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A imagem do acontecimento: Uma análise comparativa entre o conceito histórico de acontecimento e o acontecimento jornalístico José Eduardo M. Umbelino Filho 1 Resumo A proposta deste artigo é comparar o significado de acontecimento para a História e para o Jornalismo, com ênfase nos diferentes processos de construção e manejo desse conceito na lida prática e teórica de ambos os campos. Pretende-se inicialmente analisar a problematização do acontecimento dentro dos estudos comunicacionais do jornalismo e, em seguida, tencionar as reflexões com os questionamentos da História do Tempo Presente. Mais do que apenas reconhecer diferenças e similaridades entre os dois usos do conceito, a pesquisa procurará vincular seus usos ao estudo da cultura e à construção de uma identidade contemporânea, bem como sua relação com as percepções da sociedade como um todo. Palavras-chave: Teoria do acontecimento, construção da realidade, cultura Abstract The present article intends to promote a theoretical comparison between historical and journalistic concepts of “event” or “happening”, emphasizing the different processes of construction and management of this concept by those who study both fields of knowledge. At first, it will analyze the conception of event within the communication studies and then insert it in the historical questioning about the Present Time and the Long Term History. The goal is not only to tell differences from similarities in the use of the term by both fields, but mainly try to link their use to the study of culture, contemporary identity and society´s perceptions of it self. Key words: Happening, Event, Culture, construction of reality Introdução Luís Fernando Veríssimo conta, na crônica O Nariz, a história de um respeitado dentista que, certo dia, aparece em casa usando um nariz de borracha. Sem oferecer explicações, ele passa a realizar suas atividades corriqueiras, as mesmas que fazia diligentemente todos os dias de sua vida, agora com o tal nariz; que, segundo narrador, o deixaria parecido com Groucho Marx. A família estranha, seus pacientes se intrigam, seus amigos acham graça, todos começam a conjecturar: ele teria ficado louco? passaria por um momento difícil? Seria uma brincadeira exagerada? Quaisquer fossem as possíveis explicações, um ponto era terminantemente certo: alguma coisa estava acontecendo com o dentista. 1 Jornalista e professor de jornalismo, mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Goiás, especialista em História Cultural, doutorando em sociologia pela mesma universidade

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A imagem do acontecimento: Uma análise comparativa entre o conceito histórico de

acontecimento e o acontecimento jornalístico

José Eduardo M. Umbelino Filho1

Resumo

A proposta deste artigo é comparar o significado de acontecimento para a História e para o Jornalismo,

com ênfase nos diferentes processos de construção e manejo desse conceito na lida prática e teórica de

ambos os campos. Pretende-se inicialmente analisar a problematização do acontecimento dentro dos

estudos comunicacionais do jornalismo e, em seguida, tencionar as reflexões com os questionamentos

da História do Tempo Presente. Mais do que apenas reconhecer diferenças e similaridades entre os dois

usos do conceito, a pesquisa procurará vincular seus usos ao estudo da cultura e à construção de uma

identidade contemporânea, bem como sua relação com as percepções da sociedade como um todo.

Palavras-chave: Teoria do acontecimento, construção da realidade, cultura

Abstract

The present article intends to promote a theoretical comparison between historical and journalistic

concepts of “event” or “happening”, emphasizing the different processes of construction and

management of this concept by those who study both fields of knowledge. At first, it will analyze the

conception of event within the communication studies and then insert it in the historical questioning

about the Present Time and the Long Term History. The goal is not only to tell differences from

similarities in the use of the term by both fields, but mainly try to link their use to the study of culture,

contemporary identity and society´s perceptions of it self.

Key words: Happening, Event, Culture, construction of reality

Introdução

Luís Fernando Veríssimo conta, na crônica O Nariz, a história de um respeitado dentista

que, certo dia, aparece em casa usando um nariz de borracha. Sem oferecer explicações, ele

passa a realizar suas atividades corriqueiras, as mesmas que fazia diligentemente todos os dias

de sua vida, agora com o tal nariz; que, segundo narrador, o deixaria parecido com Groucho

Marx. A família estranha, seus pacientes se intrigam, seus amigos acham graça, todos começam

a conjecturar: ele teria ficado louco? passaria por um momento difícil? Seria uma brincadeira

exagerada? Quaisquer fossem as possíveis explicações, um ponto era terminantemente certo:

alguma coisa estava acontecendo com o dentista.

1Jornalista e professor de jornalismo, mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Goiás,

especialista em História Cultural, doutorando em sociologia pela mesma universidade

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A crônica de Veríssimo toca numa premissa relevante para o estudo do conceito de

acontecimento no jornalismo e na história: nem tudo o que ocorre é um acontecimento. As ações

cotidianas do personagem, sua vida regular, passam despercebidas pelos seus familiares,

amigos e clientes. Elas pertencem a um conjunto de movimentos espaço-temporais ocultos sob

o manto da naturalidade, que lhes confere a aparência de imutáveis ou invisíveis. Mas quando

o personagem acrescenta a esse mesmo cotidiano um detalhe dissonante, algo que foge das

expectativas, seu movimento é revelado. Torna-se plausível conjecturar que alguma coisa

aconteceu. O interessante aqui é que, em todo caso, há sempre algo acontecendo, mas nem

sempre o que acontece é captado como um acontecimento. O próprio significado do termo se

bifurca; de um lado resiste a ideia de acontecimento como todo evento que ocorra a qualquer

pessoa em qualquer lugar; mas do outro, soergue-se o acontecimento como aquele evento

específico e considerado relevante por um grupo de pessoas. O objetivo deste artigo é

considerar reflexivamente as semelhanças entre o fato histórico e o acontecimento jornalístico,

ambos considerados segundo o prisma da construção social da realidade e, derivada dessa, do

acontecimento.

O acontecimento é uma construção social

Alsina (2009) afirma que o acontecimento não seria o evento empírico, imediato, mas a

construção que se faz dele a partir do contexto social. Ou seja, o acontecimento é, na verdade,

o resultado da apreensão cognitiva de fatos externos ao indivíduo e de sua ressignificação dentro

do arcabouço social e histórico:

Não existe leitura da realidade que seja descontextualizada e que não esteja

objetivada. O sujeito observador é o que confere sentido ao acontecimento. Ou seja,

os acontecimentos estariam formados por aqueles elementos externos ao sujeito, a

partir dos quais, ele mesmo reconhecerá e construirá o acontecimento. (ALSINA,

2009: 113)

O autor considera, nos passos de Berger e Luckmann, que o acontecimento está inserido

na ideia de realidade, e por realidade entende-se uma qualidade nata de certos fenômenos que

nos faz reconhecê-los como autônomos em relação à nossa própria vontade. Trata-se, portanto,

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de uma questão de reconhecimento, ou ainda, de percepção. Os fenômenos da realidade só se

tornam acontecimentos por causa da ação interpretativa dos sujeitos sobre eles, mas o processo

é de tal forma engendrado que, para esses sujeitos, tais fenômenos são acontecimentos

exatamente porque prescindem de qualquer interpretação ou influência. Eles se configuram

como uma crença ou um “fato natural”: são acontecimentos porque simples e obviamente são.

Mas para que isso ocorra, é necessário a existência de uma concordância social prévia, que

reforce ao indivíduo a convicção de que certas coisas simplesmente são o que são. As

inferências individuais que encontram reforço do grupo tendem a oferecer mais facilmente a

impressão de realidade:

O acontecimento é um fenômeno social e como veremos a seguir, está determinado

histórica e culturalmente. É claro que cada sistema cultural vai concretizar quais são

os fenômenos que merecem ser considerados como acontecimentos e quais passam

despercebidos. (ALSINA, 2009: 115)

Sodré (2009) chega também a essa reflexão quando diferencia fato do acontecimento.

Esse autor busca em Kant a concepção de que o fato seria o conceito produzido a partir de uma

realidade objetiva e passível de prova. Em outras palavras, o fato seria o resultado de uma

experiência objetiva cujo objeto pode ser percebido, mensurado e comprovado por todos. Por

objeto, ou coisa, subentende-se “aquilo que resiste a qualquer relacionamento do sujeito”,

segundo a definição buscada em Wittgenstein. Assim, “o fato seria uma combinação dessas

unidades de resistência, de coisas. Só que, acentuamos, não é a própria coisa, e sim uma

objetivação conceitual da realidade dos fenômenos.” (Sodré, pg. 29). Nesses termos, Sodré

resgata a ideia de objetividade, muito cara à prática jornalística, bem como às bases do

pensamento científico:

A objetividade – logo, a possibilidade de aplicação do adjetivo ́ objetivo´- diz respeito

àquilo que tem idêntica validade para todos os sujeitos e todos os seus correlatos

(objetos, fenômenos) numa experiência. Nela se baseiam as ciências, a partir delas

se constroem hipóteses e teorias. (SODRÉ, 2009, pg. 28)

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O fato, portanto, estaria relacionado à percepção individual de algo como sendo objetivo

e real e, por isso, passível de prova para todas as pessoas que compartilham a experiência.

Entretanto, reitera-se que tanto a objetividade quanto a realidade seriam qualidades existentes

dentro de uma experiência, isto é, de um sistema mais ou menos ordenado. A experiência,

ressignificada como experimento na metodologia científica, não representa a totalidade do real,

mas um recorte não-arbitrário, observável, controlável e replicável que, potencialmente, pode

nos dizer algo do real. Como já foi dito, o fato é a interpretação individual de um fenômeno

cuja validade pode ser aferida por todos os envolvidos dentro de uma determinada experiência.

Por exemplo, é fato que J. F. Kennedy foi morto com um tiro na cabeça durante uma passeata

porque esse evento poderia ser validado por todos os envolvidos naquela passeata. Mais do que

o corpo do morto, a prova verdadeira reside na constatação de que as versões dos envolvidos

apresentam mais aspectos semelhantes que diferentes. Fato, portanto, seria o núcleo recorrente

na validação da maioria das pessoas envolvidas. É claro que a complexidade desse conceito se

perde na medida em que ele se aproxima do senso-comum; tal perda pode ser compreendida

como uma expansão dos limites da experiência, aumentando com isso o número de envolvidos

e diminuindo a capacidade de aferir a validade do fenômeno para esses envolvidos. Se o

experimento científico preza pela própria capacidade de controle de todas as variáveis, a

experiência do senso-comum contenta-se com a qualidade observável e sensível dos fenômenos

e com sua classificação dentro das categorias socialmente construídas de ficção e realidade.

Fatos são percebidos pelos sentidos físicos mais que pelas capacidades interpretativas:

No uso comum, o significado de fato inclui: ‘ (1) ocorrências em geral assim como

ações; logo (2) o que é o caso, se não é uma ocorrência; logo (3) o que se sabe ser o

caso; logo (4) o que se sabe por observação, mais do que por inferência; logo (5) os

dados reais da experiência, opostos ao que inferimos, ampliando um ou mais dos

sentidos acima, (6) as coisas que realmente existem, tais como pessoas e instituições,

aparentemente para contrastá-las com ficções. (SODRÉ, 2009, pg. 30)

Já o acontecimento atende a outras prioridades. Retomando o exemplo dado acima,

temos que tanto o presidente norte-americano J.F. Kennedy quanto o líder sul-vietnamita Ngo

Dinh Diem foram mortos em novembro de 1963. A facticidade de ambos eventos poderia ser

comprovada pela validação dos envolvidos diretos e sua posterior reafirmação através de

documentos. Mas se um jornalista norte-americano precisasse, em novembro de 1963, escolher

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apenas uma das mortes para relatar em seu jornal, ele não teria dúvida sobre sua escolha. E

ainda, se um jornalista brasileiro, europeu ou norte-americano, da atualidade, estivesse às voltas

com uma retrospectiva dos principais acontecimentos da década de 1960, ele provavelmente

poderia deixar de fora a execução do líder sul-vietnamita:

Incorporando a definição kantiana de fato como conceito para objetos cuja realidade

pode ser provada – e, assim, como um espaço disponível ao observador para

atribuição de algum sentido à ocorrência – somos levados a encontrar um outro

termo para a representação social do fato, em especial para a informação jornalística

concretizada na notícia. Esse termo – News, para os norte-americanos; événement,

para os franceses; sucesso, para os espanhóis – bem pode ser o acontecimento. Na

prática, pode ser tomado como sinônimo de fato sócio-histórico. Mas enquanto o

acontecimento se pauta pela atualidade, isto por uma experiência singular na

temporalidade do aqui e agora, o fato, mesmo inscrito na história, é uma elaboração

intelectual. (SODRÉ, 2009, pg. 33)

Como elaboração intelectual pautada na observação interpretativa, e permeada pelo

conceito de objetividade, o fato pertence ao campo significativo do que é verdadeiro ou falso.

O acontecimento, por sua vez, estende-se até o campo do que é importante ou desimportante.

Ele não deixa de reportar ao fato, originando-se dele, mas em sua concepção residem mais

claramente as valorações e simbologias da interpretação social. Mouillaud (2002, apud Sodré,

2009) afirma que o acontecimento é a sombra do conceito socialmente construído de fato.

Sodré reitera que o acontecimento reveste o fato qualitativamente:

Como observa Quéré, é preciso atentar para a pluralização, pois ´os acontecimentos´

têm uma hierarquia e podem ser diferenciados ´em função de seu poder de afetar os

seres e de impregnar as situações de qualidades difusas que as individualizam´. Há,

assim, grandes e pequenos acontecimentos, hierarquizados em razão de sua

previsibilidade dentro de um sistema determinado. (SODRÉ, 2009, pg. 34)

Portanto, mais do que definição de um fato, o acontecimento funciona como

categorização dentro de um quadro hierárquico de valores. Talvez por isso Sodré também

reitere que os acontecimentos estão muito mais relacionados à temporalidade que os fatos. Os

fatos resistem à localização temporal, soerguendo-se maciçamente à revelia da interpretação

histórica, porque sua significação está relacionada ao combate atemporal entre verdadeiro e

falso; mas os acontecimentos são quase sempre exemplares em relação ao seu momento

histórico, tanto que Sodré os considera sinônimos de fatos sócio-históricos. Independentemente

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das versões ou implicações possíveis, é fato que Kennedy e Ngo Dinh Diem morreram

assassinados. Já o acontecimento se refere ao processo que transformou a morte de Kennedy

num modelo exemplar de crise política, de teoria conspiratória e num milestone de sua época,

e a de Ngo Dinh Diem numa nota de rodapé dos livros de história.

O acontecimento no jornalismo

A edição 2406 da Revista Veja, de 31 de dezembro de 2014, afirma em sua capa: “2014

– O ano em que pagamos mico”. A chamada lista cinco notícias amplamente exploradas pela

publicação em edições anteriores: 7x1, Petrolão, Crise da água, PIB zero, Mentiras na

campanha eleitoral. Há, portanto, destaque de certos acontecimentos em detrimento de outros,

e uma convergência intencional para essa ou aquela interpretação, que corrobora a visão de

mundo de certo grupo. No exemplo da Veja, é possível reconhecer claramente as posições

políticas de sua linha editorial, principalmente quando se analisa o conjunto de publicações em

períodos extensos. Trata-se, e esse é o ponto fundamental aqui, de uma escolha do que

aconteceu e do que merece ser recordado. Mas, se os motivos dessa escolha são claramente

rastreados em alguns casos, em outros eles não se revelam com facilidade. Afinal, não é apenas

a linha editorial, nem tampouco as preferências políticas de seus chefes, que determina para os

jornalistas o que é um acontecimento.

O jornalista que escolhe os acontecimentos para as retrospectivas de fim de ano

geralmente é quem realiza o mesmo trabalho todos os dias. Ele se depara cotidianamente com

um mosaico caótico de eventos, fatos, versões e opiniões, e precisa, a partir dessa matéria prima

tão variada, escolher o que é digno de nota e o que não. Como ele faz isso? A profissão

jornalística já traz incrustada em seu sistema de decodificação da realidade um conjunto de

guias para que o jornalista saiba realizar efetivamente seu trabalho dentro do caos dos

acontecimentos. O jornalista pode aprender na faculdade como escrever uma notícia, uma

reportagem, uma nota, um editorial, etc. Mas ele sabe desde sempre o que é notícia. Ele

supostamente possui um faro especial, uma percepção privilegiada que o faz reconhecer de

pronto quais acontecimentos merecem ser publicados. Essa capacidade teoricamente inata do

jornalista é uma das specific skills, ou seja, das competências profissionais específicas, que

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definem um jornalista como tal e que é exigida, segundo Traquina (2013), pelo campo social

jornalístico como certificado identitário:

O “saber de reconhecimento” é a capacidade de reconhecer quais são os

acontecimentos que possuem valor como notícia; aqui o jornalista mobiliza os

critérios de noticiabilidade, um conjunto de valores-notícia (tais como a notoriedade,

o conflito, a proximidade geográfica...), o seu “faro para a notícia”, a sua

“perspicácia noticiosa”, ou seja, nas palavras de Tuchman (1972/1993:85), essa

“capacidade secreta do jornalista que o diferencia das outras pessoas”.

(TRAQUINA, 2013, pg. 40)

A definição das competências jornalísticas como “saberes”, utilizada por Traquina em

referência à Ericson, Baranek e Chan (1987), sugere como essas habilidades estão intimamente

vinculadas à cultura jornalística. São saberes compartilhados mais na prática cotidiana da

profissão do que nos bancos da academia, e por isso revestidos de mitos, máximas, ditos, ritos

e códigos operacionais. O mais reconhecido desses códigos é, ainda segundo Traquina, o que

define os valores-notícia ou critérios de noticiabilidade.

Wolf (2008) define noticiabilidade como o “conjunto de elementos por meio dos quais

o aparato informativo controla e administra a quantidade e o tipo de acontecimentos que

servirão de base para a seleção das notícias.”. Ela significa, portanto, um processo vinculativo

entre acontecimento e notícia, ao mesmo tempo que uma dinâmica de seleção e hierarquização

de sentidos. Para o contexto desse artigo, vale ressaltar como o jornalismo, em sua prática, foi

capaz de criar um adjetivo e um método de escalonar os acontecimentos segundo valores que

lhes seriam inatos. Os valores-notícia constituem um código criado para facilitar o trabalho

cotidiano dos jornalistas, para integrá-los numa cultura comum, bem como para realçar os

limites da própria identidade jornalística. Mas, para os jornalistas, eles seriam qualidades

inerentes aos fatos – e não ao seu olhar sobre os fatos – que lhes garantiriam relevância pública,

peso social, histórico ou político:

Os valores-notícia são, como já tivemos oportunidade de sublinhar, um aspecto

fundamental da cultura profissional. Segundo Golding e Elliot (1978), são um

importante elemento de interação jornalística e constituem referências claras e

disponíveis a conhecimentos práticos sobre a natureza e os objetos das notícias,

referências essas que podem ser utilizadas para facilitar a complexa e rápida

elaboração das notícias ( TRAQUINA, 2013, pg. 60)

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Traquina (2013) considera que a primeira iniciativa de identificação sistemática dos

valores-notícia ocorreu nos EUA, com o trabalho de Galtung e Ruge (1965/1963). De forma

resumida, esses estudiosos listaram que, para se tornar uma notícia, um evento deveria ter: 1)

Frequência: que significa tanto a duração quanto a repetição do acontecimento; 2) amplitude:

quão grande ele seria; 3) clareza ou falta de ambiguidade: histórias mais simples são mais fáceis

de transmitir; 4) significância: a relevância daquele evento para o grupo social;5) consonância:

“isto é, a facilidade de inserir o “novo” numa “velha” ideia que corresponda ao que se espera

que aconteça”;6) inesperado;7) a continuidade: ou a facilidade de concatenar uma série de

eventos numa lógica comum; 8) composição: facilidade de relacionar aquele evento a outros

distintos; 9) a referência a nações ou pessoas de elite; 10) a personalização;11) a negatividade

(TRAQUINA, 2013. Pg. 67)

Traquina analisa esses critérios a partir de sua explicação jornalística, sem adentrar nas

implicações sociológicas e históricas que eles representam. O próprio autor oferece em seguida

a sua lista de valores-notícia, acrescentando aspectos que os pioneiros não consideraram, a

maioria relacionada às necessidades práticas do fazer jornalístico. Ele ecoa Wolf (2008), cujo

trabalho sobre as teorias da comunicação se tornou canônico nas escolas brasileiras de

jornalismo. Wolf afirma que os valores-notícia são mais flexíveis do que autores anteriores

davam a entender, constituindo processos de negociação entre o campo jornalístico e os eventos

da sociedade.

Dois aspectos podem ser apreendidos do que foi exposto a respeito dos valores-notícia.

Em primeiro lugar, a ideia de que o grupo social que define o acontecimento acaba por interferir

profundamente não apenas na escolha do que acontece, como também em sua formatação e

divulgação. Essa interferência se dá de modo intencional, quando o grupo defende seus

interesses particulares através da edição da realidade, e não-intencional, como é o caso de

alguns dos valores-notícias relacionados ao “faro jornalístico”. E em segundo lugar: o

jornalismo, como instituição e campo social, criou maneiras práticas de reconhecer

acontecimentos cotidianos para transformá-los em notícia. Nessas práticas, eles tratam da

realidade como algo dado, sem perceber que as características inerentes aos acontecimentos

são, na verdade, eixos interpretativos longamente construídos pela sociedade. O critério de

consonância, citado por Traquina, oferece um bom exemplo disso: os acontecimentos que mais

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facilmente se adequam a outros já acontecidos têm a primazia sobre aqueles que são muito

diferentes ou muito revolucionários. Uma famosa máxima jornalística afirma: “Se um cão

morde um homem, não há notícia. Mas se um homem morde um cão, há notícia.”. A frase é

creditada ao jornalista norte-americano Amus Cummings, ex-editor do The New York Sun

(Sodré, 2009; 20). O acontecimento jornalístico é aquilo que foge do normal, não para quebra-

lo, senão para reiterá-lo. Isso porque ele é um fenômeno posterior ao fato em si, posterior à

natureza indiferente do que acontece. O acontecimento não é indiferente; ele é subjetivo e

explicativo. Torna-se acontecimento aquilo que já está inserido num contexto. É necessário que

incontáveis cães mordam homens ao longo de anos e anos de história, para que o fato de um

homem morder um cão se torne um acontecimento jornalístico.

O acontecimento na História

Assim como o jornalismo, a História também precisa lidar com a definição de

acontecimento. Dentre as inúmeras diferenças que permeiam o trabalho de jornalistas e

historiadores, resistem pelo menos uma mesma angústia filosófica: eles se questionam

incessantemente o que, afinal, aconteceu hoje, ontem, ou cem anos atrás. Desafio, porque

ambos trabalham com um objeto que lhes foge, que se lhes apresenta apenas através de indícios,

rastros, intermediários, e cuja complexidade, sob todas as perspectivas, suas ferramentas de

análise não são capazes de esgotar. E angústia porque, tributários dos mesmos pais fundadores,

História e Jornalismo carregam nas costas o fardo da objetividade, e se autoflagelam por

saberem não ser aquilo que outras instâncias teimosamente afirmam que são.

Assim, é possível reconhecer também na História a preocupação que os autores

comunicacionais apresentam em relação ao que é verdade, o que não é, e à potencial capacidade

de seus métodos de chegar a essa verdade, se ela existir. Essa é uma problemática dupla, mas

que acaba tendendo mais para um lado; a existência da verdade em si parece servir apenas de

pano de fundo para a discussão da efetividade dos métodos. Se há verdade ou não, esse debate

é deixado para a filosofia, enquanto historiadores e estudiosos do jornalismo se debruçam sobre

os efeitos, deturpações, limitações e contradições de suas próprias hipóteses e ferramentas de

trabalho. É o que faz Schaff ( 1991) ao relativizar a “eloquência” apriorística do fato histórico:

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É portanto falso acreditar, como o faziam os positivistas, que os fatos históricos,

porque são historicamente importantes, significativos, se destacam por si mesmos dos

outros acontecimentos ou processos históricos, e que o historiador se deve limitar a

registrá-los e a apresenta-los, uma vez que seu significado é suficientemente

´eloquente´. (SCHAFF, 1991; pg. 234)

Schaff reconhece o problema de se esperar significado autônomo dos acontecimentos

do mundo. Assim como os estudos do jornalismo, ele também duvida do fato bruto, ou pelo

menos o diferencia do trabalho interpretativo realizado pelos historiadores e denominado fato

histórico. Mas o autor faz mais que isso; ele detecta que a problemática em questão só existe

porque, em momentos específicos da história do pensamento humano, o conceito de fato bruto,

ou de objetividade, foi confeccionado e tornado hegemônico. Em outras palavras, o que parece

estar em debate é mais a trajetória das crenças e pensamentos dos historiadores em suas próprias

capacidades do que a efetiva materialidade do fato. Braudel (1992) também pontua a enorme

influência das descobertas científicas, ou mais ainda das reflexões sobre os próprios métodos,

como origem das crenças que levam impreterivelmente à dicotomia do acontecimento:

Foi talvez o preço dos progressos realizados, durante esse mesmo período, na

conquista científica de instrumentos de trabalho e de métodos rigorosos. A descoberta

maciça do documento levou o historiador a crer que na autenticidade documentária

estava toda a verdade. (BRAUDEL, 1992, pg. 46)

Assim, tanto uns quanto outros, os autores comunicacionais e históricos chegam à

seguinte conclusão: uma coisa é o fato bruto, o acontecimento, a realidade, outra é o fato

histórico, o acontecimento jornalístico, a interpretação da realidade. Essa dicotomia é, como já

foi dito, angustiosa para ambos os campos, provavelmente porque tanto a História quanto o

Jornalismo assentam suas origens epistemológicas na crença firme de que seus métodos são

capazes de se aproximar objetivamente da verdade. Desmascarar a herança do positivismo se

torna um fetiche e um fantasma:

Tomamos o fato histórico como ponto de partida das nossas análises sobre a

objetividade da verdade histórica, porque se admite geralmente que as divergências

surgem entre os historiadores no momento em que estes passam à interpretação dos

fatos, enquanto que a sua acumulação, se supondo um certo nível de conhecimento e

de tecnicidade na investigação, é mais ou menos semelhante. (SCHAFF, 1991, pg.

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O nível de conhecimento e a tecnicidade da investigação isentariam o historiador da

subjetividade, relegada à fase posterior de interpretação dos fatos. Schaff critica essa afirmativa

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por reconhecer que há subjetividade primeiramente na escolha do que é ou não matéria-prima

para a interpretação. De maneira análoga, os jornalistas consideram que a “opinião” é posterior

à seleção dos acontecimentos dignos de nota. Tal seleção seria regulamentada por regras dita

naturais, os valores-notícia, comuns a todos e, por isso, indiferentes a posicionamentos

subjetivos. Nos dois casos, a técnica exime o sujeito de sua própria subjetividade. Uma coisa

seria o acontecimento, autônomo e óbvio, e outra a notícia, produto de um sujeito. Também

autores da comunicação, como Sodré, apontam o problema dessa afirmativa mas, no caso dos

jornalismos, cria-se uma linha divisória dentro do próprio campo: de um lado está o jornalista

como prático, trabalhador da informação, que crê nos mitos de sua profissão; do outro, estão os

acadêmicos que pensam e criticam a prática jornalística. É, portanto, dentro do contexto

acadêmico que a reflexão sobre a própria subjetividade do fazer jornalístico encontra espaço.

Schaff, portanto, parte da diferenciação entre fato e fato histórico para definir este

último. Ele chama de “fato” o evento qualquer que tomou lugar no passado – o que, em suas

palavras, seria uma redundância – e o distancia daqueles eventos imbuídos de alguma

importância social passível de análise histórica:

Estabelecemos portanto uma distinção muito nítida entre o acontecimento que se deu

no passado (e que podemos chamar de ´fato´ porque se produziu efetivamente) e o

fato histórico, ou seja o acontecimento que, devido à sua importância para o processo

histórico, se tornou ( ou pode tornar-se) objeto da ciência da história. ( SCHAFF,

1991, pg. 209)

Mas o autor torna a discussão mais complexa ao reconhecer que a dicotomia apresentada

talvez resida no cerne de um fato, e não na divisão dos fatos em grupos distintos. Em outras

palavras, Schaff compreende que todo fato possuiria a dupla natureza de ser acontecimento,

entendido como algo que “efetivamente” acontece, e fato histórico, entendido como

interpretação e seleção. O autor, portanto, reconhece primeiramente o fato histórico como um

acontecimento, um processo, uma instituição e seu papel, ou seu produto da cultura material e

espiritual ( pg. 232), e, logo em seguida, como o resultado da apreensão cognitiva dos

historiadores a partir de um sistema de referências específico e de um método próprio.

Parece ser necessário procurar a solução do problema que preocupa W. Moszcenska,

não na distinção entre duas categorias de fatos – os fatos acontecidos e os fatos

históricos – mas na análise do duplo aspecto ou do duplo plano de um único fato

histórico que, evidentemente, é um elemento da realidade objetiva (sendo a única

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alternativa de reserva a especulação idealista), mas um elemento conhecido pelos

homens, por um lado, e – em razão das suas relações objetivas de causa a efeito com

o processo objetivo – adequadamente qualificado pelo historiador, por outro lado. (

SCHAFF, 1991, pg. 226)

Um único fato histórico, portanto, é depositário tanto da faceta objetiva quanto da

interpretação do historiador. Um fato é “conhecido pelos homens” e “adequadamente

qualificado pelo historiador”. Ou seja, um fato que seja legitimado em duas instâncias: a da

sociedade como um todo e a do grupo de especialistas que essa sociedade entende como

responsáveis pela legitimação. Do posicionamento de Schaff pode-se inferir três aspectos

relevantes para essa reflexão: (1) A evidência de que o caráter “bruto” do fato não é

desconsiderado. Ainda que a subjetividade da interpretação e seleção dos acontecimentos passe

a ser o ponto central da discussão, resiste sobre ela, como um fantasma, a ideia de uma parcela

autônoma do acontecimento. (2) O fato histórico é dependente da existência de um grupo de

especialistas legitimados a reconhece-lo. (3) O reconhecimento do fato histórico é realizado por

esses especialistas a partir da comparação com um sistema de referência que pode ser dinâmico

e mudar ao longo do curso da história.

A instância que possibilita definir algo como “autônomo” ou “natural” é exatamente a

cultura, porque, segundo Braudel (1992), é ela quem trabalha com processos de longuíssima

duração, cujos movimentos transcorrem na estrutura mais funda da dinâmica humana e, por

isso mesmo, só se captam por reflexos. Infere-se, assim, que a parcela “bruta” do fato histórico

– que Schaff define como “realidade objetiva” ou “o que efetivamente aconteceu” – seria nada

mais que a coincidência de percepção do grupo social-histórico dentro do qual todo o processo

de construção da realidade ocorre. Voltando à reflexão de Sodré ( 2009), e da filosofia, fato é

aquilo que, dentro de um experimento, pode ser empiricamente provado para todo caso e para

todos os envolvidos no experimento. Em outras palavras, a objetividade, ou autonomia, ou

empiricidade, de um fato assenta-se basicamente na condição que se tem de provar esse fato

para o grupo. No fim das contas, a questão da universalidade é uma questão de aceitação social

ampla. Se apenas um indivíduo vê e compreende algo, aquilo a princípio não existe. Quando

passa a existir, é condicionado à interpretação do grupo: alucinação, bizarrice, sonho, profecia,

visão, especialidade, capacidade visionária, são todos conceitos coletivos. Nesse sentido, a

paranoia do louco, a epifania do santo e a visão refinada do cientista se confundem como

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ferramentas de legitimação da cultura para elementos que o grupo todo não é capaz de perceber,

mas que precisa explicar e tornar “fato”. O que o louco alucinou não é considerado fato, porque

pertence apenas a ele como indivíduo, mas a alucinação é. Por isso mesmo, a alucinação pode

ser catalogada, validada, referenciada, estudada e observada por um grupo de especialistas

responsáveis por esse aspecto.

Sodré reitera a importância da legitimação dos especialistas na construção de parcelas

da realidade. Tal legitimação é externa ao campo profissional e cultural formado pelos

especialistas – é necessário que a sociedade entenda que jornalistas e historiadores sabem o que

aconteceu melhor que outras instâncias. A aparentemente óbvia distinção entre ambos os

profissionais, pautada na ideia de que um trabalha com o que acontece e outro com o que

aconteceu, não é levada em consideração aqui, uma vez que tanto historiadores quanto autores

do jornalismo reconhecem-na como problemática. O jornalista espanhol Juan Luis Cébrian já

dizia que os jornalistas seriam “historiadores como o pé no acelerador”, e Schaff insiste em

mostrar como o passado engloba praticamente tudo que acontece, uma vez que a capacidade

humana de captar e narrar os fatos é sempre posterior. Portanto, em resumo, o que se tem é que

os dois grupos de especialistas são legitimados socialmente para tratar do acontecimento em

sua acepção mais genérica – o acontecimento social ou o fato histórico - mesmo com as

diferenças de seus objetos iniciais. Outras instâncias, outros grupos sociais, outros especialistas,

precisam aceitar que jornalistas e historiadores são os melhores para o trabalho. E jornalistas e

historiadores, por sua vez, lançam suas próprias teorias, métodos e mitos sobre um sistema de

referências mais amplo: “Pressupõe-se portanto um sistema de referências no quadro do qual e

em função do qual se operam a valorização e, consequentemente, a seleção; pressupõe-se

igualmente a existência de um sujeito que procede a estas operações.” (SCHAFF,1991, pg. 211)

Diferente de Schaff, Sodré reconhece um duplo sistema de referências: aquele criado

pelo grupo especialista e o outro, retirado da cultura ampla na qual ele se insere. Ao primeiro,

Goffman chamaria de “enquadre” ( apud Sodré, pg. 37) e definiria como um conjunto de regras

e esquemas interpretativos responsáveis pela atribuição de sentido a um evento e que estariam

afinados com a cultura do grupo que os criou:

A reflexão de Goffman não visa especificamente a imprensa. Ela está centrada no

problema da passagem de uma situação social a outra em função de ocorrências

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imprevistas, capazes de colocar os indivíduos diante do imperativo coletivo de

determinação do ocorrido. (SODRÉ, 2009, pg. 38)

Assim, se o evento é, por exemplo, um mal estar físico de um indivíduo, o enquadre

socialmente aceito para explicar o que está acontecendo não é nem o jornalístico e nem o

histórico, mas o da medicina. É o médico, como representante do grupo específico, responsável

por transformar aquela ocorrência imprevista e de difícil explicação numa narrativa

referenciada e socialmente aceita. Por mais criptografada e ininteligível que seja a explicação

do médico sobre a doença, ela é aceita como verdadeira pelo paciente, e mesmo sua

ininteligibilidade é explicada segundo a acepção geral de que o médico tem conhecimentos

vedados à maioria, o que o salva de ser considerado apenas louco. Em outras palavras, a

sociedade outorga a determinadas parcelas de si mesma o direito de explicar aspectos da

realidade sem necessariamente ter de justificar seus métodos.

Nesse sentido, Nora (1984) traça a linha diferenciadora entre memória e história, a partir

do processo de racionalização e perda da espontaneidade na apreensão dos fatos passados. O

autor evidentemente refere-se a uma dinâmica mais complexa, e situa historicamente seus

conceitos. Ele outorga à “metamorfose contemporânea” a passagem da memória à história. Mas

ainda assim é possível inferir de sua reflexão que, entre memória e história, existe o labor

interpretativo e definidor de um grupo especialista assentado num sistema de referências

próprio:

Sem dúvida é impossível não se precisar dessa palavra [memória]. Aceitemos isso,

mas com a consciência clara da diferença entre memória verdadeira, hoje abrigada

no gesto e no hábito, nos ofícios onde se transmitem os saberes do silêncio, nos

saberes do corpo, as memórias de impregnação e os saberes reflexos e a memória

transformada por sua passagem em história, que é quase o contrário: voluntária e

deliberada, vivida como um dever e não mais espontânea; psicológica, individual e

subjetiva e não mais social, coletiva, globalizante. Da primeira, imediata, à segunda,

indireta, o que aconteceu? Pode-se apreender o que aconteceu, no ponto de chegada

da metamorfose contemporânea. (NORA, 1984, pg. 14)

Contudo, o segundo sistema de referências sobre o qual se assenta a valoração e seleção

dos fatos por jornalistas e historiadores fica claro em sua inserção num contexto cultural mais

amplo:

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Mas tudo isso é possibilitado pelo envolvimento de um campo “extra-jornalístico” no

processo. Em outras palavras, a construção do acontecimento não se efetua apenas

no campo jornalístico, como bem ressalva Arquembourg: “Os acontecimentos são

certamente fruto de um trabalho de constituição coletiva, mas eles imbricam também

a participação de atores e de um público que não é apenas uma massa de

consumidores de informação” (SODRÉ, 2009, pg. 39)

As constantes pugnas pela definição da realidade, e pela autolegitimação dos métodos,

existem e sobrevivem no coração dos campos histórico e jornalístico. Fora deles, porém,

naquilo que em geral se define como senso-comum, a legitimação já está acertada. Mesmo que

o público duvide da idoneidade dos jornalistas, muitas vezes acusando-os de mentirosos ou

deturpadores, ele faz isso a partir do pressuposto do desvio, da falta, do erro. O jornalista que

mente ou manipula é um desviante da expectativa do jornalista, que é o que fala a verdade, e é

capaz de fazer isso. Ou seja, não há nessa reflexão o cuidado acadêmico de relativizar a verdade,

e considerar qualquer tipo de narrativa como uma construção social do acontecimento. De

maneira análoga, se o historiador revela ao público geral que seu método é uma construção

conflituosa do passado, ele provavelmente terá a sua credibilidade abalada, pois não se espera

do historiador conflito e dúvida quanto ao seu próprio ofício. Aos olhos do senso comum,

subjetividade é, em todo caso, um acusativo de falha para historiadores e jornalistas.

Algumas conclusões provisórias

Um estudo muito mais aprofundado e detalhado seria necessário para que o tema desse

artigo fosse esgotado. O que se fez aqui não foi senão um esboço de reflexão, mas que pode ser

válido por sugerir como o acontecimento é uma questão em comum tanto para os estudos de

Jornalismo quanto para os de História. Por vezes isolados em seus próprios labirintos

epistemológicos, esses dois campos do saber humano teriam muito que contribuir um com o

outro, e não apenas na refrega interna pelo aprimoramento de seus próprios artifícios, mas

principalmente na busca contínua que ambos empreendem pela compreensão do mundo. Ainda

que breve, o presente artigo apresenta algumas inferências conclusivas. Elas são provisórias

porque, como já diria Popper, qualquer ciência deve presar pela sua própria provisoriedade;

também são provisórias porque iniciais, representando os primeiros esforços de um acadêmico

da Comunicação em se aproximar dos estudos da História. De uma forma ou de outra, espera-

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se que estas conclusões pelo menos sugiram a necessidade de uma maior aproximação entre os

dois campos.

Em primeiro lugar, e apesar de todas as suas diferenças, tanto a História quanto o

Jornalismo são instâncias culturais responsáveis pela construção de realidades muito

abrangentes. Ambas se ressentem pela complexidade da tarefa, pela limitação de suas próprias

ferramentas e, principalmente, porque essa complexidade e essa limitação não podem ser

reveladas sem complicações às outras instâncias sociais. História e Jornalismo são legitimadas

socialmente para contar histórias que não são consideradas histórias. A indeterminação dentro

desses campos, em ambos os casos, é ignorada pelas outras instâncias que se valem do labor

histórico e jornalístico. Na verdade, a revelação do mecanismo interpretativo é visto como

desmascaramento e perda de legitimidade. Se as instâncias não especializadas tomam

conhecimento dos processos interpretativos por trás dos campos, elas se sentem lesadas. Um

truque de mágica encanta pela destreza ou capacidade de fascinação, mesmo que a plateia saiba

se tratar de um truque. Esse entretanto não é o caso. Os dois campos de estudo também fazem

de tudo para ocultar o jogo de espelhos, o fundo falso onde está o coelho, a corda que levanta a

assistente. A diferença está no público. O público não pode suspeitar que é um truque, ou corre

o risco de tocar fogo no circo.

Referências Bibliográficas

BRAUDEL, Fernand. A longa duração. In: Escritos sobre a História. São Paulo: Perspectiva,

1992

NORA, Pierre. In: Les lieux de memòrie. I La Republique, Paris, Gallimard, 1984, pp-XVIII-

XLII. Tradução autorizada pelo Editor. Editions Gallimard, 1984.

RODRIGO ALSINA, Miquel. A construção da notícia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009

SODRÉ, Muniz. A narração do fato: notas para uma teoria do acontecimento. Petrópolis, RJ:

Vozes, 2009

SCHAFF, Adam. História e Verdade. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991

TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo, porque as notícias são como são. Florianópolis:

Insular, 2 ed. 2005.

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WOLF, Mauro. Teoria da Comunicação de Massa – 7ª ed. Barcarena, Portugal, Editorial

Presença, 2002