao dos direitos humanos, com a excluso das mulheres da escola a que temos direito, do crescimento harmonioso, da capacidade de opo.

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VI A IMPRENSA E A PROPOSTA DE LEI Atravs do que se fala em pblico e em privado, temos vindo a perceber que muitas pessoas, mesmo aquelas que em funo das suas responsabilidades teriam a obrigao de o fazer, no leram a proposta de Lei de Famlia. E, no entanto, todos comentam este ou aquele aspecto concreto. De onde lhes vem ento a informao? A fonte mais importante a imprensa e por isso vale a pena examinar o que que foi dito nos jornais sobre a proposta de Lei de Famlia. Os jornais normalmente no se limitam a apontar este ou aquele facto, o jornalista que escreve a notcia transmite tambm o seu ponto de vista e a sua posio em relao ao assunto em causa. s vezes essa no a inteno do autor, mas fica implcito na maneira como apresenta a informao. Tambm sobre a proposta de Lei de Famlia as notcias nunca foram neutras. No conjunto dos artigos publicados sobre o tema, entre os anos 1999 e 2000, foram passadas algumas mensagens: A proposta de Lei de Famlia interessa

sobretudo s mulheres quase ningum se referiu aos direitos das crianas que nesta proposta so amplamente defendidos.

A proposta de Lei de Famlia retira o poder aos homens para d-lo s mulheres: agora as mulheres querem mandar poucos se deram ao trabalho de analisar o contedo da proposta e ver que o que se defende no a supremacia feminina, mas a igualdade entre homens e mulheres.

A proposta de Lei de Famlia teve por detrs um grupinho de mulheres que no representam as mulheres do campo no se falou nos vrios debates que se realizaram nas provncias, organizados por ONGs femininas e pela Sub-Comisso de Reforma Legal. Esquece-se igualmente que os seminrios e workshops em que se discutiram as sucessivas verses da actual proposta contaram com a presena de representantes de organizaes religiosas, de grupos polticos e de outros sectores da sociedade civil. Tambm estes so grupinho?

s vezes o jornalista era movido pela inteno de fazer sensao e por isso atribua ttulos que atrassem o

leitor, mas que contriburam definitivamente para forjar uma representao comum sobre a proposta de Lei de Famlia como algo estranho, radical e atentatrio da cultura moambicana. Vejamos alguns exemplos: Lei de famlia: Mulheres no querem marido

como chefe de famlia Savana, 14 de Abril de 2000

Anteprojecto de Lei da Famlia: Vem a a revoluo no matrimnio Domingo, 16 de Abril de 2000

Na nova Lei da Famlia: Unio de facto passou a casamento de facto O Popular, 21 de Abril de 2000.

Por isso ns podemos afirmar: o papel de uma parte da imprensa neste processo de elaborao da proposta de Lei de Famlia foi danoso para os interesses das mulheres. Contribuiu para criar e consolidar representaes negativas sobre o contedo da proposta e sobre quem participou na sua elaborao. Poucos artigos tiveram realmente a inteno de informar com iseno o leitor, para que este pudesse formar a sua prpria opinio. Neste momento em que a proposta de Lei de Famlia vai ser levada discusso no Parlamento, lanamos um apelo: Que os rgos de informao divulguem o seu

contedo. Dada a extenso do documento, isto poder ser feito abordando o assunto captulo a captulo, sobretudo aqueles que introduzem mudanas em relao lei vigente.

Que os deputados e o pblico em geral leiam o documento, se tiverem acesso ao mesmo, ou ento se procurem informar junto a quem de direito.

No consideramos nem srio nem honesto que um assunto da maior importncia para as mulheres e para o desenvolvimento do pas seja tratado com tanta ligeireza. Vamos ler, estudar e debater, num esprito de abertura que deve caracterizar uma verdadeira democracia, em que os interesses e as necessidades de todos e de todas so tomados em considerao.

O papel da imprensa neste processo de elaborao da proposta de Lei de Famlia foi danoso para os interesses das mulheres. Contribuiu para criar e consolidar

representaes negativas sobre o contedo da proposta e sobre quem participou na sua elaborao.

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V Fase de Pesquisa, 2003-2005: Gnero e HIV/SIDA. A feminizao da SIDA Tal como referimos na edio anterior, a prxima Fase de Pesquisa da WLSA centrar-se- na problemtica do HIV/SIDA e dos direitos humanos dos homens e das mulheres, com enfoque nos direitos sexuais e reprodutivos. Apresentamos em seguida um resumo do projecto de investigao. Justificao do tema O debate da proposta de trabalho para a V Fase da pesquisa foi realizada com vrios parceiros, representados por membros de associaes juvenis, de organizaes de portadores de HIV/SIDA, de organizaes de mulheres e ainda por parlamentares e responsveis dos ministrios da Mulher e Coordenao para a Aco Social, do Trabalho e da Sade. A argumentao apresentada pelos nossos parceiros destacou os seguintes aspectos: A mulher socializada sempre em funo de

outrem. Portanto, os seus direitos limitam-se aos papis de me e de esposa. O modelo cultural com grande influncia religiosa discrimina as mulheres no lhes permitindo o livre exerccio da sexualidade e da reproduo.

A pesquisa da WLSA deve procurar conhecer as imagens estereotipadas, as representaes sociais, os ritos e os fenmenos religiosos que impedem a igualdade de gnero, principalmente no campo da sexualidade, da religio e da reproduo.

Os jovens sero no apenas o grupo-alvo privilegiado, mas devero ser envolvidos na recolha de informao que ter de atender s diferentes formas de estruturao social, sejam as rurais e urbanas, sejam as regionais.

A pesquisa deve ser acompanhada por actividades de advocacia e lobby, de modo a produzir e a divulgar legislao sobre direitos sexuais e reprodutivos, nomeadamente a criao de uma lei de despenalizao do aborto, de uma lei de penalizao para o contaminador consciente, a introduo de educao sexual nos currculos da educao, a elaborao de uma poltica de proteco s crianas rfs devido ao HIV/SIDA. Esta pesquisa importante para a luta por uma sociedade em que o nascer mulher no seja condio para discriminao, porque abordar alguns aspectos centrais da dominao feminina: (1) o corpo da mulher um espao central de produo da subalternidade; (2)

os constrangimentos que impedem o exerccio dos direitos humanos das mulheres em Moambique tm como problema nuclear a construo dos papis e funes sociais das mulheres. Objectivos O objecto do estudo

As representaes e prticas falocntricas de homens e de mulheres no que respeita aos seus direitos sexuais e reprodutivos e o seu efeito na sade sexual e reprodutiva. Tendo em conta que a pesquisa da V Fase deve procurar analisar o modo como a construo social e cultural da desigualdade no campo dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres influencia a transmisso e a propagao do HIV/SIDA, foram identificados os seguintes objectivos: Identificar e analisar os mecanismos de

socializao das jovens moambicanas na sua relao com a construo social dos direitos sexuais e reprodutivos.

Analisar e avaliar o impacto do exerccio dos direitos sexuais e reprodutivos das jovens na sade reprodutiva.

Identificar aces que devem ser desenvolvidas pelo Estado e organizaes da sociedade civil, que possam defender o respeito pelos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

Hiptese A ideologia falocntrica e a cultura representada por normas, leis e prticas, restringem e limitam o exerccio dos direitos humanos (especialmente dos direitos sexuais e reprodutivos) pelas mulheres, com repercusses na sua sade sexual e reprodutiva. Metodologia a) Consideraes prvias O tema escolhido para esta fase, Gnero e SIDA, levanta duas ordens de questes, que pedem respostas antecipadas observao da realidade, tanto a nvel terico como a nvel de orientao da pesquisa. Ou seja, a construo de um modelo de anlise tem de ser precedida, por um lado, por uma reflexo sobre as novas realidades epistmicas e, por outro lado, por um

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conhecimento prvio das realidades sociais concretas moambicanas. Em primeiro lugar, coloca-se a discusso do tema e das abordagens que ele pode eventualmente privilegiar. O que se pretende com o estudo do tema? Uma anlise restrita e concreta relativamente vulnerabilidade das mulheres doena? Ou uma anlise que procure uma insero mais vasta nos direitos humanos da mulher e naturalmente nos seus direitos reprodutivos/sexuais versus sexuais/reprodutivos? A escolha dos enfoques metodolgicos no inocente do ponto de vista da teoria feminista. Por outro lado, temos a prpria abordagem do gnero como categoria de anlise. H j alguns anos que este conceito deixou de nos remeter para uma simples construo social e passou a ser utilizado como sistema, ou seja, com um carcter mais normativo e integrador de caractersticas que permitem caracterizar diferentes comportamentos sociais de homens e mulheres. Esta utilizao do conceito remete-nos para possibilidades mais amplas no estudo da subalternidade feminina, ou seja, a totalizao do gnero ser substituda por enfoques que nos permitem desconstruir a realidade da dominao masculina em espaos concretos de exerccio de poder, que podem alterar-se em contextos sociais concretos. No caso concreto dos direitos reprodutivos e sexuais, ao falarmos destes falamos do corpo, como lugar de disputa e como lugar de poder, visto ser ele o elemento central da reproduo social e naturalmente da sexualidade feminina. esta forma de controlo, que Foucault afirma fazer dos corpos femininos corpos dceis, que leva a que, sobre todas as formas de dominao social, o controlo do corpo seja o instrumento mais importante na actualidade de dominao. Assim, sendo o corpo um espao social, como ele regulado, ou melhor, quais os mecanismos de regulao, de normalizao? O que que o conhecimento sobre e do corpo nos pode ensinar sobre a discriminao e a excluso social da mulher? Significa que no caso especfico dos direitos humanos/reprodutivos/sexuais, ou ainda no estudo do tema Gnero e SIDA, temos que ter em conta no apenas a definio daquilo que se consideram direitos reprodutivos, mas igualmente as variantes e as ambiguidades que estes direitos podem ter e que esto ligados, por exemplo, ao ciclo de vida das mulheres, construo de novas relaes de poder e a contextos sociais e culturais que os podem condicionar, como o caso da religio (ou no). Significa ainda que o entendimento da relao gnero e SIDA, no mbito dos direitos sexuais e reprodutivos deve ter em conta as ambiguidades, as tenses e os conflitos que percorrem as relaes de poder - que so mveis e negociveis - expressas no universo simblico e prtico.

Portanto, a construo do modelo de anlise tem que passar necessariamente por uma reflexo terica do grupo de investigao, no apenas para chegarmos a conceitos comuns, mas para podermos operar no trabalho de campo com as mesmas estratgias. Uma segunda ordem de questes refere-se nossa realidade concreta e naturalmente ao campo de anlise. O que se passa hoje em Moambique relativamente aos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres? O que diz a Lei? Quais so as polticas pblicas? Que mecanismos existem para a sua aplicao? E depois como que esses direitos reprodutivos so sentidos/representados e vividos -ou no vividos- como os outros direitos? Ou seja, que preconceitos, que tabus existem relativamente sexualidade e reproduo que vo exigir precaues especiais de ordem metodolgica? E como que esses tabus explicam a ocultao da SIDA e a sua propagao? Por outro lado e ainda do ponto de vista metodolgico, que interdisciplinaridades este estudo vai privilegiar? Parece bvio que os agentes sanitrios tero, pela primeira vez, um papel importante na pesquisa, mas que papel? De informadores ou outro qualquer? Que dimenso a sade vai ter? E o campo de anlise e o grupo alvo: vamos estudar crianas, mulheres em idade de procriar ou todas? Este um problema que merece discusso porque, quando falamos em direitos reprodutivos e sexuais, falamos em grupos de idade diferente, cada um deles com papis especficos, com maior ou menor capacidade de intervir nas relaes de poder. Por exemplo, em que idade que a sexualidade da mulher mais controlada? Quais os mecanismos de controlo? De que modo que em certas zonas do pas as mulheres idosas so mediadoras do poder masculino? (Por exemplo: a mulher depois da menopausa como garante de uma outra condio, fora dos conflitos gerados pelo controlo da reproduo, a principal conselheira para as mais novas do exerccio da sexualidade). E como que sobre ela se exerce o controlo da sexualidade, j que o da reproduo no pode existir? Exclui-se a mulher idosa da sexualidade incluindo-a num campo neutral de dominao? E as que no tm filhos, como gerem elas o conflito entre o essencialismo biolgico, o destino social e a sua escolha individual? Outra dimenso do trabalho seriam a(s) estratgia(s) adoptada(s) pelas mulheres nos seus diferentes ciclos de vida para escapar ao lugar de objecto do desejo masculino, ao mesmo tempo que dele se serve para inverter as relaes de poder. A este propsito, recordem-se os olhares e os gestos das mulheres makhwuas, por exemplo, no tufo: estratgia de domesticao ou estratgia para escapar dominao? Ou a vergonha das jovens iniciadas changanas que as leva a adoptar o modelo de virgindade sedutora como forma de afirmao? Como poderemos inserir todas estas questes, dimenses, categorias no objecto de estudo?

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Ainda o controlo da reproduo e da sexualidade, considerando as relaes de poder: respondido com que estratgias por parte das mulheres? O oferecimento do corpo no ser, por exemplo, uma forma concreta de inverter o poder e no ser, ao mesmo tempo, uma aceitao das regras do jogo masculino? A afirmao profissional e a visibilidade pblica das mulheres sem filhos (sem o poder que lhes foi conferido pela reproduo) no sero formas de superar a excluso normativa do masculino? E aqui voltamos ao problema inicial: que dimenses vamos escolher para a pesquisa? E que perspectiva? Basta dizer que a perspectiva feminista ou necessrio detalhar esta abordagem em funo do avano do conhecimento sobre gnero e reproduo e gnero e sexualidade? E que espaos? Parece bvio que a Famlia central, mas e a empresa e os aparelhos de Estado no o so? E em termos de representao e prtica social vamos trabalhar s com mulheres ou tambm com as representaes dos homens sobre o corpo feminino? A resposta a estas questes, algumas delas j parcialmente dadas no texto da edio anterior, concretizada atravs da definio do quadro analtico, dos grupos-alvo, do campo de anlise e dos instrumentos de investigao propostos. b) O quadro analtico Na nossa investigao, consideramos trs tipos de racionalizao para analisar o objecto de estudo. Primeiro, a que toma em conta as expectativas (das aces) como um meio para atingir um fim. Segundo, a que determinada por valores, sem considerar os ganhos. Terceiro, a racionalizao do hbito que influencia o comportamento habitual dos actores sociais. As dimenses do conflito sero tratadas atravs de dois aspectos analticos: o gnero e o grupo social. A idade ser incorporada na observao das variaes entre as dimenses acima referidas. Do ponto de vista do quadro analtico, propomos orientar a pesquisa a partir da teoria feminista, considerando instrumental a sociologia da aco e a anlise sistemtica. No que respeita s dimenses/mbito do trabalho, propomos a anlise dos direitos sexuais e reprodutivos e tambm da influncia do desenvolvimento das polticas pblicas nas atitudes e prtica com respeito transmisso e infeco do HIV. Estas dimenses sero tomadas em conta na fase de colecta de dados e, por razes metodolgicas, sero tratadas separadamente. Contudo, a anlise dos resultados ser feita de uma maneira articulada para nos permitir determinar a pertinncia de cada uma das dimenses, que cruzamentos e interseces ocorrem, e

em que medida elas tm mltiplas implicaes que contribuem para a omisso legal e social dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. A influncia religiosa, os rituais e o contedo dos ritos de iniciao (nas suas diferentes formas regionais) sero objecto de ateno particular. Eles mostram-nos no somente as expectativas sociais em relao ao comportamento futuro dos iniciados, mas tambm o universo simblico que suporta e legitima o exerccio dos direitos sexuais e reprodutivos. c) Grupo-alvo O grupo-alvo ser constitudo, sobretudo por jovens, diferenciados por regio (urbana e rural), sexo e grupo social. Esta opo implica que os nossos parceiros e informadores sero os jovens nos Centros de Formao de Professores Primrios, as associaes de jovens, as comunidades de jovens ligadas a igrejas e associaes de combate ao HIV/SIDA. Os ministrios da Mulher e Coordenao para a Aco Social, da Sade, da Educao, da Juventude e Desportos, o Conselho Nacional da SIDA e o Instituto Nacional de Estatstica, sero consideradas instituies pblicas preferenciais em cada estgio da pesquisa. Os informadores preferenciais e os parceiros sero tanto sujeitos como objectos durante a durao da pesquisa, fornecendo informao, facilitando o processo de colecta da mesma e avaliando o projecto. Como foi mencionado na consulta realizada com os nossos stakeholders, para a V Fase da pesquisa procuraremos dar preferncia contratao de jovens investigadores, que tero mais facilidades em obter informao sobre o tema, porque esto mais prximos dos informadores tanto em idade como em experincia. Os grupos-alvo sero seleccionados com base na idade, nvel de escolarizao e grupo social, dando-se preferncia aos jovens. Grupos-alvo: Estudantes de escolas primrias Estudantes de escolas secundrias Estudantes universitrios Jovens trabalhadores

Informadores-chave: Professores Profissionais de sade Oficiais de justia Dirigentes de instituies estatais, da Comisso

Nacional da SIDA e membros de ONGs trabalhando com HIV/SIDA

d) Instrumentos para a colecta de informao Reviso de literatura Entrevistas semi-estruturadas com grupos alvo e

informadores-chave

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Discusses de grupo com debates estruturados segundo os grupos-alvo

Informao quantitativa produzida pelo Instituto Nacional de Estatstica

Questionrios escritos estruturados e) Campo de anlise Cidade de Maputo (Capital do pas,

caracterizada pela diversidade de culturas e de grupos)

Distrito da Provncia de Maputo: Manhia (corredor para condutores de camies de longo curso e outros, com caractersticas semi-rurais).

Distrito na Provncia de Gaza: Guij (sociedade que mantm muitos elementos da organizao

social tradicional, mas que tambm est na rea de influncia das migraes para as minas Sul-Africanas)

Cidade da Beira Distrito na Provncia de Sofala (a ser

seleccionado) Cidade de Nampula (rea matrilinear) Distrito na Provncia de Nampula: Angoche

(predominantemente Islmico) Cidade de Tete Distrito da Provncia de Tete: Angnia

(fronteira com o Malawi)

Conceio Osrio Ximena Andrade

Presidente da CNE recebe em audincia o Conselho de Direco do Frum Mulher

O Conselho de Direco do Frum Mulher teve um encontro, no dia 3 de Maro de 2003, com o Presidente da Comisso Nacional de Eleies (CNE), Dr. Aro Litsuri, com o objectivo de apresentar algumas questes relacionadas com a necessidade de tornar visvel o papel da mulher no processo eleitoral que se aproxima. De salientar que este encontro foi solicitado pelo Frum Mulher, com base no reconhecimento de que, em Moambique, cerca de 53% da populao constituda por mulheres, o que concorre para o nmero elevado da presena feminina no eleitorado nacional. Assim sendo, algumas das questes do interesse das mulheres levadas pelo Frum Mulher ao encontro com o Presidente da CNE foram: A necessidade de registo dos eleitores por sexo, a existncia de estatsticas diferenciadas por gnero e a sua ateno para a dimenso rural-urbano, a incluso de mulheres nas equipas de registo para maior visibilidade, a integrao dos assuntos de gnero nas campanhas de educao cvica, com especial ateno para as mulheres das zonas rurais, a importncia de se olhar para a maneira como os media retratam a participao das mulheres, a visibilidade das mulheres nas Assembleias de voto, os obstculos participao das mulheres idosas, portadoras de deficincia, analfabetas, sem identificao, entre outras. Deste modo, o Frum Mulher pretende dar o seu contributo nas eleies, reivindicando a favor dos direitos cvicos e de cidadania das mulheres moambicanas tendo-se oferecido tambm para colaborar com a CNE com vista existncia de um processo eleitoral justo e transparente. O Frum Mulher louva a disponibilidade e a ateno demonstradas pelo Presidente da CNE em relao s questes apresentadas e que constituem preocupaes reais e significativas da sociedade civil, em especial, das mulheres.

(In: Frum Mulher Notcias, Boletim Informativo Mensal n6, Fevereiro, 2003)

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Assdio sexual e violaes nas escolas De entre todo o tipo de violncia que se comete contra as mulheres, no existe nada de to infame como molestar sexualmente ou violar uma criana que est mais vulnervel, que espera de um adulto proteco e que fica assim traumatizada para o resto da vida (veja mais adiante a caixa que tem o ttulo Abuso sexual de crianas: sinais e sintomas). Mais grave ainda que os que cometem este tipo de actos so normalmente adultos prximos das suas vtimas, tais como familiares, vizinhos ou professores. Quando a agresso sexual das crianas acontece na escola, que deve educar e orientar para a vida, ns todos, as crianas, os seus pais e a sociedade sentimo-nos trados. At porque muitas vezes o crime exposto, inclusivamente na rdio, televiso e jornais, e, ao que se sabe, nenhuma medida tomada para travar os agressores. No jornal Notcias de 23 de Junho de 2001, um artigo com o ttulo Professor seduz e viola alunas em Gaza, d conta de mais um repugnante episdio deste tipo:

Quatro alunas de idades compreendidas entre os 11 e os 12 anos foram, no ano passado, seduzidas e violadas pelo seu professor em Mabawane, a cerca de 50 quilmetros da localidade de Chimpenhe, no distrito de Xai-Xai, em Gaza, segundo uma fonte daquela comunidade. O caso, que est a agitar a comunidade, foi confirmado pelo actual director da Escola Primria de Mabawane, Arthur Wamusse. Wamusse disse que uma das raparigas violadas teve que ser enviada ao hospital para tratamentos na sequncia dos ferimentos resultantes da violao sexual. Estranho no meio de toda esta histria invulgar o facto de o professor Z.C. continuar a dar aulas e a assumir as funes de director que vinha exercendo, mas j numa outra escola. (..) Conta-se na comunidade que depois do seu primeiro incidente, Z.C. foi transferido para Mainguelane, situada na mesma localidade de Mabawane onde de novo se envolveu com duas alunas menores, segundo confirmou Wamusse. De Mainguelane, Z.C. foi movimentado para Chiconela. No sabemos como se comportou l, mas a verdade que foi de novo transferido para Tetene, posto administrativo de Chongoene, onde se encontra at agora a desempenhar as mesmas funes, disse Wamusse. A Direco Provincial de Educao de Gaza que, em finais de Maio, disse AIM no ter conhecimento do assunto, confirmou quarta-feira ltima, trs semanas depois, que as transferncias do professor surgem como resultado do seu envolvimento com alunas menores.

Mandei uma equipa para trabalhar no terreno e, a partir dos argumentos do prprio professor, consideramos existir material suficiente para concluir que ele se envolveu com as raparigas, disse Baptista Manhenje, chefe do Departamento de Recursos Humanos na Direco Provincial de Educao de Gaza.

Perante esta informao, um cidado revoltou-se e expressou, nas pginas do mesmo jornal, a indignao que todos sentimos:

A informao que li no jornal Notcias do dia 23 de Junho corrente, segundo a qual um professor violador de menores continua a passear a sua classe de violador em diferentes escolas do nosso pas, atravessou-me a garganta e o corao. (...) Como foi possvel deixar um incidente como este to visvel e descaradamente impune? Perguntamos ns! Como foi possvel uma instituio educadora fazer vista grossa a tamanha barbaridade? Como pde um pas inteiro com 26 anos de independncia no ter um destino claro para um crime desta natureza? Exigimos e aguardamos com a pacincia quase esgotada, que tal professor violador, e os seus imitadores que sabemos existirem s dezenas deambulando pelas instituies de ensino, sejam exemplarmente punidos com a merecida expulso do Aparelho de Estado e com alguns anitos de cadeia intensamente vividos. Esta violao impune foi, provavelmente, umas das piores publicidades que j se fez da escola e da classe adulta, de quem se espera maturidade, responsabilidade, sensibilidade, amor e carinho. Foi uma traio raa humana. Foi uma punhalada nas costas do futuro do pas. (Notcias, 27 de Junho de 2001, FALAR POR FALAR - Professor Violador?)

Mais recentemente, a 9 de Maro de 2003, no telejornal das 20H00 da TVM, foi passada uma reportagem sobre algumas alunas grvidas em escolas da cidade de Maputo que reclamam ter sido compulsivamente transferidas para o curso nocturno por deciso da direco da escola, por terem engravidado. O reprter entrevistou o Director Provincial de Educao em Maputo, que afirmou que a ocorrer, esta prtica seria ilegal, pois no h nada nos regulamentos que autorize tal medida1. Estes dois casos, infelizmente no isolados, so reveladores da maneira como se tem vindo a lidar com as agresses sexuais de menores nas escolas. bem certo que o Cdigo Penal tem algumas lacunas legais quando se trata de crimes deste tipo2, mas no se compreende que ainda no exista um regulamento

Outras Vozes, n 3, Maio de 2003 13

interno da instituio, como confirma o Director Provincial de Educao da provncia de Maputo, quando interrogado pelo reprter da TVM. No entanto, a ausncia de um regulamento no explica o caso do professor que, em Gaza, viola sucessivamente as suas alunas e, tambm sucessivamente, vai sendo transferido de escola para escola. Aqui j se trata de complacncia. Complacncia das autoridades que devem resolver o problema e que parece no acharem que a agresso sexual s meninas seja um crime grave. Pelo menos esta a concluso a que podemos chegar quando sabemos deste e de mais outros casos que ocorrem nas escolas por todo o pas. Mais grave ainda, temos a certeza de que s noticiada uma nfima proporo dos crimes que realmente se cometem. Num momento em que o Governo decidiu como prioridade no campo da educao garantir a igualdade de acesso escola a rapazes e raparigas, como explicar que a realidade escolar para a menina se mantenha to hostil e perigosa, perante a passividade de quem tem o dever de intervir? Qual a coerncia de se investir tanto no Projecto de Educao da Rapariga, alis de maneira muito sria e exemplar, quando simultaneamente se permitem que situaes destas aconteam e que os agressores saiam impunes? No s se trata de um contrasenso, mas tambm de uma sria violao dos direitos humanos, que deve ser resolvida pelas instncias judiciais. Para dizer de forma directa, um caso de polcia! Na mesma reportagem da TVM (9/3/2003), o reprter citou a vizinha frica do Sul, onde, segundo ele, 1 em cada 3 alunas do ensino secundrio engravida, muitas vezes dos prprios professores. Informou ainda que os professores casados que engravidam as alunas so expulsos. S que esta informao est incorrecta, porque as medidas tomadas l so muito mais radicais. Como se pode ver pelo artigo publicado no jornal sul-africano Saturday Star, de 8 Maro 2003 (No mercy for teachers in sex cases), doze professores foram exonerados e no podero jamais exercer a profisso, por se terem envolvido sexualmente com estudantes suas, independentemente do seu estado civil, porque aos solteiros no se reconhece liberdade para molestarem e violarem vontade! O prprio Ministro de Educao, Kader Asmal, explica que os crimes de agresso sexual so considerados gravssimos por parte de quem tem o dever de educar e de proteger e que, por isso, independentemente dos procedimentos criminais, o seu Ministrio toma medidas muito firmes para acabar com tais crimes.

tempo tambm do nosso Ministrio de Educao romper com a prtica escandalosa de penalizar as alunas menores que engravidam. Nos anos 70, as estudantes que engravidassem eram expulsas da escola. Sem apelo Mais tarde atenuou-se a severidade desta medida, passando elas a serem transferidas para o curso nocturno. Os co-responsveis pela gravidez, tanto colegas como professores, ou no sofriam nenhuma sano ou pelo menos to pesado castigo. S que esse regulamento que autoriza tais medidas no existe. Assim o confirma o DP de Educao na entrevista que deu TVM. Ento porque no se proibe terminantemente essa discriminao contra as jovens raparigas nas escolas? Porque se fecham os olhos enquanto tal prtica se mantm na maioria das escolas do pas?3 Repetimos: a agresso sexual de menores uma das mais graves violaes dos direitos humanos e cria problemas para o desenvolvimento e na vida futura das vtimas. Estes actos devem ser criminalizados e so mais graves quando o agressor algum, como o professor, que tem responsabilidades em relao aos seus educandos. A escola no pode continuar a ser um lugar perigoso para as meninas. O Ministrio da Educao conhece o problema. Existem os meios para resolv-lo ou, pelo menos, para comear a actuar. Se no se fizer nada porque se trata de cumplicidade ou de negligncia criminosas. ---------- Notas: (1) Sublinhado de nossa autoria. (2) Veja-se o artigo O crime de violao na legislao em Moambique. Anlise legal do disposto no actual Cdigo Penal, da autoria de Irene Afonso e publicado na edio anterior deste boletim (Outras Vozes, n 2, Fevereiro de 2003). (3) Vejam-se os dados do relatrio Polticas da desigualdade? Beijing + 5, Relatrio das ONGs (M Jos Arthur et al., 2000, Frum Mulher). Referncias: FALAR POR FALAR - Professor Violador?,

Notcias, 27 de Junho de 2001, No mercy for teachers in sex cases, Saturday Star,

8 de Maro de 2003 Professor seduz e viola alunas em Gaza, Notcias,

23 de Junho de 2001

Maria Jos Arthur

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Outras Vozes, n 3, Maio de 2003 14

Abuso sexual de crianas:

Sinais e sintomas

Se muitas vezes as crianas no se queixam ou no falam do abuso a que esto sujeitas, ele pode no entanto ser identificado a partir de alguns sinais e sintomas que j foram estudados em casos deste tipo. Estes indicadores podem ser teis para confirmar a existncia do abuso quando se registam queixas. Apresentam-se em seguida alguns exemplos: Indicadores de abuso fsico Leses no explicadas ou justificadas por

motivos no credveis. As leses podem ser ndoas negras, fracturas, queimaduras e laceraes.

Queixas frequentes de dor ou da sensao de estar dorido.

Um comportamento extremo (agressividade, negligncia, grande empenhamento no que faz ou nenhum interesse por coisa alguma).

Uma procura obsessiva de ateno por parte dos adultos.

Atrasos no desenvolvimento emocional e intelectual.

Comportamentos auto-destrutivos (falta de apetite, apetite extremo, tentativas de suicdio, ferimentos auto-inflingidos).

Desconfiana e hiper-vigilncia.

Indicadores de abuso sexual Mudanas bruscas no comportamento ou na

personalidade; mudanas no comportamento escolar.

Dores na rea genital; contuses ou sangramento na rea genital, vagina ou nus.

Comportamento fantasioso ou infantil (como se tivesse menos idade).

Conhecimento ou comportamento sexual pouco usual.

Fronteiras mal definidas na sua relao com os adultos do sexo oposto.

Actividades sociais abertamente restritas. Masturbao excessiva ou desapropriada. Raiva e agresso excessivas. Dificuldades em andar ou em sentar-se. Ausncia extrema de reaco ou de expresso. Uma fraca auto-imagem, que se reflecte na

escolha das roupas, na aparncia em geral e na higiene pessoal.

Ferimentos auto-inflingidos. Comportamentos que indicam desordem:

comer pouco ou em excesso, fazer xixi na cama, ter pesadelos com muita frequncia, medos e fobias.

(Traduzido e adaptado de:Educators Guide about Violence, Family Violence Council and Lincoln & Lancaster County, Health Department, 2000)

WLSA MoambiquePor ocasio do 8 de Maro, Dia Internacional da Mulher

Por ocasio do dia 8 de Maro, Dia Internacional da Mulher , e a propsito do encerramento do workshop Gnero e Educao: Assimetrias na Educao e os Direitos Humanos das Mulheres, a WLSA Moambique realizou um convvio nas suas instalaes. Estiveram presentes vrias activistas que trabalham em ONGs com quem o WLSA tem parcerias, bem como a Coordenadora AMME e uma representante da Direco Nacional da Mulher (MMCAS).

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II Cimeira dos Chefes de Estado da Unio Africana:

uma oportunidade para nos fazermos ouvir

Em Julho de 2003 realizar-se- em Maputo a II Cimeira dos Chefes de Estado da Unio Africana. A agenda principal est centrada na estruturao da Unio Africana, na criao das suas instituies e nos mecanismos de funcionamento. Conscientes de que se trata de mais uma oportunidade para milhes de mulheres no continente Africano, um grupo de mulheres moambicanas respondeu ao apelo da senhora Graa Machel e tem-se vindo a reunir desde Fevereiro para preparar a participao das mulheres Africanas nesta Cimeira. No decurso do nosso trabalho foi elaborado um Declarao, a ser apresentado durante a Cimeira, que j circula por muitas organizaes de mulheres neste continente a fim de recolher opinies e contribuies sobre o seu formato e contedo. Este grupo tomou igualmente a iniciativa de organizar uma reunio de representantes de ONGs, acadmicas e lderes feministas Africanas, a ter lugar em Maputo, de preferncia um ms antes da Cimeira, no sentido de concertar posies para que os nossos lderes: tornem realidade os princpios por eles assumidos

na Carta da Unio: a democracia, a boa governao, o respeito pelos direitos humanos de todos os cidados, para o desenvolvimento econmico, social e cultural do nosso continente, e

concretizem a presena e a participao activa da mulher Africana em todos os rgos da Unio.

Organizaes de mulheres na frica Ocidental tambm tiveram a iniciativa de se organizar para a Cimeira da Unio Africana e, com elas, este grupo de moambicanas j estabeleceu contactos para concertar posies. Queremos aproveitar a II Cimeira da Unio Africana em Maputo para: Pressionar para que a governao em frica reflicta

a centralidade da mulher nas nossas sociedades; Ser parte indispensvel no mainstreaming de gnero

em todos os rgos, estratgias, programas e actividades da Unio Africana e do NEPAD;

Influenciar para que os governos Africanos comecem a implementar com maior seriedade os compromissos nacionais e internacionais assumidos em Constituies, Leis, Protocolos, Convenes.

Isabel Casimiro

Moambique esteve representado no Frum Social Mundial (FSM) de 2003 em Porto Alegre Uma equipa de formadores do Centro de Formao Jurdica e Judiciria (CFJJ), uma investigadora do CEA (UEM) e um representante da UNAC participaram no II FSM 2003. Este que foi o III FSM teve lugar em Porto Alegre, Brasil, entre os dias 23 e 28 de Janeiro. Sabe-se que o Frum um espao internacional para a reflexo e organizao de todos os que se contrapem globalizao e esto construindo alternativas para favorecer o desenvolvimento humano e buscar a superao da dominao dos mercados em cada pas e nas relaes internacionais. O FSM prope-se a debater ideias para construir modelos alternativos de globalizao, nos quais se privilegie a solidariedade econmica, cultural, poltica, etc., que respeite os direitos humanos, apoiada em sistemas e instituies internacionais democrticos a servio da justia social, da igualdade e da soberania dos povos. Tendo em conta estes objectivos, os seminrios, as palestras, as oficinas e os debates foram orientados em torno de quatro eixos temticos, compreendendo cada um diversos subtemas: Eixo I: Desenvolvimento Democrtico e Sustentvel Eixo II: Princpios e Valores, Direitos Humanos,

Diversidade e Igualdade Eixo III: Media, Cultura e Alternativas

Mercantilizao e Homogeinizao Eixo IV: Ordem Mundial Democrtica, Luta Contra a

Militarizao e Promoo da Paz O nmero de participantes ao FSM tem vindo de ano para ano. O primeiro Frum contou com a participao de aproximadamente 20.000 pessoas. Por seu turno, embora no estejam ainda calculados os resultados finais, parece ser seguro que o III FSM reuniu cerca de 100 mil participantes entre delegados, observadores, profissionais de imprensa e activistas de todo o mundo. Deste nmero, 20.763 eram delegados, representando 5.717 organizaes de 156 pases. Credenciaram-se para a cobertura do evento 4.094 jornalistas, provenientes de 51 pases. Estiveram na tenda dos jovens cerca de 20000 jovens representando vrias organizaes de jovens. No h dvidas de que o FSM se tornou uma dos mais completas e impressionantes manifestaes de um movimento social em que milhares de pessoas acumularam foras colectivas para enfrentarem os grandes desafios que o futuro nos reserva. Mais do que um interminvel ciclo de palestras, de oficinas, de natureza acadmica e de interveno, FSM reuniu experincias suficientes para fazer um apelo ao mundo: um outro mundo possvel. O FSM representa hoje um lugar estratgico de confrontaes com a ordem mundial hegemnica e de democratizao da relao entre os diferentes movimentos(Betnia vila). Neste sentido, foi consenso de todos a crtica hegemonia norte-americana sobre o mundo, mas frisando-se a importncia de distinguir Governo da populao norte-americana. Pessoalmente sinto que o III FSM no constituiu apenas um evento , mas um processo de mudana para nos sentirmos ligados com outros, de forma a contribuir para tornar realidade esse outro mundo possvel onde todos os seres humanos sejam donos do nosso destino.

Terezinha da Silva

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Campanha pelo Exerccio dos Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos

MORTALIDADE MATERNA: UM ASSUNTO DE DIREITOS HUMANOS, UMA QUESTO DE JUSTIA SOCIAL

Chamada para a Aco 2003

28 de Maio - Dia Internacional da Aco pela Sade das Mulheres Comunicado da Red de Salud de las Mujeres Latinoamericanas y del Caribe: Em 1988, h 15 anos, lanmos a nossa primeira chamada para a aco, com o objectivo de celebrar o 28 de Maio, Dia Internacional de Aco pela Sade da Mulher. Conjuntamente com a Rede Mundial de Mulheres para os Direitos Reprodutivos, RMMDR, coordenmos a histrica campanha para a Preveno da Morbimortalidade Materna, que reuniu ento centenas de grupos de todas as regies. Para o ano de 2003, tomando em conta as cifras crescentes de mortalidade materna, decidimos retomar o mesmo enfoque: MORTALIDADE MATERNA: UM ASSUNTO DE DIREITOS HUMANOS UMA QUESTO DE JUSTIA SOCIAL. Cifras para pensar Por minuto engravidam 380 mulheres e 190

dessas gravidezes so indesejadas e/ou no planificadas.

Por complicaes com a gravidez, parto ou purpero, morrem por dia 1.600 mulheres, quer dizer, quase 600.000 por ano. E 99% dessas mortes ocorrem em pases em desenvolvimento. (...)

Por cada morte durante a gravidez ou no parto, calcula-se que ocorram entre 30 a 100 casos de enfermidades ou incapacidades maternas de vria ordem. Hemorragias, infeces, eclmpsia, parto obstrudo e as complicaes do aborto inseguro constituem as principais causas de morte materna. (...)

Segundo a Organizao Mundial de Sade, de todas as estatsticas que monitoreia, as da mortalidade materna so as que mostram as diferenas mais profundas entre pases desenvolvidos e pases em desenvolvimento, constituindo a maior prova de desigualdade na sade que enfrentam as mulheres, apesar de ter aumentado o conhecimento sobre as suas principais causas e de se terem identificado as intervenes apropriadas para as combater.

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As probabilidades de que uma mulher morra por causas relativas gravidez, parto ou aborto inseguro ao longo da sua vida (Population Action 2001) so: frica: 1 em 15 sia: 1 em 105 Amrica Latina e Caribe: 1 em 150 Europa: 1 em 1.895 Amrica do Norte: 1 em 3.750

Isto explica-se pela menor valorizao social das mulheres e pelo seu escasso poder para tomar decises que digam respeito sua sexualidade e reproduo. Mas tambm pelo seu acesso desigual ao emprego, educao e aos recursos; pela sua condio de pobreza, pelo seu estado fsico debilitado por reiteradas gravidezes e pela m nutrio, pelas ms condies de higiene e de salubridade no seu ambiente mais restrito, quer dizer, uma situao de extrema desvantagem social. No obstante, o Fundo de Populao das Naes Unidas calcula que proporcionar cuidados maternos e infantis bsicos custaria somente trs dlares por pessoa por ano, o que reduziria a mortalidade derivada da maternidade. Sustm tambm que a reduo da mortalidade materna se relaciona mais com o acesso a tratamentos eficazes e acessveis e com a qualidade dos cuidados, do que com o desenvolvimento socioeconmico geral de um pas. O injusto desta situao que a mortalidade materna se pode prevenir com intervenes passveis de serem implementadas e a baixo custo. No entanto, necessrio que exista vontade poltica e o compromisso de promover a equidade, a justia social e os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, em especial das mais pobres, das que residem em zonas rurais e das mulheres adolescentes, que frequentemente tm menos possibilidades de aceder aos recursos e servios, e para quem a maternidade muitas vezes pode custar a vida. Mais informaes sobre esta jornada de activismo: Coordinacin RSMLAC Tel.: (56-2) 223-7077 Fax: (56-2) 223-1066 C. electrnico:

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Dados do Ministrio da Sade: Extractos do documento, Estratgia para a reduo da morbimortalidade materna e perinatal (M. da Sade/ FNUAP, 2000) Com o propsito de identificar os principais determinantes das Mortes Maternas em Moambique, e no contexto da Avaliao das Necessidades em Maternidade Segura, o Ministrio da Sade conduziu uma anlise de 90 Mortes Maternas ocorridas em 7 provncias no perodo de 01/01/97 a 30/06/98. A Metodologia do referido estudo baseou-se na utilizao do Mdulo VI: Reviso das Mortes Maternas, que parte da avaliao da Necessidade em Maternidade Segura, sendo Moambique o primeiro pas do Mundo a testar este mdulo. Um dos aspectos importantes desta pesquisa foi a componente de informao colhida ao nvel da comunidade entre os familiares e outros membros que tivessem tido contacto com as mulheres falecidas, em vida, numa tentativa de reconstruir o Caminho da Morte das mesmas. Assim, dos 90 casos de mortes maternas estudadas, 75 foram mortes maternas directas, tendo sido identificadas como causas: a spsis puerperal, a hemorragia e a ruptura uterina. Das 15 mortes maternas indirectas, a malria, a anemia, a SIDA, a pneumonia e a intoxicao por medicamentos tradicionais, foram identificadas como causas da morte. Destas, 62 mulheres residiam em zona rural e 28 em zona urbana, tendo ocorrido proporcionalmente mais casos de malria (14% contra 6%) e de eclmpsia (11% contra 2%) a nvel da zona urbana e de ruptura uterina (15% contra 7%) e trabalho de parto arrastado (10% contra 0%) na zona rural. O grupo de adolescentes constitui 32% da populao estudada, sendo 30% grandes multparas, tendo-se verificado que mesmo na faixa etria considerada de menor risco (20-24 anos) existiam 33% de grandes multparas e na faixa etria acima dos 35 anos eram todas grandes multparas. A anlise dos principais factores determinantes das 90 mortes maternas estudadas, foi realizada tendo em conta o Modelo dos Trs Atrasos.

Fase 1 ou atraso na deciso de procura dos cuidados, concluiu-se que os seguintes factores influenciaram o atraso na procura dos servios: o analfabetismo e a baixa escolaridade, assim como outros factores scio-econmicos como: pobreza, poder de deciso, estatuto da mulher, conceito de doena e gravidade, factores culturais e informao inadequada. () Fase 2 ou atraso em chegar unidade sanitria adequada, concluiu-se que a distribuio das US e dos servios, o tempo de viagem de casa at US e a disponibilidade de transporte, foram os principais factores que influenciaram o atraso da mulher em chegar a uma US onde pudesse receber os cuidados que exigia. () Fase 3 ou atraso em receber os cuidados necessrios e adequados a nvel da US, isto , a contribuio dos servios de sade para a ocorrncia destas mortes foi significativa. De mencionar que a funcionabilidade do sistema de referncia, ruptura de stock de medicamentos e de outro material, insuficincia de pessoal treinado e a competncia e disponibilidade do pessoal existente foram os principais factores que influenciaram as mulheres em receber atempadamente os cuidados necessrios a nvel da US. () PONTOS ESTRATGICOS PARA A REDUO DA MORBIMORTALIDADE MATERNA E PERI-NATAL As estratgias a serem propostas para a reduo da morbimortalidade materna e peri-natal devem ser baseadas no aumento e utilizao dos servios obsttricos essenciais bsicos e completos, de forma a que as mulheres com complicaes obsttricas possam ter acesso a estes servios e a receber uma ateno atempada e de boa qualidade de acordo com a sua condio. Por outro lado, a avaliao da reduo da morbimortabilidade materna e neonatal deve ser feita atravs do uso de indicadores de processo e impacto.

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Fragmentos de indignao No momento em que estamos a fechar esta edio as tropas americanas e britnicas ocupam Bagdad, depois de 21 dias de combates que foram intensos no pelo perigoso armamento que se dizia que o Iraque tinha, mas porque a resistncia contra os invasores foi renhida. E o mundo assistiu em directo, mas impotente, a mortes de civis, aos enganos que mataram indiscriminadamente, a um espectculo meditico altamente orquestrado e controlado e, por fim, ao saque

de museus, de hospitais e de escolas, perante a passividade dos ocupantes.

No momento em que estamos a fechar esta edio as tropas americanas e britnicas ocupam Bagdad, depois de 21 dias de combates que foram intensos no pelo perigoso armamento que se dizia que o Iraque tinha, mas porque a resistncia contra os invasores foi renhida. E o mundo assistiu em directo, mas impotente, a mortes de civis, aos enganos que mataram indiscriminadamente, a um espectculo meditico altamente orquestrado e controlado e, por fim, ao saque

de museus, de hospitais e de escolas, perante a passividade dos ocupantes. Diante destes crimes contra a humanidade, por todo o planeta se levantam vozes de protesto que expressam indignao e pesar, mas, sobretudo, preocupao com o futuro de todos ns. Que mundo este em que vivemos e que futuro haver para os nossos filhos?

Diante destes crimes contra a humanidade, por todo o planeta se levantam vozes de protesto que expressam indignao e pesar, mas, sobretudo, preocupao com o futuro de todos ns. Que mundo este em que vivemos e que futuro haver para os nossos filhos?

Carta Aberta a Kofi Annan, Secretrio Geral, Naes Unidas (E-mail: [email protected]

Carta Aberta a Kofi Annan, Secretrio Geral, Naes Unidas (E-mail: [email protected])

Sr. Kofi Annan, Nestes desesperados tempos de Guerra, o senhor e as Naes Unidas talvez representem uma das ltimas esperanas de um mundo que enlouqueceu. Hoje o Dia Internacional das Mulheres e mandamos-lhe esta carta em nome das mulheres do Iraque e das mulheres do mundo inteiro. Enquanto Bush, Blair e os seus seguidores cercam o Iraque com cerca de 300.000 tropas, possuindo enorme poder de fogo e armas de destruio massiva, mulheres em crculos de paz dentro do Iraque levantam as suas lanternas pela paz e continuaro a faz-lo, contra uma Guerra que ilegal e imoral. Hoje dia 8 de Maro e ns estamos juntas na praa Talai em Bagdad, juntas em Crculos de Paz contra a guerra de agresso ao Iraque instigada pelos Estados Unidos, levando cartazes contra a Guerra, fotografias de crianas mortas (por causa do urnio empobrecido usado na ltima Guerra do Golfo), ouvindo testemunhos de mulheres que sofreram as genocdias sanes econmicas, oferecendo canes de resistncia, lendo poemas sobre a paz, partilhando histrias de esperana, acendendo as nossas lanternas pela paz. Mas quem nos ouvir? Quem ouvir as muitas vozes que falam e as muitas vozes silenciadas? Quem ouvir as nossas histrias de guerra? Histrias de uma guerra de sanes econmicas que criaram situaes de extrema privao. As nossas crianas esto a morrer de malnutrio e de falta de medicamentos e cuidados mdicos. Por causa desta situao, a UNICEF diz que cinco mil crianas morrem todos os meses. Isto genocdio, Sr. Annan. (...) Sr. Annan, as crianas no Iraque esto a morrer. Oia as mes delas, oia enquanto elas falam das suas

crianas e da sua civilizao. Oia o que elas contam do seu quotidiano de sobrevivncia, das suas lutas. Oia o que elas tm para contar, num mundo que enlouqueceu e de onde desapareceu a compaixo, a preocupao com o outro e a generosidade. Elas contam histrias diferentes porque vem o mundo de maneira diferente. O mundo necessita destas contadoras de histrias, que falam de uma tica de entrega e de cuidados: um outro conhecimento, uma outra lgica. (...) A Guerra afectar-nos- a todos. Todos, como algum disse, sero marcados pelo sangue e pelas batalhas no deserto. Ns concordamos consigo ao considerar que todas as armas de destruio massiva devem ser eliminadas da face da terra. Eliminadas do Iraque. Eliminadas de todos os Estados que as possuam. () Quem pagar os custos destas guerras? E o que dizer dos milhares que sero mortos? Estamos a falar de milhes de pessoas que sero afectadas. Washington diz que se trata de danos colaterais, que usam bombas e msseis de preciso e que as guerras que fazem so intervenes humanitrias. Para trazer a democracia e os direitos humanos. Mas liberdade para quem? E a que preo? Deve lembrar-se de quando disseram antiga Secretria de Estado dos Estados Unidos, Madeline Albright, que as sanes estavam a matar 5.000 crianas por ms e lhe perguntaram se isso era um preo justo a sua resposta foi que sim, era um preo justo a pagar. Mas ser que o mundo perdeu a sua alma? O preo, ns sabemos, ser pago pelas nossas crianas e pelas crianas das nossas crianas. (...) Sr. Kofi Annan:

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O senhor e as Naes Unidas devem perguntar-se porque que, quando tantos governos e milhes de pessoas em todo o mundo esto contra a interveno militar no Iraque, vocs no conseguem parar os Estados Unidos e a Gr Bretanha e outros governos apoiantes da Guerra, e impedi-los de prosseguir com as suas ambies hegemnicas e imperiais? Enquanto o mundo inteiro observa o espectculo com horror e com tristeza, uma guerra aterrorizante e traumtica segue o seu curso. E, no entanto, talvez ainda neste momento a Assembleia Geral das Naes Unidas pudesse invocar a Uniting For Peace Resolution (UN Resolution 377) que d poderes Assembleia Geral para manter ou restaurar a paz quando o Conselho de Segurana no concorda entre si. O senhor sabe que isto foi invocado pelo menos dez vezes desde 1950. Mas ainda assim o senhor tem permanecido em silncio. Martin Luther King Jr. lembra-nos que as nossas vidas comeam a acabar quando nos silenciamos sobre as coisas que realmente importam: a Guerra no Iraque importa, as crianas que morrem importam, uma antiga civilizao importa, o sofrimento que a guerra trar importa. Importa-nos a todos. (...) Se puder, neste momento, pare com esta terrvel Guerra. O senhor estar a lanar novas bases para o mundo e ter milhes do seu lado. Mas tenha a certeza de que se continuar calado e atravs do seu silncio permitir que crimes de Guerra sejam inscritos na histria, as pessoas de todo o mundo consider-lo-o cmplice. Pelo seu silncio e pelas suas aces. Quando olhar para os olhos das crianas, que histrias lhes contar? Contar-lhes- que era uma vez, h no muito tempo atrs, quando milhares de Iraquianos foram massacrados, o senhor olhou para o lado? triste, sem dvida, mas o senhor preferiu olhar para o futuro criado pelos defensores da guerra. Escutou o seu discurso duplo e validou as suas polticas de extermnio, mesmo quando eles o tornaram a si e s Naes Unidas, irrelevantes. A construo de um imprio o objectivo deles. O senhor olhar para os olhos das crianas no Iraque e dir-lhes- que no tinha respostas e que as nicas que aceitou foram as respostas violentas? O que dir s crianas?

Devia contar-lhes outras histrias. Histrias que vm dos becos das ruas rabes, histrias das mulheres Iraquianas, histrias dos povos com conscincia, em todo o mundo, histrias de coragem e de empenhamento, histrias de harmonia e de esperana, histrias de dignidade dos povos, histrias das crianas torturadas, aterrorizadas, traumatizadas, crianas das lgrimas, crianas do vento, crianas da tempestade, crianas das estrelas. Estas histrias oferecem esperana e falam de justia. Uma justia que parar com a maldio da violncia e da Guerra. No isto que afinal esta Guerra ? Porque s a justia, Sr. Annan, pode parar uma maldio. Corinne Kumar INTERNATIONAL WOMEN SOLIDARITY IRAQ De 8 a 19 de Maro de 2003 O grupo International Women Solidarity Iraq composto por mulheres de vrios pases que visitaram o Iraque entre 3 e 12 de Maro de 2003. Esta carta comeou a ser escrita em Bagdad a 8 de Maro, continuando depois, e os ltimos pargrafos foram acrescentados no dia em que Kofi Annan decidiu retirar do Iraque os Inspectores das Naes Unidas, legitimando a guerra de agresso dirigida pelos Estados Unidos. The International Women Solidarity Iraq composto por: Samira Khoury, Palestine/Lebanon; Iqbal Doughan, Lebanon; Farida Akter, Bangladesh; Pregs Govender, South Africa; Martha Mundy, Britain; Nelia Sancho, Philippines; Lillimore Erikson, Sweden; Luisa Morgantini, Italy; Fatima Meer, South Africa; Vilma Espin, Cuba; Biljana Kasic, Croatia; Genevieve Vaughan, USA; Mahnaz Afkami, Iran/USA; Eunice Santana, Puerto Rico; Neelam Hussein, Pakistan; Wang Jiaxiang, China; Eileen Pittaway, Australia; Hafidha Chekir, Tunisia; Siripon Skrobanek, Thailand; Ruth Manorama, India; Marguerite Waller, USA; Angela Dolmetsch, Colombia; Madhu Bhushan, India; Mililani Trask, Hawaii, USA; Aruna Gnanadason, India/Switzerland; Vanessa Ludwig, South Africa; Ita Nadia, Indonesia; Rabia Abdelkrim, Algeria/Senegal; Piya Chatterjee, India/USA; Sura Ghassan, Iraq/Tunisia; Sylvia Marcos, Mexico; Moema Viezza, Brazil; Rosalie Bertell, Canada; Corinne Kumar, India/Tunisia. (mensagem de correio electrnico recebida de "El Taller"

aos civis que voam aos pedaos sem saberem como nem porqu. Babilnia, a rameira do Antigo Testamento, merece este castigo. Pelos seus muitos pecados e pelo seu muito petrleo. Os invasores buscam as armas de destruio massiva que eles venderam, quando o inimigo era amigo, ao ditador do Iraque, e que foram o principal pretexto da invaso. At agora, que se saiba, no encontraram mais do que armas de museu, num combate muito desigual. Mas sero armas de construo massiva os msseis gigantes que eles dispararam? Os invasores tm vista as armas txicas e as armas proibidas: esto a us-las. O urnio empobrecido envenena a terra e o ar e os pedaos de ao das bombas de fragmentao matam ou mutilam numa rea muito vasta. (...)

O pas que se vem dedicando a bombardear os outros pases, que desde h muito vem infligindo ao planeta uma incontvel quantidade de onze de Setembros, proclamou a terceira guerra mundial infinita. O presidente, que no foi ao Vietname graas ao pap e que s conhece as guerras de Hollywood, manda matar e manda morrer. No em nosso nome, clamam os familiares das vtimas das torres. No em nosso nome, clama a humanidade. No em meu nome, clama Deus. (Artigo publicado em Pagina12, reproduzido no site: www.portoalegre2003.org)

ONU: democracia ou morte Emir Sader

Correio da Cidadania A ONU (Organizao das Naes Unidas) sofreu um dos principais danos colaterais da guerra desencadeada pelos EUA contra o Iraque. A aparente mudana de atitude dos EUA no reconhecendo a necessidade de submisso ao Conselho de Segurana e o subsequente ataque sem a autorizao do mesmo, mostraram o desprestgio da ONU. Seja por subordinao aos desgnios agressivos do Governo Bush, que faz da fora um argumento, seja por desmoralizao por uma guerra que alheia ONU. A nova poltica dos EUA de militarizao dos conflitos, o seu unilateralismo radical e a doutrina de agresso preventiva chocam directamente com qualquer organismo multilateral e com qualquer forma de legalidade internacional. Esta nova doutrina proclama abertamente que os EUA no iro permitir que outras foras ponham em perigo a sua superioridade militar adquirida, legitimando qualquer tipo de aco que consolide essa condio, independentemente do contedo dos conflitos. Em suma, a linha poltica actual dos EUA tornou-se

incompatvel com o funcionamento da ONU. A ONU nunca mais ser a mesma. Se no reagir com firmeza desautorizao perpetrada pelos EUA, se deixar de lado as condenaes que comeam a surgir e mantiver a mesma estrutura actual (que j demonstrou ser no s antidemocrtica como tambm incua), a ONU caminha em direco a um esvaziamento definitivo. Ser uma "morta viva". Marginalizada pela poltica dos EUA, s lhe resta, para sobreviver como um organismo vivo, actuante, legtimo e respeitado, reorientar-se politicamente e transformar a sua estrutura organizativa. (...) Em suma, ou a ONU se democratiza ou desaparecer, abrindo caminho --conforme os desgnios do Governo Bush a um mundo em que triunfar o mais forte, como a actual guerra nos mostra. 13 de abril del 2003 (Traduo; o original encontra-se no site: www.rebelion.org)

A espcie humana pode estar em perigo Noam Chomsky

Neste momento ttrico no podemos fazer nada para deter a invaso em curso. Mas isso no quer dizer que o dever haja terminado para as pessoas que tm alguma preocupao com a justia. Longe disso. As tarefas sero mais urgentes do que antes, qualquer que seja o resultado do ataque. E acerca disso ningum tem uma ideia: nem o Pentgono, nem a CIA, nem mais ningum.

Os temas so fundamentais e de longo alcance. A oposio invaso ao Iraque no tem precedentes histricos. H um crescente temor ao poder dos Estados Unidos que so considerados como a maior ameaa paz por uma grande parte do mundo, provavelmente por uma grande maioria. E, com a tecnologia de destruio agora mo, cada vez mais

Outras Vozes, n 3, Maio de 2003 21

letal e nefasta, a ameaa paz significa a ameaa sobrevivncia. O temor ao governo dos Estados Unidos no est baseado unicamente nesta invaso, e sim nos antecedentes de que surge: uma determinao abertamente declarada de governar o mundo pela fora. O objectivo anunciado abertamente evitar um desafio ao "poder, posio e prestgio dos Estados Unidos". Tal desafio, agora ou no futuro, e qualquer sinal de que possa surgir sero enfrentados com fora esmagadora pelos governantes do pas que gasta mais do que todo o resto do mundo em meios de violncia. A actual administrao est no lugar extremista do espectro da poltica de planeamento, e o seu aventureirismo e a sua inclinao violncia so insolitamente perigosos. (...) A "ambio imperial" dos actuais possuidores do poder, como j chamada abertamente, provocou calafrios atravs do mundo incluindo na corrente principal da elite nos Estados Unidos. Noutras partes, naturalmente, as reaces so muito menos temerosas, especialmente entre as vtimas tradicionais. Sabem demasiada histria, aprenderam-na com dor, para serem confortados por uma retrica exaltada. Escutaram demasiado disso atravs dos sculos enquanto eram golpeados pelo clube chamado "civilizao". H apenas uns poucos dias, o presidente do movimento no alinhado, que inclui os governos da maioria da populao do mundo, descreveu a administrao Bush como mais agressiva do que a de Hitler. Mesmo antes de a administrao Bush ter escalado agudamente estes temores, nos ltimos meses, os

especialistas em assuntos internacionais e de inteligncia estavam informando a qualquer um que quisesse ouvi-los que as polticas que Washington est a seguir provavelmente conduzem a um aumento do terror e proliferao de armas de destruio macia, por vingana ou simplesmente por dissuaso. H duas formas pelas quais Washington pode responder s ameaas engendradas por suas aces e assombrosas proclamaes. Uma forma tratar de aliviar as ameaas dando alguma ateno aos agravos legtimos e aceitando converter-se num membro civilizado de uma comunidade mundial com algum respeito pela ordem mundial e pelas suas instituies. A outra forma construir motores de destruio e dominao mais terrveis, de maneira que qualquer ameaa percebida, no importa quo remota, possa ser esmagada, provocando novos e maiores desafios. Essa forma apresenta perigos mais srios ao povo americano e ao mundo e pode, muito possivelmente, levar extino da espcie, o que no uma especulao ociosa. A guerra nuclear terminal foi evitada quase por milagre no passado. As ameaas so srias e aumentam. Estas esto entre as grandes preocupaes que devem, creio, recordar-se claramente enquanto se examina o desenrolar dos acontecimentos em sua forma imprevisvel e enquanto a fora militar mais terrvel na histria humana desencadeada contra um inimigo indefeso por uma liderana poltica que acumu