Charles Hodge - O Batismo Cristao - Imersao Ou Aspersao - Charles Hodge
A Imperfeição em Charles Bukowski
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8/8/2019 A Imperfeio em Charles Bukowski
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Universidade de So Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
A Imperfeio em Charles Bukowski
Orientador: Prof. Dr. Antonio Vicente Seraphim Pietroforte
Orientando: Fabiano Garcia Baltazar da Silva Alonso
2006
Relatrio Final de IniciaoCientfica do Departamento deLingstica
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ndice
I. Introduo..........................................................................................................................3
II. Captulo Um: Semitica, Literatura e Esttica...................................................................6
Uma breve anlise da teoria semitica.........................................................................7
Funo Potica............................................................................................................15
Semi-Simbolismo.......................................................................................................26
Imperfeio e Apreenso Esttica..............................................................................33
III. Captulo Dois: A obra de Charles Bukowski...................................................................40
Vida e Obra.................................................................................................................41
Bukowski e o Cnone.................................................................................................45
IV. Captulo Trs: A Imperfeio em Charles Bukowski......................................................51
Bibliografia.............................................................................................................................66
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Introduo
Esta pesquisa ocupa-se da verificao do conceito greimasiano de imperfeio1,
investigando se a recorrncia da sistematizao do modelo ocorre, na medida em que aplicado obra potica do escritor Charles Bukowski. O que significa no apenas observ-lo
pontualmente, mas, antes, numa perspectiva que tenta situar o seu alcance junto teoria
semitica.
Nesse sentido, nossa proposta tem o intuito de tentar delimitar a contribuio da
experincia esttica em sua integrao ao projeto semitico. Para tanto, escolhemos como
ponto de partida, compreender os fatores literrios a partir do ponto de vista da cincia
lingstica. Dessa maneira acreditamos que possvel legitimar a investigao, esboando
pensamentos e reflexes crticas com base em fundamentaes tericas e no de modo
emprico ou fenomenolgico.
Com isso, trataremos de no desvincular a literatura do estudo lingstico, uma vez
que esta a arte da linguagem, ou seja, aquela que se expressa pela palavra. Em ltima
instncia, a Literatura a responsvel por esgotar a lngua em todas as suas possibilidades,
permitindo criarmos novas construes de sentido tanto na maneira de pensar e sentir, como
no modo de compreender a formao histrico-social de uma determinada poca.
Portanto, este trabalho resultado de uma escolha metodolgica pautada na teoriasemitica. Sobretudo, pelo reconhecimento do seu carter cientfico, a partir das pesquisas e
anlises de A. J. Greimas, fundador do modelo que procura sistematizar a construo do
sentido.
Assim, apoiado na obra de Saussure e Hjmeslev, e mais tarde em V. Propp, Greimas
escreve Smantique Structurale2, onde descreve a teoria narrativa por meio de uma
abordagem sintxica que organiza e ao mesmo tempo constri o sentido do texto. Em outras
palavras, o objeto de estudo da semitica greimasiana fundamentalmente a significao e o
texto. Devendo-se tomar este ltimo no somente em seu aspecto escrito ou falado, mas
tambm, por exemplo, na forma visual (fotografia), auditiva (msica), plstica (escultura) e
outros.
1 GREIMAS, A. J.Da imperfeio . So Paulo, Hacker, 20022________. Smantique structurale. Paris: Larousse, 1966.
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Desse modo, no primeiro captulo apresentaremos nossas reflexes sobre semitica,
literatura e esttica; inicialmente nos ocuparemos de uma breve introduo teoria
semitica, em seguida, discutiremos, baseado nos estudos desenvolvidos por Roman
Jakobson, a funo potica da linguagem.
Mais adiante, trataremos da noo de semi-simbolismo aplicado literatura,
procurando demonstrar os efeitos de sentidos gerados, quando estabelecemos e projetamos
relaes entre o plano de expresso e contedo. Por fim, examinaremos os arranjos
narrativos e tensivos que compem o evento esttico, ou seja, o momento da apreenso
como uma ruptura da conjuno do sujeito com o mundo, em decorrncia de uma expanso
do sentido que desloca o indivduo de seus parmetros, de suas convices, para um
rompimento com a situao vigente.
No segundo captulo, analisaremos o estatuto de Charles Bukowski enquantoescritor, discutindo o seu fazer potico a partir da relao /vida/ versus /obra/, e a
problematizao da tendncia esttico-romntica, de acordo com Maingueneau3. Com isso,
nosso principal objetivo neste momento passa a ser investigar o campo literrio onde
Bukowski est inserido, dimensionando sua singularidade e pertinncia em relao ao
lugar que ocupa.
No terceiro e ltimo captulo, de importncia central em nossa pesquisa, levando em
conta que o acontecimento extraordinrio sempre acontece de forma arrebatadora e
apresenta-se para o sujeito de modo imprevisvel, procuraremos avanar na compreenso da
noo de fratura, discutindo o rompimento da continuidade do discurso, figurativizado
na e pela quebra da relao do sujeito com o estado presente (cotidiano), ou seja, na
transformao do curso da narratividade.
Investigaremos se de fato o estado de desesperana, de desencantamento disfrico do
sujeito ao qual Greimas se refere, o resultado de uma dissemantizao da experincia de
uma relao desgastada pelo dia a dia que acaba se esvaziando de sentido, na medida em
que o sujeito percebe-se abalado pela apreenso do novo estado de coisas 4, ou se esta
noo defratura, que permite entrever uma nova realidade, no um tipo de manipulao
que estabelece uma mudana de referncia (calcada no objeto-mundo) opondo-se idia de
que haja um vu recobrindo a realidade.
3 MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literria. So Paulo: Martins Fontes, 2001.4GREIMAS, op. cit., p. 27.
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Assim, com esta breve introduo acreditamos revelar as devidas articulaes e
nexos argumentativos da estrutura geral do trabalho. Contudo, seria impossvel responder
todas as questes aqui levantadas; tal atitude exigiria outra pesquisa. Desse modo,
precisamos saber escolher, dentre as dificuldades, qual a que podemos nos impor, se de
alguma maneira pretendemos demonstrar uma coeso argumentativa capaz de formular as
perguntas corretas e fecundas.
Entretanto, se as anlises realizadas neste trabalho, em certo sentido, podem parecer
muito abrangentes, certamente, com o intuito de proporcionar novos recursos para uma
produtiva e enriquecedora discusso sobre a abordagem da apreenso esttica, por meio do
estudo semitico.
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CAPTULO UM
SEMITICA, LITERATURA E ESTTICA
O essencial que o signo verbal e a
representao visual no so jamais dados de uma vez s.Sempre uma ordem os hierarquiza,indo da forma ao discurso ou dodiscurso forma.
Michel Foucault
Antes de comear a tratar, isoladamente, os principais tpicos que compem o
captulo, faamos um breve comentrio acerca de cada um deles, a fim de poder definir, com
maior eficcia, o nosso objeto terico. Em primeiro lugar preciso esclarecer que o modelo
semitico adotado nesta pesquisa o de linha francesa, desenvolvido por A. J. Greimas. Oque j nos afasta, por exemplo, do modelo peirciano, do formalismo russo e da semiologia.
O segundo passo, entendermos a teoria greimasiana, vinculando-lhe o estudo literrio e
esttico.
importante enfatizar que, embora a semitica possa ser aplicada com o intuito de
interpretar e compreender os textos literrios, ela no se encaixa propriamente como uma
teoria da literatura. Por outro lado, vemos a teoria literria tomar para si a criao e a
elaborao do texto verbal, de modo a desenvolver modelos que utilizam mecanismos
lingsticos no-verbais, em favor da poeticidade. Dessa forma, julgamos legtima a
aproximao das duas teorias, no sentido de observarmos por exemplo que, quando a
palavra escrita, ela no s assume relaes de significao no plano de contedo, como
tambm uma dimenso plstica e sonora no plano expressivo; uma vez que a letra tambm
uma imagem vinculada ao som5.
Essa relao sincrtica entre plano de expresso e plano de contedo,
complexificada, legitima o chamado estudo semi-simblico6. Para nossa abordagem
literria, tomamos como base o estudo de Roman Jakobson7 sobre a funo potica da
linguagem, onde o autor diz ser ela a responsvel por criar o efeito de novidade e ruptura do
5Essa questo pode ser vista detalhadamente em: PIETROFORTE, A. V. S. Os enigmas da imagem e O taoda escrita. In: Semitica Visual os percursos do olhar. So Paulo: Editora Contexto, 2004.6 Voltaremos a abordar este assunto, mais adiante, no item reservado ao estudo do semi-simbolismo.7JAKOBSON, R. Lingstica e Potica . In:Lingstica e comunicao . So Paulo: Cultrix, 1975.
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emprego normal da lngua, graas superposiodo princpio de equivalncia do eixo de
seleo sobre o eixo de combinao (Jakobson, 1969: 130).
Por ltimo, terminamos o captulo verificando como se d a incorporao do estudo
esttico teoria semitica. Entretanto, no nosso objetivo aqui, dedicar-se a analisar o belo
e nem o sublime, indo-se mais alm, na tentativa de querer compreender como os objetos,
artsticos ou naturais, sensibilizam os sentidos, despertando a percepo de seu significado
essencial e incitando no sujeito sensaes muitas vezes imprevistas.
Uma breve anlise da teoria semitica
Em Smantique Structurale, Greimas inaugura os fundamentos da teoria semitica,
propondo como modelo opercurso gerativo do sentido. Nele so determinadas trs etapas,aonde se vai dos valores mais simples e abstratos: nvel fundamental e narrativo, para o
mais complexo e concreto: nvel discursivo. Em nvel fundamental temos a teoria pautada
numa categoria semntica baseada na oposio de valores gerais e abstratos, por exemplo:
/vida/ versus /morte/ ou /natureza/ versus /cultura/ etc.
No trecho abaixo extrado do livro AMetamorfose8, de Franz Kafka, podemos
identificar as categorias semnticas /opresso/versus /liberdade/.
Acordar cedo assim deixa a pessoa completamente embotada, pensou. O
ser humano precisa ter o seu sono. Outros caixeiros viajantes vivem como mulher
de harm. Por exemplo, quando voltou no meio da tarde ao hotel para transcrever
as encomendas obtidas, esses senhores ainda esto sentados para o caf da manh.
Tentasse eu fazer isso com o chefe que tenho: voaria no ato para a rua. (...) E
mesmo que pegasse o trem no podia evitar a exploso do chefe. (...) E se
anunciasse que estava doente? Mas isso seria extremamente penoso e suspeito,
pois durante os cinco anos de servio Gregor ainda no tinha ficado doente uma
nica vez. Certamente o chefe viria com o mdico do seguro de sade, censuraria
os pais por causa do filho preguioso e cercearia todas as objees apoiado no
mdico, para quem s existem pessoas inteiramente sadias refratrias ao
trabalhod9
8 KAFKA, Franz.A Metamorfose. Trad. Modesto Carone, 15 ed., So Paulo, Brasiliense, 1994.9 KAFKA, op. cit., p. 9-10.
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Em nvel fundamental, a oposio dos valores que circulam no texto, d-se pela
categoria mnima: /opresso / versus / liberdade/. O sujeito Gregor Samsa vive oprimido
pela famlia e pelo patro, pois precisa trabalhar muito para pagar a dvida que seus pais
mantm junto ao empregador. Com isso, a partir desse trecho, percebe-se que Gregor
considera o chefe um tirano e um explorador. Contudo, ele se sujeita a essa tirania a fim de
livrar a famlia da dvida; que, por sua vez, tambm o oprime e o explora, pois deixa a
responsabilidade do pagamento do dbito, somente para Gregor:
Ah, meu Deus! pensou. Que profisso cansativa escolhi. (...) Me imposta
esta canseira de viajar, a preocupao com a troca de trens, as refeies irregulares
e ruins, um convvio humano que muda sempre, jamais perdura, nunca se torna
caloroso. (...) Se no me contivesse, por causa dos meus pais, teria pedidodemisso h muito tempo; teria me postado diante do chefe e dito o que penso do
fundo do corao10
(...) Ora, o pai era na verdade um homem saudvel, porm velho, que no
trabalhava h cinco anos (...). a velha me, que sofria de asma, a quem uma
caminhada pelo apartamento j era um esforo (...)deveria ela agora, por acaso
ganhar dinheiro? E deveria a irm ganhar dinheiro, que com dezessete anos era
ainda uma criana e cujo estilo de vida at agora dava gosto de ver, consistindoem vestir roupas bonitas, dormir bastante, ajudar na casa, participar de algumas
diverses modestas e acima de tudo tocar violino?11
Com relao semntica fundamental, possvel dizer que no texto os valores
partem da opresso, determinada como negativa, e vo em busca da liberdade, que
positiva. Entretanto, a busca da liberdade no alcanada, fica apenas no nvel do desejo,
uma vez que ela no se concretiza. A seqncia opresso no opresso liberdade
apresenta-se da seguinte maneira: Gregor passa toda sua existncia oprimido; enquanto
trabalha sente-se desiludido e sonha com a liberdade. Depois da metamorfose, fica
literalmente preso em seu quarto, olhando a janela e vendo a liberdade do mundo, passar
pelo lado de fora:
10 KAFKA, op. cit., p. 8-9.11 Idem, p. 44.
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(...) Freqentemente passava noites inteiras deitado ali; sem dormir um
instante, apenas arranhando o couro durante duas horas. Ou ento no refugava o
grande esforo de empurrar uma cadeira at a janela, para depois rastejar rumo ao
peitoril e, escorado na cadeira inclinar-se sobre a janela evidentemente em
nome de alguma lembrana do sentimento de liberdade que outrora lhe dava olharpela janela.12
somente aps a metamorfose que Gregor liberta-se do patro e da responsabilidade
familiar, mas, ainda assim, torna-se prisioneiro dentro de seu prprio mundo.
Destarte, vemos que ao aplicar a negao sobre cada um dos termos citados acima,
geramos os termos contraditrios e contrrios entre si, prevendo tambm as relaes de
implicao (ex: /no-liberdade/ e /no-opresso/ /no-liberdade/ implica /opresso/). Tais
termos e suas relaes resultam em um importante ponto da teoria, o quadrado semitico.
No caso de A Metamorfose, teramos, ento, o desenho do seguinte quadrado
semitico:
Sobrepostos a esses valores h uma categoria tmica denominada /euforia/ versus
/disforia/, em que se determinam quais os valores que sero considerados positivos ou
negativos. No caso do romance kafkiano, a liberdade uma categoria eufrica, e a opresso
disfrica. Porm, em outros textos, tais categorias tensivas podem vir invertidas como
12 Idem, p. 44.
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acontece no poema Do Desejo, de Hilda Hilst, em que a opresso eufrica, enquanto a
liberdade disfrica:
Do Desejo
E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras lquidas, deleitosas, speras
Obscenas, porque era assim que gostvamos.
Mas no menti gozo prazer lascvia
Nem omiti que a alma est alm, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memria de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.
(Do Desejo - Campinas, SP: Pontes, 1992.)
, portanto, no nvel narrativo que se evidenciam as relaes transitivas e reflexivas.
Ao transformar os valores fundamentais em narrativos, d-se origem aos papis actanciais
de sujeito e objeto, podendo estar eles em relao conjuntiva ou disjuntiva, assumindo assim
papis contratuais oupolmicos. Ou seja, uma narrativa organiza-se em torno da circulao
de um objeto, ao qual dado um determinado tipo de valor (destinador-manipulador), e
este, por sua vez, passa a circular entre os sujeitos narrativos. O efeito de narratividade est
justamente nessas transformaesjuntivas, tanto do objeto em relao aos sujeitos, comodesses em relao a si prprios (destinador e destinatrio). Seguindo o percurso:
manipulao ao julgamento, explica-se, portanto, a circulao que descreve a
narratividade.
Em nosso exemplo, a semntica narrativa ocupa-se de dois tipos de objetos: os
modais e os de valor. Isto , para o sujeito Gregor Samsa, o objeto modal trata-se do
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emprego necessrio para ele conseguir o objeto de valor dinheiro. por meio do objeto
modal que Gregor entra em conjuno com o objetodevalor. Contudo, a opresso e a falta
de considerao provocam em Gregor uma metamorfose, a partir da qual ele entra em
disjuno com a vida humana e seus valores, perdendo, neste caso, o objeto modal
(emprego) e conseqentemente o objetodevalor(dinheiro).
A me concluiu: No como se ns mostrssemos, retirando os mveis, que
renunciamos a qualquer esperana de melhora e o abandonamos a prpria sorte, sem
nenhuma considerao?(...) Elas lhe esvaziavam o quarto; privavam-no de tudo que
lhe era caro13
Nesse sentido, vemos que a ao baseia-se na relao de competncia eperformance
dos sujeitos narrativos, modalizados pelo /saber/ ou /poder/, ao passo que a manipulao,descreve o porqu de ter entrado em ao, por meio da modalizao do /dever/ ou /querer/.
O julgamento, todavia, o reconhecimento ou no do cumprimento do papel contratual
entre destinador e destinatrio, que aponta para um veredicto positivo (retribuio) ou
negativo (punio). De modo que, o destinador-manipuladorquem instaura o objeto e o
sujeito, transmitindo a esse os valores modais necessrios para sua juno com o objeto.
Assim, na fase de competncia, observa-se que o sujeito Gregor deve-fazer, pode-
fazere sabe-fazero trabalho para pagar a dvida dos pais; com relao performance, temosque ele realiza o trabalho e, com isso, sustenta toda a famlia. Porm, no veredicto final, o
sujeito sancionado negativamente, pois se anulou por completo, perdeu sua liberdade, sua
identidade e no obteve o menor reconhecimento.
No entanto, para que a ao seja realizada, o sujeito deve antes de tudo crer nos
valores representados pelo destinador. Se o destinadorexerce um fazer persuasivo sobre o
sujeito, este tambm exerce um fazer interpretativo sobre aquele. Deste fazer decorre a
aceitao (relao contratual) ou o rompimento (relao polmica) do contrato proposto.
Para realizar o seu fazer interpretativo, o sujeito lana mo das modalidades veridictrias:
/ser/ (imanncia) e /parecer/ (manifestao), que se articulam em verdade, falsidade,
segredo e mentira.
13 Idem, p. 50-52.
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Com isso, a manipulao pode assumir quatro formas principais: a tentao, a
intimidao, a provocao e a seduo, definidas tanto pela competncia do destinador
(dotado do /poder/ ou do /saber/ sobre o sujeito) quanto pela modalidade transmitida ao
sujeito (/querer/ ou /dever/).14 interessante notar que vrios destinadores podem concorrer
na manipulao do sujeito. Desta forma, podem-se estruturar complexas configuraes
modais: /querer/ e /dever/, /no-querer/ e /dever/, /no-dever/ e /querer/, etc.
Desse modo, vemos que num primeiro momento, o destinador-manipulador (a
famlia e o patro) manipula Gregor por intimidao, pois ele deve realizar o trabalho a fim
de pagar a dvida e prover a famlia. A manipulao de Gregor comea com a sano
negativa de sua famlia, que estava falida. Num segundo momento, quem passa a ser o
destinador-manipulador a prpria vida, que manipula tambm por intimidao a famlia
de Gregor, devendo esta trabalhar para ganhar dinheiro e sobreviver.
(...) Entretanto esse dinheiro no bastava de maneira alguma para permitir que
a famlia vivesse de renda; talvez fosse suficiente para sustent-la um, no mximo
dois anos, no mais que isso. (...) Mas o dinheiro para viver tinha de ser ganho.15
Contudo, aps a publicao de Semitica das paixes, foi possvel verificar a
existncia de um campo passional exercendo um efeito manipulativo sobre o sujeito. De
modo que, sem a paixo do cime, por exemplo, Iago jamais manipularia Otelo, e Iago, por
sua vez, sem a paixo da inveja, no faria as intrigas que fez. (Pietroforte, 2002). Temos,
deste modo, em nvel narrativo dois estados: um de ao e outro de paixo. Todavia, no
14 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semitica do texto. So Paulo: tica, 1997. p. 45.15 Idem, p. 43-44.
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nosso objetivo esgotar este item exausto; por isso no abordaremos as possveis questes
passionais envolvidas neste exemplo.
Por fim, em nvel discursivo, coloca-se na forma de discurso, por meio do par
enunciao /enunciado, tudo o que vimos acima. no enunciado, portanto, que se define a
relao entre enunciador e enunciatrio, projetada nas categorias de pessoa, tempo e
espao. O percurso narrativo recoberto por um tempo e em um espao, e os actantes
ganham o estatuto de atores, investidos na categoria de pessoa. Os valores vistos em nvel
semio-narrativo, aqui, do origem aos percursos temticos e/ou aos investimentos
figurativos, segundo explica Fiorin em seu livroElementos de anlise do discurso:
Podem-se revestir os esquemas narrativos abstratos com temas e produzir um
discurso no figurativo ou podem-se, depois de recobrir os elementos narrativoscom temas, concretiz-los ainda mais, revestindo-os com figuras. Assim,
tematizao e figurativizao so dois nveis de concretizao do sentido. Todos
os textos tematizam o nvel narrativo e depois esse nvel temtico poder ou no
ser figurativizado.16
Devido s marcas que a enunciao deixa no discurso, aquela pode estabelecer com
este, relaes de aproximao ou de afastamento, que correspondem aos efeitos de sentido
de subjetividade e objetividade, respectivamente. So vrias as estratgias disposio do
enunciadorpara a realizao deste simulacro. Ao instaurar uma primeira pessoa no discurso
(debreagem enunciativa), o enunciador cria a iluso da presena de algum que fala. Por
outro lado, a instaurao de uma terceira pessoa (debreagem enunciva) afasta a enunciao
do discurso, criando uma iluso de neutralidade, promovendo assim o efeito de sentido de
verdade objetiva.
N A Metamorfose de Kafka, a debreagem temporal considerada a partir de um
tempo anterior e posterior metamorfose. Basicamente o que predomina no texto o
pretrito imperfeito. Existe um passado e um passado em relao a esse passado (que
anterior metamorfose). Esses tempos so marcados em duas instncias, um antes e depois
da metamorfose.
16 FIORIN, J. L. Elementos de anlise do discurso. So Paulo, Contexto, 2002, p.64.
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Antes da metamorfose:
(...) Ele achava que daquele negcio no havia sobrado absolutamente nada
para o pai - pelo menos o pai no lhe dissera nada em sentido contrrio e, seja
como for, Gregor tambm no havia interrogado a esse respeito17 (p.41)
Depois da metamorfose:
(...) Que vida tranqila a famlia levava! Disse Gregor a si mesmo e sentiu,
enquanto fitava o escuro diante dele, um grande orgulho por ter podido
proporcionar aos seus pais e sua irm uma vida assim, num apartamento to
bonito18
Os valores manifestados no nvel narrativo se organizam no nvel discursivo em
percursos temticos, que podem ou no ser recobertos por percursos figurativos. Esses
percursos no s garantem a coerncia do texto, como tambm manifestam mais claramente
suas intenes e propsitos. Com isso, percebemos que o texto de A metamorfose
totalmente construdo a partir da decomposio do sujeito Gregor frente sociedade,
famlia, ao patro, prpria vida, perdendo, diante de tanta opresso, as condies mnimas
de ser humano transformando-se literalmente num bicho nojento.
Quando certa manh Gregor Samsa acordou de sonhos intranqilos,
encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso (...) No
comeo ela tambm o chamava ao seu encontro, com palavras que provavelmente
considerava amistosas, como venha um pouco aqui, velho bicho sujo! ou vejam
s o velho bicho sujo!19
As figuras do inseto monstruoso e bicho sujo, denunciam a podrido dasociedade humana, o papel desprezvel e nojento que o explorador submete o explorado, que
se v obrigado, a rastejar para sobreviver.
17 Idem, p. 41.18 Idem, p. 34-35.19 Idem, p. 68.
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Funo Potica
Entre todas as propostas que serviram para ampliar o modelo da teoria da
comunicao, sem dvida, foram as de Jakobson que mais contriburam para odesenvolvimento desse estudo. Segundo o autor, a linguagem precisava ser estudada, no
somente a partir da funo informativa (referencial), mas sim, em toda a sua variedade. Para
nos mostrar isso, o lingista traou um esquema dos fatores presentes no ato de
comunicao:
contexto
mensagem
Remetente................................Destinatrio
contato
cdigo
Desse modo, cada um dos seis fatores determinam uma funo, segundo a qual, ele
organiza de acordo com os seus aspectos predominantes:
ReferencialPotica
Emotiva....................................Conativa
Ftica
Metalingstica
De fato, no abordaremos nesse estudo todas as funes, no nosso objetivo
examin-las em profundidade. O que nos interessa, verificar somente a funo potica da
linguagem. Sendo assim, partiremos da justificativa do prprio autor, acerca do processolingstico, em relao ao estudo potico:
O pendor (Einsfellung) para a mensagem como tal, o enfoque da mensagem por
ela prpria, eis a funo potica da linguagem. Essa funo no pode ser estudada
de maneira proveitosa desvinculada dos problemas gerais da linguagem, e, por outro
lado, o escrutnio da linguagem exige considerao minuciosa da sua funo
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potica. Qualquer tentativa de reduzir a esfera da funo potica poesia ou de
confinar a poesia funo potica seria uma simplificao excessiva e enganadora.
A funo potica no a nica funo da arte verbal, mas to somente a funo
dominante, determinante, ao passo que, em todas as outras atividades verbais, ela
funciona como um constituinte acessrio, subsidirio.20
No h dvida de que o efeito potico surge quando ligado a certos procedimentos
que ajustam a funo potica lngua. Mas, por outro lado, tambm verdade que essa
funo capaz de intervir em comportamentos verbais cuja finalidade no esttica 21. Diz o
lingista:
(...) a noo de poesia instvel e varia com o tempo, mas a funo potica, a
poeticidade, como assinalavam os formalistas, um elemento sui generis, um
elemento que no pode reduzir-se mecanicamente a outros elementos. (A
poeticidade) um componente que transforma necessariamente os demais
elementos e determina o comportamento do conjunto.22
Resultado, portanto, de dois arranjos bsicos, utilizados no comportamento verbal,
Jakobson diz:
A funo potica projeta o princpio de equivalncia do eixo de seleo sobre o
eixo de combinao. A equivalncia promovida condio de recurso constitutivo
da seqncia. 23
Retomando a dicotomia saussuriana: paradigma versus sintagma24, o autor percebe
que nas mensagens, cujo aspecto preponderante o referente, os eixos lingsticos mantm
20 JAKOBSON, R. Lingstica e Potica . In: Lingstica e comunicao. So Paulo: Cultrix, 1975, p. 127-128.21Conforme afirma Jakobson: os numerosos traos poticos pertencem no apenas cincia da linguagem,mas a toda teoria dos signos, vale dizer, Semitica Geral.22 JAKOBSON, R. O que a poesia? In: CLPEstruturalismo e Semiologia. p. 27.23________. Lingstica e Potica . In:Lingstica e comunicao . So Paulo: Cultrix, 1975, p. 130.24 No Curso de lingstica geral (Saussure, 1969), o autor afirma que todo signo implica em dois modos dearranjo. O primeiro modo, diz respeito s relaes sintagmticas, baseadas na combinao. O segundo modo,diz respeito s relaes baseadas na seleo dos elementos combinados. Dessa forma, o lingista mostra que osigno, uma vez associado a outros signos, apresenta pelo menos trs maneiras de ligar-se entre si. Uma por
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dominante, a seqncia usada para construir uma equao, com o intuito de explicar o
cdigo da lngua, no texto de funo potica, a seqncia seleciona a seqncia seguinte,
codificandoa prxima, de maneira a criar entre elas uma auto -referencializao que no
encontra sentido seno ali mesmo, no prprio texto. Com isso, torna-se impossvel separar
os dois processos: h uma relao dialtica que os implica e os define. por meio da funo
metalingstica, ento, que o texto se olha no espelho, provocando o efeito de sentido
potico. Ou seja, tudo o que a funo potica faz, com o auxlio da funo
metalingstica.
At esse momento, o que fizemos foi ento verificar do que Jakobson chamou
enfoque da mensagem dirigido a ela prpria. Contudo, outra questo se coloca: a
classificao da arte verbal. Devido ao carter linear do significante lingstico, no
podemos produzir dois tipos de sons ao mesmo tempo, ou seja, s possvel enunciar um decada vez, obedecendo a um alinhamento temporal e espacial. No seu estudo, o autor cita a
experincia de Saussure sobre os anagramas. Esta observao mostra que, contrariamente
linguagem habitual, as estruturas poticas rompem com o princpio da consecutividade no
tempo, de modo a distribuir-se com maior liberdade.
(...) as oposies fnicas podem chegar a evocar relaes com sensaes
musicais, cromticas, olfativas, tteis, etc. A oposio dos fonemas agudos e graves,
por exemplo, capaz de sugerir a imagem do claro e do escuro, do agudo e do
arredondado, do fino e do grosso, do leve e do pesado, etc. Este simbolismo
fontico, como lhe chama o seu explorador Sapir, este valor intrnseco, ainda que
latente, das qualidades distintivas, reanima-se assim que encontra uma
correspondncia no sentido de determinada palavra, na nossa atitude afetiva ou
esttica para com essa palavra e ainda mais para com palavras de significaes
polares. Na lngua potica, em que o signo como tal assume um valor autnomo,
este simbolismo fontico atinge a sua atualizao e cria uma espcie de
acompanhamento do significado.26
Assim, verificamos que a relao fundamental estabelecida na arte verbal entre o
som e o sentido. Naturalmente, esta no uma descoberta feita por Jakobson. Se
consultarmos a tradio dos estudos literrios que data desde a poca de Aristteles, nos
26 JAKOBSON, R. Seis Lies sobre o Som e o Sentido . Lisboa, p. 87-88.
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depararemos, volta e meia, com essa questo. De fato, o mais importante a ser observado na
proposta de Jakobson, que esta uma relao dialtica entre som e sentido, mas com
diferentes manifestaes conforme sejam os textos, isto , a dominncia de um sobre o
outro, depender do objetivo que se quer alcanar. claro que, a relao entre som e sentido
comum a todos os textos, porm existem aqueles que os recursos sonoros aparecem em
maior evidncia, predominando sobre os sentidos que eles veiculam. Enquanto que, em
outros, o arranjo sonoro mais diludo, menos opaco, sobressaindo, ento, o sentido. De
modo que, a primeira questo que se coloca, diz respeito to explorada classificao da
arte verbal em: prosa e poesia. Porm, no nos interessa, aqui, discutir a histria destas
definies, mas sim a posio defendida por Jakobson.
Vejamos o que diz Paul Valry:
A poesia uma arte da linguagem. A linguagem, contudo, uma criao da
prtica. Observemos primeiramente que qualquer comunicao entre os homens s
adquire alguma firmeza na prtica e atravs da verificao que nos dada pela
prtica.Eu peo fogo a vocs. Vocs me do fogo: vocs me compreenderam.
Continua:
Mas, ao pedir-me fogo, vocs puderam pronunciar essas poucas palavras sem
importncia com uma certa entonao e um certo timbre de voz com uma certainflexo e uma certa lentido ou certa precipitao que pude observar. Compreendi a
suas palavras, j que, sem mesmo pensar, estendi-lhes o que pediam, o fogo. E,
contudo, eis que o assunto no acabou. Coisa estranha: o som e como que a imagem
de sua pequena frase reaparecem em mim, repetem-se em mim, como se estivessem
se divertindo em mim; e eu gosto de me escutar repetindo-a, repetindo essa pequena
frase que quase perdeu o sentido, que deixou de servir e que, no entanto, quer viver
ainda, mas uma vida totalmente diferente. Ela adquiriu um valor; e adquiriu-o em
detrimento de seu significado finito. Criou a necessidade de ser ouvida ainda...Eis-nos s prprias margens do estado de poesia.27
O que h, portanto, so dois extremos: o mximo e o mnimo de poesia. Nesse sentido,
encontraremos a figurativizao do mximo representado pelo poema, e a do mnimo pela
27 VALRY, P. Variedades. So Paulo: Iluminuras, 1991, p. 208.
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linguagem prtica. Assim, teremos o discurso, por um lado, dominado pela funo potica e,
do outro, pela funo referencial. S que entre eles h uma matizao das variedades
literrias. Para o prprio Jakobson, a classificao da prosa, por exemplo, como um
fenmeno literrio intermedirio, no diminui a sua importncia, uma vez que os extremos,
como formas absolutas, no existem. O que existe, de fato, so dois pontos virtuais, criados
de maneira a nos ajudar a pensar num mximo e num mnimo potico. Desse modo, pensada
como ponto extremo, a poesia reflete o mximo de tenso, e a prosa, quanto mais literria
ela parecer, mais prxima estar do extremo potico.
No trecho abaixo extrado do primeiro captulo de Lolita, podemos ver que Nabokov
aproxima-se muito mais da prosa potica quando tenciona a linguagem, logo nas primeiras
linhas do romance, do que no restante da obra:
Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Minha alma, minha lama.
Lo-li-ta: a ponta da lngua descendo em trs saltos pelo cu da boca para tropear de
leve, no terceiro, contra os dentes. Lo.Li.Ta.28
Todavia, para Jakobson, a classificao do texto literrio entre prosa e poesia, ainda
uma postura frgil; sendo assim, o autor prefere pensar o texto como um todo que se orienta
em duas direes: a metfora e a metonmia. Durante muito tempo, consideradas como
figuras poticas, tropos, dentro de uma retrica que as via como uma simples substituio,
num determinado contexto, de uma palavra por outra, com Jakobson que essa questo
ganha o estatuto de procedimento artstico. O lingista deixa claro, portanto, desde o
comeo, que a sua preocupao inicial com a arte verbal, isto , com o procedimento
lingstico que a caracteriza. Desse modo, no se trata apenas de substituir uma
classificao por outra. Em sua teoria, o autor mostra que h uma tendncia do texto
literrio em se dirigir, seja para um lado ou para outro. Contudo, claro que isso no exclui
a possibilidade de encontrarmos tanto poesia com tendncia metonmica, como tambmprosa com aspectos metafricos.
Conforme dissemos acima, tanto a metfora como a metonmia no so somente
figuras discursivas, elas so diretrizes que organizam a linguagem, acionam o seu processo
de funcionamento. Com isso, verifica-se que na poesia existe certa tendncia
28 NABOKOV, Vladimir.Lolita. So Paulo: Folha de S. Paulo, 2003, p.11.
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simultaneidade; ao contrrio do que ocorre, por exemplo, na prosa, onde o que prevalece a
sucessividade.
De acordo com Jakobson, o que existe na verdade, um processo de metaforizao e
metonimizao, na medida em que estes indicam uma tendncia aos efeitos de sentido de
simultaneidade e sucessividade, respectivamente. Assim, ambos os processos pressupem
um paradigma de substituies que ocorre, quer por similaridade (ou contraste) quer por
contigidade. Nesse sentido, o que aciona esses processos, os coloca em funcionamento, o
princpio do paralelismo, cuja funo projetar sobre a seqncia o princpio da
equivalncia, ou seja, manter a simultaneidade no lugar da contigidade.
Como princpio geral, evidente que a projeo do eixo paradigmtico (seleo) no
sintagmtico (combinao) est presente em todo o discurso, mas a construo regida por
tal paralelismo, no qual este fica sendo o princpio estruturador fundamental, que subjaz aqualquer artifcio ou procedimento, o que legitima a construo do discurso literrio.
Desse modo, encontraremos textos com tendncia simultaneidade, onde o paralelismo se
apresenta de forma contnua, e a dominncia do som sobre o sentido surge como uma
oposio acentuada, de maneira a construir composies versificadas. E, por outro lado,
textos com tendncia a sucessividade, cujo paralelismo se dilui, e a dominncia passa a ser
do sentido sobre o som, gerando, assim, composies no-versificadas. Entretanto, em
ambos os casos, a relao paralelstica que ir estabelecer o processo de significao.
Vejamos no poema Dana do Ventre, de Cruz e Souza, como essa equivalncia
orienta tanto o plano de expresso quanto o plano de contedo:
Dana do Ventre
Torva, febril, torcicolamente
numa espiral de eltricos volteios
na cabea, nos olhos e nos seios
fluam-lhe os venenos da serpente.
Ah! Que agonia tenebrosa e ardente!
que convulses, que lbricos anseios,
quanta volpia e quantos bamboleios,
que brusco e horrvel sensualismo quente.
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O ventre, em pinchos, empinava todo
como rptil abjeto, sobre o lodo,
espolinhando e retorcido em fria.
Era a dana macabra e multiformede um verme estranho, colossal, enorme,
do demnio sangrento da luxria!
(Poesias Completas /Cruz e Souza. So Paulo,BibliotecaFolha, 1997, p.46.)
No plano expressivo, trata-se de um soneto em que h repeties de consoantes
oclusivas; isso confere ao texto, um efeito aliterativo. Alm do mais, todos os versos sodecasslabos, acentuados sempre na quarta, na sexta e nas ltimas slabas (vvv-v-vvv-), de
modo que essa equivalncia permite articular iteraes que so usadas para organizar as
seqncias dos versos. Por sua vez, o plano de contedo formado por equivalncias
semnticas. Nesse sentido, h no mnimo duas leituras possveis para o poema. Segundo a
anlise de Affonso Romano de Santanna:
No poema (...) a mulher se assemelha ao verme, quando surge numa dana
macabra e multiforme / de um verme estranho, colossal, enorme / do dmonio
sangrento da luxria. H um evidente sentido flico nessa simbolizao. O corpo
feminino esse colossal e estranho verme que exterioriza a sensualidade do
macho de maneira complexa e invertida. O objeto do desejo uma extenso fbica,
e o que seria a dana sedutora dos sete vus, uma dana de morte.29
Desse modo, o que vimos no exemplo acima, foram uma prosdia e uma significao
prprias da poeticidade, que, embora seja o resultado de uma operao lingstica sobre a
forma, esta no estranha ao aparato do sistema semitico verbal. Sendo assim, a projeo
do eixo da seleo sobre o da combinao, permite que exploremos tais recursos
lingsticos, de maneira a produzir um efeito de sentido potico.
29 SANTANNA. Affonso Romano de. O canibalismo Amoroso. So Paulo: Brasiliense, 1984, p. 139.
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enxuto de rosto, madrugador, e amigo da caa. Querem dizer que tinha o
sobrenome de Quijada ou Queseda, que nisto discrepam algum tanto os autores
que tratam na matria; ainda que por conjeturas verossmeis se deixava entender
que se chamava Quijana. Isto, porm, pouco faz para a nossa histria; basta que,
no que tivermos de contar, no nos desviemos da verdade nem um til.31
Se na poesia, h a dominncia do som sobre o sentido, na narrativa o fenmeno
inverso acontece. Ou seja, so as unidades semnticas que prevalecem. Desse modo, um dos
efeitos de sentido da prosa simular uma enunciao expressiva, onde o enfoque no seja a
reiterao fonolgica. Note que, habilmente, Miguel de Cervantes constri seu texto com
muito cuidado. fcil perceber que sua prosa no nem de longe, um tipo voltado
conversao; uma vez que seu valor literrio no est resumido somente ao plano de
contedo. Isso demonstra que a boa prosa , portanto, aquela que consegue em certa
medida, ofuscar o seu alto grau de elaborao.
Assim , tambm, com as relaes temticas. No plano de contedo, em nvel
discursivo, as descries semntico-figurativas, recobertas sobretudo pelo processo
metonmico, so as responsveis por estabelecer tanto a contigidade dos significantes (o
modo como certas palavras, expresses, construes sintticas, enfim, at mesmo como a
prpria maneira de narrar os fatos percebida a partir de uma determinada poca e/ou
escola literria) quanto contigidade dos significados. Com isso, as figuras emblemticas
transformam os signos lingsticos que as veiculam, tornando-os menos transparentes; ou
seja, deixam de encar-los apenas como simples instrumentos que servem para a circulao
do sentido, passando ento a valoriz-los em si mesmos. o caso, por exemplo, de
acrescentar outro significado s palavras; quando mencionamos leite para denotar brancura,
ou leo para falar de coragem, etc.
Com isso, o leitor menos atento pode cair na armadilha de achar que a narrativa trata,
simplesmente, do aspecto referencial da linguagem, uma vez que o trabalho paralelsticoencontra-se, aqui, ocultado. Nesse sentido, o texto conserva o aspecto denotativo das
palavras, mas, no entanto, o sistema simblico formado por elas adquire um carter
autnomo, ou seja, no instrumental. De acordo com a interpretao de Bernardo Gustavo:
31 CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de.Don Quijote de la Mancha. So Paulo: Abril Cultural, 1981, p.29.
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O personagem se apresenta, primeiro, como uma metonmia da Espanha e da
decadncia espanhola, para a seguir crescer como uma metfora da dignidade e da
fico. O sobrenome Mancha designa determinada regio da Espanha,
reforando o aspecto metonmico, mas tambm aponta para uma zona de sombra,
de indefinio e de indeterminao, que ajudar a construir a metfora dopersonagem.
Continua o autor:
O nome Quixote designa, metonimicamente, uma parte da armadura de um
cavaleiro, aquela que protege a coxa. A prpria palavra quixote deriva, como se
percebe sem esforo, de coxa. A desimportncia dessa parte da armadura refora
o carter cmico do cavaleiro que, mais adiante, tambm aceitar ser chamado
como o Cavaleiro da Triste Figura, vinculando o cmico ao trgico.32
Conclumos esse item, imaginado que foi possvel satisfazer uma exigncia
necessria generalizao da teoria proposta, a fim de que possamos seguir adiante em
nosso trabalho. Deste modo, nada melhor, para encerrarmos esta discusso, do que retomar
as prprias palavras de Jakobson:
Todos ns que aqui estamos (...) compreendemos definitivamente que um
lingista surdo funo potica da linguagem e um especialista de literatura
indiferente aos problemas lingsticos so, um e outro, flagrantes anacronismos. 33
Semi-simbolismo
No item destinado compreenso da teoria semitica, vimos que opercurso gerativo
define a construo do sentido, desde os elementos mais gerais e abstratos, at a sua
manifestao concreta e especfica. Desse modo foi possvel verificar como Greimas,
apoiado inicialmente nas definies saussurianas sobre significante e significado, prprio do
conceito lingstico acerca do signo, pde desenvolver uma teoria capaz de elaborar um
modelo que buscasse na significao o seu objeto de anlise.
32 TROUCHE, A. & REIS, L. (orgs).Dom Quixote: Utopias. Niteri: Ed.UFF, 2005.33 JAKOBSON, R. Lingstica e Potica. In:Lingstica e comunicao . So Paulo: Cultrix, 1975, p. 162.
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Entretanto, no basta definir a semitica como uma cincia que estuda o sistema dos
signos lingsticos. Isso implicaria dizer que este surgiu antes mesmo do processo de
significao, o que estaria errado; pois se justamente a gerao dessa grandeza o nosso
objeto de estudo. Sendo assim, podemos afirmar que a semitica estuda a construo da
existncia do signo, em uma fase anterior sua prpria constituio.
, portanto, a partir das propostas de Hjelmslev em Prolegmenos a uma teoria da
linguagem, que Greimas situa a semitica nos domnios do plano de contedo. Com isso,
estudos sobre o plano de expresso so deixados de lado, em um primeiro momento,
passando a ser reconhecido como objeto de estudo pertinente, somente mais tarde, quando
os semioticistas comeam a questionar como possvel relacionar formas da expresso
formas do contedo. Assim, passa-se a investigar como os efeitos de sentido que so
prprios da expresso, podem estar vinculados ao contedo; dessa forma o estudioso desemitica comea procurar a estabelecer correlaes entre os planos, no intuito de tentar
compreender as novas relaes de sentido que so estabelecidas, e as simbolizaes dela
provenientes.
Essa relao, portanto, entre o plano de expresso e o plano de contedo, realizado
em semitica, dentro da teoria dos sistemas semi-simblicos. De acordo com o semi-
simbolismo, um texto pode ser construdo em torno de relaes entre categorias do plano de
contedo e categorias do plano de expresso. Um nome bastante importante no mbito dos
estudos semi-simblicos o de Jean-Marie Floch34. Em suas pesquisas, ele investigou tais
conceitos, trabalhando sobretudo com as artes plsticas e visuais, entre outras.
Tomemos a capa do CD:As cidades, de Chico Buarque, como exemplo:
34 FLOCH, J. M. Petites mythologie de loielet de lespirit. Paris: Hads-Benjamins, 1985.
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No encarte que acompanha o disco As cidades, de Chico Buarque de Holanda,
podemos observar a figura do artista dividida em quatro imagens diferentes 35. O que nos
permite verificar em seu plano de contedo uma categoria fundamental pautada
semanticamente na relao: /identidade/versus /alteridade/ estabelecida a partir da categoria
topolgica: /concentrao/ versus /difuso/. Neste sentido, entendemos que o ttulo as
cidades, localizado na base inferior da capa, produz discursivamente pelas imagens e pela
representao potica, o aspecto heterogneo das populaes citadinas e o espao polifnico
da cidade.
Torna-se explcito, por meio destas quatro imagens, o carter multicultural da
enunciao presente no texto. O discurso tem a marca evidente da topologia das cidades
como espao das diferenas e, ao mesmo tempo, do lugar de luta de grupos sociais
minoritrios; na medida em que as imagens simulam quatro representaes tnicasdiferentes: o europeu, o africano o japons e o rabe. O que nos permite afirmar e garantir
que a representao alterada pela computao grfica se trata da identidade do compositor
Chico Buarque, o seu nome escrito no centro, na interseo das imagens, vazado em
branco e em caixa baixa.
Assim, a partir da concentrao do texto verbal, ancorado estrategicamente no meio
do encarte, que estas imagens podem ser visualizadas tanto em conjunto, como
separadamente. De modo que no podemos retirar uma ou outra, sem lhes alterar o sentido,
pois estas so imagens construdas a partir de seus respectivos fundos semnticos: o Chico
negro representa uma raa, no um negro determinado no mundo real. O Chico branco
representa uma raa, no o prprio Chico Buarque ou outro branco qualquer, conhecido. E
assim, o Japons e o rabe. Mas, o conjunto representa o Chico Buarque de Holanda, do
modo como ele se descreve para ns neste trabalho. Com isso, temos representado o
multiculturalismo, a miscigenao, o amlgama de culturas heterogneas e antagnicas,
simbolizadas pelo plurilingismo com a qual as cidades so representas.
Podemos dizer ento, que este encarte assume um efeito de poeticidade, na medida
em que h uma relao semi-simblica entre as formas plsticas e as formas semnticas.
Embora, nem todo semi-simbolismo possa implicar em uma semitica plstica, a relao
inversa verdadeira. Ou seja, de acordo com Jean-Marie Floch, a semitica plstica est
35 So quatro imagens de tipo posadas, como foto para documento. Destacam-se as expresses alegres dobranco europeu e do nipnico. O negro africano visivelmente melanclico e o rabe assume um sentido dedesafio, mas muito dbio.
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vinculada ao semi-simbolismo, que, no entanto, est ligado semitica potica. Com isso, o
semioticista delimita os domnios semi-simblicos, a partir da semitica potica.
Vimos que Roman Jakobson ao definir a funo potica da linguagem, por meio das
projees no eixo paradigmtico e sintagmtico, com base na dicotomia saussuriana de
significante / significado, situa os efeitos da poeticidade no mbito da lingstica. A
semitica, por sua vez, ao aplicar tais conceitos, define a poeticidade do mesmo modo
(PIETROFORTE, 2004: 9). Nesse sentido, tomando o texto potico como exemplo,
verificamos que o plano de expresso no serve apenas como um veculo de manifestao
do plano de contedo, mas tambm um novo modo de poder recri-lo em sua organizao.
Assim, podemos visualizar como a expresso colocada em funo do contedo.
O rond dos cavalinhos
Os cavalinhos correndo,
E ns, cavales, comendo...
Tua beleza, Esmeralda,
Acabou me enlouquecendo.
Os cavalinhos correndo,
E ns, cavales, comendo...
O sol to claro l fora,
E em minhalma anoitecendo!
Os cavalinhos correndo,
E ns, cavales comendo...
Alfonso Reyes partindo,
E tanta gente ficando...
Os cavalinhos correndo,
E ns, cavales, comendo...A Itlia falando grosso,
A Europa se avacalhando...
Os cavalinhos correndo,
E ns, cavales, comendo...
O Brasil politicando,
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Nossa! A poesia morrendo...
O sol to claro l fora,
O sol to claro Esmeralda.
E em minhalma anoitecendo!
(Estrela da ManhRio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 2000.)
Na conhecida anlise dO rond dos cavalinhos, de Antonio Candido (Candido,
1985: 71-72), o terico da literatura acompanha o movimento dos cavalinhos, mostrando-
nos como o ritmo dos versos sugere a interpretao de um galope. Nesse sentido, segundo o
autor, existe assim uma correlao entre a redondilha maior (7 slabas) e o tema do
movimento. Tomemos os dois primeiros versos como exemplo:
1 2 3 4 5 6 7
Os / ca / va / li / nhos / co / rrendo / do
E / ns / ca / va / les / co / men / do.
Se ao ler o poema, ns obedecermos rigorosamente sua pontuao, a primeira coisa
que nos saltar vista a conjuno do ritmo corredio com um ritmo entrecortado:
Os cavalinhos correndo //
E ns // cavales // comendo.
Desse modo, torna-se fcil observar o movimento de galope. como se o poeta
estivesse num primeiro momento, a contemplar o cavalo a correr (continuidade), e mais
tarde, depois que o ritmo interrompido pelo surgimento das vrgulas (descontinuidade),
voltasse a contemplar o animal, s que dessa vez a galopar. evidente que no poema existeo intuito de negar o estatuto denotativo da linguagem em seu aspecto de unicidade, para
afirmar a difuso de outros sentidos, sugerindo, assim, a noo da metfora: homens =
cavales.
Na anlise de Antonio Candido, notamos o efeito de sentido de aproximao e
distanciamento. Uma vez observados de longe, os cavalos a deslizar no prado, assemelham-
se queles do carrossel, prprio dos parques de diverso. Os homens, por sua vez, vistos de
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perto, assumem a postura de cavales, quando participam de um almoo em uma reunio
social. Quer dizer, eles so diretamente comparados aos animais que esto l longe, a
passear no pasto. Mas, no entanto, diferente do modo dos cavalinhos se comportarem, a ao
dos homens ao comerem modalizada por um fazer caricato, ou seja, sancionada
negativamente pelo destinador-enunciador.
Essa interpretao parece estar correta, se imaginarmos que na natureza o cavalo
quem galopa, e o homem no. Com isso, veremos que por meio da significao rtmica do
poema, esta ordem invertida. Evidencia-se, portanto, nesta contradio, uma troca de
isotopia entre o plano semntico e o plano de enunciado. Pois, na medida em que
complexificamos por meio do ritmo: /homem/versus /cavalo/, necessariamente, estamos a
pensar em /natureza/ versus /cultura/. De modo que pela aproximao sugerida, os
cavalinhos assumem ento um ritmo mais humano, enquanto que os homens apropriam-sede um ritmo cavalar.
Conclumos a anlise dO rond dos cavalinhos, verificando tratar-se de um poema
que pautado pelo ritmo; ou seja, se apia num elemento prprio da expresso para
desenvolver, por meio do plano de contedo, o tema da contradio. Assim, o efeito de
sentido conseguido pelo poema, pode ser explicado como uma correlao semi-simblica
entre o plano da expresso e o plano do contedo lingstico.
Evidentemente que o exemplo acima, no tem o objetivo de enquadrar o poeta
Manuel Bandeira entre os representantes da poesia concreta no Brasil. Neste movimento
literrio, a principal idia era intensificar e carregar de poeticidade a relao entre palavra e
imagem, de modo que fosse possvel encarar o poema, inicialmente, a partir de dois pontos
de vista. Ou seja, num primeiro momento possvel conceb-lo no mbito literrio, uma vez
que trabalha com as palavras; por outro lado, tambm poderamos situ-lo entre as artes
plsticas, na medida em que utiliza o recurso da imagem. Contudo, reduzir a dimenso
potica do poema concreto, tanto a uma como outra esttica, seria um equvoco; pois esse
tipo de poesia no uma sntese entre o literrio e o plstico, mas sim uma complexificao
entre estas duas semiticas. Segundo Pietroforte:
Para fazer a anlise de um poema concreto, portanto, no basta somar anlise
literria e anlise plstica, mas deve-se analisar a complexificao que combina
literariedade e plasticidade na construo do texto. As relaes semi-simblicas (...)
podem ser articuladas entre categorias semnticas e categorias lingsticas e
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plsticas, prprias do plano de expresso da poesia concreta, o que faz, da semitica
um bom instrumento de estudo para sua anlise.36
Quando verificamos no item anterior a funo potica da linguagem, observamos
que na prosa a elaborao fontica deixada de lado, em detrimento da estruturao
fonolgica. Assim, tanto o leitor como o ouvinte, no instante que compreende a mensagem
veiculada, acaba por fazer uma imediata transposio do plano da expresso ao plano do
contedo. Por outro lado, vimos tambm no exemplo acima, que o material sonoro pode
contribuir para produzir um efeito de significao. De modo que, em O rond dos
cavalinhos, os elementos do plano de expresso esto colocados em funo do contedo.
Porm, quando na poesia concreta, o poeta rompe a dimenso fonolgica do plano
expressivo da linguagem, o que ele est buscando fazer, na verdade, reorientar osignificado e o significante da palavra. Assim, por meio do sincretismo grfico presente na
escrita, o seu principal intuito justamente complexificar a relao entre expresso
lingstica e imagem, de modo a deixar exposto, no prprio texto do poema, a manifestao
da projeo categrica plstica (semitica visual) e escrita (semitica verbal).
No poema extrado do livro Poetamenos, de Augusto de Campos, podemos
visualizar como esses conceitos aplicam-se poesia concreta:
eis os amantes
(PoetamenosSo Paulo, SP: Edies Inveno, 1973.)
36PIETROFORTE, A. V. S. Os enigmas da imagem . In: Semitica Visual os percursos do olhar. So Paulo:Editora Contexto, 2004, p.142.
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interessante observar que a prpria disposio dos elementos na pgina, j inclui o
espao no qual o poema construdo como um signo; na medida em que as aberturas, as
linhas, as distncias, so tambm responsveis pelo efeito de significao. Assim, ao
valorizar o som e o timbre das palavras, slabas e letras, Augusto de Campos retoma o
modelo fonolgico a partir das suas unidades distintivas, ou seja, os fonemas. Uma vez que
estes, quando tomados sozinhos, so desprovidos de significado, mas, passam a t-lo
conforme so combinados e permutados com os outros. Como nossa finalidade no
discutir o percurso semi-simblico da poesia de vanguarda brasileira, recomendamos a
leitura do trabalho de Iniciao Cientfica: A angstia em Augusto, de Juliana Di Fiori
Pondian. Neste, a autora analisa a proposta esttica da poesia concreta brasileira,
encontrando, a partir dos poemas de Augusto de Campos, uma aproximao entre as artes:
potica, musical e visual. De modo que, em seu trabalho, verifica-se como a explorao dosignificante verbal , totalmente, revestido de significado, a ponto da expresso e o contedo
no poderem mais ser vistos de maneira dissociada; contribuindo para que o estudioso de
semitica possa, a partir da, compreender melhor a construo do sentido no texto, graas a
complexificao dessas duas categorias.
Para finalizar, segundo as prprias palavras de Floch:
Os sistemas simblicos so as linguagens cujos dois planos esto em
conformidade total: a cada elemento da expresso corresponde um e somente
umelemento do contedo, a tal ponto que no mais produtivo para a anlise
distinguir ainda o plano da expresso e o plano do contedo, visto que tm a
mesma forma.37
37FLOCH, J. M. Alguns conceitos fundamentais em semitica geral, In: Documentos de Estudo do Centrode Pesquisas Sociossemiticas. Vol. 1. So Paulo: Centro de Pesquisas Sociossemiticas, 2001, p. 28.
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Imperfeio e apreenso esttica
(...) a prpria apreenso concebida como uma relao part icular estabelecida, no quadro
actancial, entre um sujeito e um objeto de valor. Essa relao natural; sua condio primeira a
parada do tempo, marcada figurativamente pelo silncio que bruscamente sucede ao tempo
cotidiano, representado como um rudo ritmado. A esse silncio corresponde uma parada repentina
de todo movimento no espao, uma imobilizao do objeto-mundo (...)38. assim que Greimas
define, logo nas primeiras pginas Da imperfeio, o que o texto de Michel Tournier lhe
permitiu concluir sobre os elementos constitutivos da apreenso esttica.
Para analisar esses procedimentos, o semioticista pautou seu estudo sobre cinco
textos literrios. Contudo, abrimos mo de coment-los aqui, para seguirmos diretamente s
generalizaes que os elementos dessas anlises tm permitido. Com isso, mantemos nossoobjetivo principal, conforme j havamos dito no incio do captulo, que compreender o
momento de apreenso esttica nos termos propostos pelo autor. Desse modo, iniciamos
abordando a questo da esttica do sujeito e do objeto e, por ltimo, a fuso de ambos.
A esttica do sujeito e do objeto
A partir de um olhar subjetivo sobre o modo de existncia dos valores e da
significao diante do mundo, o sujeito descobre o vu que oculta a realid ade, mostrando
que por trs dele existe uma tela com aspectos sensveis do parecer, de onde podemos
depreender novos valores e sentido. Ou seja, no contato direto entre o sujeito e sua nova
realidade, ento revelada, h uma apreenso cognitiva que o modifica.
Ao romper a isotopia da significao inteligvel, passamos da esttica, e tal
mudana, como afirma o autor, no s transforma a construo do sentido como a da prpria
vida. Verifica-se, portanto, a ocorrncia de uma esttica que concebe o momento de sua
apreenso como uma ruptura da conjuno do sujeito com o mundo, em decorrncia de uma
expanso do sentido que desloca o indivduo de seus parmetros, de suas convices, para
um rompimento com a situao vigente. A apreenso de tal evento esttico sempre acontece
de forma arrebatadora e apresenta-se para o sujeito de modo imprevisvel.
38 GREIMAS, A. J.Da imperfeio . So Paulo, Hacker, 2002, p.25.
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por meio da noo de fratura que Greimas enuncia as bases dessa esttica,
conforme diz neste trecho:
No se trata aqui, ento, de uma simples troca de istop ia textual, mas de uma
verdadeira fratura entre a dimenso da cotidianidade e o momento de inocncia. A
passagem a esse novo estado de coisas se manifesta como a ao de uma fora que
vem do exterior (...) 39.
No fragmento de Michel Tournier, por exemplo, o autor nos mostra como a figura de
uma gota dgua ao tentar cair de uma clepsidra apropria -se das funes do sujeito e
transforma-se em um ator modalizado e patmico, levando Robinson Cruso a deslumbrar-
se e a visualizar outra realidade, ao v-la em tal movimento. Esse duplo fazer: o do objeto
que faz o sujeito senti-lo, e o fazer do sujeito sentindo o fazer do objeto, refora a ao do
evento esttico; sob as condies de uma suspenso do tempo e de uma paralisao do
espao, indicadores que apontam o desconectar do sujeito em relao ao seu curso prvio, o
que se experimenta um outro ritmo em descompasso e dissimtrico ao ritmo anterior.
como se tivssemos um plano cartesiano: o eixo das abscissas representando a
espacialidade e o das coordenadas, a temporalidade. No eixo espacial, encontramos o
movimento suprimido no instante de apreenso e no eixo da temporalidade, a estagnao do
tempo. nesse exato momento, em que o sujeito tomado por uma viso extraordinria,
deixa entrever por alguns segundos, graas aos buracos, as brechas que existem nesta tela do
parecer, uma nova realidade.
A fratura surge, portanto, como uma espera antecedente ao evento esttico, e, que
mais tarde, torna-se estudo das mais diversas interpretaes, obrigando o sujeito a lanar-se
sobre seu objeto-mundo em uma completa fuso. E sendo esta uma fuso breve, na medida
em que torna insustentvel para o sujeito manter o xtase envolvido na apreenso de tal
sentido, ocorre um gradual desaparecimento do evento extraordinrio, levando o indivduoa guardar para si uma lembrana nostlgica que mais tarde vm a produzir ressemantizaes
no prprio sentir-se, sentir o mundo, a vida diria, etc.
Para concluir, devemos notar que o objeto esttico diferentemente do objeto terico,
definido at este momento pela teoria semitica, caracteriza-se por uma seqncia de papis
39 GREIMAS, op. cit., p.26.
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actanciais, na medida em que assume um estatuto prprio dentro da teoria. Num primeiro
momento, apresenta-se como um destinador-manipulador, modalizando os afetos e as
percepes do sujeito, que, por sua vez, passa a reconhecer neste, sua parte complementar.
Da que somente depois, j em uma segunda etapa, que assumir a funo de objeto
propriamente dito, ou seja, aquele que recebe as determinaes do sujeito.
Por sua vez, o sujeito da vivncia esttica, tambm apresenta caractersticas prprias.
No incio, demonstra caractersticas passivas, o que tpico da funo de objeto. Ao passo
que, somente ir reconhecer-se como um sujeito em si, quando o objeto esttico entrar em
cena, atuando como destinador. Desse modo, o objeto que vem trazer ao sujeito o saber
sobre a sua prpria condio.
Assim, nos resta deduzir que o contrato da fuso entre sujeito e objeto estticos,
no produto da ao do sujeito. Muitas vezes ela o resultado de uma ao bilateral entreos actantes; ou seja, um vai direo do outro: o sujeito aparece sensibilizado pela presena
do objeto e o objeto ressaltado pela percepo do sujeito.
Analisemos o contoA Serpente40 do Marqus de Sade para compreender melhor tal
processo:
A Serpente
Todo o mundo conheceu no incio deste sculo a sra. presidenta de C..., uma das
mulheres mais amveis e a mais bonita de Dijon, e todo o mundo a viu afagar e manter
publicamente em sua cama a serpente branca, que o tema desta anedota.
- Este animal o melhor amigo que possuodizia um dia a uma senhora estrangeira
que veio visit-la e se mostrou curiosa da razo dos cuidados que a bela presidenta tinha
por sua serpente. Outrora amei com paixo prosseguiu um jovem encantador,
forado a se afastar de mim por obrigaes militares. Fora outros modos de nos
comunicarmos, exigiu que fizesse como ele em determinadas horas, cada um por si,
fosse para um lugar solitrio para pensar exclusivamente em nosso afeto recproco. Uma
vez, s cinco da tarde, indo me fechar numa estufa de flores ao fundo do jardim,mantendo o nosso trato, percebi de repente a meus ps este animal, embora nenhuma
espcie semelhante pudesse entrar na propriedade. Quis fugir, a serpente se estendeu
diante de mim como a pedir misericrdia e me jurar que estava longe da idia de me
fazer mal.
40 SADE, Marqus de. O marido complacente. So Paulo: L&PM POCKET, 1997.
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Parei, observei-a. vendo-me tranqila, se aproximou, fez cem voltas muito geis a
meus ps, no pude me impedir de toc-la, passou delicadamente a cabea na minha
mo, peguei-a, pus sobre os joelhos, onde ela se enrolou e pareceu dormir. Uma
preocupao me veio, lgrimas me subiram aos olhos sem que sentisse e molharam o
belo animal. Despertado por minha dor, me observou, gemeu, ergueu a cabea at meuseio, acariciando-o, e voltou a descer, desfeito. cu sagrado, aconteceu, gritei, meu
amante morreu! Deixei o funesto lugar, levando comigo a serpente a que um sentimento
oculto parecia me ligar, a despeito de mim mesma. Fatais advertncias de uma voz
desconhecida de que interpretar como quiser os sinais, sra., mas oito dias depois soube
que meu amigo tinha sido morto na hora em que a serpente me apareceu. Nunca quis me
separar dela, e j no me deixar enquanto viver. Depois me casei, mas com a expressa
condio de a no tirarem de mim.
Terminando de falar, amvel presidenta agarrou a serpente contra o peito e a fez darcem belas voltas ante a dama que a interrogava.
Como so inexplicveis teus desgnios, Providncia, se essa histria real como
assegura toda a provncia de Borgonha!
O sujeito da narrativa (figurativizado no texto como presidenta) faz do cotidiano,
uma seqncia esperada de acontecimentos. Isto , tem como hbito se masturbar todos os
dias, em determinadas horas, pensando em seu amante que tivera de partir. De modo que,
assim, ela cumpre o contrato defidcia estabelecido entre os dois:
Fora outros modos de nos comunicarmos, exigiu que fizesse como ele em
determinadas horas, cada um por si, fosse para um lugar solitrio para pensar
exclusivamente em nosso afeto recproco. Uma vez, s cinco da tarde, indo me
fechar numa estufa de flores ao fundo do jardim, mantendo o nosso trato, percebi de
repente a meus ps este animal (...)
Contudo, o sujeito surpreendido pela presena de um animal na cena, o que em
termos semiticos, trata-se de um objeto actorializado na figura de uma serpente. Mas,
antes, importante observar que quando o sujeito tenta fugir, fica claro estar em jogo os
valores da descontinuidade; pois tal valor figurativizado no texto pela imagem da fuga.
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Quis fugir, a serpente se estendeu diante de mim como a pedir misericrdia e me
jurar que estava longe da idia de me faze mal.
Ao repetir sempre a mesma ao, a presidenta se dispe ao previsvel. Entretanto,
continuidade dessa situao coloca-se uma outra, inesperada: a serpente que surge no campo
visual do sujeito, atraindo-lhe a ateno de expectante. Desse modo, dizemos que h uma
nova isotopia, na medida em que esta rompe com a antiga. Se quisermos aderir categoria
frico/tensiva do quadrado semitico41 a essa isotopia, no intuito de melhorar a
compreenso, veremos que a cotidianidade assume o papel de continuao e a durao da
vida do sujeito nesse estado continuao da continuao, o que gera o seguinte quadrado
semitico:
Do ponto da atividade / passividade estticas, perceba que a serpente, a princpio,
surge como sujeito e destinador-manipulador, e a presidenta como objeto; uma vez que o
animal que visa entrar em conjuno com o sujeito, manipulando-o por meio da paixo da
misericrdia, para depois, quando a presidenta assumir a funo ativa, tornar-se objeto.
Assim, ela surge inicialmente apassivada; mais tarde, ao sofrer a manipulao, reconhece a
serpente como objeto e passa a agir ativamente.
Ainda assim, importante perceber que a funo de destinador, algo marcante no
objeto esttico, muito mais presente na figura da serpente, embora a presidenta tambm
figure nesse papel. Isso se deve ao fato de que a ao dela decorrente da manipulao da
serpente. Porque at ento, a presidenta se caracteriza como um ser expectante e passivo.
41 Para as relaes temporais implicadas nessa verso do quadrado semitico, ver TATIT, L. Gerao. In:Semitica da cano: melodia e letra. So Paulo, Escuta, 1994.
continuao da parada continua o da continua o
parada da continuao parada da parada
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a serpente que fornece dinamismo cena; portanto, somente a ela podemos atribuir a
plenitude dessa funo.
O fato de os dois actantes terminarem em plena conjuno, no pode ser atribudo a
nenhum deles com exclusividade, mas sim a ambos:
Terminando de falar, amvel presidenta agarrou serpente contra o peito e a fez
dar cem belas voltas ante a dama que a interrogava.
Desse modo, conclumos que a alterao nos hbitos do actante presidenta rompe a
continuidade narrativa e gera o que Greimas definiu como fratura, ou seja, uma acelerao
do objeto em direo ao sujeito. A fratura pe em cena um sujeito surpreso, mas que no
entanto, quer agora a desacelerao para poder fruir com o objeto (percebida comocontinuao da parada). Esse querer se manifesta, no texto, pela espera que antecede o
encontro, como podemos ver no trecho abaixo:
Parei, observei-a. vendo-me tranqila, se aproximou, fez cem voltas muito
geis a meus ps, no pude me impedir de toc-la, passou delicadamente a cabea
na minha mo, peguei-a, pus sobre os joelhos, onde ela se enrolou e pareceu
dormir.
Modalizado pela espera, o sujeito torna-se predisposto ao encontro, e por meio da
manipulao sofre uma mudana em seu ser. Essa mudana a responsvel por levar o
sujeito a um fazer peguei-a, pus sobre os joelhos e gera, no seu ser, a paixo da
felicidade42. Seguindo esse momento de estase, podemos pensar que na medida em que o
conto no prope a extino plena do evento extraordinrio no retorno cotidianidade,
possvel imaginarmos uma ressemantizao do dia a dia, ou seja, a possibilidade de o sujeito
guardar para si as marcas dessa nova experincia, alterando a sua relao usual com omundo para alm do momento da parada. Com isso, teramos pela quebra do simulacro da
cotidianidade a fratura transformada em uma escapatria.
42 evidente que ao longo do texto, a serpente vai assumindo um papel metafrico, na medida que representa odesejo sexual do enunciatrio, afastado e separado de seu amante. Nesse sentido, a palavra serpente s adquireseu total sentido, quando interpretada dentro de um discurso ertico. Desse modo, o significado de serpentepassa a ser plural, e pode ser interpretada como ofalo do amante em sua ausncia.
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CAPTULO DOIS
A OBRA DE CHARLES BUKOWSKI
eu tenho uma honestidade interior nascida de putas e hospitaisque no me deixar fingir que sou
uma coisa que no sou -o que seria um duplo fracasso: o fracasso de uma pessoa
na poesiae o fracasso de uma pessoa
na vida.e quando voc falha na poesia
voc erra a vida,e quando voc falha na vida
voc nunca nasceuno importa o nome que sua me lhe deu.
Charles Bukowski
Nesta primeira parte, tomaremos a histria de Charles Bukowski, a partir do ponto de
vista do escritor que, em meio ao cenrio norte-americano, nos anos 70, desperta a ateno
dos leitores, quando comea a revelar-se descontente com relao aos rumos que a literatura
tomava naquele instante; ou seja, vai ganhando cada vez mais notoriedade, na medida em
que passa a criticar as convenes e os modelos que possibilitaram, segundo o autor, a
produo literria a tornar-se algo tedioso e pouco criativo. Assim, desejando relatar por
meio de uma viso bastante particular a realidade ignorada pela grande maioria dos leitores
comuns, Bukowski choca as massas ao retratar, com o seu estilo irnico e linguagem
chula, o dia a dia da sociedade americana. Desse modo, o pblico-leitor acostumado as
formas literrias cannicas, encontrar em Bukowski outro tipo de referncia.
No incio, o autor encontra repercusso somente no meio underground, sendo que a
maior parte das publicaes era bancada por ele prprio. Contudo, os escritos foram se
espalhando rapidamente entre o pblico, de modo que cada vez mais surgiam pessoas
interessadas naquele novo tipo de literatura. Assim, o interesse pela obra de Bukowskicomeava a crescer. Mas, apesar da popularidade, j inegvel nos meios marginais, e, da
grande influncia junto aos outros escritores, que tambm estavam surgindo naquele
momento, muitos crticos, jornalistas, professores de literatura, enfim, parte da chamada
classe intelectual americana, ainda recusava a reconhec-lo como um escritor de prestgio.
Foi ento, somente depois da sua morte, que os primeiros artigos e resenhas acerca da
herana artstica do autor, comearam a ser escritos. A partir da, inmeras sries e
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publicaes sobre a vida e a obra de Bukowski, passaram a ser divulgadas e reunidas nas
mais diversas antologias.
, portanto, junto com personalidades como: Walt Whitman, William Carlos
Williams, e Allen Ginsberg, todos figuras de destaque dentro do cenrio literrio norte-
americano, que a carreira de Charles Bukowski vista hoje como paradigma entre
escritores.
Vida e Obra
Nascido em 16 de agosto de 1920, em Adernach, na Alemanha, Bukowski veio
morar nos Estados Unidos quando tinha ainda apenas dois anos de idade. Em Los Angeles,
cresceu em meio pobreza. Na sua obra autobiogrfica, o escritor afirma que o perodo dainfncia foi um dos mais tristes e assustadores do qual j tivera recordao. Com a chegada
da adolescncia, comea a escrever pequenos contos, passando a envi-los para as revistas e
jornais literrios espalhados pelo pas.
Em 1946, Bukowski conhece Jane Cooney Baker. Durante este relacionamento,
apaixonado e turbulento, o autor escreve os poemas que o deixariam famoso nos anos 60.
Depois da publicao do seu primeiro livro de poesias Flower, Fist and Bestial Wail,
Bukowski se torna ento uma figura bastante conhecida no circuito undergroundda poca.
A partir da, utilizando-se do mito de bebedor duro, como forma de auto se
promover, o escritor comea a dedicar todo o seu tempo escrita. No total, entre prosa e
poesia, chegou a escrever mais de cinqenta e cinco livros, sendo que a maioria desses
foram quase todos publicados por pequenas editoras. Traduzido para diversos pases, o autor
acabou fazendo mais sucesso na Europa do que no prprio EUA.
Assim, em 1972, publica uma coletnea de contos intitulada Erections, Exhibitions
and General Tales of Ordinary Madness, seguida por outras que renem uma seleo de
suas melhores e mais importantes poesias como:Love is a Dog from Hell (1977) e Play the
Piano Drunk Like a Percussion Instrument Until the Fingers Begin to Bleed a Bit(1979). J
os romances: Post Office (1971), Factotum (1975), Women (1978), Ham on Rye (1982) e
Hollywood(1989) so aqueles em que o escritor se descreve autobiograficamente atravs do
alter-ego Henry Chinaski, contando histrias de sua infncia, adolescncia, da vida em Los
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Angeles, enfim, de sua constante andana pelos mais variados empregos, e de seus inmeros
casos amorosos.
Porm, nunca deixando de lado a produo potica, realiza leituras de alguns textos
nas diversas universidades americanas, o que mais tarde culminar na coletnea Last Night
of Earth Poems de 1992. O livro inclui os poemas da fase mais madura de Bukowski,
falam de uma infncia reconstruda idilicamente, contendo imagens muito ricas, como por
exemplo a lembrana de gotas de chuva caindo logo aps um temporal, na poca quando
ainda era jovem:
and then, at once, it would
Stop.
and it always seemed tostop.
around 5 or 6 a.m.
peaceful then,
but not an exact silence
because things continued to
drip
drip
dripand there was smog then
and by 8 a.m.
there was a
blazing yellow sunlight,
Van Gogh yellow
crazy, blinding!
and then
the roof drainsreliev of the rush of
water
began to expand in
the warmth:
PANG! PANG! PANG!
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e a, na mesma hora, ela
parava.
e ela sempre parecia
parar l
pelas 5 ou 6 da manh,depois a calma,
mas no um silncio total
porque as coisas continuavam a
pingar
pingar
pingar
e no havia nvoa
e l pelas 8 da manhvinha a
luz do Sol brilhante e amarela,
o amarelo de Van Gogh
insano, incandescente!
e ento as calhas do telhado
aliviadas da pressa da
gua
comeavam a dilatar como calor:
PANG! PANG! PANG!
Segundo Howard Sounes:
O estilo em que estivera trabalhando por anos, escrevendo um verso aps o
outro, com o mnimo de adornos possvel, foi perfeitamente atingido. Alguns
poemas consistiam em palavras arrumadas, uma, duas ou trs em um verso,como uma lista, mas Bukowski escolhia a mudana de um verso para o outro
com cuidado, e conseguia juntar imagens e idias interessantes. Eles quase
sempre tambm eram engraados.43
43 SOUNES, Howard. Vida e loucuras de um Velho Safado. So Paulo: Conrad Editora, 2000, p.231.
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Em pulled down shade, por exemplo, uma mulher reflete sobre os defeitos de seu
parceiro:
Ive
Know you for
6 months
but I have
no idea
who you are.
youre like
some
pulled down shade
a woman can
drop
out of your
life and
forget you
real fast.
a woman
cant go anywhere
but UP
after
living you,
honey.
eu
lhe conheci h
6 meses
mas no tenho
idia de
quem voc .
voc como
uma
sombra do passado
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...
uma mulher pode
sair
da sua
vida eesquec-lo
muito rpido.
uma mulher s pode
MELHORAR
depois que deixa voc,
amor.
Bukowski faleceu em So Pedro, na Califrnia, aos setenta e trs anos de idade. Seultimo trabalho foi uma novela policial chamada Pulp (1994), que ele terminou poucos
meses antes de morrer. Aps a sua morte ainda foi publicada uma coletnea de crnicas
retirada de seu dirio nos anos precedentes, de 1991 a 1993, chamada: The Captain is out to
lunch and the sailors taken over the ship.
Bukowski e o Cnone
Um dos grandes obstculos incluso definitiva de Charles Bukowski no cnone da
literatura ocidental contempornea o fato de a crtica, ainda hoje, no conseguir localizar o
verdadeiro espao que a sua obra ocupa no mbito literrio. Nesse sentido, surgem aqueles
que, por exemplo, tentam buscar em Henry Miller, devido ao carter obsceno e
autobiogrfico de seus romances, a raiz do estilo bukowskiano. Outros, porm, vem no
lirismo decadente de John Fante, a maior inspirao do escritor. E, com isso, h tambm os
que insistem em coloc-lo ao lado de Jack Kerouac, de modo a tentar classific-lo como um
escritor pertencente ao movimento beatnik, cuja idia era adaptar para o estilo de vida
americano, as propostas do surrealismo francs.
Entretanto, o que a literatura de Charles Bukowski sempre retratou foi a decadncia
daquilo que se convencionou chamar american way of life. Foi a partir desse ponto de vista
que o escritor comeou a narrar o dia a dia da classe mdia norte-americana, passando a
criar personagens cujas histrias eram totalmente baseadas na vida de pessoas comuns, e
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pautadas em torno de temas transgressivos como: sexo, alcoolismo, drogas, ressacas, brigas,
prostituio, etc. Desse modo, o autor nos demonstra que o ideal americano de cultura e
exaltao do indivduo, possui um efeito contrrio, ou seja, transforma todos numa grande
massa homognea e despersonalizada.
Uma vez analisada criticamente, a literatura bukowskiana apresentar-se- como um
tipo que est a todo o momento se repetindo; seja a partir do prprio estilo tosco de
descrever os acontecimentos, ou mesmo pelas histrias, que sempre narram um modo de
vida marginalizado. Assim, tentar localizar um lugar pertinente para o trabalho artstico de
Charles Bukowski, torna-se uma tarefa difcil, na medida em que o prprio autor
problematiza a sua insero no campo literrio. Com isso, dizer que Bukowski, por
exemplo, fez parte do movimento vanguardista, tambm cometer um grave equvoco; pois
diferentemente do que as vanguardas haviam proposto at ento, no foi nem a buscadesenfreada pelo novo, e nem a noo de ruptura esttica, pronta a servir como atividade de
engajamento poltico e/ou social, o que estava por trs da obra do escritor.
Nesse sentido, ainda poderamos concluir, dizendo que a literatura de Bukowski,
reduzir-se-ia a categoria dos gneros confessionais (memrias, dirios, autobiografia, etc). O
prprio autor, em entrevistas e cartas aos amigos, chegou a dizer que noventa e trs por
cento de sua obra eram autobiogrficos, sendo que os outros sete por cento restantes tambm
eram sobre sua vida, porm, desta vez, escritos de maneira melhorada.
Contudo, para muitos crticos, os acontecimentos da vida de um autor, quase sempre
se mostram irrelevantes para entender a sua produo intelectual. Numa poca em que o
artista radicalmente exposto, possuindo sua vida to vasculhada quanto praticamente a sua
obra, discutir o ponto onde uma termina e a outra comea, o desafio que o crtico se
impe.
Antonio Cndido avalia, com muita habilidade, a questo de se colocar a biografia
do escritor em um patamar elevado e sobre as consideraes de canonizar o escritor como
gnio, dizendo:
(...) nosso modo de ser ainda bastante romntico, temos uma tendncia
quase invencvel para atribuir aos grandes escritores uma quota pesada e
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ostensiva de sofrimento e drama, pois a vida normal parece incompatvel com o
gnio.44
Vejamos tambm o que diz Maingueneau a respeito de tal fenmeno:
A tendncia da esttica romntica foi privilegiar a singularidade do escritor e
minimizar o carter institucional do exerccio da literatura. Ora, no possvel
produzir enunciados reconhecidos como literrios sem se colocar como escritor,
sem se definir com relao s representaes e aos comportamentos associados a
essa condio. Os trabalhos de certos socilogos da literatura, em particular os de
P. Bourdieu, tiveram o grande mrito de mostrar que o contexto da obra literria
no somente a sociedade considerada em sua globalidade, mas, em primeiro
lugar, o campo literrio, que obedece a regras especficas.45
Se nos lembrarmos das consideraes traadas pelo ponto de vista do materialismo
histrico, veremos em Luckcs46, por exemplo, que toda obra de valor discute intensamente
a totalidade dos grandes problemas de sua poca. Com isso, percebe-se rapidamente que o
valor de uma grande obra reside na sua capacidade de conter tenses e contradies
prprias da sociedade na qual ela est inserida, isto , situada a partir de um dado momento
histrico. No entanto, tentar inserir o campo literrio de uma dada obra junto sociedade,muitas vezes, se mostra uma tarefa rdua, na medida em que o enunciado ao assumir a
forma de discurso, passa a se definir em relao a uma vasta rede interdiscursiva, de modo
que sua localizao social, s pode ocorrer a partir da definio do lugar q ue ela ocupa no
mbito coletivo. Em outras palavras, para poder veicular uma mensagem, a enunciao da
obra precisa trazer nela prpria a marca e/ou o problema que a tornou possvel.
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