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A imagem do acontecimento: Uma análise comparativa entre o conceito histórico de
acontecimento e o acontecimento jornalístico
José Eduardo M. Umbelino Filho1
Resumo
A proposta deste artigo é comparar o significado de acontecimento para a História e para o Jornalismo,
com ênfase nos diferentes processos de construção e manejo desse conceito na lida prática e teórica de
ambos os campos. Pretende-se inicialmente analisar a problematização do acontecimento dentro dos
estudos comunicacionais do jornalismo e, em seguida, tencionar as reflexões com os questionamentos
da História do Tempo Presente. Mais do que apenas reconhecer diferenças e similaridades entre os dois
usos do conceito, a pesquisa procurará vincular seus usos ao estudo da cultura e à construção de uma
identidade contemporânea, bem como sua relação com as percepções da sociedade como um todo.
Palavras-chave: Teoria do acontecimento, construção da realidade, cultura
Abstract
The present article intends to promote a theoretical comparison between historical and journalistic
concepts of “event” or “happening”, emphasizing the different processes of construction and
management of this concept by those who study both fields of knowledge. At first, it will analyze the
conception of event within the communication studies and then insert it in the historical questioning
about the Present Time and the Long Term History. The goal is not only to tell differences from
similarities in the use of the term by both fields, but mainly try to link their use to the study of culture,
contemporary identity and society´s perceptions of it self.
Key words: Happening, Event, Culture, construction of reality
Introdução
Luís Fernando Veríssimo conta, na crônica O Nariz, a história de um respeitado dentista
que, certo dia, aparece em casa usando um nariz de borracha. Sem oferecer explicações, ele
passa a realizar suas atividades corriqueiras, as mesmas que fazia diligentemente todos os dias
de sua vida, agora com o tal nariz; que, segundo narrador, o deixaria parecido com Groucho
Marx. A família estranha, seus pacientes se intrigam, seus amigos acham graça, todos começam
a conjecturar: ele teria ficado louco? passaria por um momento difícil? Seria uma brincadeira
exagerada? Quaisquer fossem as possíveis explicações, um ponto era terminantemente certo:
alguma coisa estava acontecendo com o dentista.
1Jornalista e professor de jornalismo, mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Goiás,
especialista em História Cultural, doutorando em sociologia pela mesma universidade
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A crônica de Veríssimo toca numa premissa relevante para o estudo do conceito de
acontecimento no jornalismo e na história: nem tudo o que ocorre é um acontecimento. As ações
cotidianas do personagem, sua vida regular, passam despercebidas pelos seus familiares,
amigos e clientes. Elas pertencem a um conjunto de movimentos espaço-temporais ocultos sob
o manto da naturalidade, que lhes confere a aparência de imutáveis ou invisíveis. Mas quando
o personagem acrescenta a esse mesmo cotidiano um detalhe dissonante, algo que foge das
expectativas, seu movimento é revelado. Torna-se plausível conjecturar que alguma coisa
aconteceu. O interessante aqui é que, em todo caso, há sempre algo acontecendo, mas nem
sempre o que acontece é captado como um acontecimento. O próprio significado do termo se
bifurca; de um lado resiste a ideia de acontecimento como todo evento que ocorra a qualquer
pessoa em qualquer lugar; mas do outro, soergue-se o acontecimento como aquele evento
específico e considerado relevante por um grupo de pessoas. O objetivo deste artigo é
considerar reflexivamente as semelhanças entre o fato histórico e o acontecimento jornalístico,
ambos considerados segundo o prisma da construção social da realidade e, derivada dessa, do
acontecimento.
O acontecimento é uma construção social
Alsina (2009) afirma que o acontecimento não seria o evento empírico, imediato, mas a
construção que se faz dele a partir do contexto social. Ou seja, o acontecimento é, na verdade,
o resultado da apreensão cognitiva de fatos externos ao indivíduo e de sua ressignificação dentro
do arcabouço social e histórico:
Não existe leitura da realidade que seja descontextualizada e que não esteja
objetivada. O sujeito observador é o que confere sentido ao acontecimento. Ou seja,
os acontecimentos estariam formados por aqueles elementos externos ao sujeito, a
partir dos quais, ele mesmo reconhecerá e construirá o acontecimento. (ALSINA,
2009: 113)
O autor considera, nos passos de Berger e Luckmann, que o acontecimento está inserido
na ideia de realidade, e por realidade entende-se uma qualidade nata de certos fenômenos que
nos faz reconhecê-los como autônomos em relação à nossa própria vontade. Trata-se, portanto,
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de uma questão de reconhecimento, ou ainda, de percepção. Os fenômenos da realidade só se
tornam acontecimentos por causa da ação interpretativa dos sujeitos sobre eles, mas o processo
é de tal forma engendrado que, para esses sujeitos, tais fenômenos são acontecimentos
exatamente porque prescindem de qualquer interpretação ou influência. Eles se configuram
como uma crença ou um “fato natural”: são acontecimentos porque simples e obviamente são.
Mas para que isso ocorra, é necessário a existência de uma concordância social prévia, que
reforce ao indivíduo a convicção de que certas coisas simplesmente são o que são. As
inferências individuais que encontram reforço do grupo tendem a oferecer mais facilmente a
impressão de realidade:
O acontecimento é um fenômeno social e como veremos a seguir, está determinado
histórica e culturalmente. É claro que cada sistema cultural vai concretizar quais são
os fenômenos que merecem ser considerados como acontecimentos e quais passam
despercebidos. (ALSINA, 2009: 115)
Sodré (2009) chega também a essa reflexão quando diferencia fato do acontecimento.
Esse autor busca em Kant a concepção de que o fato seria o conceito produzido a partir de uma
realidade objetiva e passível de prova. Em outras palavras, o fato seria o resultado de uma
experiência objetiva cujo objeto pode ser percebido, mensurado e comprovado por todos. Por
objeto, ou coisa, subentende-se “aquilo que resiste a qualquer relacionamento do sujeito”,
segundo a definição buscada em Wittgenstein. Assim, “o fato seria uma combinação dessas
unidades de resistência, de coisas. Só que, acentuamos, não é a própria coisa, e sim uma
objetivação conceitual da realidade dos fenômenos.” (Sodré, pg. 29). Nesses termos, Sodré
resgata a ideia de objetividade, muito cara à prática jornalística, bem como às bases do
pensamento científico:
A objetividade – logo, a possibilidade de aplicação do adjetivo ́ objetivo´- diz respeito
àquilo que tem idêntica validade para todos os sujeitos e todos os seus correlatos
(objetos, fenômenos) numa experiência. Nela se baseiam as ciências, a partir delas
se constroem hipóteses e teorias. (SODRÉ, 2009, pg. 28)
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O fato, portanto, estaria relacionado à percepção individual de algo como sendo objetivo
e real e, por isso, passível de prova para todas as pessoas que compartilham a experiência.
Entretanto, reitera-se que tanto a objetividade quanto a realidade seriam qualidades existentes
dentro de uma experiência, isto é, de um sistema mais ou menos ordenado. A experiência,
ressignificada como experimento na metodologia científica, não representa a totalidade do real,
mas um recorte não-arbitrário, observável, controlável e replicável que, potencialmente, pode
nos dizer algo do real. Como já foi dito, o fato é a interpretação individual de um fenômeno
cuja validade pode ser aferida por todos os envolvidos dentro de uma determinada experiência.
Por exemplo, é fato que J. F. Kennedy foi morto com um tiro na cabeça durante uma passeata
porque esse evento poderia ser validado por todos os envolvidos naquela passeata. Mais do que
o corpo do morto, a prova verdadeira reside na constatação de que as versões dos envolvidos
apresentam mais aspectos semelhantes que diferentes. Fato, portanto, seria o núcleo recorrente
na validação da maioria das pessoas envolvidas. É claro que a complexidade desse conceito se
perde na medida em que ele se aproxima do senso-comum; tal perda pode ser compreendida
como uma expansão dos limites da experiência, aumentando com isso o número de envolvidos
e diminuindo a capacidade de aferir a validade do fenômeno para esses envolvidos. Se o
experimento científico preza pela própria capacidade de controle de todas as variáveis, a
experiência do senso-comum contenta-se com a qualidade observável e sensível dos fenômenos
e com sua classificação dentro das categorias socialmente construídas de ficção e realidade.
Fatos são percebidos pelos sentidos físicos mais que pelas capacidades interpretativas:
No uso comum, o significado de fato inclui: ‘ (1) ocorrências em geral assim como
ações; logo (2) o que é o caso, se não é uma ocorrência; logo (3) o que se sabe ser o
caso; logo (4) o que se sabe por observação, mais do que por inferência; logo (5) os
dados reais da experiência, opostos ao que inferimos, ampliando um ou mais dos
sentidos acima, (6) as coisas que realmente existem, tais como pessoas e instituições,
aparentemente para contrastá-las com ficções. (SODRÉ, 2009, pg. 30)
Já o acontecimento atende a outras prioridades. Retomando o exemplo dado acima,
temos que tanto o presidente norte-americano J.F. Kennedy quanto o líder sul-vietnamita Ngo
Dinh Diem foram mortos em novembro de 1963. A facticidade de ambos eventos poderia ser
comprovada pela validação dos envolvidos diretos e sua posterior reafirmação através de
documentos. Mas se um jornalista norte-americano precisasse, em novembro de 1963, escolher
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apenas uma das mortes para relatar em seu jornal, ele não teria dúvida sobre sua escolha. E
ainda, se um jornalista brasileiro, europeu ou norte-americano, da atualidade, estivesse às voltas
com uma retrospectiva dos principais acontecimentos da década de 1960, ele provavelmente
poderia deixar de fora a execução do líder sul-vietnamita:
Incorporando a definição kantiana de fato como conceito para objetos cuja realidade
pode ser provada – e, assim, como um espaço disponível ao observador para
atribuição de algum sentido à ocorrência – somos levados a encontrar um outro
termo para a representação social do fato, em especial para a informação jornalística
concretizada na notícia. Esse termo – News, para os norte-americanos; événement,
para os franceses; sucesso, para os espanhóis – bem pode ser o acontecimento. Na
prática, pode ser tomado como sinônimo de fato sócio-histórico. Mas enquanto o
acontecimento se pauta pela atualidade, isto por uma experiência singular na
temporalidade do aqui e agora, o fato, mesmo inscrito na história, é uma elaboração
intelectual. (SODRÉ, 2009, pg. 33)
Como elaboração intelectual pautada na observação interpretativa, e permeada pelo
conceito de objetividade, o fato pertence ao campo significativo do que é verdadeiro ou falso.
O acontecimento, por sua vez, estende-se até o campo do que é importante ou desimportante.
Ele não deixa de reportar ao fato, originando-se dele, mas em sua concepção residem mais
claramente as valorações e simbologias da interpretação social. Mouillaud (2002, apud Sodré,
2009) afirma que o acontecimento é a sombra do conceito socialmente construído de fato.
Sodré reitera que o acontecimento reveste o fato qualitativamente:
Como observa Quéré, é preciso atentar para a pluralização, pois ´os acontecimentos´
têm uma hierarquia e podem ser diferenciados ´em função de seu poder de afetar os
seres e de impregnar as situações de qualidades difusas que as individualizam´. Há,
assim, grandes e pequenos acontecimentos, hierarquizados em razão de sua
previsibilidade dentro de um sistema determinado. (SODRÉ, 2009, pg. 34)
Portanto, mais do que definição de um fato, o acontecimento funciona como
categorização dentro de um quadro hierárquico de valores. Talvez por isso Sodré também
reitere que os acontecimentos estão muito mais relacionados à temporalidade que os fatos. Os
fatos resistem à localização temporal, soerguendo-se maciçamente à revelia da interpretação
histórica, porque sua significação está relacionada ao combate atemporal entre verdadeiro e
falso; mas os acontecimentos são quase sempre exemplares em relação ao seu momento
histórico, tanto que Sodré os considera sinônimos de fatos sócio-históricos. Independentemente
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das versões ou implicações possíveis, é fato que Kennedy e Ngo Dinh Diem morreram
assassinados. Já o acontecimento se refere ao processo que transformou a morte de Kennedy
num modelo exemplar de crise política, de teoria conspiratória e num milestone de sua época,
e a de Ngo Dinh Diem numa nota de rodapé dos livros de história.
O acontecimento no jornalismo
A edição 2406 da Revista Veja, de 31 de dezembro de 2014, afirma em sua capa: “2014
– O ano em que pagamos mico”. A chamada lista cinco notícias amplamente exploradas pela
publicação em edições anteriores: 7x1, Petrolão, Crise da água, PIB zero, Mentiras na
campanha eleitoral. Há, portanto, destaque de certos acontecimentos em detrimento de outros,
e uma convergência intencional para essa ou aquela interpretação, que corrobora a visão de
mundo de certo grupo. No exemplo da Veja, é possível reconhecer claramente as posições
políticas de sua linha editorial, principalmente quando se analisa o conjunto de publicações em
períodos extensos. Trata-se, e esse é o ponto fundamental aqui, de uma escolha do que
aconteceu e do que merece ser recordado. Mas, se os motivos dessa escolha são claramente
rastreados em alguns casos, em outros eles não se revelam com facilidade. Afinal, não é apenas
a linha editorial, nem tampouco as preferências políticas de seus chefes, que determina para os
jornalistas o que é um acontecimento.
O jornalista que escolhe os acontecimentos para as retrospectivas de fim de ano
geralmente é quem realiza o mesmo trabalho todos os dias. Ele se depara cotidianamente com
um mosaico caótico de eventos, fatos, versões e opiniões, e precisa, a partir dessa matéria prima
tão variada, escolher o que é digno de nota e o que não. Como ele faz isso? A profissão
jornalística já traz incrustada em seu sistema de decodificação da realidade um conjunto de
guias para que o jornalista saiba realizar efetivamente seu trabalho dentro do caos dos
acontecimentos. O jornalista pode aprender na faculdade como escrever uma notícia, uma
reportagem, uma nota, um editorial, etc. Mas ele sabe desde sempre o que é notícia. Ele
supostamente possui um faro especial, uma percepção privilegiada que o faz reconhecer de
pronto quais acontecimentos merecem ser publicados. Essa capacidade teoricamente inata do
jornalista é uma das specific skills, ou seja, das competências profissionais específicas, que
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definem um jornalista como tal e que é exigida, segundo Traquina (2013), pelo campo social
jornalístico como certificado identitário:
O “saber de reconhecimento” é a capacidade de reconhecer quais são os
acontecimentos que possuem valor como notícia; aqui o jornalista mobiliza os
critérios de noticiabilidade, um conjunto de valores-notícia (tais como a notoriedade,
o conflito, a proximidade geográfica...), o seu “faro para a notícia”, a sua
“perspicácia noticiosa”, ou seja, nas palavras de Tuchman (1972/1993:85), essa
“capacidade secreta do jornalista que o diferencia das outras pessoas”.
(TRAQUINA, 2013, pg. 40)
A definição das competências jornalísticas como “saberes”, utilizada por Traquina em
referência à Ericson, Baranek e Chan (1987), sugere como essas habilidades estão intimamente
vinculadas à cultura jornalística. São saberes compartilhados mais na prática cotidiana da
profissão do que nos bancos da academia, e por isso revestidos de mitos, máximas, ditos, ritos
e códigos operacionais. O mais reconhecido desses códigos é, ainda segundo Traquina, o que
define os valores-notícia ou critérios de noticiabilidade.
Wolf (2008) define noticiabilidade como o “conjunto de elementos por meio dos quais
o aparato informativo controla e administra a quantidade e o tipo de acontecimentos que
servirão de base para a seleção das notícias.”. Ela significa, portanto, um processo vinculativo
entre acontecimento e notícia, ao mesmo tempo que uma dinâmica de seleção e hierarquização
de sentidos. Para o contexto desse artigo, vale ressaltar como o jornalismo, em sua prática, foi
capaz de criar um adjetivo e um método de escalonar os acontecimentos segundo valores que
lhes seriam inatos. Os valores-notícia constituem um código criado para facilitar o trabalho
cotidiano dos jornalistas, para integrá-los numa cultura comum, bem como para realçar os
limites da própria identidade jornalística. Mas, para os jornalistas, eles seriam qualidades
inerentes aos fatos – e não ao seu olhar sobre os fatos – que lhes garantiriam relevância pública,
peso social, histórico ou político:
Os valores-notícia são, como já tivemos oportunidade de sublinhar, um aspecto
fundamental da cultura profissional. Segundo Golding e Elliot (1978), são um
importante elemento de interação jornalística e constituem referências claras e
disponíveis a conhecimentos práticos sobre a natureza e os objetos das notícias,
referências essas que podem ser utilizadas para facilitar a complexa e rápida
elaboração das notícias ( TRAQUINA, 2013, pg. 60)
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Traquina (2013) considera que a primeira iniciativa de identificação sistemática dos
valores-notícia ocorreu nos EUA, com o trabalho de Galtung e Ruge (1965/1963). De forma
resumida, esses estudiosos listaram que, para se tornar uma notícia, um evento deveria ter: 1)
Frequência: que significa tanto a duração quanto a repetição do acontecimento; 2) amplitude:
quão grande ele seria; 3) clareza ou falta de ambiguidade: histórias mais simples são mais fáceis
de transmitir; 4) significância: a relevância daquele evento para o grupo social;5) consonância:
“isto é, a facilidade de inserir o “novo” numa “velha” ideia que corresponda ao que se espera
que aconteça”;6) inesperado;7) a continuidade: ou a facilidade de concatenar uma série de
eventos numa lógica comum; 8) composição: facilidade de relacionar aquele evento a outros
distintos; 9) a referência a nações ou pessoas de elite; 10) a personalização;11) a negatividade
(TRAQUINA, 2013. Pg. 67)
Traquina analisa esses critérios a partir de sua explicação jornalística, sem adentrar nas
implicações sociológicas e históricas que eles representam. O próprio autor oferece em seguida
a sua lista de valores-notícia, acrescentando aspectos que os pioneiros não consideraram, a
maioria relacionada às necessidades práticas do fazer jornalístico. Ele ecoa Wolf (2008), cujo
trabalho sobre as teorias da comunicação se tornou canônico nas escolas brasileiras de
jornalismo. Wolf afirma que os valores-notícia são mais flexíveis do que autores anteriores
davam a entender, constituindo processos de negociação entre o campo jornalístico e os eventos
da sociedade.
Dois aspectos podem ser apreendidos do que foi exposto a respeito dos valores-notícia.
Em primeiro lugar, a ideia de que o grupo social que define o acontecimento acaba por interferir
profundamente não apenas na escolha do que acontece, como também em sua formatação e
divulgação. Essa interferência se dá de modo intencional, quando o grupo defende seus
interesses particulares através da edição da realidade, e não-intencional, como é o caso de
alguns dos valores-notícias relacionados ao “faro jornalístico”. E em segundo lugar: o
jornalismo, como instituição e campo social, criou maneiras práticas de reconhecer
acontecimentos cotidianos para transformá-los em notícia. Nessas práticas, eles tratam da
realidade como algo dado, sem perceber que as características inerentes aos acontecimentos
são, na verdade, eixos interpretativos longamente construídos pela sociedade. O critério de
consonância, citado por Traquina, oferece um bom exemplo disso: os acontecimentos que mais
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facilmente se adequam a outros já acontecidos têm a primazia sobre aqueles que são muito
diferentes ou muito revolucionários. Uma famosa máxima jornalística afirma: “Se um cão
morde um homem, não há notícia. Mas se um homem morde um cão, há notícia.”. A frase é
creditada ao jornalista norte-americano Amus Cummings, ex-editor do The New York Sun
(Sodré, 2009; 20). O acontecimento jornalístico é aquilo que foge do normal, não para quebra-
lo, senão para reiterá-lo. Isso porque ele é um fenômeno posterior ao fato em si, posterior à
natureza indiferente do que acontece. O acontecimento não é indiferente; ele é subjetivo e
explicativo. Torna-se acontecimento aquilo que já está inserido num contexto. É necessário que
incontáveis cães mordam homens ao longo de anos e anos de história, para que o fato de um
homem morder um cão se torne um acontecimento jornalístico.
O acontecimento na História
Assim como o jornalismo, a História também precisa lidar com a definição de
acontecimento. Dentre as inúmeras diferenças que permeiam o trabalho de jornalistas e
historiadores, resistem pelo menos uma mesma angústia filosófica: eles se questionam
incessantemente o que, afinal, aconteceu hoje, ontem, ou cem anos atrás. Desafio, porque
ambos trabalham com um objeto que lhes foge, que se lhes apresenta apenas através de indícios,
rastros, intermediários, e cuja complexidade, sob todas as perspectivas, suas ferramentas de
análise não são capazes de esgotar. E angústia porque, tributários dos mesmos pais fundadores,
História e Jornalismo carregam nas costas o fardo da objetividade, e se autoflagelam por
saberem não ser aquilo que outras instâncias teimosamente afirmam que são.
Assim, é possível reconhecer também na História a preocupação que os autores
comunicacionais apresentam em relação ao que é verdade, o que não é, e à potencial capacidade
de seus métodos de chegar a essa verdade, se ela existir. Essa é uma problemática dupla, mas
que acaba tendendo mais para um lado; a existência da verdade em si parece servir apenas de
pano de fundo para a discussão da efetividade dos métodos. Se há verdade ou não, esse debate
é deixado para a filosofia, enquanto historiadores e estudiosos do jornalismo se debruçam sobre
os efeitos, deturpações, limitações e contradições de suas próprias hipóteses e ferramentas de
trabalho. É o que faz Schaff ( 1991) ao relativizar a “eloquência” apriorística do fato histórico:
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É portanto falso acreditar, como o faziam os positivistas, que os fatos históricos,
porque são historicamente importantes, significativos, se destacam por si mesmos dos
outros acontecimentos ou processos históricos, e que o historiador se deve limitar a
registrá-los e a apresenta-los, uma vez que seu significado é suficientemente
´eloquente´. (SCHAFF, 1991; pg. 234)
Schaff reconhece o problema de se esperar significado autônomo dos acontecimentos
do mundo. Assim como os estudos do jornalismo, ele também duvida do fato bruto, ou pelo
menos o diferencia do trabalho interpretativo realizado pelos historiadores e denominado fato
histórico. Mas o autor faz mais que isso; ele detecta que a problemática em questão só existe
porque, em momentos específicos da história do pensamento humano, o conceito de fato bruto,
ou de objetividade, foi confeccionado e tornado hegemônico. Em outras palavras, o que parece
estar em debate é mais a trajetória das crenças e pensamentos dos historiadores em suas próprias
capacidades do que a efetiva materialidade do fato. Braudel (1992) também pontua a enorme
influência das descobertas científicas, ou mais ainda das reflexões sobre os próprios métodos,
como origem das crenças que levam impreterivelmente à dicotomia do acontecimento:
Foi talvez o preço dos progressos realizados, durante esse mesmo período, na
conquista científica de instrumentos de trabalho e de métodos rigorosos. A descoberta
maciça do documento levou o historiador a crer que na autenticidade documentária
estava toda a verdade. (BRAUDEL, 1992, pg. 46)
Assim, tanto uns quanto outros, os autores comunicacionais e históricos chegam à
seguinte conclusão: uma coisa é o fato bruto, o acontecimento, a realidade, outra é o fato
histórico, o acontecimento jornalístico, a interpretação da realidade. Essa dicotomia é, como já
foi dito, angustiosa para ambos os campos, provavelmente porque tanto a História quanto o
Jornalismo assentam suas origens epistemológicas na crença firme de que seus métodos são
capazes de se aproximar objetivamente da verdade. Desmascarar a herança do positivismo se
torna um fetiche e um fantasma:
Tomamos o fato histórico como ponto de partida das nossas análises sobre a
objetividade da verdade histórica, porque se admite geralmente que as divergências
surgem entre os historiadores no momento em que estes passam à interpretação dos
fatos, enquanto que a sua acumulação, se supondo um certo nível de conhecimento e
de tecnicidade na investigação, é mais ou menos semelhante. (SCHAFF, 1991, pg.
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O nível de conhecimento e a tecnicidade da investigação isentariam o historiador da
subjetividade, relegada à fase posterior de interpretação dos fatos. Schaff critica essa afirmativa
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por reconhecer que há subjetividade primeiramente na escolha do que é ou não matéria-prima
para a interpretação. De maneira análoga, os jornalistas consideram que a “opinião” é posterior
à seleção dos acontecimentos dignos de nota. Tal seleção seria regulamentada por regras dita
naturais, os valores-notícia, comuns a todos e, por isso, indiferentes a posicionamentos
subjetivos. Nos dois casos, a técnica exime o sujeito de sua própria subjetividade. Uma coisa
seria o acontecimento, autônomo e óbvio, e outra a notícia, produto de um sujeito. Também
autores da comunicação, como Sodré, apontam o problema dessa afirmativa mas, no caso dos
jornalismos, cria-se uma linha divisória dentro do próprio campo: de um lado está o jornalista
como prático, trabalhador da informação, que crê nos mitos de sua profissão; do outro, estão os
acadêmicos que pensam e criticam a prática jornalística. É, portanto, dentro do contexto
acadêmico que a reflexão sobre a própria subjetividade do fazer jornalístico encontra espaço.
Schaff, portanto, parte da diferenciação entre fato e fato histórico para definir este
último. Ele chama de “fato” o evento qualquer que tomou lugar no passado – o que, em suas
palavras, seria uma redundância – e o distancia daqueles eventos imbuídos de alguma
importância social passível de análise histórica:
Estabelecemos portanto uma distinção muito nítida entre o acontecimento que se deu
no passado (e que podemos chamar de ´fato´ porque se produziu efetivamente) e o
fato histórico, ou seja o acontecimento que, devido à sua importância para o processo
histórico, se tornou ( ou pode tornar-se) objeto da ciência da história. ( SCHAFF,
1991, pg. 209)
Mas o autor torna a discussão mais complexa ao reconhecer que a dicotomia apresentada
talvez resida no cerne de um fato, e não na divisão dos fatos em grupos distintos. Em outras
palavras, Schaff compreende que todo fato possuiria a dupla natureza de ser acontecimento,
entendido como algo que “efetivamente” acontece, e fato histórico, entendido como
interpretação e seleção. O autor, portanto, reconhece primeiramente o fato histórico como um
acontecimento, um processo, uma instituição e seu papel, ou seu produto da cultura material e
espiritual ( pg. 232), e, logo em seguida, como o resultado da apreensão cognitiva dos
historiadores a partir de um sistema de referências específico e de um método próprio.
Parece ser necessário procurar a solução do problema que preocupa W. Moszcenska,
não na distinção entre duas categorias de fatos – os fatos acontecidos e os fatos
históricos – mas na análise do duplo aspecto ou do duplo plano de um único fato
histórico que, evidentemente, é um elemento da realidade objetiva (sendo a única
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alternativa de reserva a especulação idealista), mas um elemento conhecido pelos
homens, por um lado, e – em razão das suas relações objetivas de causa a efeito com
o processo objetivo – adequadamente qualificado pelo historiador, por outro lado. (
SCHAFF, 1991, pg. 226)
Um único fato histórico, portanto, é depositário tanto da faceta objetiva quanto da
interpretação do historiador. Um fato é “conhecido pelos homens” e “adequadamente
qualificado pelo historiador”. Ou seja, um fato que seja legitimado em duas instâncias: a da
sociedade como um todo e a do grupo de especialistas que essa sociedade entende como
responsáveis pela legitimação. Do posicionamento de Schaff pode-se inferir três aspectos
relevantes para essa reflexão: (1) A evidência de que o caráter “bruto” do fato não é
desconsiderado. Ainda que a subjetividade da interpretação e seleção dos acontecimentos passe
a ser o ponto central da discussão, resiste sobre ela, como um fantasma, a ideia de uma parcela
autônoma do acontecimento. (2) O fato histórico é dependente da existência de um grupo de
especialistas legitimados a reconhece-lo. (3) O reconhecimento do fato histórico é realizado por
esses especialistas a partir da comparação com um sistema de referência que pode ser dinâmico
e mudar ao longo do curso da história.
A instância que possibilita definir algo como “autônomo” ou “natural” é exatamente a
cultura, porque, segundo Braudel (1992), é ela quem trabalha com processos de longuíssima
duração, cujos movimentos transcorrem na estrutura mais funda da dinâmica humana e, por
isso mesmo, só se captam por reflexos. Infere-se, assim, que a parcela “bruta” do fato histórico
– que Schaff define como “realidade objetiva” ou “o que efetivamente aconteceu” – seria nada
mais que a coincidência de percepção do grupo social-histórico dentro do qual todo o processo
de construção da realidade ocorre. Voltando à reflexão de Sodré ( 2009), e da filosofia, fato é
aquilo que, dentro de um experimento, pode ser empiricamente provado para todo caso e para
todos os envolvidos no experimento. Em outras palavras, a objetividade, ou autonomia, ou
empiricidade, de um fato assenta-se basicamente na condição que se tem de provar esse fato
para o grupo. No fim das contas, a questão da universalidade é uma questão de aceitação social
ampla. Se apenas um indivíduo vê e compreende algo, aquilo a princípio não existe. Quando
passa a existir, é condicionado à interpretação do grupo: alucinação, bizarrice, sonho, profecia,
visão, especialidade, capacidade visionária, são todos conceitos coletivos. Nesse sentido, a
paranoia do louco, a epifania do santo e a visão refinada do cientista se confundem como
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ferramentas de legitimação da cultura para elementos que o grupo todo não é capaz de perceber,
mas que precisa explicar e tornar “fato”. O que o louco alucinou não é considerado fato, porque
pertence apenas a ele como indivíduo, mas a alucinação é. Por isso mesmo, a alucinação pode
ser catalogada, validada, referenciada, estudada e observada por um grupo de especialistas
responsáveis por esse aspecto.
Sodré reitera a importância da legitimação dos especialistas na construção de parcelas
da realidade. Tal legitimação é externa ao campo profissional e cultural formado pelos
especialistas – é necessário que a sociedade entenda que jornalistas e historiadores sabem o que
aconteceu melhor que outras instâncias. A aparentemente óbvia distinção entre ambos os
profissionais, pautada na ideia de que um trabalha com o que acontece e outro com o que
aconteceu, não é levada em consideração aqui, uma vez que tanto historiadores quanto autores
do jornalismo reconhecem-na como problemática. O jornalista espanhol Juan Luis Cébrian já
dizia que os jornalistas seriam “historiadores como o pé no acelerador”, e Schaff insiste em
mostrar como o passado engloba praticamente tudo que acontece, uma vez que a capacidade
humana de captar e narrar os fatos é sempre posterior. Portanto, em resumo, o que se tem é que
os dois grupos de especialistas são legitimados socialmente para tratar do acontecimento em
sua acepção mais genérica – o acontecimento social ou o fato histórico - mesmo com as
diferenças de seus objetos iniciais. Outras instâncias, outros grupos sociais, outros especialistas,
precisam aceitar que jornalistas e historiadores são os melhores para o trabalho. E jornalistas e
historiadores, por sua vez, lançam suas próprias teorias, métodos e mitos sobre um sistema de
referências mais amplo: “Pressupõe-se portanto um sistema de referências no quadro do qual e
em função do qual se operam a valorização e, consequentemente, a seleção; pressupõe-se
igualmente a existência de um sujeito que procede a estas operações.” (SCHAFF,1991, pg. 211)
Diferente de Schaff, Sodré reconhece um duplo sistema de referências: aquele criado
pelo grupo especialista e o outro, retirado da cultura ampla na qual ele se insere. Ao primeiro,
Goffman chamaria de “enquadre” ( apud Sodré, pg. 37) e definiria como um conjunto de regras
e esquemas interpretativos responsáveis pela atribuição de sentido a um evento e que estariam
afinados com a cultura do grupo que os criou:
A reflexão de Goffman não visa especificamente a imprensa. Ela está centrada no
problema da passagem de uma situação social a outra em função de ocorrências
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imprevistas, capazes de colocar os indivíduos diante do imperativo coletivo de
determinação do ocorrido. (SODRÉ, 2009, pg. 38)
Assim, se o evento é, por exemplo, um mal estar físico de um indivíduo, o enquadre
socialmente aceito para explicar o que está acontecendo não é nem o jornalístico e nem o
histórico, mas o da medicina. É o médico, como representante do grupo específico, responsável
por transformar aquela ocorrência imprevista e de difícil explicação numa narrativa
referenciada e socialmente aceita. Por mais criptografada e ininteligível que seja a explicação
do médico sobre a doença, ela é aceita como verdadeira pelo paciente, e mesmo sua
ininteligibilidade é explicada segundo a acepção geral de que o médico tem conhecimentos
vedados à maioria, o que o salva de ser considerado apenas louco. Em outras palavras, a
sociedade outorga a determinadas parcelas de si mesma o direito de explicar aspectos da
realidade sem necessariamente ter de justificar seus métodos.
Nesse sentido, Nora (1984) traça a linha diferenciadora entre memória e história, a partir
do processo de racionalização e perda da espontaneidade na apreensão dos fatos passados. O
autor evidentemente refere-se a uma dinâmica mais complexa, e situa historicamente seus
conceitos. Ele outorga à “metamorfose contemporânea” a passagem da memória à história. Mas
ainda assim é possível inferir de sua reflexão que, entre memória e história, existe o labor
interpretativo e definidor de um grupo especialista assentado num sistema de referências
próprio:
Sem dúvida é impossível não se precisar dessa palavra [memória]. Aceitemos isso,
mas com a consciência clara da diferença entre memória verdadeira, hoje abrigada
no gesto e no hábito, nos ofícios onde se transmitem os saberes do silêncio, nos
saberes do corpo, as memórias de impregnação e os saberes reflexos e a memória
transformada por sua passagem em história, que é quase o contrário: voluntária e
deliberada, vivida como um dever e não mais espontânea; psicológica, individual e
subjetiva e não mais social, coletiva, globalizante. Da primeira, imediata, à segunda,
indireta, o que aconteceu? Pode-se apreender o que aconteceu, no ponto de chegada
da metamorfose contemporânea. (NORA, 1984, pg. 14)
Contudo, o segundo sistema de referências sobre o qual se assenta a valoração e seleção
dos fatos por jornalistas e historiadores fica claro em sua inserção num contexto cultural mais
amplo:
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Mas tudo isso é possibilitado pelo envolvimento de um campo “extra-jornalístico” no
processo. Em outras palavras, a construção do acontecimento não se efetua apenas
no campo jornalístico, como bem ressalva Arquembourg: “Os acontecimentos são
certamente fruto de um trabalho de constituição coletiva, mas eles imbricam também
a participação de atores e de um público que não é apenas uma massa de
consumidores de informação” (SODRÉ, 2009, pg. 39)
As constantes pugnas pela definição da realidade, e pela autolegitimação dos métodos,
existem e sobrevivem no coração dos campos histórico e jornalístico. Fora deles, porém,
naquilo que em geral se define como senso-comum, a legitimação já está acertada. Mesmo que
o público duvide da idoneidade dos jornalistas, muitas vezes acusando-os de mentirosos ou
deturpadores, ele faz isso a partir do pressuposto do desvio, da falta, do erro. O jornalista que
mente ou manipula é um desviante da expectativa do jornalista, que é o que fala a verdade, e é
capaz de fazer isso. Ou seja, não há nessa reflexão o cuidado acadêmico de relativizar a verdade,
e considerar qualquer tipo de narrativa como uma construção social do acontecimento. De
maneira análoga, se o historiador revela ao público geral que seu método é uma construção
conflituosa do passado, ele provavelmente terá a sua credibilidade abalada, pois não se espera
do historiador conflito e dúvida quanto ao seu próprio ofício. Aos olhos do senso comum,
subjetividade é, em todo caso, um acusativo de falha para historiadores e jornalistas.
Algumas conclusões provisórias
Um estudo muito mais aprofundado e detalhado seria necessário para que o tema desse
artigo fosse esgotado. O que se fez aqui não foi senão um esboço de reflexão, mas que pode ser
válido por sugerir como o acontecimento é uma questão em comum tanto para os estudos de
Jornalismo quanto para os de História. Por vezes isolados em seus próprios labirintos
epistemológicos, esses dois campos do saber humano teriam muito que contribuir um com o
outro, e não apenas na refrega interna pelo aprimoramento de seus próprios artifícios, mas
principalmente na busca contínua que ambos empreendem pela compreensão do mundo. Ainda
que breve, o presente artigo apresenta algumas inferências conclusivas. Elas são provisórias
porque, como já diria Popper, qualquer ciência deve presar pela sua própria provisoriedade;
também são provisórias porque iniciais, representando os primeiros esforços de um acadêmico
da Comunicação em se aproximar dos estudos da História. De uma forma ou de outra, espera-
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se que estas conclusões pelo menos sugiram a necessidade de uma maior aproximação entre os
dois campos.
Em primeiro lugar, e apesar de todas as suas diferenças, tanto a História quanto o
Jornalismo são instâncias culturais responsáveis pela construção de realidades muito
abrangentes. Ambas se ressentem pela complexidade da tarefa, pela limitação de suas próprias
ferramentas e, principalmente, porque essa complexidade e essa limitação não podem ser
reveladas sem complicações às outras instâncias sociais. História e Jornalismo são legitimadas
socialmente para contar histórias que não são consideradas histórias. A indeterminação dentro
desses campos, em ambos os casos, é ignorada pelas outras instâncias que se valem do labor
histórico e jornalístico. Na verdade, a revelação do mecanismo interpretativo é visto como
desmascaramento e perda de legitimidade. Se as instâncias não especializadas tomam
conhecimento dos processos interpretativos por trás dos campos, elas se sentem lesadas. Um
truque de mágica encanta pela destreza ou capacidade de fascinação, mesmo que a plateia saiba
se tratar de um truque. Esse entretanto não é o caso. Os dois campos de estudo também fazem
de tudo para ocultar o jogo de espelhos, o fundo falso onde está o coelho, a corda que levanta a
assistente. A diferença está no público. O público não pode suspeitar que é um truque, ou corre
o risco de tocar fogo no circo.
Referências Bibliográficas
BRAUDEL, Fernand. A longa duração. In: Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva,
1992
NORA, Pierre. In: Les lieux de memòrie. I La Republique, Paris, Gallimard, 1984, pp-XVIII-
XLII. Tradução autorizada pelo Editor. Editions Gallimard, 1984.
RODRIGO ALSINA, Miquel. A construção da notícia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009
SODRÉ, Muniz. A narração do fato: notas para uma teoria do acontecimento. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2009
SCHAFF, Adam. História e Verdade. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991
TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo, porque as notícias são como são. Florianópolis:
Insular, 2 ed. 2005.