A influência do mar na cultura da população de Luanda

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422 A INFLUÊNCIA DO MAR NA CULTURA DA POPULAÇÃO DE LUANDA JORNADAS DO MAR 2004 – “O MAR: UM OCEANO DE OPORTUNIDADESA Influência do Mar na Cultura da População de Luanda Trabalho realizado por: • José Gabriel Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna 1 – INTRODUÇÃO Para darmos o nosso contributo efectivo às Jornadas do Mar 2004, propusemo-nos fazer uma abordagem sucin- ta e simples sobre a influência que o mar tem na cultura da população de Luanda. Luanda é uma das províncias da República de Angola. A capital desta província com o mesmo nome é, concomi- tantemente, a capital do país, a qual é banhada pelo ocea- no Atlântico. Falar da influência do mar na cultura da população de Luanda é indubitavelmente falar do seu quotidiano. No entanto, importa salientar que actualmente a po- pulação de Luanda, na sua generalidade, não conserva na plenitude os seus valores culturais genuínos, situação que é fruto da modernidade e do êxodo populacional do interior para o litoral, em busca de melhores condições de vida e de segurança, devido à guerra que assolou o país por cerca de 30 anos. Nesta conformidade, procuraremos desenvolver o nos- so tema baseando-nos fundamentalmente nas tradições, há- bitos e costumes da população da ilha do Cabo de Luanda, que sofreu pouca influência cultural externa. Entretanto, no princípio, como é óbvio, daremos realce à origem da República de Angola moderna, à fundação de Luan- da e à caracterização genérica da cultura actual de Luanda. Quanto ao desenvolvimento dos aspectos essenciais respeitantes à ilha de Luanda, falaremos da origem popula- cional, do papel fulcral da ilha na fundação de Luanda, de alguns factores culturais daquela ilha, mormente dos que en- volvem o nascimento e o crescimento de uma criança, dos rituais tradicionais a aplicar às raparigas e dos ensinamentos tradicionais aos rapazes, da pesca como factor de sustenta- ção da vida da população e das grandes e principais mani- festações culturais da ilha, nomeadamente, a Festa da Ilha, ou da Kianda, a Festa da Nossa Senhora da Ilha, o Carnaval e, finalmente, a Festa das Mabangas. Esta ordem de ideias será a essência do nosso trabalho. 2 – ORIGEM DA REPÚBLICA DE ANGOLA MODERNA Angola é uma ex-colónia portuguesa. Foi descoberta pelo capitão português Diogo Cão, aquando da descoberta, por si, da foz do rio Zaire e estabelecimento dos primeiros contactos com o reino do Congo, em 1482. O reino do Congo comportava os actuais territórios das Repúblicas do Congo (Brazzaville), Democrática do Con- go (Kinshasa) e de Angola. A capital do reino era Mbanza Kongo, sendo actualmente a capital da província do Zaire, situada a noroeste de Angola. Entretanto, Angola desintegrou-se do restante reino do Congo, passando a ser reino de Angola, fruto das transfor- mações políticas, económicas e culturais que efectivamente houveram naquele reino nos finais do século XV e princípios do século XVI. O povo de Angola é de origem étnica maioritariamen- te banto. O país tem uma superfície terrestre de 1 246 700 km 2 , uma fronteira marítima de 1 600 km e a terrestre de 4 837 km. Importa referir que a população angolana se estima em 12 milhões de habitantes 1 , sendo que 49,3% são homens e 50,7% são mulheres. O país é constituído por várias tribos e línguas nacio- nais. Entretanto, as principais são: Umbundu (a maior), Kim- bundu, Kikongo e Tchókue. O português é a língua oficial. Esta desempenha um papel fulcral na comunicação e na união entre angolanos, na sua instrução e educação, na sua actividade profissional, enfim, no seu quotidiano. Angola é um país com dependência económica exter- na. Obteve a sua independência política a 11 de Novembro de 1975. Desde aquela data o país mergulhou numa guerra civil que durou cerca de 30 anos. Esta guerra é a causa do adiamento do desenvolvimento multifacético do país. Com a cessação do conflito militar interno, e com a ajuda do mundo exterior, o país tem vindo a registar importantes transforma- ções aos níveis político, económico, financeiro, cultural e social, por forma a garantir estabilidade e bem-estar e a re- posição de alguns valores culturais do povo angolano. 2.1 – Síntese sobre a Fundação de Luanda e os Seus Primeiros Tempos Conforme referimos atrás, Luanda é uma das provín- cias da República de Angola. A capital desta província com o mesmo nome é, concomitantemente, a capital do país, ba- nhada pelo oceano Atlântico. A cidade de Luanda foi fundada pelo capitão e gover- nador Paulo Dias de Novais em 1575, na vigência do reina- do de D. Sebastião. Paulo Dias de Novais com as suas forças armadas, 100 primeiras famílias portuguesas e padres da Companhia de Jesus, instalaram-se em Luanda 2 , a partir da ilha de Luan- da. Em 1576, fruto da sua estratégia militar, o capitão em re- ferência e a maioria dos seus companheiros transferiram-se para o morro da faixa continental fronteira à ilha. Neste morro edificou-se a fortaleza de São Miguel 3 , marcando o início da ocupação portuguesa do litoral ao interior, fundamentalmente o reino do Ngola (rei) do Ndongo.

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422 A INFLUÊNCIA DO MAR NA CULTURA DA POPULAÇÃO DE LUANDA

JORNADAS DO MAR 2004 – “O MAR: UM OCEANO DE OPORTUNIDADES”

A Influência do Mar na Cultura da População de Luanda

Trabalho realizado por: • José Gabriel

Instituto Superior de Ciências Policiaise Segurança Interna

1 – INTRODUÇÃO

Para darmos o nosso contributo efectivo às Jornadas do Mar 2004, propusemo-nos fazer uma abordagem sucin-ta e simples sobre a influência que o mar tem na cultura da população de Luanda.

Luanda é uma das províncias da República de Angola. A capital desta província com o mesmo nome é, concomi-tantemente, a capital do país, a qual é banhada pelo ocea-no Atlântico.

Falar da influência do mar na cultura da população de Luanda é indubitavelmente falar do seu quotidiano.

No entanto, importa salientar que actualmente a po-pulação de Luanda, na sua generalidade, não conserva na plenitude os seus valores culturais genuínos, situação que é fruto da modernidade e do êxodo populacional do interior para o litoral, em busca de melhores condições de vida e de segurança, devido à guerra que assolou o país por cerca de 30 anos.

Nesta conformidade, procuraremos desenvolver o nos-so tema baseando-nos fundamentalmente nas tradições, há-bitos e costumes da população da ilha do Cabo de Luanda, que sofreu pouca influência cultural externa.

Entretanto, no princípio, como é óbvio, daremos realce à origem da República de Angola moderna, à fundação de Luan-da e à caracterização genérica da cultura actual de Luanda.

Quanto ao desenvolvimento dos aspectos essenciais respeitantes à ilha de Luanda, falaremos da origem popula-cional, do papel fulcral da ilha na fundação de Luanda, de alguns factores culturais daquela ilha, mormente dos que en-volvem o nascimento e o crescimento de uma criança, dos rituais tradicionais a aplicar às raparigas e dos ensinamentos tradicionais aos rapazes, da pesca como factor de sustenta-ção da vida da população e das grandes e principais mani-festações culturais da ilha, nomeadamente, a Festa da Ilha, ou da Kianda, a Festa da Nossa Senhora da Ilha, o Carnaval e, finalmente, a Festa das Mabangas.

Esta ordem de ideias será a essência do nosso trabalho.

2 – ORIGEM DA REPÚBLICA DE ANGOLA MODERNA

Angola é uma ex-colónia portuguesa. Foi descoberta pelo capitão português Diogo Cão, aquando da descoberta, por si, da foz do rio Zaire e estabelecimento dos primeiros contactos com o reino do Congo, em 1482.

O reino do Congo comportava os actuais territórios das Repúblicas do Congo (Brazzaville), Democrática do Con-go (Kinshasa) e de Angola. A capital do reino era Mbanza Kongo, sendo actualmente a capital da província do Zaire, situada a noroeste de Angola.

Entretanto, Angola desintegrou-se do restante reino do Congo, passando a ser reino de Angola, fruto das transfor-mações políticas, económicas e culturais que efectivamente houveram naquele reino nos finais do século XV e princípios do século XVI.

O povo de Angola é de origem étnica maioritariamen-te banto.

O país tem uma superfície terrestre de 1 246 700 km2, uma fronteira marítima de 1 600 km e a terrestre de 4 837 km. Importa referir que a população angolana se estima em 12 milhões de habitantes1, sendo que 49,3% são homens e 50,7% são mulheres.

O país é constituído por várias tribos e línguas nacio-nais. Entretanto, as principais são: Umbundu (a maior), Kim-bundu, Kikongo e Tchókue. O português é a língua oficial. Esta desempenha um papel fulcral na comunicação e na união entre angolanos, na sua instrução e educação, na sua actividade profissional, enfim, no seu quotidiano.

Angola é um país com dependência económica exter-na. Obteve a sua independência política a 11 de Novembro de 1975. Desde aquela data o país mergulhou numa guerra civil que durou cerca de 30 anos. Esta guerra é a causa do adiamento do desenvolvimento multifacético do país. Com a cessação do conflito militar interno, e com a ajuda do mundo exterior, o país tem vindo a registar importantes transforma-ções aos níveis político, económico, financeiro, cultural e social, por forma a garantir estabilidade e bem-estar e a re-posição de alguns valores culturais do povo angolano.

2.1 – Síntese sobre a Fundação de Luanda e os Seus Primeiros Tempos

Conforme referimos atrás, Luanda é uma das provín-cias da República de Angola. A capital desta província com o mesmo nome é, concomitantemente, a capital do país, ba-nhada pelo oceano Atlântico.

A cidade de Luanda foi fundada pelo capitão e gover-nador Paulo Dias de Novais em 1575, na vigência do reina-do de D. Sebastião.

Paulo Dias de Novais com as suas forças armadas, 100 primeiras famílias portuguesas e padres da Companhia de Jesus, instalaram-se em Luanda2, a partir da ilha de Luan-da. Em 1576, fruto da sua estratégia militar, o capitão em re-ferência e a maioria dos seus companheiros transferiram-se para o morro da faixa continental fronteira à ilha. Neste morro edificou-se a fortaleza de São Miguel3, marcando o início da ocupação portuguesa do litoral ao interior, fundamentalmente o reino do Ngola (rei) do Ndongo.

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Entretanto, depois da curta permanência na ilha de Luan-da, onde teve lugar o encontro do capitão e governador Paulo Dias de Novais com um enviado especial do Ngola, no mor-ro fronteiro à restinga, formou-se o embrião da vila de São Paulo4. Disto depreende-se que Luanda, nos primeiros tem-pos de Paulo Dias de Novais, chamava-se vila de São Paulo. Esta foi ganhando desenvolvimento do morro ao interior e daí surgiu a cidade alta.

2.2 – Caracterização da Cultura Actual de Luanda

Luanda é a cidade mais populosa de Angola. Com-porta três milhões de habitantes, com uma média de ida-de de 19 anos. Possui uma divisão administrativa cons-tituída por nove municípios e uma superfície terrestre de 2 257 km2.

Desde os primórdios da formação efectiva da respec-tiva cidade até à década de 60 do século XX, a cultura luan-dense era essencialmente traduzida em tradições, hábitos e costumes ligados ao mar.

Depois deste período histórico, surgiram mais bairros pe-riféricos, que deram origem ao engrandecimento ainda maior da cidade. Daí que a população aprofundou a lavoura no in-terior, sendo esta uma das fontes de subsistência, tal como a pesca tradicional no mar. Importa salientar que a falta de chu-va leva a população a pedir à Kianda para que haja chuva. A Kianda é também a deusa das montanhas e das alturas.

Luanda é uma das províncias em que a língua nacional predominante é o kimbundu.

O indivíduo natural de Luanda, na expressão popular, é genericamente chamado kaluanda, ou kamundongo. O ka-luanda, ou kamundongo, por natureza, é um indivíduo es-perto, convencido, extrovertido, exibicionista, ambicioso, inteligente e propenso a ambientes festivos.

A população de Luanda tem a sua cultura específica, embora pouco original, por força das circunstâncias. Ela manifesta-se no traje feminino, na dança, nalguns rituais a realizar quando nasce um bebé, quando alguém morre ou pretende constituir família.

Hodiernamente a população de Luanda, devido à migra-ção, forçada pelas circunstâncias, é heterogénea do ponto de vista de origem social. No entanto, há alguma homogenei-dade no tocante ao relacionamento social. Reparemos que tanto as populações forasteiras como as nativas acederam à interferência cultural, fundamentalmente ao nível linguís-tico, culinário, da indumentária e da dança. Este processo possibilitou, de certo modo, a comunicação e aproximação entre as pessoas de diferentes etnias. Esta realidade, de certa forma, deu origem ao desaparecimento de determinados va-lores culturais luandenses. Entretanto, a camada luandense da terceira idade ainda conserva a cultura genuína. Porém, tem sido difícil ou quase impossível, devido à modernida-de, transmiti-la à juventude para que a possa passar de ge-ração em geração.

3 – A ILHA DO CABO DE LUANDA

A ilha do Cabo de Luanda é a denominada ilha de Luan-da. Importa salientar que do espaço administrativo territo-

rial de Luanda fazem parte duas ilhas: a ilha do Cabo e a do Mussulo.

A ilha de Luanda situa-se no extremo oeste da baía da cidade de Luanda, a sensivelmente dois quilómetros e meio. É uma localidade com imensos atractivos turísticos, desta-cando-se a beleza do mar, as praias fantásticas e os estabele-cimentos comerciais e culturais com arquitectura artesanal, construídos a escassos metros da praia. É uma localidade concorrida por turistas e citadinos luandenses vinte e qua-tro horas por dia, usufruindo-se dos seus encantos naturais e culturais, mormente na época quente (de Setembro a Abril). Por isso a ilha é tida como uma das localidades com maior índice de sinistralidade rodoviária da província de Luanda.

3.1 – Origem da População da Ilha do Cabo de Luanda

Segundo o ancião Sebastião Manuel Napoleão5, auto-ridade tradicional da ilha, os autóctones ilhéus são descen-dentes do reino do Congo, concretamente da tribo Bacongo. Esta, actualmente, abrange as províncias do Zaire e Uíge, situadas no Noroeste de Angola.

Aquela autoridade afirma ainda que a população da ilha é uma família, constituída na base de casamento, paren-tesco e afinidade.

A ilha do Cabo era o feudo do rei do Congo, que manti-nha nela um “governador”, encarregado, entre outras coisas, de fiscalizar a colheita do zimbo, o pequeno búzio que cons-tituía a “moeda” mais corrente naquele reino. A ilha sempre fora habitada por pescadores e recolectores do zimbo.

No entanto, depois do contacto de Diogo Cão com o reino do Congo houve portugueses que aí se tornaram resi-dentes. Porém, por motivos diversos, mas particularmente na sequência da invasão do reino pelos Jagas6, que deu ori-gem à instabilidade política do reino, muitos portugueses que aí residiam abandonaram-no e recolheram-se na ilha de Luanda.

Actualmente, a ilha é maioritariamente habitada pela população da tribo Kimbundu, tendo a pesca como sua ocu-pação social predominante.

3.2 – Papel Fulcral da Ilha do Cabo na Fundação de Luanda

Referimos atrás que Paulo Dias de Novais e sua gente desembarcaram na ilha de Luanda, feudo do rei do Congo, onde já residiam alguns portugueses.

A ilha representou, assim, o local do primeiro nú-cleo, ainda que transitoriamente, de ocupação portuguesa na orla do reino de Angola. Aí teve lugar o primeiro con-tacto “oficial” entre os representantes do rei de Portugal e do Ngola do Ndongo (posteriormente viria a ser o reino de Angola).

Paulo Dias de Novais obtinha informações através dos portugueses que residiam no Congo e na ilha relativamen-te aos poderes guerreiros e à personalidade do Ngola do Ndongo. Estas informações permitiram ao capitão e gover-nador criar estratégias de penetração no continente a partir da ilha. Daí, paulatinamente, foi progredindo, ganhando espaço e fixando-se em território luandense.

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4 – ALGUNS FACTORES CULTURAIS DA POPULAÇÃO DA ILHA DO CABO DE LUANDA

A população da ilha do Cabo mantém os seus valores culturais genuínos, pelo facto de sofrer pouca influência cul-tural externa, tendo em conta a sua especificidade geográfica, económica e ambiental em relação à cidade de Luanda.

A cultura da ilha traduz-se no dia-a-dia dos seus ha-bitantes, fundamentalmente na pesca, culinária, dança, no traje e nas celebrações.

A população da ilha tem uma cultura mitológica forte, ligada essencialmente ao mar, traduzindo-se em rituais que têm vindo a ser realizados desde a Idade Média até hoje. Entretanto, relativamente a esta matéria em concreto, fa-remos a escalpelização de alguns rituais mais adiante no nosso trabalho.

4.1 – Aspectos Tradicionais Que Envolvem o Nascimento e o Crescimento de Uma Criança

Na camada social mais tradicional, uma mulher grá-vida, independentemente do seu estado de saúde, é sujeita a tratamento médico e espiritual por um kimbandeiro (mé-dico tradicional). O tratamento consistirá em curar deter-minadas enfermidades, se as houver, e prevenir que even-tuais espíritos maus de parentes já falecidos, por vingança, encarnarem no nascituro. Contudo, pode suceder que, por enraivecimento, sobretudo de almas que, em vida, tives-sem sido vítimas de crime por parte de um antepassado, a criança não vingue, morrendo de tenra idade ou nascen-do já morta.

Entretanto, em distinção das condições em que se operou o nascimento, recebe a criança um nome adequado, pronto a lembrar o facto preponderante que presidiu à concepção ou aconteceu na ocasião do parto. Por exemplo, dá-se o nome de Kambundu à criança que ao nascer apresenta vários nós no cordão umbilical. Chamar-se-á Kanzala a que nascer numa época de fome. Os gémeos chamar-se-ão Gingongo.

Os gémeos, pela sua extraordinária concepção, seja por encarnação de entes sobrenaturais, seja por manifestação de características especiais, seja por qualquer outra singularida-de, inspiram aos pais, não o amor natural, mas uma espécie de idolatria. E os irmãos que se lhes seguem constituem a sua corte espiritual de escravos.

A existência dos gémeos, desde o nascimento ao fale-cimento, subordina-se a uma série de práticas rituais. Mas sempre com a existência de outros gémeos. Como são irmãos procedentes da mesma origem espiritual, só eles prestam entre si o valimento da sua essência sobrenatural. São glo-rificados quando nascem, quando casam e quando morrem. Não os glorificando, ressentem-se do menosprezo.

Quando nascem, e pertencendo ao mesmo sexo, o primei-ro chama-se Kakulu e o imediato Kabassa (nomes em alusão aos seus mantras espirituais). Sendo um casal, chamam-se Adão e Eva.

Quanto aos pais, não podem manifestar preferências: o que se der ou fizer a um, a outro se dará ou fará também.

Entretanto, esta realidade, em nosso entender, espelha indubitavelmente que a população da ilha é detentora de

uma cultura tradicional mitológica com uma componente supersticiosa considerável.

4.1.1 – Rituais a Aplicar às Raparigas

Quando uma rapariga atinge a fase da puberdade, é alvo de um controlo rigoroso por parte da mãe ou da tia com quem reside, de modo a preservar a sua virgindade.

Antigamente, as jovens eram submetidas a revistas frequentes, quer simplesmente a olho, quer com um ovo de pomba, quer com o bico de uma vela, previamente despro-vida da parte extrema do pavio. Actualmente tal rigor está em declínio devido ao cristianismo.

Portanto, antes do casamento, a jovem permanecerá oito dias em casa das tintas7, sujeita a rituais que a levam a obter o estatuto de mulher, ou seja, emancipando-a tradi-cionalmente.

Depois do casamento a jovem permanecerá ainda por alguns dias em casa dos seus pais e posteriormente é acom-panhada pelas tias à casa dos pais do seu marido.

No dia imediato ao matrimónio, a roupa com que a mulher dormiu, sobretudo o lençol, ainda é apresentada às pessoas íntimas. Porém, só se procede assim quando a noiva se sai bem. Portanto “de primeira mão”, como local-mente se diz8.

Para apresentação à família das contas de castidade, duas mulheres idóneas dormem em casa dos noivos ou, em moderna simplificação, vão logo pela manhã buscar as di-tas peças de roupa. Se a prova é honrosa, o noivo deposita no lençol, que a consorte dobra cuidadosamente, dinheiro e uma garrafa de vinho fino. Se, pelo contrário, houve lo-gro, homens há que queimam o lençol, de modo a formar um buraco, ou encetam a garrafa. Dado o caso de ter sido próprio noivo o autor do desfloramento durante o namoro, essa circunstância não impede que ele patenteie a sua satis-fação, procedendo como se tivesse praticado o acto na de-vida oportunidade9.

Segundo o direito consuetudinário, a mulher que, sem forte motivo, abandone o lar deve restituir o alam-bamento e os presentes de namoro, não interessando o tempo de convivência. Em geral tal encargo recai no con-sorte que vier a esposar. Permanecendo divorciada, cabe a ela ou à família o cumprimento da restituição. Porém, se a responsabilidade do divórcio impende sobre o ma-rido, por maus tratos ou por desprezo, nada recebe dos seus gastos10.

Relativamente à restituição dos presentes de namoro pela mulher em caso de divórcio, no nosso entender, está-se claramente perante uma sociedade tradicional machista.

Finalmente, quando do casamento nascer um bebé, a avó materna do recém-nascido estará com a jovem mãe durante um mês para a coadjuvar nos seus afazeres domésticos.

4.1.2 – Ensinamentos Tradicionais Relativos aos Rapazes

Os rapazes, tal como as raparigas, vão à escola aos 6 ou 7 anos de idade. No entanto, os rapazes aos 9 anos são obri-gados a aprender a arte de pescar com os seus pais ou tios. Es-tes são os responsáveis pela educação e instrução dos rapazes

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relativamente aos mistérios do mar, até se tornarem homens livres, capazes de se sustentarem a si próprios.

Quando um rapaz quiser namorar, manifesta o desejo ao pai ou ao tio. Apresentada a namorada e tendo os pais consentido, providenciam as condições materiais para que se faça o pedido e o consequente alambamento, exigidos pelo direito consuetudinário.

O pedido é uma carta escrita pelo jovem sob instrução do pai ou do tio, manifestando o seu desejo de contrair ma-trimónio, dirigida aos pais da jovem namorada. A carta é enviada num lenço branco dobrado nas extremidades, liga-das por pequenos alfinetes, com alguma quantia monetária ao critério do titular.

Os pais da jovem respondem com uma lista de exi-gências a cumprir pelo rapaz, que constituirão o alamba-mento.

O alambamento é o conjunto de bens materiais que o jovem é obrigado a providenciar, conforme as exigências, que é entregue aos pais da jovem pretendida. Inclui, entre outras coisas, mudas de panos e lenços, calças, camisas, uma esteira, um cachimbo, tabaco, bebidas caras, dinheiro e um determinado peixe muito difícil de se pescar.

Entretanto, o alambamento não é sinónimo de compra da rapariga; ele exprime apenas um tributo de honra aos pais da noiva, em demonstração de reconhecimento do quanto fizeram pela filha11.

Realizado o matrimónio o jovem casado torna-se livre, do ponto de vista do agregado familiar, e gere o seu lar atra-vés do rendimento da pesca com os pais ou tios.

5 – A PESCA, FACTOR DE SUSTENTAÇÃO DA VIDA DA POPULAÇÃO DA ILHA DO CABO DE LUANDA

A pesca tem uma importância capital na vida das fa-mílias ilhoas. Para um ilhéu a pesca tem duas acepções ou interpretações: uma é a pesca do ponto de vista material e outra é a pesca do ponto de vista cultural.

A pesca do ponto de vista material consiste em ser o factor de sustentação material da vida, ou seja, a base eco-nómica para o sustento das famílias através do comércio de peixe e mariscos, ao passo que a pesca do ponto de vista cultural é uma arte que comporta usos, costumes e tradi-ções ligados ao mundo marítimo. Esta última acepção é a mais relevante.

A pesca, na ilha do Cabo, é uma profissão antiga. Re-monta à Idade Média. Segundo a história de Angola, a pes-ca e a recolha do zimbo12 constituíam as principais activi-dades dos ilhéus.

5.1 – A Pesca como Factor Económico

Referimos que a ilha era o feudo do rei do Congo e que a pesca e a recolha do zimbo eram as principais activi-dades. A primeira era feita, de preferência, pelos homens, quer directamente no oceano, quer no canal entre a ilha e o continente. Nas praias “mergulhando no mar a escassos centímetros”, as mulheres enchiam as cestas de areia e de-pois separavam desta o saibro dos búzios pequenos, discer-nindo-se o macho da fêmea por ser mais fina e reluzente.

Havia zimbos em todas as praias do Congo, mas os da ilha de Luanda eram os preferidos.

Os búzios, uma vez separados, eram armazenados em “casotas” onde o seu interior apodrecia. Importa salientar que 10 zimbos valiam 1 real. Note-se que, além do zimbo, o libongo e o sal eram também espécies de moeda que circula-vam no reino do Congo.

Hodiernamente, na ilha, praticam-se dois tipos de pes-ca: a pesca de rasteira e a de fundo. A actividade de pesca é realizada das 19 horas até à manhã do dia seguinte, geral-mente em três dias consecutivos.

O pescador ilhéu, normalmente, é um indivíduo rico. Porém, há quem que não saiba gerir os recursos resultantes da pesca, esbanjando-os na realização de festas, em maus investimentos, em poligamia, etc. No entanto, pescadores há que, com alguma cultura organizativa e experiência ao nível de gestão de recursos, possuem alguma estabilidade económico-financeira. Estes pescadores, em menor número, fazem da pesca a fonte geradora de riqueza, porque estando organizados em associação, são apoiados pelo Estado, ce-dendo-lhes estes barcos, peças sobresselentes e dinheiro para posterior pagamento por prestações. Diga-se, em abono da verdade, que esses são pequenos empresários.

Entretanto, há uma classe de pescadores não organiza-dos que desenvolvem a actividade de pesca a custo próprio, sem apoio do Estado, fazendo da pesca a fonte de subsistên-cia, sem perspectiva futura.

Contudo, na ilha, a pesca é uma actividade familiar. Passa de geração em geração. Hoje alguns filhos da ilha são tripulantes de barcos modernos e de navios comerciais e militares no país.

5.2 – Importância Cultural da Pesca

Importa salientar que a pesca não só tem valor econó-mico mas também cultural.

A realização da pesca na ilha obedece a uma série de rituais. Prova disso é que, antes de sair para o mar, os pes-cadores aproximam-se da beira-mar, lavam os braços com a sua água, sorvem um pouco do líquido para não violarem o respeito devido aos espíritos do mar e não o invadirem sem antes reiterar a sua submissão.

Quando a pesca escasseia fruto da subida da maré, são realizados rituais para acalmar os espíritos do mar e restabe-lecer a normalidade. Desses rituais destacamos os praticados na Festa da Ilha do Cabo, que adiante descreveremos.

6 – AS GRANDES E PRINCIPAIS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS DA POPULAÇÃO DA ILHA DO CABO

A cultura da população da ilha do Cabo manifesta-se nos usos, costumes e tradições que envolvem o dia-a-dia dos habitantes locais.

No entanto, dos incomensuráveis rituais que caracteri-zam, de forma peculiar, a cultura dos ilhéus, achamos con-veniente proceder a uma abordagem concisa e clara daqueles que são principais, realizados de forma popular e que têm que ver efectiva e essencialmente com o mar, dado o tema que nos propomos desenvolver.

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6.1 – A Festa da Ilha do Cabo

A Festa da Ilha do Cabo, geralmente denominada Festa da Ilha, localmente designada Festa do Kakulu ou Kianda13, é uma grande cerimónia popular e cultural de carácter tra-dicional. Realiza-se à beira-mar, durante oito dias consecu-tivos, em Setembro de cada ano.

É organizada pela autoridade tradicional da respec-tiva ilha, o soba grande, sob conselho especial de um es-critor e deputado, coadjuvado por um ancião curandeiro da ilha e por alguns responsáveis do governo provincial de Luanda.

Da festa faz parte toda a população da ilha em espe-cial e, em geral, toda a população da província de Luanda. Também participam na festa os anciões convidados, repre-sentantes das restantes províncias do litoral, nomeadamente Cabinda, Zaire, Bengo, Benguela e Namibe.

A Festa da ilha, ou da Kianda, é uma cerimónia de ofe-rendas ao mar (kianda). Tem como objectivo pedir protec-ção da vida das famílias ilhoas perante calamidades naturais (marés) e endemias e pedir que haja produção e produtivi-dade pesqueiras na ilha.

A festa, no primeiro dia, começa à meia-noite. Des-ta hora até de manhã, fazem parte dela, exclusivamente, o soba grande, os anciões e o curandeiro da ilha e os anciões convidados. Esta exclusividade traduz-se na realização, na-quele período, de rituais de carácter secreto, ou seja, rituais exorcistas e ocultistas.

No dia seguinte, de manhã, a população em geral poderá livremente participar da festa, até ao último dia.

Ao longo da praia, desde a barra do Kwanza até ao fa-rol da ilha, estendem-se mesas com alimentos diversifica-dos, bebidas (fundamentalmente os vinhos de qualidade) e outros produtos próprios para ambientes festivos.

A celebração é um exorcismo para acalmar os desejos de Kianda, caprichosa e insaciável, e que se for agracia-da dorme calma e por muito tempo. Dança-se, canta-se, come-se e atira-se ao mar o melhor vinho e as melhores carnes. Sacrificam-se animais, que se esvaem em san-gue sobre a areia. Oferecem-se-lhe flores e frutos para acalmar a sua sede e o seu apetite, a fim de que Kianda durma, saciada e ébria, evitando-se assim a kalema14, a onda gigante que arrasa a costa e que é a desgraça dos pescadores.

A festa também é uma cerimónia de iniciação para os jovens e para as crianças. O próprio facto de se querer ser pescador é um desafio à senhora dos mares, que implica um gesto de submissão permanente que deve ser recorda-do todos os dias.

Portanto, importa salientar que os rituais levados a cabo nesta festa mostram claramente o lado mitológico da cultura da população da ilha do Cabo de Luanda.

6.2 – A Festa da Nossa Senhora do Cabo

Após a realização da Festa da Kianda, em Setembro, consequentemente, são feitos os preparativos para a Festa da Nossa Senhora do Cabo, a ter lugar, geralmente, na se-gunda semana do mês de Novembro.

Há diferenças entre a primeira festa e esta última. A primeira é o facto de a Festa da Kianda ser de carácter tra-dicional e a de Nossa Senhora ser de carácter religioso e que nesta não há lugar ao ocultismo e exorcismo que são o fundamento da Festa da Kianda. A segunda diferença é que os participantes da Festa da Nossa Senhora do Cabo são, es-sencialmente, todos habitantes locais. Importa reiterar que o fundamental na Festa da Nossa Senhora do Cabo é a procis-são. Esta realiza-se no mar com barcos e traineiras.

A procissão percorre todo o litoral da ilha do Cabo e acaba no interior da mesma com o culto na Igreja da Nossa Senhora do Cabo.

6.3 – O Carnaval

O Carnaval é uma festa cultural popular. Realiza-se em Fevereiro todos os anos.

A nível da província de Luanda, o Carnaval tem tido lugar na avenida marginal, realizado através de desfiles de grupos carnavalescos dos municípios integrantes. Tem sido uma grande festa popular, que atrai todos os cidadãos para o local do evento, sem olvidar que inúmeras vezes o grupo carnavalesco União Mundo da Ilha do Cabo se consagrou vencedor do evento. Por isso, tem sido e é um grupo de re-ferência obrigatória na história do Carnaval luandense.

Nas comemorações do Carnaval, o grupo carnavalesco em destaque tem vindo a exibir rituais folclóricos e alegó-ricos que simbolizam, de certo modo, o mundo marítimo, essencialmente a pesca, razão pela qual o grupo é digno de respeito e consideração na sociedade luandense.

6.4 – A Quarta-Feira das Mabangas

A Quarta-Feira das Mabangas15 é o nome que se dá à festa tradicional que tem sido realizada na praia, numa quar-ta-feira, coincidindo com a quarta-feira de Cinzas no calen-dário litúrgico. Tem tido lugar depois do Carnaval.

A Festa das Mabangas tem os mesmos propósitos que a Festa da Kianda. Porém não é alargada, porque se come-mora num só dia e os participantes são os habitantes da ilha, exclusivamente.

7 – CONCLUSÃO

Importa salientar que a história da cultura do povo an-golano carece, obviamente, de uma bibliografia, fruto do fraco desenvolvimento humano, ou seja, do alto nível de iliteracia. No entanto, é compreensível se tivermos em con-ta os contextos políticos que o país viveu.

O país esteve mergulhado numa conflitualidade civil ar-mada por cerca de 30 anos. Esta realidade foi a principal causa do grave adiamento do desenvolvimento humano do país.

Por isso, até à presente data, as fontes da nossa história cultural são orais e transmitem-se de geração em geração.

Por esta razão, o nosso trabalho apresenta um fraco nível de cientificidade, tanto na sua estruturação como na fundamentação dos assuntos expostos.

Entretanto, com a nossa humildade e simplicidade, po-demos afirmar que atingimos o objectivo que nos propuse-

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A INFLUÊNCIA DO MAR NA CULTURA DA POPULAÇÃO DE LUANDA 427

JORNADAS DO MAR 2004 – “O MAR: UM OCEANO DE OPORTUNIDADES”

mos, que é de proceder a uma abordagem sobre a influência que o mar tem na cultura da população de Luanda.

BIBLIOGRAFIA

AMARAL, Ilídio do, O Consulado de Paulo Dias de Novais. Angola no Último Quartel do Século XVI e Primeiro do Século XVII, Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, 2000.RIBAS, Óscar, Temas da Vida Angolana e Suas Incidências, Luanda, Edi-ções Caxinde, 2002. MENDILUCE, José Maria, O Mistério da Ilha de Luanda, Luanda Edi-tora, 2002.

Outras fontes consultadas:

Manuais de história de Angola do ensino de base.Manuais de geografia de Angola do ensino de base.Conversas com as autoridades tradicionais da ilha do Cabo de Luanda.

Notas1 Censo feito em 1992, aquando das primeiras eleições.2 Na altura chamava-se Loanda.3 Actualmente é Museu das Forças Armadas.4 AMARAL, Ilídio do, O Consulado de Paulo Dias de Novais, Lisboa, Ins-tituto de Investigação Científica Tropical, 2000, p. 99.5 Soba grande da ilha do Cabo de Luanda, detentor de poderes administra-tivos tradicionais.6 Povos guerreiros do centro de África.7 Quarto onde a jovem permanecerá sob controlo das suas tias.8 RIBAS, Óscar, Temas da Vida Angolana e Suas Incidências, Luanda, Edições Chá de Caxinde, 2002, p. 35.9 Idem, p. 35.10 Ibidem.11 Ibidem, p. 33.12 Era uma espécie de moeda mais utilizada no reino do Congo.13 Sereia, deusa mitológica do mar.14 Maré alta.15 Mariscos, amêijoas.