A kuna n’kinga: o lobolo como foco das representações...

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1 Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia A kuna n’kinga: o lobolo como foco das representações locais de mudança social. Guilherme Afonso Mussane Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia). Orientadora: Beatriz Alasia de Heredia Rio de Janeiro, 2009 Março de 2009

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia

A kuna n’kinga: o lobolo como foco das

representações locais de mudança social.

Guilherme Afonso Mussane

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-graduação em Sociologia e

Antropologia do Instituto de Filosofia e

Ciências Sociais da Universidade Federal do

Rio de Janeiro-UFRJ, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de

Mestre em Sociologia (com concentração em

Antropologia).

Orientadora: Beatriz Alasia de Heredia

Rio de Janeiro, 2009 Março de 2009

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Mussane,Guilherme Afonso

A Kuna N‟ kinga: O lobolo como foco das representações locais

de mudança social/Guilherme Afonso Mussane-Rio de Janeiro:

UFRJ/IFCS,2009-03-31

xi,109. : il 31 cm

Orientadora: Beatriz Alasia de Heredia

Dissertação de Mestrado-UFRJ/Programa de Pos-

graduação/IFCS, 2009-03-31

Referencia bibliografica: f 94-98

1.Lobolo 2. Tsongas 3. Fenomeno Social Total 4. Mudaça I.

Heredia, Beatriz Alasia II. Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de

Pos-graduação em Sociologia e Antropologia. III Titulo.

3

A KUNA N’KINGA: O LOBOLO COMO FOCO DAS REPRESENTAÇÕES LOCAIS DE MUDANÇA

SOCIAL

Aluno: Guilherme Afonso Mussane

Orientadora: Beatriz Alasia de Heredia

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em

Sociologia e Antropologia, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais-IFCS, da

Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em Sociologia (com concentração em

Antropologia).

Aprovada por:

_____________________________________

Presidente: Prof. Dra. Beatriz Alasia de Heredia (PPGSA/IFCS/UFRJ

______________________________________

Prof. Dr. John Comeford (CPDA/UFRRJ)

_______________________________________

Prof. Dr. Peter Fry (PPGSA/IFCS/UFRJ

Rio de Janeiro

Março de 2009

4

AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos, que de uma forma ou de outra, contribuíram para a

concretização deste trabalho, às redes de apoio que me sustentaram nesta aventura de

mestrado.

Agradeço a Professora Beatriz Heredia, minha orientadora, a oportunidade de

amadurecimento intelectual, que resultou de trabalhar sob sua orientação, sua amizade,

compreensão e confiança. Estou muito grato pela forma como aceitou me receber depois

dos nossos contactos por correspondência eletrônica, apesar de nossa separação por

milhares de milhas.

Não posso deixar de mencionar a importância dos professores do Departamento

de Antropologia e Arqueologia da Universidade Eduardo Mondlane, na minha formação.

Ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia nas figuras de sua

coordenação, seus professores, secretaria e biblioteca. Aos meus colegas agradeço a

camaradagem com que me trataram no decurso do mestrado.

Agradeço também aos imprescindíveis recursos financeiros da Ford Fundation, sob a

forma de bolsa de estudos e do trabalho de campo e a amizade e profissionalismo da Dra.

Célia Diniz.

Sou grato às famílias de N‟kinga e seus amigos e vizinhos que generosamente

deixaram-me compartilhar suas vivências. Muito mais que “informantes”, anfitriões, que

partilharam sua intimidade, seu afeto, sem os quais não seria possível a realização deste

trabalho.

Sou grato ao Dr. Calisto Bias e ao Ministério da Agricultura de Moçambique pela

ajuda concedida durante o período do mestrado.

À minha esposa Angelina Muzima, aos meus filhos, Júlio César Mussane, Ivan

Guilherme Mussane e Denise de Eugenia Mussane agradeço a paciência com que

aguardaram a presença plena do marido e pai para a continuidade de nossos sonhos

partilhados.

Em especial agradeço aos meus pais (in memoriam) ao meu irmão Henrique

Mussane, à toda família, que me deram apoio imprescindível, para a realização deste meu

projeto.

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A todos eles vai o meu khanimambo, obrigado.

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Resumo

Aluno:Guilherme Afonso Mussane

Orientadora: Beatriz Alasia de Heredia

Resumo da dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em

Sociologia e Antropologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, como parte

dos requisitos necessários a obtenção do título de Mestre em Sociologia (com

concentração em Antropologia)

O lobolo ou lovolo, praticado no Sul de Moçambique, é uma forma tradicional de aliança

matrimonial dos tsonga. Consiste na oferta de uma compensação pelo grupo do noivo a

um outro grupo, o da noiva, para que este ultimo reestabeleça o equilíbrio entre as

famílias que compõem o clã, atraves da aquisição de um novo membro, uma mulher,

(Junod, 1996)

Nesta pesquisa explora-se a teoria de “fenômeno social total” de Mauss, (1974), e faz-

se uma abordagem antropológica das representações locais de mudança social a partir

das diversas teias de relações que se iniciam com a prática do lobolo, tendo como base

uma analise de dados empíricos e da leitura da obra Usos e Costumes dos Bantu,

Henri.A.Junod (1996).

Apresentamos o lovolo em periodos diferentes caracterizados por distintos fatores

históricos, políticos, econômicos e sociais diretamente ligados às representações locais da

mudança social.

Para a comparação e interpretação das diversas fases desta forma tradicional de aliança

matrimonial tsonga, fizemos uma pesquisa empírica na comunidade de N‟kinga, no

distrito de Matutuine, Província de Maputo, no Sul de Moçambique.

O presente estudo mostra que, com o tempo, houve mudanças nas formas de

compensação no lobolo. Estas mudanças estão relacionadas com o aumento e as formas

dos valores materiais que ao longo do tempo foram sendo introduzidas na prática daquele

fenômeno social. No entanto, estas mudanças, não parecem ter alterado o estatuto do

lobolo, ou seja, não parecem ter tido um efeito no valor e no estatuto do lobolo.

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Pode-se concluir que seja qual for o valor que a “transação” do lobolo represente, do

ponto de vista antropológico deve-se reconhecer que a sua maior peculiaridade está no

seu valor simbólico como fenômeno cultural.

Palavras-chave: Lobolo; Tsongas; Fenômeno Social Total, Mudança.

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Abstract

Abstract da dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em

Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade

Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção

do título de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia)

The lobolo or lovolo, practiced in the south of Mozambique, is a traditional form

of the Tsonga‟s matrimonial alliance. It consists of an offer of compensation from the

groom‟s group to another group, the bride‟s, so that the last one reestablishes the

equilibrium within the families that composes the clan, through the „acquisition‟ of a new

member, a woman, (Junod, 1944).

This research explores the Total Social Phenomena, Mauss (1974), and uses an

anthropological approach of the local representation of social change from various chains

of relationships which start with the practice of lobolo, having as a basis an analysis of

empirical data and the research Usos e Costumes dos Bantu, Henri.A. Junod (1996).

We present the lobolo in different periods characterized by distinct historical, political,

economical and social factors directly linked to the local representations of the social

change. For comparison and interpretation of the various phases of this tsonga traditional

matrimonial alliance, we carried out an empirical research in Kinga community, located

in Matutuine District, Maputo Province, and South of Mozambique.

The present study showed that, along the time, there were changes in the forms of

compensation of lobolo. These changes are related to the increased tangible values that

have been introduced along the time in the practice of this social phenomenon. Besides

the changes, they do not seem to have altered the statute of lobolo, this is, they do not

seem to have valued more the the lobolo statute.

It can be concluded that, whatever the changes in the value of the lobolo‟s transaction

are, it is necessary to recognize the main symbolic significance of this social phenomena.

Keywords: Lobolo; Tsongas; Total Social Phenomena; Change

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Siglas

IFCS-Instituto de Filosofia e Ciências Sociais

MN-Museu nacional

UFRJ-Universidade Federal do Rio de Janeiro

RENAMO-Resistência Nacional Moçambicana

IUCN-União Internacional de Conservação da Natureza

FRELIMO- Frente de Libertação de Moçambique

ONU-Organização das Nações Unidas

MAE- Ministério da Administração Estatal

INE- Instituto Nacional de Estatística

REM- Reserva Especial de Maputo

IDEL- Iniciativa Espacial do Desenvolvimento dos Libombos

SADC-Comunidade de Desenvolvimento da África Austral

GD- Grupo Dinamizador

EP- Escola Primária

PPCS- Programa de Participação Comunitária em Saúde

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INDICE

CAPÍTULO 1- Sobre os Tsongas ..................................................................................... 19

1.1 Organização social .................................................................................................. 20

1.2. Atividades econômicas .......................................................................................... 23

1.3. Posse da terra e herança ........................................................................................ 25

1.4. Os ritos de iniciação ............................................................................................... 26

CAPÍTULO 2- Mudanças ................................................................................................. 29

2.1 Mudanças causadas pelo colonialismo ................................................................... 29

2.2. Sociedade tradicional e o socialismo ..................................................................... 33

CAPÍTULO 3 - N‟kinga ................................................................................................... 39

3.1. Aspetos geográficos e econômicos de N‟kinga ..................................................... 39

3.2. A vida cotidiana ..................................................................................................... 44

3.3. Estrutura da família ................................................................................................ 51

CAPÍTULO 4 - O lobolo .................................................................................................. 54

4.1. Kugangisa, namoro ................................................................................................ 54

4.2. O lobolo “como era” .............................................................................................. 56

4.3. Os tabus dos rhongas ............................................................................................. 58

4.4. A festa do lobolo .................................................................................................... 59

4.5 Sistema de parentesco rhonga ................................................................................. 62

4.6. O lobolo como troca e seu significado ................................................................... 66

CAPÍTULO 5 - O lobolo “como se tornou” ..................................................................... 69

5. 1. Gangisar, namorar hoje ......................................................................................... 69

5.2. O lobolo de Marília Nhaca ..................................................................................... 76

5.3. O lobolo da Sara N‟gumende ................................................................................. 82

5.4. As lições do lobolo de hoje .................................................................................... 85

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 89

REFERÊNCIA BIBLIOGRAFICA .................................................................................. 95

GLOSSÁRIO .................................................................................................................. 100

ANEXOS ........................................................................................................................ 103

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INTRODUÇÃO

[...] Para compreender o processo de mudança, é

necessário fazer um estudo diacrônico. Mas para

fazê-lo devemos aprender primeiro tudo o que for

possível sobre como o sistema funcionou antes da

ocorrência das mudanças que estamos

investigando. Só então podemos compreender algo

sobre as suas causas possíveis e ver alguma coisa

dos seus efeitos reais possíveis. Só quando

mudanças são encaradas como mudanças num ou

de um sistema operante é que podem ser

compreendidas. (Radcliffe-Brown, 1973, p.62)

O tema escolhido para a presente dissertação de mestrado tem a ver com o

programa seguido no decurso do tempo em que assistimos as diversas disciplinas do

Mestrado, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais-IFCS e no Museu Nacional-MN da

Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ.

Após a integração num curso especialmente organizado para debater a

problemática teórica dos estudos de comunidade e um semestre de debate sobre as

sociedades camponesas, decidimos “penetrar as arenas comunitárias moçambicanas”

tendo como base um tema com atores socias com algumas caraterísticas próximas das

que vêm descritas na vasta literatura sobre o campesinato.

A prática da agricultura através da lavoura realizada pela família; a pobreza e o

fato de não ter controle do poder; o uso de mediadores na sua relação comercial com os

“outsiders”; a baixa tecnologia; o predominio da cultura tradicional; o modo de vida

comunitário com predominio de relações inter-familiares; a tradição oral; as tradições

religiosas imersas nas ações cerimoniais, são, entre outras, algumas características que

aparecem na literatura sobre campesinato similares as que se verificam entre os atores

sociais do nosso cenário de pesquisa que influenciaram a escolha do nosso objeto de

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estudo .(Cf. para as características aqui mencionadas Shanin, 1973; Wolf,1957;

Redfield,1969; Forster,1967 e Chayanov,1966).

Concomitantemente, os debates realizados no curso de teoria antropológica

ilucidaram-nos, que mais do que a literatura sobre o campesinato, seria Radcliffe-

Brown(1973 e 1974) o que mais elementos teóricos nos daria para a análise e

interpretaçãoe da nossa problemática.

No processo de apresentar as representações locais de mudança social, fizemos

uma interpretação na linha sociológica partindo dos fatos que servem para legitimar,

definir posições e a ação dos atores sociais, onde o passado e o presente nos servem como

pontos de apoio e referência neste exercício descritivo, comparativo e dinâmico.

O lobolo ou lovolo é um costume matrimonial em que o grupo do noivo leva uma

compensação a outro grupo, o da noiva, para restabelecer o equilíbrio entre as famílias

que compõem o clã. O noivo e o seu grupo adquirem, desta forma, um novo membro

(mulher) e, se sentido diminuído o outro grupo pede uma compensação para se

reconstituir pela “aquisição” de outra mulher. Segundo Junod (1996) somente esta

concepção coletiva explica este fato.

Escolhemos o lobolo como foco de representações de mudanças locais porque ele

institui o sistema de parentesco e nos apresenta desta forma, um conjunto complexo de

normas, de práticas e de padrões de comportamento entre os parentes. A pesquisa

empírica mostrou-nos que as representações de mudança observadas pelos diversos atores

sociais locais, estão diretamente ligadas as alterações que se têm vindo a operar no ethos

da sociedade tsonga.

Percebemos isso quando, por exemplo o régulo nos disse”: [...] Hoje as pessoas

já não respeitam a tradição. Olham para os velhos como se fossem lixo[...].

Na sociedade tsonga um homem deve respeitar especialmente todos os homens do

grupo etário e de seu pai e suas respetivas mulheres e obedecer certas regras de etiqueta

na sua relação com outras pessoas da mesma faixa etária.

A função social desta relação é evidente. A tradição transmite-se de geração em

geraçào. Para que esta tradição se mantenha tem de existir uma autoridade por detrás

dela. A autoridade reconhce-se como pertecendo aos membros da geraçào precedente e

são eles que exercem a disciplima(Radcliffr-Brown, 1973, p.142).

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A percepção de mudança dos atores locais está diretamente ligada a um

sentimento de alteração nas instituições sociais. Uma instituição social é a norma de

comportamento estabelecido que é reconhecido por um certo grupo ou classe social ao

qual pertence (Radcliffe-Brown, 1974, p.22)

O nosso cenário de pesquisa foi à região de N‟kinga1, no distrito de Matutuine, na

Província de Maputo, a Sul de Moçambique.

O eixo principal do nosso debate é o lobolo, forma tradicional do casamento

entre os rhonga, como foco das representações locais de mudança social. Para tal,

trazemos “o lobolo como era” uma “viagem” ao longo da história para mostrarmos como

é que esta instituição social funcionou na sua fase inicial. No capítulo 4 mostramos “o

lobolo como se tornou” através de dois estudos de caso.

Numa visão permeada por óculos antropológicos mostramos também, como é

que se fazia esta cerimônia, que atores e que implicações sociais tinha no dia-a-dia das

populações rhongas. Falamos especificamente dos Rhongas e não dos Tsongas um grupo

maior que inclui os Changanas, os Tsuas, os Pedis e os Nguni, descrito no capítulo 1.

Com base na diversa bibliografia por nós consultada, mostramos como é que os

ventos e eventos da história tais como a ocupação européia (colonialismo), as missões

religiosas e o trabalho migratório influenciaram este evento crucial no sistema de

casamento e parentesco dos rhongas.

A compreensão da mudança simbólica a partir da comparação e

interpretação do lobolo passa por se obter uma resposta para as seguintes perguntas:

- O que aconteceu ao longo da vasta história de Moçambique com os estruturas

tradicionais Tsonga que constituíam o suporte e garantia dos seus valores espirituais-

ligados aos antepassados-, e morais tais como a solidariedade, a harmonia e o respeito?

- Que fatores históricos influenciaram diretamente o lobolo, resultando na afetação do seu

peso simbólico nos dias de hoje?

É em volta destas perguntas que desenvolvemos a nossa pesquisa tendo como

foco a teoria de fenômeno social total de Marcel Mauss (2001) desenvolvida na obra

Ensaio sobre o Dom e a perspectiva de Radcliffe-Brown expressa nos seus textos

1 Nome fictício. N‟kinga vem da expressão zulu, a kuna kinga, que significa não há problema. Os nomes

dos informantes aqui usados são também fictícios.

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Estrutura e Função nas Sociedades Primitivas (1973) e Sistemas Políticos Africanos de

Parentesco e Casamento (1974).

A nossa principal hipótese é: Considerando que o lobolo é uma componente

importante da estrutura social tsonga, a população de N‟kinga pode estar a relacionar as

causas da mudança aos constantes abalos das suas instituições sociais.

O debate que nos propusemos fazer sobre o lobolo tem como base a obra Usos e

Costumes dos Bantu, de Henri. A. Junod (1996).

No capítulo 1 fazemos a descrição da tribo Tsonga, um grupo populacional

localizado na região Sul da África. No território moçambicano os tsongas povoaram a

região Sul, até ao Rio Save.

Nesta descrição focalizamos aspetos diretamente relacionados com o lobolo como

a organização social, as atividades econômicas incluindo a problemática da herança e os

ritos de iniciação.

O capítulo 2 é dedicado a mostrar as mudanças ocorridas desde a colonização

efetiva do Sul de Moçambique, que inicia com a derrota do Estado de Gaza, em 1895, até

à independência em 1975. Abordamos ainda o período pós-independência até o ano 2008.

Aqui mencionamos o papel da igreja, as diversas leis coloniais e o período revolucionário

que iniciou com a tomada do poder pela Frelimo. Mostramos também as mudanças

relacionadas com o conflito armado entre o governo da Frelimo e a RENAMO.

No capítulo 3 descrevemos N‟kinga, o nosso cenário de pesquisa empírica.

Mostramos os seus aspetos geográficos econômicos, a vida cotidiana, a estrutura da

família e a herança da terra.

No capítulo 4 usamos o pretérito-mais-que-perfeito e o pretérito-perfeito para

abordarmos o lobolo, descrevendo, primeiro, o namoro. Pormenorizamos o lobolo desde

o início dos trabalhos etnográficos de Junod entre 1898 a 1933. Abordamos os tabus dos

rhongas, a festa do lobolo, o sistema de parentesco e o lobolo como troca e o seu

significado. E usamos o presente do indicativo, para fazer a interpretação dos dados a luz

das teorias antropológicas.

No capítulo 4, descrevemos o lobolo hoje, ou seja, no período de 1975 a 2008.

Mostramos pormenores de duas cerimônias de lobolo que assistimos em N‟kinga

destacando as suas diferenças simbólicas.

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O estudo mostrou-nos que o peso da mudança é mais simbólico, ou seja, cultural

do que material, pois a troca das enxadas pelo gado e deste pelas libras esterlinas ou pelo

metical foi sempre equivalente. Não é ao nível de objetos físicos que esta instituição

mudou, mas ao nível do seu significado. E esta mudança vem se refletindo na sociedade,

sobretudo no período posterior a independência, período que como mostraremos no

capítulo 2, o peso da tradição foi preterido.

Em conversa com várias pessoas percebemos que o lobolo, forma tradicional de

casamento rhonga, já tinha deixado de ser freqüente entre os habitantes desta região. São

vários os fatores apontados como causa disso e, entre eles muitos apontaram a carestia de

vida, o enfraquecimento da tradição, e a migração interna e externa provocadas pela

guerra. Os mais velhos apontavam o dedo para as políticas definidas pelo governo no

período pós-independência como causa deste e outras mudanças havidas na vida da

comunidade.

Em conversa com a vovó Wantembe, 62 anos, uma anciã muito respeitada no

local, soubemos que houve aumento no valor2 e uma certa “flexibilização” nas prestações

do lobolo. Esta situação- segundo ela-, deveu-se ao aumento do custo de vida.

Antigamente, entenda-se tradicionalmente, o lobolo era feito através de gado

bovino por ser um bem simbólico e de prestígio (cf, Costa, 2005). O número de cabeças

envolvida na “transação” dependia das “negociações” entre as duas famílias.

Atualmente aceitam-se valores monetários, sujeitos também a “negociação”

consoante as possibilidades econômicas da família do futuro marido e do nível de formação

acadêmica e profissional da rapariga. Presentemente muitos dos bens transacionados

(roupa, anel e dinheiro) ainda conservam essa conotação. O estatuto de casamento e de

maternidade, ainda constitui um fator de grande peso cultural e social nesta comunidade.

A idéia de fazer esta dissertação com foco no lobolo surgiu das longas conversas

com vários atores sociais no distrito de Matutuine. Começou pela constante menção a

mudança por parte de muitos idosos que conhecemos na localidade Djavula, no longícuo

ano de 1999, quando participávamos num projeto de saúde comunitária, numa vasta

equipe multidisciplinar. Várias vezes ouvimo-los a dizer: “a kuna kinga”, uma expressão

2 É difícil fazer uma análise “objetiva” do “custo” do lobolo (cf. Costa, 2005), dado que se trata de uma

prestação matrimonial que envolve um sistema de trocas complexo onde a “lógica da dádiva” se articula

com a “lógica do mercado”. Por ser um ato no qual coexistem valores simbólicos e monetários.

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de origem zulu, que significa não há problemas. E este linguajar era sempre usado

quando nos encontrávamos em ambientes de conversa animada com pessoas que se

conheciam e que se achavam dentro das regras normais de relacionamento. E quando

perguntávamos o porquê ou qual era a necessidade de usar sempre esta expressão

justificavam-se referindo-se a comportamentos ligadas as formas de aliança entre as

pessoas.

E foi nessa procura de conhecer os wazinguires através de “a kuna kinga” que

decidimos fazer um estudo antropológico da comunidade aqui batizada por N‟kinga, uma

região situada entre os rios Maputo e Futi, na Província de Maputo, no Sul de

Moçambique.

Nesta pesquisa usamos um método. Nas nossas consultas bibliográficas, a

literatura sobre comunidades rurais e sobre o campesinato - com base nos autores acima

referidos-, foi importantíssima para o estudo. Para abordar o lobolo, o texto Usos e

Costumes dos Bantu (1996), de Henri.A.Junod, em dois volumes foi uma das nossas

principais fontes bibliográficas.

Revistamos as obras Uma teoria científica da cultura (1975) e Argonautas do

Pacífico Ocidental (1978) de Malinowski para apurarmos o conceito de cultura e

percebermos ainda mais o papel da família e do indivíduo e as suas funções sociais

A perspectiva de Radcliffe-Brown expressa nos seus textos Estrutura e Função

nas Sociedades Primitivas (1973) e Sistemas Políticos Africanos de Parentesco e

Casamento (1974) trouxe para este trabalho, contribuições significativas para a

compreensão do parentesco tsonga. Continuando às técnicas de observação inauguradas

por Malinowski, este autor apresenta um conjunto rigoroso de conceitos analíticos que nos

foram úteis no presente estudo.

Este autor mostra que para compreender os mecanismos da coesão social é

preciso observar a estrutura social. Compreendendo o sistema social como sistema de

relações reais de encadeamento de indivíduos que ocupam papeis sociais. As normas que

regem as relações sociais explicitam, a seu ver, a estrutura social.

Sua percepção de parentesco é claramente estrutural, definindo-o como “sistema”,

na medida em que reúne uma amplitude de expressões da vida social: as terminologias, as

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redes de relação, o conjunto de deveres e usos associados a determinados pápeis de

parentesco, as crenças e práticas rituais envolvidas na procriação e veneração aos

ancestrais.

A nossa consulta bibliográfica incluiu as obras As Estruturas Elementares do

Parentesco (1976) e Antropologia Estrutural (1985) de Levi-Strauss, que inaugura uma

nova fase nas reflexões sobre o parentesco dando uma dimensão simbólica às relações

humanas. O foco da sua análise é a instauração da regra como marco de passagem do

estado da natureza para a cultura; de uma regra universal, a proibição do incesto.

O Ensaio sobre o Dom (1974) de Marcel Mauss, obra basilar neste estudo, deu

um salto importante nos estudos antropológicos. Este autor mostra que é na a tríade dar

recebe e retribuir que se baseiam as relações sociais.

Estas obras constituíram a nossa base bibliográfica. Foi a partir destes textos que

construímos a nossa base teórica. A isto somamos a leitura de vários textos de

antropologia, sociologia e história; ensaios sobre a Missão Suíça e sobre o lobolo e vários

outros textos relacionados com o tema ( ver referências bibliográficas).

A pesquisa empírica consistiu no trabalho de campo, observação participante e

entrevistas informais, durante os meses de Julho, Agosto e meados de Setembro de 2008.

Selecionamos vários residentes em várias localidades para captar o máximo de

reflexões sobre a vida social da comunidade. Fizemos registros no nosso diário de campo.

A escolha dos informantes não foi aleatória. Ela foi sugerida pela banca examinadora

quando fizemos a provação do projeto inicial de pesquisa.

A ênfase no cotidiano tornou-se a estratégia de grande eficácia para

reconhecermos os valores compartilhados que tornam as ações sociais possíveis.

Procuramos fazer uma descrição densa (Geertz, 1973), procurando observar e

“conjecturar” encadeamentos possíveis nas diferentes situações por nós vivenciadas. Não

nos foi fácil partilhar a intimidade dos agregados familiares. A empatia com os diversos

atores foi um processo de construção gradual. Para conseguir ter o máximo de

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informações fizemos uma lista de questões que consideramos cruciais que nortearam as

nossas conversas.

Convivemos com as famílias dos régulos Zanta, 65 anos e Madja, 57 anos; as famílias

dos pastores das igrejas Presbiteriana, Weseliana e Anglicana; passamos vários dias de

modo alternado em casa de 5 anciãos e vistamos várias vezes as barracas, as roças, as

colméias. Participamos em cerimônias fúnebres, festas familiares, rituais de invocação

dos espíritos dos antepassados e em duas cerimônias de lobolo.

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CAPÍTULO 1- Sobre os Tsonga

A descrição dos tsonga que passaremos a fazer situa-se no período de 1863 a

19463. Na generalidade, o que sucedeu neste período se prolongou até 1975, ano da

independência de Moçambique.

Moçambique é, como outros países africanos, uma miscelânea de grupos

populacionais ou étnicos: possui várias etnias com especificidades sócio-culturais

próprias, uma diversidade lingüística, diversas expressões artísticas e costumes. No seu

vasto e longo território encontramos diferentes formas de organização social, sobretudo

no que diz respeito a família, uma particularidade que se reflete nos seus diferentes

sistemas de parentesco.

Algumas destas características e diferenças alteraram-se ao longo do tempo;

outras se mantiveram, garantindo assim uma certa continuidade; outras ainda

desapareceram ou vão sendo substituídas dentro de uma descontinuidade ligada as

dinâmicas impostas pelas condições sócio-econômicas, sobretudo as migrações, as

guerras, as mutações históricas e outros eventos que se deram ao longo dos séculos. Entre

estes povos ou etnias encontramos os Tsonga. O nome tsonga está diretamente

relacionada aos estudos feitos pelo missionário e etnógrafo suíço Henri Junod (1996).

Este autor reuniu vastíssimo material etnográfico no seu livro “Usos e Costumes

dos Bantu: A Vida de uma tribo no Sul de África”, em dois volumes. Esta obra é uma

referência obrigatória nos estudos sobre os Tsonga.

Segundo Junod a tribo tsonga compõe-se dum grupo de populações estabelecidas

na costa oriental da África do Sul, desde as proximidades da baia de Santa Lúcia, na costa

do Natal, até ao rio Save, a norte. Encontram-se, pois Tsonga em quatro atuais estados do

Sul da África : Natal, Transval, Zimbábue e Moçambique.

A língua tsonga pertence ao grupo lingüístico bantu4 do sudeste de África, e é

aparentada com o sutho, do Leshoto e o zulu, da África do Sul. Todas essas línguas têm

3 Junod chegou a Moçambique no ano de 1863 e publicou a primeira versão em inglês da sua obra mais

importante, Life in South African Tribe. A tradução portuguesa de Usos e Costumes dos Bantu é publicada

em Lourenço Marques, (atual Maputo), pela Imprensa Nacional, entre 1944 e 1946(cf. Gajanigo, 2006). 4 Os bantos (grafados ainda bantu) constituem um grupo etnolingüistico localizado principalmente na

África sub-sahariana que engloba cerca de 400 subgrupos étnicos diferentes. A unidade deste grupo,

20

certos caracteres gramaticais comuns, que as distinguem dos outros grupos. Entre essas

características destaca-se o emprego de freqüentes sons laterais lh, dl, tel e rh; a

existência de sete ou oito categorias de nomes, reconhecíveis pelos prefixos que

correspondem uns aos outros nessas três línguas.

No território moçambicano, os Tsonga povoaram a região Sul, até ao rio Save.

Nele encontramos vários sub-grupos tais como os Rhonga - objeto específico do presente

estudo-, os Changanas, e os Tswas.

A regularidade na relação geográfica dos sons é muito nítida, e mostra que a

língua se desenvolveu organicamente, como uma árvore cujos ramos crescem, afastando-

se cada vez mais um dos outros, até que se formem os dialetos, cada um com os seus sons

particulares.

Teresa Cruz e Silva(1999) apud Patrick Harris(1988) enfatiza a importância do

desenvolvimento da escrita da língua vernácula para a formação de uma identidade do

grupo etno-linguistico tsonga. Severino Ngoenha (2000) analisa o “binômio Missão

suíça-tsonga”, “que se traduziu numa tsonganidade espaço-temporal que ela mesmo

criou e com a qual ela se identificava”. A região que nos serviu de cenário para o

presente trabalho, usa uma variante tsonga, o rhonga denominada xidindindi ou

chizinguire.

1.1 Organização social

Entre os Tsonga, a unidade básica de organização social era o muti (família

alargada, uma unidade que era composta por duas ou mais famílias nucleares ligadas por

laços de consangüinidade).

O chefe do muti era o munumuzana, e a sua primeira mulher era chamada

nkosikazi. O conjunto dos vários muti pertencentes a uma linhagem5 eram chamados

muganga e o seu chefe era chamado mulume. Os vários muganga que podiam pertencer

contudo, aparece de maneira mais clara no âmbito lingüístico, uma vez que essas centenas de subgrupos

têm como língua materna uma língua da família banta(cf. História de Moçambique, Vol I, UEM, 1980). 5 Segundo Radcliffe-Brown(1974), linhagem: é um grupo de parentesco que inclui somente os indivíduos

que descendem de um ancestral comum conhecido - o fundador-, que tenha vivido pelo menos há cinco ou

seis gerações.

21

ou não as várias linhagens eram chamados tiko e o seu chefe era conhecido por

nganakana

O tiko constituía a unidade política, social, econômica e religiosa mais vasta integrando

várias linhagens e vários clãs6, cujo chefe era comumente chamado hosi.

Os habitantes do muti partilhavam um território comum, eram membros derivados

de uma ascendência comum que se expandia a partir de um espaço centrais que fazia com

que todos os membros se situassem ideologicamente centrados no chefe, denominado

tatana ou hosi, visto que era o mais velho e o mais próximo representante do mais

distante ascendente.

O tiko definia os limites territoriais, políticos e religiosos da mais vasta unidade.

O hosi (chefe tradicional) governava o tiko juntamente com um conselho de

anciãos do qual faziam parte além dos seus “irmãos” mais velhos, os nganakana que

governavam outros tiko. Era uma gestão coletiva do espaço e seus recursos, claramente

delimitados por fronteiras e defendido coletivamente dos tikos externos, que eram vistos

como inimigos potenciais.

Era uma gestão coletiva que defendia o território, distribuía as terras entre todas

as linhagens, geria as pastagens e os pousos. Tal gestão assegurava ainda a organização

de atividades que exigiam a presença de grande número de homens como era o caso da

caça, da pesca e antes de 18957, da guerra.

O hosi organizava também os grandes rituais que garantiam a fertilidade sexual e

econômica do tiko, como a abundância de filhos, de chuvas e alimentos; a ordem entre as

linhagens e seus membros era garantida por julgamento de questões e conseqüentes

sanções e o funcionamento dos circuitos de alianças.

Era o hosi que aparecia como pai (tatana) que cuidava da unidade dos filhos

enquadrada pela rede de direitos e obrigações que eram devidos a parentes e era reforçada

6 Clã, é um grupo de parentes extensos que acredita ter uma origem em um ancestral fundador, que viveu

em um passado tão remoto que chega a ser mitológico. A essência do sistema de clãs é que exige de um

homem que reconheça todos os membros do clã como parentes e que se comporte adequadamente para com

eles. (Idem, 1974). 7 Em 1895 os portugueses derrotaram Ngugunhana, o imperador de Gaza, uma das organizações políticas

que se opôs a ocupação colonial. A derrota do Estado de Gaza foi um dos principais prenúncios da

colonização efetiva de Portugal ao território de Moçambique(cf História de Moçambique Vol I.

Departamento de História da Universidade Eduardo Mondlane)

22

Fig. 1. Mapa do espaço Tsonga descrito por Henri.A.Junod (1944)

23

pela vontade dos antepassados que controlavam a ordem política, econômica e a sua

cosmovisão.

Os mais velhos pela ação ritual coletiva faziam a ligação entre os vivos e os

antepassados e por ela fazia-se ligação entre as diferentes unidades: muti, muganga, tiko,

assegurando a sua interligação com os espaços de produção e reprodução. Assim o tiko

representava a unidade máxima tanto política, como religiosa e econômica.

O culto aos antepassados constituía um dos aspetos mais relevantes da sociedade

tsonga. Neste culto se celebravam os acontecimentos mais significativos da vida: a

alegria, a tristeza, a doença, as grandes secas ou outras calamidades naturais,

nascimentos, os lobolo e outros. Era a vida como um todo que era celebrada.

O poder era simultaneamente religioso e político em todos os níveis: família,

parentesco e sociedade global. O ciclo anual da vida cotidiana era marcado por grande

número de festas religiosas e sociais. Essas festas tinham muitas vezes por objeto um

grupo etário ou grupo social.

Esta fusão do sagrado e do profano conferia à organização social da sociedade

tradicional um certo globalismo, um caráter unitário. O homem da sociedade tradicional

obedecia às normas de conduta que lhe eram impostos simultaneamente em nome do

sagrado e em nome da sociedade. O poder político reivindicava o apoio dos espíritos ao

mesmo tempo em que havia o peso da tradição e do direito.

Todo esse sistema de valores, atitudes e comportamentos eram transmitidos de

geração em geração através da linhagem. Deste modo, por meio de rituais de iniciação

acentuava-se de forma gradativa a importância do culto aos ancestrais e os aspetos

ligados à educação moral e sexual, preparando assim o indivíduo para a vida adulta.

1.2. Atividades econômicas

A agricultura era a atividade principal do povo tsonga e era feita principalmente

pelas mulheres que desde os doze anos assumiam a responsabilidade da “machamba”,

roça, que passavam a cultivar em diferentes épocas do ano, por causa das irregularidades

das chuvas. E continuavam a fazer agricultura até o fim das suas vidas, além de executar

os trabalhos domésticos.

24

Os/as jovens faziam também pequenas plantações, cuidavam dos animais e

protegiam as culturas dos pássaros e dos macacos.

Os homens cuidavam da caça, da pesca, da criação de animais, da construção das

casas e dos celeiros; fabricavam ferramentas, faziam artesanato, guerras e contactos

sociais e familiares necessários para garantir ajuda dos outros, sobretudo nos períodos de

carência alimentar.

Devido às crises alimentares profundas as estratégias econômicas que o modelo

tsonga apresentava procurava assegurar os níveis mínimos de sobrevivência nos tempos

da fome.

Entre elas estava aquela que consistia em procurar multiplicar redes privilegiadas

de parceiros situados na mesma zona ou mesmo noutras mais distantes, para a troca de

bens, o que garantia o fornecimento desses bens por parte dos grupos onde havia

produção para outros dela carentes.

Essa rede permitia a cada agregado manter um nível mínimo de reserva dos

produtos alimentares, pois cada um podia, quando necessário, ter acesso a produtos que

necessitasse e que os aliados possuíssem. Isso assegurava um equilíbrio na relação

produtor/não produtor, considerando sexos e idades por meio de instituições ainda hoje

bastante vivas, possibilitando, por exemplo, aos sobrinhos (wapsana) irem residir na casa

do tio materno (malume) ou tia paterna (rhazana). Entre vizinhos, homens e mulheres

ajudavam-se mutuamente no trabalho.

Trataremos do lobolo, o casamento tradicional Tsonga, duma forma

pormenorizada nos próximos capítulos. Todavia é preciso observar que entre os tsonga a

linhagem era um meio de controle e equilíbrio e constituía a base da sociedade, além de

ser um núcleo de produção, um lugar de produção e consumo. Era através da linhagem

que o acesso a terra era garantido e regulamentado. Na linhagem os velhos e as crianças

ocupavam um lugar de estrema importância.

Os tsonga organizavam-se num sistema patrilinear e a herança dos bens era

transmitida diretamente do pai ao filho mais velho8.

8 As crianças de sexo masculino constituíam no sistema patrilinear o elemento mais importante. Elas

tinham a missão de velar pelos bens da família e especialmente dos pais, em caso de velhice e doença. Em

caso de morte do pai, o filho mais velho era o herdeiro e não saia da aldeia paterna, de modo a continuar

garantindo a assistência à família.(Op.cit, 1996).

25

O enlace matrimonial era considerado uma troca de serviços entre duas clãs

diferentes. Uma família, a da mulher, devia ser compensada através de bens de valor-o

chamado lobolo.

Entre os tsonga a mãe era geralmente reconhecida pelo papel de reprodutora e era

por isso que os filhos eram desejados, mas quem era o esteio econômico da família eram

as mulheres e as suas filhas. A mulher era comparada, na simbologia das sociedades

bantu em geral, com a terra, dado que ambas produziam a vida.

Era comum encontrar pelos caminhos das aldeias mulheres carregando um filho

as costas, segurando mais dois pelas mãos, levando outro na barriga e uma caixa ou lata

na cabeça.

1.3. Posse da terra e herança

Entre os tsonga acreditava-se que a ocupação indevida ou ilegal da terra podia ser

sujeita à punição dos espíritos dos antepassados, ou seja, dos “donos” legítimos da terra

em causa.

Na morte do marido a terra era herdada exclusivamente aos membros da família

do sexo masculino. O controle das terras do muti, assim como os bens e as obrigações do

defunto, ficavam sob custódia e responsabilidade do filho primogênito, mas de forma

nenhuma podia desvinculá-la da família, nem podia alienar ou ceder, ainda que

temporariamente, sem consultar os seus pares (tios e primos).

Era com base nesta regra de ouro que a família garantia a estabilidade da sua

porção de terra usando todo o tipo de ameaças relacionadas com os espíritos e a

feitiçaria9 como medida preventiva.

Uma das medidas preventivas eram os ritos de purificação após a morte do

anterior “dono”. Estes ritos tinham por finalidade objetiva prevenir o uso “devido” da

terra em função dos interesses de reprodução da família. A purificação era uma limpeza

temporária dos espíritos “maus”, que a qualquer momento podiam regressar caso não

fossem cumpridas as regras estabelecidas. Os ritos de purificação eram momentos

9 Feiticeiros são seres humanos que preferem viver individualística e egoisticamente, recusando cumprir as

obrigações devidas ao parentesco, ao clã e à aldeia. (Op.cit, 1996)

26

simbólicos relacionados com o acesso e a preservação dos recursos que se perdem na

memória dos séculos, deles dependia o presente e o futuro do muti [Feliciano, 1998].

A seguir vamos abordar uma importante componente social dos tsonga: Os ritos

de iniciação que consistiam em diversos rituais de transformação do indivíduo em pessoa

através de um longo processo de socialização.

1.4. Os ritos10

de iniciação

A escola de circuncisão (ngoma) tinha lugar de quatro em quatro anos, ou de

cinco em cinco anos, e todos os rapazes dos 10 aos 16 anos eram para lá mandados pelos

pais. Quando fugissem, eram apanhados e levados à força. Os adultos não circuncidados

eram obrigados a participar no ritual.

“A ablação do prepúcio, embora não possa ter alta

significação espiritual da circuncisão judaica, parece-me

ser, sem contestações, um rito de separação, pois esta

parte do corpo representa a antiga vida desprezível da

criança, vida da qual o início emerge agora”. (cf. Junod

1996, p.89)

No mundo tsonga, o crescimento das meninas tinha como sinais o crescimento

dos seios ou a primeira menstruação.

Os ritos de iniciação constituíam o período em que as crianças eram

ensinadas/preparadas para penetrar no mundo dos adultos e poderem partilhar do

mistério, sabedoria, cultura e história dos antepassados.

10

Baseando-se em Arnold Van Gennep, através do seu livro Lês Rites de Passage, publicado em 1909,

Henri Junod dividiu os ritos em três séries que obedecem a três etapas nitidamente distintos: os ritos de

separação, os ritos de margem e os ritos de agregação.

Segundo DAMATTA (2000), os ritos de passagem foram recorrentemente interpretados a partir dos anos

60, sobretudo por Victor Turner. Podem-se discernir duas tendências interpretativas típicas dessa fase. A

primeira discute os ritos de passagem como uma resposta adaptativa obrigatória, quando os indivíduos são

obrigados a mudar de posição dentro de um sistema. Deste ângulo os ritos seriam elaborações sociais

secundárias com a função de aparar os conflitos gerados pela transição da adolescência à maturidade. Nessa

perspectiva, o foco é sempre nos jovens e naquilo que é percebido como uma arriscada transição dentro da

sociedade.

27

Poderiam assim passar a conhecer o bem e o mal e estarem preparadas para

enfrentar situações difíceis na vida, porque lhes seria ensinado a não ter medo do

sofrimento.

Os ritos de iniciação eram o verdadeiro nascimento do indivíduo como pessoa e

por isso a comunidade ficava feliz. A criança era a continuidade da comunidade e isso era

celebrado durante as noites, com comida especial, danças, contos e canções.

Os ritos de iniciação dividiam-se em três fases:

- Ritos de separação: os iniciados eram retirados da comunidade e iam viver fora do ciclo

habitual. No Sul , entre os rhonga, não era freqüente o isolamento. Quando a menina

apresentasse sinais de menstruação era mandada para a casa da avó para que ela a

orientasse;

-Ritos de margem: era o período de ensinamentos formais que ia de um a seis

meses. Esses ritos se realizavam fora daquilo que era o pulsar normal da vida cotidiana.

- Ritos de reintegração: no fim da fase anterior, as crianças eram avaliadas na sua

capacidade de estarem preparadas para a vida adulta. Simbolicamente queimava-se o

acampamento, as roupas e tudo que tivesse vestígios desse período. As meninas também

faziam o mesmo com as suas roupas. O dia da integração na sua comunidade era

comemorado com festa na aldeia e na família.

Para a aldeia e para a família, o jovem e a jovem passavam a ser considerado

adulto (alguns rapazes com 10 anos e as meninas com 12 anos).

Depois de passar pelos ritos de iniciação os rapazes não ficavam mais na

dependência das mulheres; eram responsáveis pelas suas novas amizades, passavam a ter

responsabilidades perante os seus irmãos mais novos e acompanhavam os pais ou as

mães no campo, passavam a participar nas cerimônias fúnebres, nas celebrações

religiosas e civis. Apesar disto muitos grupos consideravam que a confirmação do estado

de adulto era reconhecido de pleno direito pela comunidade com o nascimento do

primeiro filho.

Nos ritos de iniciação os rapazes eram ensinados deveres e virtudes que se

relacionavam com a própria pessoa, como coragem, prudência, limpeza, modéstia e

28

laboriosidade. Os segredos das relações inter-pessoais ensinados eram o amor à esposa e

aos pais sem os quais, os jovens não poderiam entrar na corrente da vida.

Ensinavam-lhes a veneração devida aos mortos e aos antepassados e o que

precisavam saber sobre a vida sexual. Tais ensinamentos eram transmitidos através de

provérbios, danças, contos morais, sendo o canto e a dança formas pedagógicas altamente

valorizadas.

No período da menstruação as meninas eram submetidas também a uma forma

sistematizada de aprendizagem. Quando não era a mestra a mentora, era a avó, a tia

paterna ou a cunhada. Não devia ser a mãe, pois se ensinava o respeito pelo marido,

pais, sogros e pessoas mais velhas, higiene em relação a menstruação; formas de

tratamento “eficaz” do marido; realização das atividades domésticas, como cuidar dos

filhos; conservação da virgindade até ao matrimonio (lobolo); período de abstinência

sexual; menstruação, gravidez, período pós-parto. Enfim, que deveriam recear e

desconfiar dos homens.

Como se pode depreender do relato acima, a mulher era preparada para ser mãe e

esposa. Ela era preparada para ser reprodutora e é por essa razão que ela era muito

valorizada na comunidade. O rapaz, por sua vez, era preparado para a vida social e

política e era-lhe ensinado uma obediência cega às autoridades.

Os ritos de iniciação tiveram uma grande importância na sociedade tradicional

tsonga, pois determinavam os valores morais e culturais de muitas gerações. A

transformação social e a supressão drástica destes ritos, iniciada com a colonização até os

nossos dias, levaram a nova geração a perder a sua referência moral e sócio-cultural e

religiosa.

É o que veremos e aprofundaremos no próximo capítulo e mais adiante, no

concernente as mudanças causadas pelo colonialismo e pelo período do socialismo em

Moçambique.

29

CAPÍTULO 2- Mudanças

2.1 Mudanças causadas pelo colonialismo

Os portugueses ocuparam o Sul de Moçambique oficialmente em 1895, depois da

derrota do Estado de Gaza, último reduto de resistência à ocupação colonial nesta região.

Sobre as mudanças que já se vislumbravam no mundo tsonga no período inicial da

ocupação efetiva de Moçambique Junod (1996) antecipou-se a observar que:

[...] a autoridade do chefe do clã diminuiu e em muitos

casos este foi deposto ou banido e a tribo ficou sem cabeça

e sem força e incapaz de se conduzir a si mesma. Um deles

dizia-me. “O nosso chefe é a floresta onde nos acolhemos.

Sem ele somos mulheres!”. Foi o que aconteceu no clã

Mpfumo, talvez o mais importante dos regulados rhongas.

O seu jovem chefe foi preso e deportado para o Este

africano e o clã desmembrou-se e uma parte se incorporou

nos Mavota ou Matsolo. Mesmo que o chefe indígena seja

mantido no poder pelos Brancos, a sua autoridade

encontra-se comprometida [...].

O regime colonial levou as populações a transformarem o seu universo sócio-

cultural ao mesmo tempo em que acrescentou o trabalho “forçado” e o cultivo obrigatório

do algodão e do arroz.

“Colonizar tornou-se sinônimo de civilizar o que por sua

vez, significava submeter compulsivamente as populações

locais através do aproveitamento da sua mão de obra. O

argumento de António Eanes podia ser traduzido no

postulado de que se a natureza é essencialmente

hierárquica, as leis, longe de pretender igualar o

30

inigualável deviam compreender a contemporização

hierárquica”.(Macagno, 2001, p.74-76)

A mulher foi obrigada a cultivar as terras dos colonos restando-lhe pouco tempo

para cultivar as suas terras (Brito, 1998), que se destinavam à subsistência da família. Isto

trouxe como conseqüência a falta de alimentos para a família e tempo reduzido para

cuidar dos filhos e da casa.

As famílias tinham por obrigação cultivar arroz na estação chuvosa (Capela,1977)

e eram ameaçadas com multas, castigos corporais e “chibalo”, o trabalho obrigatório. A

população era obrigada a pagar imposto e taxas e sofria outras penalidades.

Para evitar o trabalho forçado, muitos homens (Wuyts, 1981)começaram a

emigrar para a África do Sul onde o desenvolvimento das empresas capitalistas de minas,

em Kimberly (diamantes) e Johannesburg (ouro), e agricultura, no Natal e no Estado

Livre de Orange, lhes permitia ter trabalho remunerado.

Os filhos começaram a ficar abandonados a si mesmos. Muitas terras férteis

foram expropriadas (Oliveira, 2002), houve secas, cheias, períodos de fome e altos

impostos: se muita gente sobreviveu, foi graças ao trabalho das mulheres e ao dinheiro

que os maridos enviavam da África do Sul.

As ligações tradicionais de assistência e solidariedade com o grupo de parentesco

e a comunidade mais ampla começaram a diminuir e foram substituídas por uma

dependência do dinheiro e por uma nuclearização dos agregados familiares.

A vida na aldeia piorou bastante, sobretudo a vida das mulheres e das crianças, o

nível nutricional baixou drasticamente. A prostituição se tornou uma das formas de a

mulher ganhar dinheiro, sobretudo no Sul de Moçambique onde eram maltratadas pelas

famílias dos maridos, que se encontravam a trabalhar nas minas ou roças na África do

Sul.

As mulheres começaram a ser sexualmente exploradas pelos europeus e com a

chegada das tropas portuguesas a prostituição aumentou de forma generalizada. Antes, a

poligamia funcionava como um mecanismo de controle social e é por isso que não era

freqüente esta prática que era tradicionalmente condenada.

Quando o divórcio era muito difícil, muitas delas fugiam para as cidades com a

intenção de ganhar dinheiro suficiente para poder reembolsar o “lobolo” à família do

31

marido, sendo que a prostituição era a única oportunidade para garantir o seu sustento e

o dos filhos.

Com a colonização começou a transformação da estrutura social dos tsonga. A

autoridade tradicional (os chefes e os anciãos) não foi valorizada e aos poucos Portugal

começou a utilizar os chefes tradicionais para fins administrativos e políticos. Em

alguns casos os chefes tinham consciência disso e tentaram fazer o melhor possível para

defender a sua aldeia e a sua tribo.

Na sociedade tradicional, era o hosi (chefe da tribo) que definia os limites

territoriais. Com a colonização portuguesa foi criada uma nova estrutura que tinha como

principal função a distribuição das terras. A família tradicional perdeu também a sua

segurança em relação a terra, pois a qualquer hora o colono podia decidir e tomar terras

férteis do povo.

A religião cristã trazida para Moçambique durante o período colonial, realizava a

obra da evangelização segundo métodos tradicionais construindo escolas para as crianças

ligadas exclusivamente às missões católicas(Oliveira,2002).

Os missionários orientavam os alunos para uma catequese desenraizada da

tradição e divulgada em nível nacional, sem se preocupar com a diversidade sócio-

cultural dos vários grupos populacionais moçambicanos.

Nas instituições religiosas eram inculcados uma ideologia patriarcal e

discriminatória e o corpo dos estudantes das escolas missionárias era fundamentalmente

do sexo masculino.

Ensinava-se uma língua que não era da aldeia, tentava-se educar quem nunca

tivera necessidade de aprender. Na ânsia de alfabetizar para poder catequizar abriram-se

muitas escolas sem ter em conta a qualidade dos professores. Quando as escolas

começaram a ficar vazias, os missionários recorreram à obrigatoriedade transformando

a participação em má vontade (Cabaço,2007, apud Lundin e Machava,1995).

O Estado Novo, embora consagrando na Constituição de 1933 a liberdade de

culto, exerceu uma política hostil e discriminatória em relação às missões protestantes,

que na sua esmagadora maioria, integravam pessoal de nacionalidade não-portuguesa.

Eram criadas dificuldades burocráticas na concessão de terrenos; as missões eram

obrigadas a construir suas escolas em alvenaria; reprimiam-se os professores nativos

32

selecionando-os para o trabalho forçado e o serviço militar; proibia-se o ensino em

línguas locais tornando obrigatório o uso da língua portuguesa; destruíam-se as bíblias e

outro material religioso escrito nas línguas vernáculas; exercia-se pressão psicológica e

física sobre as crianças e seus pais para que freqüentassem as missões católicas; o elenco

das restrições prolongava-se ao extremo da intempestiva entrada nos templos de padres

católicos (que oficiavam em latim, em suas igrejas) interrompendo as cerimônias de culto

celebradas nas línguas africanas e ameaçando seu encerramento.

Teresa Cruz e Silva (1999) transcrevem, do livro de André-Daniel Clerc e

Chitlango Khambane11

, o relato de Mondlane (Chitlango Khambane) acerca das pressões

exercidas sobre os adolescentes do campo e seus pais para que freqüentassem as missões

católicas.

“A nossa língua tsonga foi enriquecida com a palavra „rusga‟que

quer dizer „caça aos alunos novos‟, uma caça que tem todas as

características de um assalto regular como a palavra portuguesa

ilustra. Dias de rusga são dias de terror para os pequenos

pastores do mato... Muitos dos rapazes apanhados nesse dia são

severamente castigados com a régua. Alguns são detidos para

obrigar os pais a apresentarem-se” (Silva, 1999, p.72)

Esta intervenção autoritária foi o que tornou mais suspeita a ação dos missionários

que passaram a ser vistos como agentes do Estado colonial.

A evangelização missionária “esqueceu-se” de ver na cultura dos povos bantu os

valores e a riqueza que possuía, tentou desprezá-la e preteri-la coercitivamente.

Quando a aculturação se tornou demasiado rápida ou forçada nasceu o fenômeno

de dualismo como havia acontecido com a evangelização na época (Silva, 1999).

Apesar da política colonial ter favorecido as mudanças entre as populações bantu,

estas não foram tão drásticas como as que aconteceram no período a seguir a

independência.

11

Clerc, A.D e Khambane, Chitlango. Chitlango, Filho do Chefe. Maputo, Cadernos Tempo, 1990.

33

2.2. Sociedade tradicional e o socialismo

Com a independência, em 1975, a maioria dos portugueses fugiu de Moçambique

levando os bens de capital que tinha. O país perdeu técnicos qualificados e trabalhadores

experientes e com um analfabetismo superior a 90 por cento da população (Brito, 1980).

O sistema de distribuição comercial desmoronou, a produção agrícola caiu. E a

grande fonte de trabalho assalariado desapareceu juntamente com o colapso do trabalho

das minas da África do Sul12

.

A FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) que herdou o país mostrou-

se incapaz de construir a nação (Dias, 1998) sem negar a história dos grupos sociais que

pretendiam trabalhar juntos por meio dos mesmos princípios morais e políticos que esta

apregoava, tais como: igualdade, fraternidade, solidariedade, autonomia, democracia,

saúde e educação para todos.

Esses ideais seduziam a qualquer pessoa, desde as minorias progressistas aos

militantes terceiro-mundistas. Tudo isto justificava a intervenção do Estado e do Partido13

Frelimo no campo.

Era o que se esperava, mas o que aconteceu foi que os dirigentes nunca se tinham

visto confrontados com a realidade complexa da diversidade sócio-cultural moçambicana

e a falta de tal perspectiva deu lugar à estratégias políticas que destruíram o “tecido

social”, alteraram as estruturas da sociedade e puseram em questão os valores

tradicionais.

Com a Frelimo houve mudanças drásticas na base da sociedade tradicional

(Lourenço,1996). Tais mudanças já tinham sido iniciadas durante a colonização, mas é

12

No período colonial os governos de Portugal e da África do Sul assinaram diversos acordos e

regulamentos da contratação da mão-de-obra moçambicana para as minas do país vizinho e sobre a

utilização do Porto de Lourenço Marques (hoje Maputo). Por causa das diferenças ideológicas trazidos pela

adesão ao modelo socialista de desenvolvimento por parte do governo da Frelimo, o regime do Apartheid

adotou duras sanções econômicas contra o governo moçambicano que afetaram entre outras áreas da

economia, a contratação de mão-de-obra moçambicana. Esta medida teve reflexos negativos na vida de

muitas famílias, sobretudo a Sul do paralelo 22, que abarca as províncias de Maputo, Gaza e

Inhambane(cf.História de Moçambique, Vol II). 13

A FRELIMO foi criada como frente de libertação no dia 25 de Junho de 1962. A sua criação foi

precedida pela UDENAMO (União Democrática Nacional de Moçambique), a UNAMI (União Nacional de

Moçambique Independente) e a MANU (Mozambique African National Union). A criação da Frelimo foi

considerada obra de Eduardo Mondlane, tido como arquiteto da unidade nacional (Ngoenha, 1999).

34

preciso compreender que tanto o colonialismo (capitalismo) e o socialismo são

fenômenos estranhos a mentalidade africana de que os moçambicanos fazem parte.

José Luís Cabaço, primeiro ministro de informação após a independência, observa

da seguinte forma a relação entre a Frelimo e o poder tradicional:

“O poder tradicional era acusado, pela Frelimo, de

representar um obstáculo à ação anticolonial e de se “opor

à ciência, à técnica e ao progresso”, preconizando meios e

práticas insuficientes para fazer frente ao poder ocupante.

A partir de então, ele foi classificado, na análise da

direção do movimento, como parte do aparelho de poder

colonial; ele representaria o poder dos colaboradores que

tinham assegurado a ligação dos ocupantes com as

populações rurais e que, por conseguinte, se tornavam

igualmente alvos da luta ideológica”.(Cabaço, 2007,

p.399).

Todo o aparelho das autoridades tradicionais14

foi abolido administrativamente e

considerado como aliado do colonialismo. No lugar do regulado foram introduzidos os

Grupos Dinamizadores15

e muitas manifestações tradicionais foram consideradas

supersticiosas e proibidas.

O papel das estruturas religiosas foi restringido às funções estritamente religiosas.

Durante os primeiros anos depois da independência as relações entre o Estado e a Igreja

foram difíceis.

14

Estrutura sócia-política pré-colonial, representada pelo régulo, que servia de mediação entre o passado e

o presente, que a população encarava como instância que representava a boa ordem moral e política e

personificava a proteção contra a injustiça, e as calamidades naturais. Outro atributo da autoridade política

do régulo estava associado à força dos seus antepassados (antepassados-deus), que representados por este

se supõe interferirem na sua governação/gestão do território. Nas cerimônias mágico-religiosas, o régulo

era a figura mais importante, era o “sacerdote” da comunidade. Assumia simultaneamente os atributos de

chefe político e religioso (Lourenço, 1996).

15

Organizações de base da Frelimo. Embora não fossem especificamente até células da Frelimo, os Grupos

Dinamizadores (GD) eram de fato guiados por orientações e por quadros daquela organização. Foi a

estrutura que a Frelimo criou para substituir o poder das autoridades tradicionais, representados pelos

Régulos(Alves, 1995).

35

A Frelimo realizou o seu III Congresso em 1977 e confirmou a opção socialista

do desenvolvimento econômico e social.

A Frelimo pretendia a transformação socialista no meio rural cuja estratégia

girava em torno de dois eixos fundamentais: na “vida coletiva” em “aldeias comunais”16

,

que eram consideradas como a “espinha dorsal” do desenvolvimento rural” , e na

coletivização da produção.

A organização do habitat dispersa com base nas famílias foi substituída pelas

aldeias comunais, o que criou mudanças de costume e hábitos sociais e culturais. Esta

política é coerente com a radicalização política da Frelimo e com a concepção ortodoxa

do desenvolvimento agrário socialista, segundo o qual, os camponeses são incapazes de

adotar técnicas modernas de produção, constituem uma forma pré-capitalista de

produção, considerados economicamente “tradicionalistas” e politicamente

conservadores17

.

O emprego e a emigração tinham decrescido.. A redução da migração foi

provocada por três razões principais: primeiro, a África do Sul diminuiu

propositadamente o recrutamento em Moçambique, compensando com trabalhadores de

outras regiões; segundo iniciou-se a reestruturação do capital mineiro com o objetivo de

reduzir as necessidades da mão-de-obra; terceiro, o governo moçambicano dificultava

administrativamente esta emigração. O discurso político não era favorável à migração.

O rendimento da maioria da população diminuiu. A ausência de meios de troca

reduzia a necessidade de dinheiro e os camponeses já não tinham necessidade de

assalariamento nas empresas públicas.

Com as mudanças, o agregado familiar foi aos poucos se reduzindo, passando por

um processo de nuclearização das famílias.

16

Era constituída por casas coletivas. Na generalidade as pessoas no campo eram coercitivamente levadas

a viver nestas aldeias, longe das suas propriedades(Casal, 1996). 17

O debate sobre o papel da pequena exploração no desenvolvimento e nos processos políticos de

diferentes naturezas é muito antigo e sem conclusões. Desde os debates do início do século XX na Rússia

teorizados por Kautsky, às experiências dos países socialistas da Ásia a partir dos meados do século

passado, existe uma imensa literatura sobre este aspecto.

No caso de Moçambique, a política agrária aplicada se aproximou às posições mais ortodoxas da teoria

marxista-leninista sobre o papel do desenvolvimento agrário, e sobre o campesinato, em particular.

36

O muti como unidade básica da produção e o tiko como unidade máxima tanto

política como econômica e religiosa foram transformados em aldeias comunais,

cooperativas de produção e machambas estatais. O poder tradicional teve que ceder o

lugar ao poder formal e todas as formas religiosas foram drasticamente negados e

rejeitados como sendo “obscurantistas” ou coisa do passado que não mais servia.

Numa pesquisa sobre a presença e a importância da possessão pelos espíritos na

sociedade moçambicana atual, Alcinda Honwana, antropóloga, transcreve as afirmações

de um chefe tradicional, numa entrevista:

“Com o fim do poder dos chefes tradicionais (...) as

pessoas deixaram de usufruir a proteção dos antepassados

e as coisas começaram a correr mal(...) Toda a vida da

comunidade ficou destruída, pois já não havia respeito

pelos velhos, respeito pelos antepassados, respeito pelas

tradições “ (Cabaço apud Honwana, 2002, p.171)

Se por um lado a luta de libertação foi vista pelos moçambicanos como legítima,

enquanto os libertava dos colonizadores, por outras razões as ações do poder, Frelimo,

não foram vistas como legitimas e isto fez com que o campo de suporte ruísse nas bases.

Uma vez retirado todo o mecanismo de controle social tradicional, apareceu a

apatia e a indiferença.

A população que vivia nos muti (aldeia) e nos tiko já não tinha os seus chefes e

suas terras. Depois foram impostos novos “chefes governamentais”, totalmente

desconhecidos e pertencentes a outros grupos étnicos. Além disso, as populações foram

arrancadas de suas terras e colocadas em outras estranhas.

As tribos e os clãs tiveram que abandonar as suas terras e prerrogativas familiares

e individuais para se dedicarem ao trabalho coletivo nos campos e nas cooperativas de

produção e machambas estatais.

A terra tem uma conotação muito profunda para os povos africanos. A terra não

só simboliza a fertilidade e a vida, mas também o local sagrado que pertenceu e onde

viveram e morreram seus antepassados. Por isso, cada membro da aldeia tem uma ligação

muito forte com a terra, não com qualquer terra, mas a dos seus antepassados. É neste

espaço que os descendentes irão morar com as suas famílias e é nela que continuamente

37

eles irão, através dos rituais, entrar em contacto com os antepassados. Se a terra é fértil é

porque os antepassados estão nela enterrados. São eles que irão garantir a abundância e a

fertilidade (Casal, 1982).

Portanto, sair da terra significa romper não apenas com a comunidade dos

antepassados, mas também a possibilidade de continuar a viver, pois a fertilidade da terra

é garantida apenas pelos antepassados. Sair da sua aldeia ou tribo significa romper com a

sua comunidade. Como conseqüência disto àqueles que durante o socialismo foram

obrigados a sair das suas terras para morarem em terras alheias se sentiram perdidos e

arrancados pelas raízes daquele espaço que lhes permitia viver.

Por outro lado, os chefes das tribos que eram obrigados a acolher novas tribos ou

pessoas não aceitavam e nem viam com bons olhos estes “intrusos”. Isto veio a criar

conflitos sócio-culturais e políticos profundos entre as várias tribos e etnias.

Tais terras tomadas aos clãs passaram a pertencer ao Estado sem que a população

soubesse como e porquê. A essa situação a população respondeu com uma atitude de não

assumir o sentimento de que pertence a nova realidade. Mais uma vez o governo não

analisou os diversos sistemas sociais, sua história e suas diferenças. Começou assim o

triste processo de alteração da estrutura social e psicológica das tribos e das pessoas que

tinham que abandonar a “sua” terra, seus antepassados e seus lugares sagrados.

Até os nomes das aldeias foram retirados, segundo uma política de retirar os

vestígios de tudo quanto era “velho”, “obscurantista” e ultrapassado, colocando em seus

lugares nomes “novos”, símbolos da “nova revolução social” do “homem novo” do

“desenvolvimento” e do “progresso”.

A supressão do chefe local (cf. Lundin, 1992), e da própria instituição da chefia,

sancionada por uma visão cosmológica que era apreendida no processo de socialização

do indivíduo e do grupo, levou a uma estagnação da instituição e do papel dos anciãos

dentro do espaço social do grupo.

Produziu-se um vazio e os anciãos sentiam-se desprezados e desvalorizados.

Alem disso, com toda esta mudança sócio-cultural, a sociedade ficou “doente” o que deu

lugar a desordem social total. E como se não fosse o suficiente, a guerra veio piorar a

situação e constituiu o “bode expiatório” para muitos dos erros do socialismo.

38

Portanto, os resultados não foram os esperados e o processo de transformação e

desenvolvimento econômico revelou-se um fracasso. Com a supressão das formas de

organização social das sociedades tradicionais (Lourenço, 1996) por meio da

perseguição e banimentos houve uma dissociação cultural violenta. Retirou-se do espetro

sócio-ideológico algo que tinha suporte e bases locais e era visto como justo pela

população local ao mesmo tempo em que se tentou substituí-lo por algo que a população

via como estranho.

Por este motivo a população sentiu-se rejeitada e começou a questionar todo o seu

universo sócio-cultural que estava ausente em hierarquias, crenças, valores, modelos em

todo o sistema político. Como reação deu-se nalguns aspetos e de maneira camuflada, um

ainda maior apego as formas tradicionais, o que levou a uma estagnação da dinâmica da

sociedade.

A guerra trouxe consigo a miséria, a fome, a deslocação forçada, o

desmoronamento das estruturas tradicionais e levou a pessoa a cometer impunemente

atos ilícitos e deixar se levar pela ganância desenfreada que não olha a meios cujo

objetivo é alcançar riqueza a qualquer preço, negando assim a sua própria identidade e

sua referência étnico-cultural.

Todavia, o tempo foi mostrando que a guerra não foi a única causa (Dias, 1992)

que alterou sócio-culturalmente o povo e as famílias moçambicanas. Os promotores da

guerra já encontraram uma sociedade enfraquecida e a guerra limitou-se a levá-la a uma

situação de miséria extrema.

A RENAMO18

, já nos finais da década de 80, procurava legitimar a guerra

apontando o regime autoritário da Frelimo, o sistema de partido único.

Feita esta descrição, vamos partir para a situação atual, ou seja, para o período de

1975 a 2008.

18

É a sigla do movimento guerrilheiro que logo após a independência começou a combater o governo.

Segundo a ONU, a guerra entre o governo e a RENAMO ceifou a vida de mais de 100 mil pessoas. Durou

16 anos e só veio a terminar com a assinatura dos acordos de paz, em Roma, em Outubro de 1992.

39

CAPÍTULO 3 - N‟kinga

3.1. Aspetos geográficos e econômicos de N‟kinga

N‟kinga é uma pequena comunidade de Matutuine, distrito situado a Sul da

Província de Maputo, capital de Moçambique com uma superfície de 7300 hectares e

com cerca de 784 residentes. Mais de 60 por cento da superfície desta região é constituída

por floresta aberta e savana arbórea. A população, na sua maioria é analfabeta, faz a

pratica da agricultura através da lavoura realizada pela família; é pobre e usa baixa

tecnologia, baseada na enxada, facão e queimadas; usa mediadores na sua relação

comercial com os “outsider”. É uma população que vive em comunidades inter-familiares

dominadas pelo costume e pela religião imersa em ações cerimônias.

40

Saindo da Catembe, deixando a Baia de Maputo e percorrendo a estrada que vai

até a zona turística da Ponta de Ouro, no distrito de Matutuine, chegamos a Salamanga,

um vilarejo situado a uma pequena distância do Rio Maputo.

No vilarejo de Salamanga, encontramos duas lojas, várias barracas de vendas, um

pequeno mercado, o posto de saúde e o posto policial. A saída para o norte há uma

pequena oficina de automóveis que serve para pequenos concertos das viaturas que

passam em direção à fronteira da Ponta de Ouro.

Num canto da estrada, um caminho que serpentea parte do matagal, que se

estende pelos dois lados da mesma, conduz-nos para o interior de uma localidade. A

alguns metros do lugar, encontra-se a ponte sobre o Rio Futi que dista cerca de 3,5 kms

de Salamanga. É este vasto espaço entre estes dois rios que constitui o cenário geográfico

do nosso estudo. Esta região é habitada por Rhongas que pela especificidade da sua

forma de falar são mais conhecidos por wazinguires19

.

Em N‟kinga há uma forte tradição de trabalho migratório, sobretudo entre os

jovens. Perto do rio Futi existe uma área que é considerada zona tampão20

da Reserva

Especial de Maputo21

(REM), contendo restos da floresta e arvoredos subtropicais bem

conservados e uma fauna bravia de menor e médio porte diversificado e com vários

efetivos animais em franco crescimento. Estes recursos naturais formam uma base para o

desenvolvimento de atividades agro-pecuárias em geral e, especialmente do ecoturismo

baseado na conservação.

Esta região é também parte integrante de um território abrangido pela Iniciativa

de Desenvolvimento Espacial dos Libombos (IDEL), um projeto de integração

19

A população local justifica esta especificidade lingüística pela predominância dos sons laterais ndi e rh.

Algumas pessoas disseram-nos que esta particularidade se deve a constante migração para os países

limítrofes, o que provoca uma natural utilização de expressões das línguas daqueles países.

20

Seara e Chicure (2005) definem zona tampão como uma “porção” territorial circunvizinha de uma zona

de proteção que forma uma faixa de transição entre a área protegida e as áreas de utilização múltiplas, com

o objetivo de controlar e reduzir os impactos decorrentes da ação humana na zona de proteção.

21

A Reserva Especial de Maputo tem 70.000 hectares onde se encontra uma variedade de espécies de

animais que incluem 62 mamíferos, 30 de anfíbios, 43 de répteis e 337 de aves, o que reflete, em si,

níveis altos de diversidade(MAE, 2005).

41

econômica regional da África Austral que inclui Moçambique, Swazilândia e África do

Sul, que visa atrair novos investimentos turísticos para esta sub-região da SADC22

.

Antes da independência, da guerra civil e da instalação do Projeto da União

Internacional da Conservação da Natureza (IUCN23

), nesta área rural, a economia

(terra) dependia dos direitos tradicionais de acesso à larga variedade de recursos naturais,

incluindo madeira, fruta silvestre, combustíveis lenhosos, plantas medicinais, materiais

de construção, etc.

No período posterior à independência as novas autoridades políticas

moçambicanas substituíram a autoridades tradicional pelos Grupos Dinamizadores (GD)

e muitas manifestações tradicionais foram consideradas supersticiosas e proibidas.

O processo de modernização política que atualmente se verifica em Moçambique

tem conferido visibilidade e nova importância à questão de relacionamento entre o Estado

e as autoridades tradicionais.

O Estado vê-se na contingência de tentar absorver as autoridades tradicionais,

procurando deste modo beneficiar simultaneamente de fatores de legitimação política

“modernos” e “tradicionais” (cf. Dias,1998). As autoridades tradicionais, por outro lado,

enquanto lutam pela manutenção do controle das populações, procuram ao mesmo tempo

apoderar-se de parte dos recursos do Estado e utilizá-los para reforçar os padrões de

dominação pessoal, baseados em redes familiares e clientelares e mantidos através da

redistribuição de riqueza e de lugares de poder.

A propósito deste assunto o régulo Madja, 57 anos, camponês, um dos

sucessores do regulado local falou:

“[...] Há uma coisa que aconteceu aqui quando chegou à

independência: o governo tirou o poder das autoridades

22

Comunidade de Desenvolvimento da África Austral. Criada em 1980, em Gaberone (Botswana).

Atualmente possui 13 membros, nomeadamente: Angola, África do Sul, Botswana, Lesotho, Malawi,

Moçambique, Madagascar, Maurícias, Swazilândia, Zimbábwe, Zâmbia, República Democrática do Congo,

Tanzânia.

23

A União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN ou World

Conservation Union, em inglês)

42

locais. Passou muito tempo sem poder tradicional. Só havia

responsáveis do partido Frelimo e secretários dos bairros e

administradores... É por isso que ficamos sem saber o que

fazer. Só agora é que se tenta ressuscitar o poder

tradicional, mas este já não tem àquela força de

antigamente. [...] Agora tentamos trabalhar com a

população. Mas o que acontece na prática é que o poder

tradicional se choca com o poder instituído após a

independência[...]”.

Como dissemos acima, a política do governo em relação as autoridades

tradicionais foi caracterizada por uma certa hostilidade. O discurso do governo dizia que

eram “inimigas” do progresso e considerava-as como peças impeditórias de progresso e

desenvolvimento. Esta forma de olhar para o regulado não coincidia com as

representações das populações locais sobre o poder tradicional.

Como podemos mostrar no capítulo 1, o papel do régulo, hosi ou tatana (pai),

como era chamado localmente, não era meramente político. Ele era o chefe do tiko, que

era a unidade política, social, econômica e religiosa. Era ele que distribuía as terras entre

todas as linhagens, geria as pastagens e pousos. Organizava os grandes rituais que eram

vistos como garante da fertilidade sexual e econômica do tiko, como a abundância de

filhos, de chuvas e alimentos; ele tinha o papel de juiz e cuidava do funcionamento dos

circuitos de aliança. É esta a representação que a comunidade tinha do régulo. É esta

ausência que é vista como mudança pelos atores sociais locais.

Em N‟kinga encontramos uma das poucos e excepcionais áreas de floresta

subtropical que continua bem conservada e com apropriado habitat de animais bravios. É

nesta área onde existem e bem conservados exemplares de espécies arbóreas já

consideradas raras e preciosas na região tais como Nulo, Xilati e Famosi.

43

A região de Matutuine24

é conhecida por albergar um número não conhecido de

plantas endêmicas (peculiares numa região) embora no caso de N‟kinga estas não tenham

qualquer estatuto formal de conservação. A floresta e a sua associada área de prática de

agricultura albergam uma avifauna especial, abundante e diversificada.

A existência da população faunística na área, incluindo elefantes, hipopótamos,

changos, nyalas e galinhas de mato, aumenta grandemente o potencial turístico desta

área.

Nesta região existe uma escola de ensino primário (EP1), que corresponde ao

ensino primário básico e uma de (EP2), ensino secundário, situada no centro do vilarejo.

Tirando alguns estabelecimentos comerciais situadas dentro do vilarejo, incluindo os

diversas barracas ali construídos, para o comércio informal, as casas se encontram

esparsas por entre as árvores e às vezes torna-se difícil localizá-las devido à altura da

vegetação que cobre a vasta planície da região. Não há nenhuma ordem na sua

disposição. Nestas terras não há registros de agrimensura.

A maior parte das casas que vimos nesta região, excetuando àquelas a que nos

referimos do vilarejo, em Moçambique são conhecidas por palhotas. São habitações

rurais precárias, construídas com uma estrutura de troncos e ramos preenchidos com

palha, sob chão de terra batida. Estas casas são redondas ou retangulares, consoante as

regiões, sendo as primeiras, como regra geral, de uma única divisão e as segundas, com

freqüência de duas divisões. Em alguns pontos do país, as paredes e o chão são revestidos

de argila seca. Estas são designadas por palhotas maticadas. O telhado é de palha e, em

algumas zonas do litoral norte, de macuti (folhas de palmeira) Em alguns lugares notam-

se casas de uma arquitetura moderna, geralmente pertencentes aos trabalhadores

emigrantes.

À frente das casas encontramos um espaço povoado de árvores, com sombras,

denominado b‟andla, que é o espaço onde se recebem os visitantes; funciona como

espaço de encontro, pois o interior das casas é mais usado para dormir e guardar as

24

Em 1996 fomos relatores do Projeto de participação Comunitária em Saúde (PPCS) em Djavula, uma

localidade situada ao longo da floresta Licuáti, no distrito de Matutuine. E, antes de iniciarmos o Mestrado

no Brasil estivemos envolvidos no Projeto “Conhecimento de Plantas e Frutas nativas comestíveis e sua

relação com a segurança alimentar e nutricional das comunidades”, uma pesquisa etnobotânica, que teve

como local de pesquisa várias localidades do distrito de Matutuine.

44

coisas. À volta das casas estão os quintais demarcados por plantas arbustivas. Nestes

espaços estão as capoeiras, os celeiros, as árvores que servem de “oficinas artesanais” e

em algumas casas encontramos latrinas. Ainda no vasto espaço exterior a volta das casas

encontramos também árvores de fruta como cajueiros, massaleiras, bananeiras,

mafureiras, canhoeiros e plantas silvestres de frutas comestíveis.

Nesta região a população usa a água do poço ou vai buscá-la diretamente nos rios Futi ou

Maputo, consoante a situação do lugar de residência.

3.2. A vida cotidiana

Na alvorada, homens e mulheres com as suas enxadas, ancinhos e facões

espalham-se pelos campos de cultivo. As famílias trabalham nas machambas25

enquanto

as crianças se dirigem para as escolas. Os locais de produção são de dimensões pequenas

e variadas. Na generalidade, pratica-se agricultura itinerante sobre as queimadas nas

zonas altas. Desenvolvem uma policultura de subsistência onde predominam o

amendoim, o milho, a mandioca, o feijão e a bata-doce, na época quente. Esta situação é

similar àquela que está descrita no livro A Morada da Vida de Beatriz Heredia (cf.

Heredia, 1979, pp 37-48).

Na época fria produzem hortícolas tais como alface, cebola, tomate, couve, alho.

Estes produtos são consumidos pelos próprios produtores. Esta atividade é antecedida

pelo desmatamento muitas vezes feito recorrendo ao dzimu26

. Muitas famílias trabalham

em parcelas de terras situadas numa das margens do Rio Futi e, outras nas margens do

Rio Maputo percorrendo uma longa distância a pé para chegar a estes locais.

A produção na zona baixa, ao longo das margens dos rios tem tido sérios

problemas devido à invasão das roças pelos hipopótamos, sobretudo na calada da noite. A

isto se acrescenta a proibição de caça por parte das autoridades da Reserva Especial de

Maputo. Esta interdição de caça tem sido uma das causas de divergências entre a

25

Nome que se dá ao roçado, nas línguas rhonga e changana, veículos de comunicação mais usada pela

população do Sul de Moçambique. 26

É a designação do mutirão, na língua local, que consiste na junção de várias pessoas para realizar

trabalhos considerados difíceis tais como: desmatamento (sobretudo a corte de árvores e arbustos), safra ou

recuperação de casas. É um trabalho gratuito. É uma das formas práticas de solidariedade entre os

habitantes desta comunidade.

45

população local e as autoridades governamentais. Como “saída” muitos populares

praticam a caça furtiva.

Há uma certa divisão sexual de trabalho que cria certas áreas exclusivas para o

homem e para a mulher. Vimos que o homem intervém na unidade de produção para

fazer àquelas atividades que exigem mais força como o desmatamento, a construção de

fornos de carvão, a caça, a pesca, a construção e controle das colméias e para fazer

contactos comerciais diretos ou com os vários intermediários provenientes de

Salamanga ou da Cidade de Maputo.

A mulher acompanha o marido em atividades de lavoura, sacha e safra, mas ela

está mais virada a casa, a unidade de consumo. Nota-se também atuação feminina

naquelas famílias que têm negócios de produtos industrias. As mulheres, sobretudo as

mais jovens, aliam o trabalho da roça a outras atividades geradoras de rendimentos ou

produtos.

As vendas são uma das tarefas em que se ocupam. Encontramo-las inseridas nos

circuitos do chamado comércio informal - designado localmente por dumba nengue-,

exercendo um leque de atividades tais como revenda de produtos “importados” da África

do Sul ou Swazilândia tais como cerveja, vinho, pilhas, lanternas, enxadas, foices, facões,

biscoitos, roupas ou ainda produtos locais como lenha ou carvão.

Muitas mulheres, sobretudo as jovens e mães solteiras deslocam-se à vizinha

África do Sul para gwevar (comprar) os produtos para revender. Esta “migração

feminina” é uma novidade recente na vida desta comunidade. As crianças freqüentam a

escola e revezam-se na ajuda aos pais consoante o seu horário escolar.

As crianças de sexo feminino, para além das suas atividades escolares ajudam as

mães a cuidar dos irmãos menores; a preparar a lenha e acender fogo; cozinhar; enxugar a

louça; lavar e arrumar a roupa; moer milho; pilar amendoim e alimentar as aves.

Os meninos acompanham os pais em atividades como alimentar os porcos,

conserto de instrumentos de trabalho como facão, ancinho e em algumas famílias que

usam tração animal, a preparar a terra para a sementeira. Estas atividades preenchem a

maioria das famílias nos dias úteis da semana, de Segunda à Sexta-feira. Os fins-de-

semana são dedicados a práticas religiosas e lazer.

46

As refeições são geralmente compostas por xima ou upsua, um prato

confeccionado com base na farinha de milho, muito similar ao angu do Brasil, arroz,

ensopados de carne de caça- obtida através da caça furtiva-, verduras, carne de galinha,

pato e cabrito, estes ensopados são conhecidos localmente por muzho. Confeccionam-se

também pratos de diversas verduras como a mboa, a ncacana, a nhangana, macofo

(couve) , timbawene (feijões) e mathapa (folhas de mandioca).

Durante o tempo em que estivemos a fazer o nosso trabalho empírico vimos

pessoas que iam as igrejas Zione, Católica, 12 Apóstolos, Weseliana, Presbiteriana27

ou

Missão Suíça, entre outras.

Tivemos oportunidade de presenciar uma festa de aniversário de uma senhora de

83 anos, na Igreja Weseliana. Tratou-se de uma oportunidade que não só serviu para

assinalar aquela data através de um ritual religioso, mas também foi um momento de

festa e reencontro entre pessoas provenientes de diversas regiões, entre familiares,

amigos e colegas de jornadas. Pelo que vimos há entre pessoas de uma certa geração28

uma consideração muito especial pelos idosos.

Cada uma das casas é habitada por indivíduos ligados entre si por laços de

parentesco: pai, mãe, e filhos solteiros. Encontramos ainda muitas famílias alargadas que

para além da família nuclear vivem com o pai ou a mãe de um dos cônjuges, netos ou

netas e sobrinhos. Os moradores de cada casa constituem um grupo doméstico: não há

trabalho assalariado e é ao mesmo tempo uma unidade de produção e consumo.

Entende-se, pois, por grupo doméstico o conjunto de indivíduos que vivem na

mesma casa e possuem uma economia doméstica comum [Heredia (1979) apud (Tepicht,

1973; Galeski, 1972)].

Nas famílias visitadas coexistem diferentes processos de formalização das uniões

conjugais que não são exclusivas entre si. Encontramos casais que formalizaram a sua

27

A igreja presbiteriana mais conhecida localmente por Missão Suíça, iniciada por missionários suíços,

entre eles, Henry Junod e a Diocese Anglicana dos Libombos eram duas principais congregações

protestantes. O impacto da sua evangelização nas populações do Sul de Moçambique resultou

essencialmente de uma longa história de migração para as minas de Transvaal e das Rodésias do Sul e do

Norte, atuais Zimbábue e Zâmbia (Cabral, 2001).

28

Apesar de suas conotações variadas, a idéia de geração implica um conjunto de mudanças que impõem

singularidades de costumes e comportamentos a determinadas gerações Daí falar-se em geração do pós-

guerra, da televisão, de 68. A geração não se refere às pessoas que compartilham a idade, mas às que

vivenciaram determinadas eventos que definem trajetórias passadas e futuras. (Debert, 1998:60).

47

união através do lobolo29

, tivemos dois casais de informantes unidos através dos

casamentos civil e muçulmano, nikai.

As diferenças estre as formas de aliança acima mencionadas consistem no

seguinte: uma é legitimada pela tradição (lobolo); o casamento civil é legalizado pelo

estado e o nikai é legitimado pela religião islâmica.

Em termos estatísticos, a maioria dos nossos informantes era de uniões não formalizadas

em termos daquelas regras consideradas normais ou “oficiais”.

Em conversa com a mamana N‟senga, 56 anos, camponesa, soubemos que há

várias designações para as uniões conjugais: Mutchado ou Mutchato, para casamento no

Registro Civil (legalizado pelo Estado); lobolo ou lovolo(legitimado pela tradição);

ukatine ou kukandza ukati, (para aquelas situações em que uma mulher vai viver com o

marido sem a legalização por parte do estado ou legitimação por parte da tradição ou da

religião); kutlhuva, que designa uma situação em que a mulher “foge” ou sai da sua casa

para ir viver em casa de um homem sem o consentimento dos pais; e humbuya que

significa amantismo(ver glossário na pág. 101).

Há muitas mulheres solteiras, viúvas e mães solteiras. Em N‟kinga as famílias

são numerosas. As formas de união que acima descrevemos estão “em crise”. Voltaremos

a este assunto no capítulo dedicado ao lobolo.

Nos locais visitados encontramos sempre as mesmas técnicas produtivas, as

mesmas formas de cooperação e auxilio mútuos, os mesmos laços de solidariedade e,

principalmente, as mesmas condições precárias de existência.

Em N‟kinga encontramos uma população pouco densa, em grande parte livre,

voltada para uma economia de subsistência. A vida comunitária se organiza sobre a base

de unidades relativamente pequenas- o grupo doméstico, formado por uma família.

Pelo que vimos à constituição dos grupos domésticos que são também grupos de

descendência (famílias extensas) evita a fragmentação da terra. Nos primeiros momentos

de casamento, os filhos constroem as suas casas nos terrenos dos pais(ver figura abaixo):

a independência dos filhos se manifesta economicamente com a separação, pelo pai, de

um pedaço de terra que o jovem casal passa a cultivar por conta própria. Este fato não

29

Trataremos pormenorizadamente deste assunto nos próximos capítulos.

48

significa uma total separação da casa principal, pois, na prática continua a haver interação

entre pais e filhos.

Esta situação tem um grande peso simbólico (Moura, 1978, pp.38-39), pois

mostra a condição de emancipação, ou seja, divide os grupos etários dos filhos em

“menores”e “crescidos ou emancipados”. É uma forma de passar o indivíduo para um

novo quadro de deveres e direitos sociais. Nestas condições, criadas pelo casamento do

filho, a produção pertence a cada uma das famílias enquanto a terra é “em comum”.

Algumas famílias ainda seguem a tradição a risca. Preferem que a a mulher

lobolada passe algum tempo morando com a família do marido- período em que a mulher

é obrigada a cozinhar para a sogra. Soubemos também através dos nossos informantes

que isto acontece pelo fato de haver necessidade de adaptar as noras aos hábitos da

família do marido ou como forma de ajudar aos pais naqueles casos em que já são muito

velhos.

A base da organização dos grupos de vizinhança é, portanto, a família . Apesar de

haver certas diferenças em algumas regiões, devido às migrações provocadas pela guerra

civil, na generalidade o grupo local consiste no agrupamento de um certo número de

famílias e as relações comunitárias se apresentam como relações interfamiliares.

49

Fig 3. Os pais cedem parte do seu terreno ao seu filho mais velho.

Em conversa sobre a vizinhança no local, o “régulo” Zanta, de 52 anos, disse-

nos:

Na generalidade as pessoas vão construir num lugar por

indicação da família.[...] Aparece alguém e diz que fui amigo ou

vizinho do seu pai.[...] Há sempre uma razão de proximidade que

impele as pessoas a procurar vizinhança com alguém que faz parte

ou esteja próximo a sua rede de parentes ou conhecidos [...].

Apesar de ter havido pressão para introduzir formas coletivas de produção,

observamos que a não ser em atividades delimitadas como o dzimu para o desmatamento,

construção de casas ou limpeza dos caminhos, o trabalho coletivo não cria laços

coletivos, mas manifesta apenas o conjunto de atividades recíprocas que unem as pessoas.

Este fato nos sugere duas vertentes explicativas, uma teórica e outra empírica. Vamos

começar pela empírica. Em Madlhadlhane, uma localidade de N‟kinga, nos terrenos

50

adjacentes a Reserva Especial de Maputo há um terreno chamado “Circulo de Interesse

da Agricultura”. É um dos nove circulos de interesse criados no âmbito do projeto do

IUCN. Neste lugar e noutros, a ideia é introduzir uma gestão coletiva das atividades que

implica a planificação e execução coletivas. Visitamos o local e constatamos que o

trabalho que ali se fazia estava muito a quem do que se pensava: as plantas estavam

raquiticas, apesar de se tratar de um local situado pero da Lagoa Piti com muitíssima

abundância de água. O responsável do grupo falou-nos de faltas constantes por parte dos

membros do grupo e mostrou-nos um semblante desanimado. Conversamos com

Fernando, 42 anos, camponês e membro do circulo.

“Não sei o que se passa.... As pessoas acordam, vão

para as sua roças familiares e só depois, quando o

sol começa a aquecer é que passam por aqui e não

fazem nada. Alguns acham que cada um devia ter o

seu espaço para produzir o que quiser, mas aqui as

coisas são feitas em grupo....”

Teoricamente sabemos, que a lógica da atividade econômica camponesa é distinta

e mesmo oposta àquelas das economias capitalistas ou socialistas, o que se deve ao

caráter familiar de produção. A família camponesa organiza a sua produção por uma

avaliação subjetiva baseada na longa experiência de trabalho da geração presente e das

anteriores. Esta realidade relatada nos estudos do campesinato também acontece em

N‟kinga.

A intensificação do trabalho na unidade familiar, ocorre sem alteração por razões

de mercado ( ou da coletividade), mas sim pela pressão interna dessa unidade e tem a ver

com o fato de o tamanho da família ser desfavoravelmente proporcional à extensão da

terra cultivada (cf. Chayanov, 1996 e Tepicht, 1973)).

Durante a pesquisa empírica observamos que o grupo local possui uma

organização fluida e seus limites não são bem determinados pelo espaço . Na dimensão

espacial, a população se organiza em grupos de vizinhança, mas há momentos em que se

agrupa em unidades maiores para atividades especiais, como aniversários, cerimônias

51

religiosas ou tradicionais (enterros, m‟palho30

) mantendo freqüentemente relações

intervicinais baseadas em laços de parentesco ou compadrio.

Apesar de ser uma comunidade rural, N‟kinga não é isolada nem auto-suficiente.

Ela depende das suas relações com o mundo exterior e da sua integração na sociedade

moçambicana. Como dissemos acima, parte da sua população pratica trabalho migratório;

o seu território situa-se numa região turística importante. É uma região que tem

conhecido um movimento de pessoas e bens que se movimenta do interior da província

para a zona turística da Ponta de Ouro em direção à fronteira com a África do Sul.

3.3. Estrutura da família

Na generalidade as famílias deste local, estruturam-se de modo muitos simples em

termos de subordinação das mulheres aos homens e dos mais novos aos mais velhos. Nas

casas onde passamos muito mais tempo, vimos que as mulheres ainda conservam o velho

habito de se ajoelhar quando se dirigem aos maridos para lhes comunicar alguma coisa ou

servir alguma refeição.

A prioridade e os acontecimentos giram em volta do pai, mulumuzana: é a ele que

se lhe servem o primeiro prato, a ele se lhe entrega as melhores partes da galinha ou do

animal da caça, ou seja, ele é o epicentro da vida da família.

A característica fundamental do grupo conjugal é, portanto a dominância paterna.

Vimos que cabia ao pai não só tomar as decisões que afetam o grupo como um todo, mas

também aquelas que se referem a cada um dos seus membros individualmente.

“O meu pai herdou este terreno dos meus avós”; “Eu lobolei com a ajuda do meu pai”;

“Meu pai é que decide sobre o destino da safra”; “ Quando tentei sorte na Jone foi meu

pai que cuidou dos meus filhos” , eram estas algumas das respostas que nos davam

quando fazíamos perguntas sobre o papel do pai nas famílias. Situações similares

encontram-se em alguns estudos sobre campesinato que debatem concepções de

juventude, ainda que não seja objetivo central. É o caso de um trabalho sobre

campesinato irlandês de Arensberg e Kimbal (1968), que é uma importante contribuição

também, para a problematização com base em corte etário. Só se tornam adultos e,

30

Ritual de invocação dos espíritos dos antepassados.

52

portanto respeitados nestas comunidades aqueles que assumem parte da propriedade da

família.

Em algumas famílias vimos que era o mulumuzana que determinava o modo de

utilização da renda e cabia a ele decidir sobre as relações inter-familiares quer se tratasse

de marcar o dzimu ou realizar uma cerimônia religiosa.

O papel dominante do marido não excluiu, na totalidade, certa autonomia da

mulher, sobretudo na esfera doméstica. Há uma certa divisão sexual do trabalho

relativamente rígida, que atribui ao grupo masculino (pai e filhos) a execução das tarefas

fora de casa, e tende a confinar os trabalhos femininos no âmbito da casa.

Os filhos homens constituem, com o pai, o elemento produtivo por excelência do

grupo doméstico. Cabe à mulher (mãe e filhas) o cuidado da casa e dos membros não

produtivos da família (crianças, velhos e inválidos), o preparo de alimentos e a limpeza

da casa. Vimos também que apesar de ser responsabilidades de cada membro da família,

é a mulher e as crianças que se ocupam dos animais do quintal( aves, porcos e cabritos).

3.4. Acesso e herança da terra

Quem chaga a esta região pode parecer estar perante uma realidade em que a terra

é um recurso abundante por causa do matagal que circunda as casas e da vasta floresta.

Nos últimos anos, novos atores têm “invadido” este território. A estrutura tradicional que

vinha vigorando antes e depois do período colonial foi preterida.

O sistema de territórios consignados que se verificava nas províncias de Maputo,

Gaza e Inhambane e em algumas regiões do centro do país dizia que quando um homem

casa a sua família tem de “pagar” o lobolo à família da mulher. O lobolo representava

não somente a garantia da transferência dos potenciais filhos de um espaço territorial para

o outro, mas também a expressão pública de que a família receptora da filha garantiria

acesso a terra para habitação, agricultura e recoleção [cf. Negrão, José, “Sistemas

Costumeiros de Terra em Moçambique, 2000]”. Atualmente, a parte jurídica é regida

pela Lei de Terras 19/97.

Com o aparecimento de sinais de modernização através dos empreendimentos que

acima referimos, a terra neste local passou a ser alvo de cobiça e passou a ser uma divisa

econômica importante. Já não é o hosi local que faz a gestão da terra. Todavia, é preciso

ressaltar que pelo direito costumeiro, em Moçambique, na região onde se situa N‟kinga a

53

herança é de pai para filho mais velho. O aparecimento de projetos de investimento nas

áreas do turismo, agricultura e pecuária mudaram as formas de acesso a terra.

A Lei de Terras estabeleceu que o direito de uso e aproveitamento da terra é

adquirido por ocupação por pessoas singulares e pelas comunidades locais, segundo

normas e práticas costumeiras que não contrariam a Constituição; criou-se a ruptura com

a prática legislativa em Moçambique e muita outros países africanos. Os sistemas de

direito consuetudinário não só foram formalmente reconhecidos como também foram

incorporados as suas dinâmicas de mutação diacrônico31

.

Feita esta descrição, no próximo capítulo passaremos a abordar o lobolo, eixo

principal do presente trabalho. Pa elucidar o processo de mudança começaremos por

mostrar como é que se fazia e o que tem acontecido nos dias de hoje.

31

Ver Boaventura de Sousa Santos (1999) sobre dinâmica histórica dos direitos consuetudinários no seu

discurso de atribuição de doutoramento Honoris Causa a Joaquim Chissano, ex-presidente de

Moçambique.

54

CAPÍTULO 4 - O lobolo32

A compreensão de qualquer aspecto da vida

social de um povo africano- econômico, político

ou religioso-, passa essencialmente por ter

conhecimentos completos do seu sistema de

parentesco e casamento.

(Radcliffe-Brown, 1974)

4.1. Kugangisa, namoro

Esta descrição está diretamente ligada ao capítulo 1, ou seja, refere-se ao período

de 1863 a 1946, que é o intervalo de tempo que marcou as pesquisas etnográficas e as

publicações de Junod. Todavia, é preciso considerar que apesar de ter sido um processo

dinâmico, algumas características dos fatos aqui narrados mantiveram-se até o ano de

1975.

Depois dos ritos de iniciação descritos no final do capítulo 1, o jovem tsonga

podia começar a pensar no seu próprio lar, para isso, tinha que “procurar” alguém para

dar os primeiros passos rumo ao lobolo.

A passagem pelos ritos da puberdade significava que o rapaz tinha atingido a

idade viril e já podia tomar parte no kugangisa, namoro. Segundo Junod, esta palavra

vem de gansa, que significa “escolha amorosa”.

Segundo este autor, o kugangisa desempenhava um grande papel na vida dos

Tsongas e eles não praticavam dois vícios muito espalhados entre muitas nações

“civilizadas”- o onanismo e a sodomia. Estes costumes eram completamente

desconhecidos na tribo tsonga antes da chegada da “civilização”33

. Havia várias maneiras

de encontrar parceiro. Ninguém ou quase ninguém ficava celibatário entre os Tsonga.

32

Para fazer a descrição do namoro, kugangisa e do “lobolo como era” recorremos a obra de Henri Junod

(1944) “Usos e Costumes dos Bantu” e a informação colhida dos nossos informantes. Esta descrição está

diretamente ligada ao teor do Capítulo 1, ou seja, refere-se ao período de 1863 a 1975. 33

Henri Junod desenvolveu as suas pesquisas no séc. XIX do milênio passado, num período em que a

etnografia era dominada pela teoria evolucionista que considerava a sociedades européia da época como o

apogeu de um processo evolucionário em que as sociedades aborígines eram tidas como exemplos “mais

55

Para exemplificar, Junod descreve como se processava o noivado, buta, no clã

mpfumu. Quando o rapaz resolvia casar vestia-se dos seus melhores ornamentos, das

suas mais preciosas peles, chamava dois ou três amigos e percorriam as aldeias à procura

duma mulher. Chegavam a praça central duma aldeia e sentavam-se à sombra,

distinguido-se o pretendente pelo cinto de peles de leopardo ou gato bravo (nsimba). “O

que querem?”- perguntavam-lhes.”Viemos ver as raparigas!”, respondiam. Nas casas elas

faziam o possível para ser atraentes.

Uma vez satisfeito, o pretendente voltava para casa e dizia aos pais: “Fulana

agrada-me”. Vão pedi-la em casamento” (kubuta). Um dos homens de idade madura da

aldeia era encarregado de ir ter com os pais da rapariga. Era recebido na palhota do pai e

desempenhava-se da sua missão, servindo-se de todos os circunlóquios que a etiqueta

exigia.

Chamavam a principal interessada, davam-lhe a conhecer que o visitante de há

dias tinha fixado a sua escolha nela e perguntavam-lhe se também ela o amava ( ou se o

queria- pois em rhonga há uma só palavra e a mesma, para exprimir estas duas noções

vizinhas: kurrhandza. A rapariga fazia um esforço de se recordar dos visitantes, descrevia

o que se lembrava de cada um e dizia: “Sim! Consinto em aceitar dele o dote” kuda

vukosi kuyene- propriamente: comer o dinheiro que vem dele.

Esta descrição mostra o caráter coletivo da aliança entre os tsonga. Nada se podia

fazer a revelia da família. Outro elemento importante que aqui ressalta é o papel dos mais

velhos. Alguma forma de respeito em relação a pessoas da geração dos pais é exigida na

maioria, senão em todas as sociedades.

Uma considerável soma de conformidade a usos estabelecidos é essencial para

uma vida social ordenada ( Radciffe-Brown,1974, p.91), e esta conformidade só pode

ser mantida se as regras tiverem alguma forma e medida atrás delas. A continuidade da

ordem social depende da transmissão, de uma geração à outra, de tradições,

conhecimentos e habilidades, de hábitos e moral, religião e gosto.

primitivos. Na mesma altura surgiu a teoria difusionista que reagiu ao evolucionismo. Privilegiava o

entendimento da natureza e da cultura, em termos da extensão de uma sociedade a outra.(cf. Wilkipédia-

dicionário livre).

56

4.2. O lobolo “como era”

O lobolo era um costume matrimonial em que o grupo do noivo levava uma

compensação a outro grupo, o da noiva, para restabelecer o equilíbrio entre as famílias

que compõem o clã. O noivo e o seu grupo adquiriam um novo membro (mulher) e, se

sentido diminuído o outro grupo pedia uma compensação para se reconstituir pela

aquisição de outra mulher. Segundo Junod, somente esta concepção coletiva explica este

fato. Deste modo à mulher lobolada34

, ainda que conservasse o seu xivongo, apelido35

(nome do seu clã paterno), tornava-se propriedade da família do marido, ou seja,

propriedade coletiva de um grupo.

É preciso salientar que os estudos de Junod se desenvolveram num período em

que na Antropologia reinava a teoria evolucionista . Para os evolucionistas o lobolo era

um ato instrumental. Ou seja, para eles kulovola significava comprar em casamento.

Lovolo ou ndrovolo ou vukosi (riqueza) era a quantia paga: os bois as enxadas ou as libras

esterlinas. . Junod usava estes verbos para designar a ação de pagar- e não para designar

a própria quantia. Dizia-se que um pai reclamava ao pretendente da filha uma certa

quantia em dinheiro.

Pesquisas antropológicas feitas em várias sociedades africanas (cf. Radcliff-

Brown, 1974), mostraram que um casamento envolve toda uma série de prestações em

dinheiro ou serviço, que se deve por lei ou costume. As prestações a que nos referimos

aqui, são todos aqueles presentes ou pagamentos de bens exigidos pelo costume, no

processo de estabelecer um casamento válido.

O lobolo não é da competência de autoridades políticas; é contraído pelo acordo

entre dos grupos de pessoas, os parentes do homem e os da mulher. É uma aliança entre

dois grupos baseada no seu interesse comum na própria união e na sua continuidade e nos

filhos que serão naturalmente, parentes de ambos os grupos.

34

Antes do lobolo existe o namoro, kugangisa. Os pais e familiares participam neste processo de escolha

daquela que será a futura esposa do filho. Entre os rhongas, todas as raparigas se casavam. Umas, porém,

mais depressa que outras. Os pretendentes preferiam as raparigas mais bonitas às feias. Os familiares

preferiam que os jovens se casassem com mulheres dispostas para trabalho e que tivessem ausência total

de feitiçaria na família. 35

Entre os rhongas a descendência é patrilinear. Designa-se assim quando o nome, a pertença a um grupo

familiar vertical e os direitos daí decorrentes são herdados por via paterna, desde que esta tenha sido

legitimada pertecendo-se assim ao mesmo grupo que o pai, o avô, e restantes ascendentes

paternos(Radcliffe-Brown, 1973).

57

Trata-se da perda de uma pessoa que foi membro de um grupo, um desfalque na

solidariedade da família. A parte mais importante do “valor” de uma mulher é a sua

capacidade de fazer filhos. Se a mulher se revelar estéril, seus parentes ou devolvem o

lobolo ou fornecem outra mulher para gerar filhos.

Toda a família do noivo participava nas cerimônias do casamento,

sobretudo, no dia da entrega do lobolo. Todo o membro masculino tinha direito a opinião

sobre os bois ou o montante a ser entregue. Caso fosse pobre ou tivesse alguma

dificuldade, os irmãos ajudavam o noivo a se preparar para o lobolo. Faziam-no em nome

do grupo. A mulher lobolada era, desta maneira, esposa potencial deles, embora não lhes

fosse permitido ter relações sexuais. Tinham o direito de recebê-la como herança em caso

da morte do marido.

Os filhos pertenciam ao pai, viviam com ele, usando o seu xivongo, apelido, e lhe

deviam- obediência: os rapazes fortificavam o grupo, e as raparigas eram “vendidas” em

casamento para beneficio dele. O direito patriarcal apoiava-se no lobolo; por isso, toda a

criança de uma mulher que não fosse lobolada pertencia a família da mãe, usava o nome

da família dela e vivia na aldeia do tio materno.

Segundo Radcliffe-Brown (1973) a explicação deste fenômeno está baseada no

fato de haver tribos africanas, onde a posição social de uma criança na estrutura social

depende da fonte dos pagamentos para o casamento da mãe.

Observado nos seus momentos iniciais, antes da extensão da modernidade através

da colonização européia, no estádio coletivo da sociedade rhonga, este costume

fortificava a família patriarcal, o direito do pai; dificultava a dissolução do casamento

porque a mulher não podia abandonar definitivamente o marido sem que o seu grupo

restituísse o valor do lobolo.

A cerimônia da união matrimonial tinha duas partes: a festa do lobolo, ou seja, a

parte relacionada com o pagamento da compensação matrimonial, que se fazia na aldeia

da noiva; e o kulhoma, chegada da noiva a aldeia do novo.

58

4.3. Os tabus36

dos rhongas

Em geral o casamento, entenda-se lobolo, era proibido entre o ego e o seu pai,

tatana , mãe, mamana, tia, rharhana, tio, malume, filha ou filho nwana, e entre irmãos,

vamakwavu. A proibição era particularmente severa do lado paterno. Isto acontecia

porque os tsongas davam maior ênfase possível ao parentesco agnático, isto é, a

descendência unilinear através dos homens. É com este grupo e seus membros que uma

pessoa tinha as suas obrigações jurídicas mais importantes(cf. Radcliffe-

Brown,1973,p.102).

O lobolo era proibido entre descendentes do mesmo avó, isto é, entre primos em

primeiro grau. Estas proibições estavam ligadas ao fato de serem vistos como sendo

pessoas do mesmo grupo clânico, mas não só. Entre os rhongas havia repulsão instintiva

em confundir e misturar vuxaka, paresntesco por consangüinidade e vukon‟wana,

parentesco por aliança. O sistema de casamento rhonga é patrilinear e tem como regra a

exogamia, que é o costume de casar (lobolar) fora do clã. O régulo Zanta disse-nos que,

por exemplo, “um Tembe não podia casar com uma Tembe, pois eram considerados

parentes clanicos”.

A propósito disto, Lévi-Strauss (1976) teve o foco da sua análise na instauração

da regra como marco de passagem do estado da natureza para a cultura, ou seja, um salto

para a regra particularmente universal: a proibição do incesto. A regra de exogamia teria,

a seu ver, a função de assegurar a permanência do grupo- pois quem não se casa com a

mãe, a irmã e a filha vê-se obrigado a casar com outras mulheres.

Lévi-Staruss abriu a possibilidade de revelar que certos sistemas de família e

casamento ( DaMata,1980, p.18) eram apenas sistemas de casamento. Neles, não era pela

descendência que se perpetuavam conjuntos de direitos, mas pelo casamento visto como

aliança ( que é de fato o casamento visto como instituição total).

Entre os rhongas o incesto e a bruxaria eram vistos como algo interligado. O

incesto era um dos tabus mais respeitados pelos rhongas. Eles achavam que o incesto era

36

Proibição convencional imposta por tradição ou costume. Aquilo que a sociedade considera como

tradição, intocável ou imutável. Segundo Racliffe-Brown(1974), o tabu tem a ver com proibições ou

evitações ritualísticas. Uma proibição ritualística é uma regra de comportamento que está ligada a uma

crença segundo a qual uma infração a essa regra resultará numa modificação indesejável do estatuto

ritualístico da pessoa que não cumpriu essa mesma regra.

59

algo que provocava danos e se submetiam a este tabu. Fazer incesto era visto como

atrevimento e desafio aos preceitos culturais. Só o bruxo é que se podia atrever a fazer

incesto. Há uma crença muito difundida em África, até hoje, de que um homem pode

obter poder possível como feiticeiro pelo intercurso incestuoso com sua mãe ou irmã. O

intercurso com uma parente distante seria pouco eficiente.

Agora vamos passar para uma descrição de um lobolo que segundo Junod,

acontecia no período anterior a colonização efetiva do Sul de Moçambique.

4.4. A festa do lobolo

A família da noiva tinha que se preparar para receber o grupo de pessoas que

iriam levar o lobolo e competia a ela preparar a bebida que se contaria que houvesse em

grande quantidade para o consumo.

Para preparar a bebida todos os parentes e amigos da rapariga se combinavam

para iniciar a operação ao mesmo tempo. Debulhavam as maçarocas de milho,

conservadas em pequenos celeiros na vizinhança das casas. Seguia-se um processo de

cozedura; até dois dias antes mandavam avisar a família do noivo para se preparar para a

cerimônia.

Esta festa era acompanhada por diversos rituais. O noivo e os amigos iam à casa

dos futuros sogros e levavam consigo uma cabra para sacrifício. Os pais do noivo não

participavam nestes rituais, delegavam alguém mais velho da família para os representar.

Antes do aparecimento da libra a “moeda” que era usada para a compra37

das mulheres,

como dissemos acima, eram as enxadas. Estas enxadas em número de quarenta ou

cinqüenta, eram levadas à cabeça dos parentes que faziam uma longa fila em direção a

aldeia da noiva.

A chegada, o grupo do noivo dramatizava uma algazarra até que os anciãos da

família anfitriã autorizassem a entrada no espaço residencial da família. As

dramatizações são maneiras cruciais de chamar a atenção para certos aspetos da

37

Junod faz uma descrição do lobolo com um tom instrumental. Ele era europeu e missionário e na época

era desta maneira que se interpretava esta forma de troca. Esta leitura virá a ter outro sentido com os

trabalhos etnográficos de Malinowski, Radcliffe-Brown e Marcel Mauss.

60

realidade social, facetas que, normalmente, estão submersas pelas rotinas, interesses e

complicações do cotidiano (cf. DaMatta, 1980, p.34)

As enxadas eram apresentadas espetadas na terra. A família da noiva conferia-as,

servia bebida aos visitantes enquanto eles se dirigiam para dentro de uma palhota para

contar as novas do dia ,kundrungulisana.

A cabra do sacrifício era degolada a porta da entrada da palhota da noiva. A futura

esposa que desaparecera momentos antes, vinha cortejada, coberta com uma grande peça

de pano para evitar que fosse vista.

Seguia-se a parte religiosa. Sentados na esteira, o noivo e a noiva agachavam-se

para ouvir o pai a dirigir o ritual. Ele comunicava aos espíritos dos antepassados ( seus

pais e seus avos) o que se estava a passar e pedia-os que abençoassem o novo casal.

Dizia-lhes que a filha ia deixar a casa para ir viver numa outra aldeia e pedia que

a dessem sorte e a acompanhassem lá onde ia morar.

Vejamos em detalhe este ato religioso:

“O pai fica de pé, atrás dos recém-casados. Olha na

direção deles, bem à sua frente, dirige-se aos deuses, isto é,

aos manes dos antepassados, e diz: “Meus pais, meus

avós( chama-os pelos nomes) ouçam! Hoje a minha filha

deixa-nos. Vai entrar na vida conjugal (wukatini). Olhem

por ela e acompanhem lá onde vai morar. Que ela também

funde uma aldeia, que tenha numerosos filhos (munykani

timbeleko), que seja feliz, sensata, justa. Que se entenda

bem (kupsalana) com àqueles com quem vai viver” ( Junod

,1996.vol I: 117)

Depois deste ato, o pai entregava a filha o astrágalo (nholololo)) da perna direita

da cabra sacrificada, para lhe dar felicidade e para sorte de fazer muitos filhos.

Depois se seguia a partida da noiva para casa do noivo(kuhloma). Se o lobolo

tivesse sido pago na totalidade, a mulher partia, no dia seguinte, para o domicilio

conjugal acompanhada pelas amigas. Os pais não deviam conservar a filha na aldeia

depois de um lobolo totalmente pago pois na tradição local isso era tabu.

Antes de se partir uma última lição era dada ao marido pelo pai da noiva:

61

“Se te demos a nossa filha,

não julgues que foi por

estarmos fartos dela

(hikolwili)”.

É preciso observar que nesta fase do lobolo, noutras regiões, a noiva ia para a

casa do noivo no próprio dia, depois da cerimônia do lobolo, levando as suas duas

esteiras, e acompanhada somente por uma rapariguita, muhekete.

Uma das peculiaridades desta região é a existência de muita gente que fazia o

trabalho migratório, como explicamos acima. Acontecia que muitas vezes que o jovem

pretendente não tinha condições totais para fazer o lobolo e ele ia trabalhar nas minas

para completá-lo. Quando regressasse, celebrava-se uma cerimônia especial, chamada

kuhlomula mutwua: tirar o espinho. Só depois disto é que se faz o xigiyana,

acompanhamento da noiva para o lar conjugal

62

4.5 Sistema38

de parentesco rhonga

Fig. 4. Este diagrama é da nossa autoria fizemo-lo para auxiliar as descrições.

Um sistema de parentesco e casamento pode ser encarado como um arranjo que

capacita pessoas para viverem juntas e cooperarem umas com as outras numa vida social

ordenada. (Radcliffe-Brown, 1973,p. 62). Um sistema de parentesco nos apresenta, desta

forma, um conjunto complexo de normas, de práticas e de padrões de comportamento

38

Uma das características comuns dos sistemas de parentesco é o reconhecimento de certas categorias, nos

quais os vários parentes de uma pessoa podem ser agrupados. A verdadeira relação social entre uma pessoa

e um parente seu, definida pelos direitos e as obrigações e pelas atitudes ou formas de comportamento

socialmente aceites, é assim fixada em maior ou menos grau pela categoria a que esse parente

pertence.(OP.Cit ,1974: 98)

63

entre parentes. Agora vamos descrever a relação social e a relação moral que existia entre

as pessoas e as normas39

de comportamento depois do lobolo.

Como se pode observar, no diagrama acima- ainda não estava em uso quando

Junod descreveu o lobolo-, fizemo-lo para facilitar ao leitor a compreensão do

parentesco por aliança. Neste estudo de caso chamaremos o parentesco pós-lobolo.

O parentesco pelo sangue é designado vuxaca. O Ego, indivíduo, chama tatana ao pai.

Esta relação implica temor e respeito. O pai é visto como guia, é o que estimula,

repreende e pune. Os filhos devem tê-lo como exemplo e lhe devem obediência absoluta.

O indivíduo chama mamana, a mãe. Têm um laço de união muito forte e terno;

manifesta-se com um amor e respeito profundos. A mãe tem ternura, timpsalo, para o

filho. Ela é o “escudo”dos filhos, defende-os em todas as circunstancias inclusive perante

o marido.

O novo laço de parentesco, ou seja, o parentesco por aliança se chama vukon‟

wana. O indivíduo trata por n‟santi, a esposa e esta, por sua vez, trata-o por nuna ou

n‟kata. Ela tem para com o marido um relacionamento que mistura respeito e medo, pois

dele se espera muitos problemas e aborrecimentos.

Nos vakon‟wana, temos o pai e a mãe da noiva. O ego tem respeito e ao mesmo

tempo um certo temor do pai da noiva. Ele é o protetor da filha e é a pessoa que com ele

digladia quando há problemas com a sua mulher. Todavia, quando há paz as suas relações

são normais e de muita aproximação e se estabelece uma confiança. A partir daí o genro

passa a tratá-lo por tatana, por extensão a relação que tem com o seu próprio pai.

O mais alto grau de respeito entre o ego e os seus vakon‟wana está entre as duas

mulheres da família: a mãe dela e a mulher do irmão.

Um dos fatores ilustrativos disto dá-se quando se encontram casualmente no

caminho:

“Se um dos dois vê vir o outro ao longe, a tempo de poder

escapar-se sem ser avistado, apressa-se se esconder e chega ao

destino dando uma grande volta, de meia milha se preciso for.

Mas se os dois estão muito perto um do outro para poderem

39

Às normas de comportamento estabelecido numa certa forma de vida social dá-se o nome de instituições.

Uma instituição é uma norma de comportamento estabelecida que é reconhecida por um certo grupo social

ou classe ao qual pertence.( Radcliffe- Brown, 1973: 22)

64

recorrer à fugida, passa-se o seguinte: o genro sai do caminho e

entra no mato que lhe fica à direta; a sogra faz o mesmo, depois

sentam-se no chão, ele cruzando as pernas à maneira dos homens,

ela sobre as pernas encolhidas, pondo um joelho em cima do

outro, como as mulheres costumam fazer. Saúdam-se então, o

homem batendo as palmas, e mantendo as mãos paralelas e a

mulher tendo as suas em ângulo reto. E depois começam a

conversar...” (Junod, 1996: 221).

Esta relação entre o ego e a mãe de sua mulher mereceu atenção especial de

Radcliffe-Brown (1974) no capítulo IV do ensaio Estrutura e Função nas Sociedades

Primitivas.

Esta relação foi-nos recentemente relatada pelo Régulo Zanta durante as nossas

pesquisas empíricas. E conseguimos notar parte destas cenas numa das casas que nos

serviu de âncora de estudo.

Porque é que o genro age desta maneira? Segundo o régulo, a resposta é muito simples:

“Ele deve respeitar o sogros e a sogra, especialmente,

pois é desse respeito que depende a autorização das suas

tinamu, as irmãs da sua mulher, para esposas”.

As primeiras tinamu são todas as irmãs mais novas da mulher. São mulheres

presuntivas do ego. Ele pode tomar de esposa a qualquer uma delas, em caso de morte da

esposa, esterilidade ou se tiver riqueza suficiente para fazer um novo lobolo.

Por extensão o termo namu é também aplicado aos irmãos mais novos da esposa

do ego e as suas filhas são também mulheres presuntivas (nsanti em potência).

Em relação a mulher do irmão da esposa é preciso observar que os mesmos bois trazidos

à família pelo ego no decurso do lobolo servem para procurar uma esposa (reposição)

para um dos filhos (irmão da esposa) e a mulher assim obtida é a mukon‟wana principal.

.

Uma relação de aliança como o lobolo implica um reajustamento social, através

do qual as relações entre a mulher e a sua família mudam muito e ela estabelece uma

nova relação muito íntima com o seu marido. O marido fica simultaneamente relacionado

de uma forma especial com a família da sua mulher, em realação a qual ele é estranho.

65

A relação implica tanto afeto como afastamento, tanto implica conjunçào como

uma disjunção social. Na sua forma mais extremista existe uma total evitação dos

contactos sociais entre o ego e a sua sogra. Segundo Radcliffe-Brown , esta evitação não

deve ser confundida com a hostilidade.

O respeito mútuo entre genro e sogra é uma forma de amizade. Ele evita os

conflitos que poderiam surgir por motivos de divergência de interesses. As formas de

relacionamento entre o ego e a família da sua mulher são feitas com base nas gerações.

Os parentes normalmente respeitados são os que pertencem à primeira geração

ascendente, a mãe da mulher do ego e suas irmãs, o pai da mulher do ego e seus irmãos, e

as vezes o irmão da mãe da sua mulher.

Os parentes de brincadeira pertencem à mesma geração, mas freqüentemente

aparece a distinção por idades dentro dessa mesma geração: a irmã ou o irmão mais velho

da sua mulher poderão ser respeitados, enquanto os mais novos serão alvos de

brincadeiras.

A relação do ego com a filha do irmão da mulher era mais livre do que a sua

relação com as irmãs mais novas da esposa. Esta particularidade era dada pelo fato de ela

ser produto dos tihomos, bois, entregues pelo ego que depois serviram para o pai lobolar

a mãe dela. Ele chamava-a de n‟sati (ver o nosso diagrama da página 60). A intimidade

era tão grande que até podia lhe apalpar os seios, kutamela mavele. Podia fazê-lo na

presença da esposa que ficava contente por saber que o marido estava, de fato, a usar o

direito de casar com ela e, assim a sobrinha poderiqa vir a ser a sua nhlampsa e ela

nhlampsela rharhana, isto é, tornar-se numa segunda mulher ao lado da irmã do seu pai.

Segundo Junod o ego podia reivindicar o casamento com a filha do irmão da

esposa particularmente quando a esposa morresse e não houvesse uma irmã sua, mais

nova, para tomar seu lugar.

Outro aspecto importante a assinalar está ligado as relações sexuais. Entre os

rhongas as relações sociais não eram uma questão individual, como entre os ocidentais.

Estavam misteriosamente ligadas a vida coletiva da comunidade. Era proibido

fazer sexo em momentos de crise: durante a guerra, durante o momento das caçadas e nos

momentos de margem. Estas regras não se aplicavam aos jovens solteiros. Dizia-se que o

66

ato só teria influencia na vida da comunidade quando fosse praticado por pessoas

casadas.

4.6. O lobolo como troca e seu significado

Depois dos estudos de Bronislaw Malinowski (1962) no Pacifico Ocidental, de

Franz Boas (1938) entre os índios americanos e de Radcliffe-Brown(1950) e a análise,

comparação e interpretação dos dados etnográficos destes, por Marcel

Mauss(1972)[1923-24] e Lévi- Strauss (1976) , a antropologia ganhou um

enriquecimento extraordinário. Novas teorias passaram a servir de luz para a análise das

diversas sociedades tidas como primitivas. Mauss trouxe à ribalta o Ensaio sobre o Dom .

Lévi-Strauss publicou As estruturas elementares do parentesco, obra em que analisa os

aborígines australianos e, em particular, os seus sistemas de matrimônio e parentesco. Na

sua análise, o autor demonstra que as alianças são mais importantes que os laços de

sangue.

Entre os estudiosos de lobolo vimos que os evolucionistas como James Frazer e o

próprio Junod, viam-no como um ato instrumental de “compra de uma mulher”, mas há

autores como Radcliffe-Brown (1974) que tiveram uma interpretação distinta:

“Se um casamento, em África, implicasse verdadeiramente

a compra de uma mulher, como afirmam certas pessoas

ignorantes, então poderia existir uma relação próxima,

permanente, entre um homem e a família da sua mulher.

Mas se os escravos podem ser comprados, as mulheres

não.”

O pensamento evolucionista de Junod é espelhado no seu livro, Usos e Costumes dos

Bantu(1996):

O costume do lovolo, inventado por uma sociedade que está ainda

no estado coletivo ou semicolectivo, é incompatível com as

concepções esclarecidas da civilização ocidental; com a sua

política e as suas idéias da vida civil, com a sua religião, por ser

67

inspirado por uma concepção do ser humano que pertence a uma

outra idade.[...] Uma mulher é só uma porção da propriedade

familiar que se adquire pelo lovolo, e que é por conseguinte

herdada por outros homens quando o marido morre. Nenhum ser

humano moral, nem ser humano livre. A oposição entre a

concepção coletivista e a concepção Ocidental é absoluta e se é

verdade ser assim, é dever ao mesmo tempo das missões cristãs e

dos governos esforçarem-se por mudarem este estado de coisas na

sociedade primitiva. [Junod, 1996, p.472]

Todavia, como podemos ver no desenrolar do presente estudo, podemos

considerar que o lobolo é um sistema de trocas, algo similar à tríade maussiana de dar,

receber e retribuir. E assim sendo, o lobolo poderia ser visto como um fenômeno social

total na medida em que envolvem ao mesmo tempo, várias componentes da vida social:

econômicas rituais, religiosas, morais, jurídicas etc. Mas não é o debate ou detalhe desta

teoria que nos interessa debater no presente estudo.

O lobolo é um ato cultural e toda a cultura pode ser considerada como um

conjunto de sistemas simbólicos em que incluem a linguagem, os matrimônios, as

relações econômicas, a religião, etc.

Para Marcel Mauss (2001) a troca é também uma linguagem, uma forma de

comunicação em que se troca bens, mulheres, linguagens, etc. O argumento central do

Ensaio sobre o Dom é de que a dádiva produz aliança, tanto as alianças matrimoniais

como as políticas(entre chefes ou diferentes camadas sociais), religiosas (como os

sacrifícios entendidos como uma forma de relacionamento com os deuses), econômicas,

jurídicas e diplomáticas (incluindo-se aqui as relações pessoais de hospitalidade). Este

autor via a vida social não só como uma circulação de bens, mas também de pessoas

(mulheres concebidas como dádivas em praticamente todos os parentescos conhecidos,

nomes, palavras, visitas, festas, etc).

Mauss definia a dádiva de modo amplo. Ela incluía não só parentes como também

visitas, festas, comunhões, esmolas, heranças, e um sem número de prestações. E vimos,

pelas discrições e análises acima feitas que este processo ou algo similar, está presente no

lobolo tsonga.

68

Depois desta descrição passaremos a mostrar como é que é o lolobo na atualidade,

mas antes vamos mostrar como é que se gangisa, namora, nos dias de hoje. A parte

seguinte cobre o período de 1975 a 2008, altura em que fizemos a pesquisa empírica.

69

CAPÍTULO 5 - O lobolo “como se tornou”

5. 1. Gangisar, namorar hoje

Como vimos na introdução, algumas características descritas na literatura sobre o

campesinato como a prática da agricultura através da lavoura realizada pela família; a

pobreza e o fato de não ter controle do poder; o uso de mediadores na sua relação

comercial com os “outsider”; a baixa tecnologia; o predomínio da cultura tradicional; o

modo de vida comunitário com predomínio de relações inter-familiares; a tradição oral;

as tradições religiosas imersas nas ações cerimoniais, podem ser vistas entre os atores

socias de N‟kinga, e foi isso que influenciou a escolha do nosso objeto de estudo e do

local de pesquisa.

Em Moçambique, no período que se seguiu a independência, a Frelimo (governo)

mostrou uma certa hostilidades a autoridade tradicional.

O aparelho das autoridades tradicionais, que já vinha sofrendo também com o

colonialismo, foi abolido administrativamente. No lugar do hosi, foi introduzido o Grupo

Dinamizador. O muti, unidade básica de produção e o tiko, unidade máxima tanto do

ponto de vista econômico, político e religioso, foram transformados em aldeias comunais.

A população que vivia nos muti e nos tiko “perdeu” os seus chefes. Várias coisas como o

papel dos ritos coletivos, nos gandzelo, túmulos dos antepassados, ficaram preteridos.

Estes fatores tiveram ( e têm) muita influência e conseqüências em N‟kinga.

É na forma como as pessoas se conhecem nos dias de hoje e a maneira

como se comportam, que está o cerne daquilo que os nossos interlocutores colocam a

ênfase de mudança. Se antes como vimos, havia participação direta da comunidade na

definição das escolhas para o kubuta e para o lobolo, hoje as coisas não ocorrem desta

maneira.

70

O régulo Zanta tem a seguintes leitura:

[...] As coisas mudaram Os jovens de hoje são outra

coisa[..]. Veja que já nem sabem como se faz para ter uma

mulher. Alguns se encontram nas “barracas”40

. Não

sabem o que é lar. Tratam os velhos como lixo. Se se

aproximassem dos mais velhos iriam aprender a conhecer

as regras de constituição do lar. Hoje, os rapazes e as

meninas não conhecem as regras e é o que se pode ver[...].

Crescem e se engravidam nas barracas; não se casam.

Nem sabem o que é o lobolo. Juntam-se de qualquer

maneira[...]. As meninas vão somando filhos com pais

diferentes. E tudo isso tem a ver com a forma como eles

crescem e são educados. Não há regra. Cada um faz o que

quer[...]

Em ambientes pequenos como o de N‟kinga, as regras costumeiras eram levadas a

risca. Vimos que o parentesco impõe regras de comportamento entre diversos grupos

etários. Nesta sociedade, os velhos tinham um lugar especial. Pelas regras de etiqueta eles

eram tratadas por vovó, ou seja, em termos de relacionamento social eles estavam no

mesmo pedestal dos pais da mãe e os pais do pai do indivíduo. Deviam ser respeitados

porque eram vistos como guardiãs da tradição. O relato do régulo mostra uma erosão

destes valores. É esta a idéia de mudança que ele quer enfatizar.

As barracas que o régulo faz menção, são casas de pasto que além da comida tem

como ponto forte a venda de bebidas alcoólicas. São espaços comerciais explorados,

sobretudo, para atender as pessoas que vindo de Maputo Cidade, se dirigem à zona

turística e fronteiriça da Ponta de Ouro; passam uma parte da noite nestes locais. Muitas

40

Bares ou espaços públicos de diversão. Na generalidade, as barracas estão associados a má vida

(prostituição, uso de drogas ou banditismo).

71

meninas das redondezas do vilarejo de Salamanga e outras provenientes de lugares mais

distantes, concentram-se neste local e muitas vezes se prostituem.

Até ao período da independência, em 1975- pensamos que é a isto que se referem

os informantes quando usam a expressão “naquele tempo”-, no lobolo que descrevemos

acima, se vê que há um grande envolvimento da comunidade desde a fase de namoro,

kugangisa, na preparação da festa e na entrega do lobolo. Era esse envolvimento que

institucionalizava a cerimônia pois é aí onde se clarificava o parentesco por aliança e se

clarificavam os papeis sociais e comportamentos. Sobre o namoro, o Pastor Sivhane, 67

anos, responsável pela Igreja Presbiteriana disse-nos:

“Na nossa cultura, naquele tempo, as famílias

conheciam-se. Orientavam os filhos na escolha dos

parceiros. Eram os pais que se falavam e as

meninas aceitavam..

Isso agora terminou. Terminou porque já haviam

começado os divórcios. Na cultura Tsonga não há

divórcios; o que acontece em caso de divergências

com o marido, a mulher voltar para casa dos pais.

Quando chegasse a casa dos pais era posta a viver

numa palhota independente “batizada” com o nome

da família do marido, ou seja, da família donde ela

vinha. Aquele homem que a abandonou podia

visitá-la em casa dos pais, se quisesse. Podia

continuar a fazer filhos naquele espaço da mulher

dentro da casa dos sogros. Isso não se chamava

divórcio, dizia-se que a “nossa filha voltou

temporariamente para casa”. Não havia divórcio...

Quando voltasse à casa dos pais enquanto tivesse

casado com um Tembe, por exemplo, construía-se

72

uma palhota e diziam que ali é “Ka Tembe”41

. O

Homem podia ir a casa dela e ninguém o proibia.

Se aparecesse outro homem interessado em casar

com ela, a condição era devolver o lobolo ao

primeiro marido. Isso acontecia e não era

divulgado. Eram assuntos de família. Isso acontecia

e era muito bom.

Hoje, o jovem encontra uma jovem na barraca e

começa a namorar. Os pais só tomam conhecimento

muito mais tarde. Às vezes os pais tentam proibir,

mas não conseguem porque eles já estão a namorar

e, às vezes chegam até ao casamento. Às vezes nem

vale a pena proibir, nem falar sobre isso porque

elas se deixam engravidar. Muitas vezes ficam

“esposas” sem casamento. Thluvam-se42

”.

Ampliando-se a ótica da chamada “legalidade”, cuja lei determina e dita as

regras, há que levar em consideração, também (Santos, 1987), que nem todas as normas

estão necessariamente escritas (juridicidade). Neste sentido, existe algo antes e além da

lei escrita, que regula essa convivência em sociedade e que constitui uma determinada

cultura. É neste âmbito que se inscreve a legitimidade. A legitimidade decorre de um

consenso social. Quando falamos do lobolo, do parentesco e das instituições sociais,

estamos a falar elementos regidos pelo costume, estamos a falar da tradição, da cultura.

Como vimos o lobolo é uma aliança entre dois grupos, o da noiva e o do noivo. É

um assunto que dis respeito a duas famílias ele é legitimado pela tradição. O lobolo exige

a benção dos antepassados, implica direitos e deveres traçados a luz da tradição. As

prestações do lobolo são os pagamentos exigidos pelo costume(Radcliffe-Brown, 1973,

p.115) no processo de estabelecer um casamento válido.

41

Algo como um território fictício do Tembe. O prefixo ka, significa pertence. Ka Tembe, que dizer

pertence ao Tembe. O nome ou apelido do marido da mulher que saiu do lar para a casa dos pais. 42

Tlhuvar, é uma forma de “casamento forçado” na qual o homem ou a mulher sai e vai viver com o

parceiro sem o consentimento dos pais, ou seja, sem lobolo ou casamento civil.

73

O divórcio é um elemento legal daquelas uniões que concernem primeiramente,

ao homem e a mulher, e ao Estado, que dá a união sua legalidade e que só ele pode

dissolver pelo divórcio. É um casamento que deve ser registrado por alguém licenciado

pelo Estado, e uma taxa deve ser paga.. É o Estado que decide as condições sob as quais

o casamento pode ser terminado por um divórcio, concedido por um tribunal, que é um

órgão do Estado. Concluindo, o lobolo tem a ver com legitimidade, dada pelo costume e

o casamento tem a ver com legalidade, dada pelas leis do Estado, o que sociologicamente

não é a mesma coisa. É por isso que o divórcio fazia parte dos tabus. Em tsonga se dizia

psa ila kutsicana, o que quer dizer é proibido divorciar.

Quando quisemos compreender melhor esta problemática do divórcio, os

informantes mostraram-nos que uma das maiores consequencias deste ato é a proliferação

de crianças abandonadas, inclusive na área das pequenas lojas de Salamanga. Indicaram

também como conseqüência direta deste ato a mendicidade, um fenômeno, que segundo

eles, era algo desconhecido nesta região.

Na generalidade, os informantes faziam referência ao comportamento sexual dos

jovens. A isso ligaram sempre a falta de conhecimento das regras da tradição e a falta de

respeito pelos mais velhos. Foi sempre à volta de questões ligada a tradição que nos

apontaram as mudanças.

Sobre o comportamento dos jovens de hoje, Joana Tembe, 67 anos, camponesa,

disse-nos o seguinte:

“Agora as coisas mudaram muito. Antigamente os mais

novos respeitavam muito aos mais velhos. A educação das

crianças acontecia em qualquer lugar da aldeia. Qualquer adulto

podia e devia chamar atenção às crianças quando estivessem

erradas”.

As crianças de hoje são muito diferentes. O que nós

fazemos em insistir em incuti-los valores positivos,

comportamentos positivos. As crianças de hoje estão um pouco

74

“tortas” em termos de comportamento. No nosso tempo havia

problemas, mas não eram tão graves como os de hoje [...].

Segundo os informantes, o namoro já não envolve tanto a família como antes.

Muitas vezes é utilizado como mecanismo de sobrevivência. Por ser uma região pobre,

com problemas de emprego e várias carências, as raparigas têm como preferência

“namorar” com pessoas que vêm de Maputo ou jovens locais que trabalham nos países

vizinhos.

O respeito às instituições religiosas era uma das características das populações de

N‟kinga. As famílias esforçavam-se em educar os seus filhos com base nos ensinamentos

das diversas congregações religiosas ali existentes. Fomos assistir alguns cultos e

conversamos com os pastores.

O jovem pastor da Igreja Anglicana disse-nos que era raríssimo ouvir dizer que

alguém vai ser lobolada ou se vai casar pela igreja. O que mais se nota é o kutlhuva, a

mulher vai viver em casa do homem sem ter havido nenhuma cerimônia de lobolo,

casamento civil ou religioso. E acrescentou:

“[...] Eu acho que tem a ver com o desemprego. Quando o

jovem está desempregado, acha que não tem condições para

enfrentar aquilo que os pais vão pedir. Podem pedir bois e outras

coisas. A solução tem sido convencer a rapariga, prometendo

levá-la para África do Sul. E ela por se encontrar na pobreza,

acha que na África do Sul terá boas condições... Então se juntam e

fogem e vão juntos para África do Sul.

[...] Elas não são “raptadas” como tal; as pessoas

combinam. Os jovens dizem: “Eu te amo, mas não tenho as

condições para falar com os teus pais; a tradição aqui exige

muitas coisas, bois e outras coisas... A rapariga por saber que

está desesperada por causa da pobreza, acha que na África do Sul

terá melhores condições e terá uma vida condigna e voltará para

cá com valores.[...] Aqui na Igreja vinham muitas raparigas

participar nos cultos. Mas perdi muitas jovens. Em 2006 tínhamos

75

muitas jovens e agora só fiquei com idosas. A maior parte das

jovens já estão na áfrica do Sul com os maridinhos”..

Como podemos mostrar ao longo do texto, a sociedade moçambicana sofreu

mudanças como resultado da penetração colonial européia, e também como resultado das

políticas adotadas pelo governo no período a que se seguiu a independência nacional. A

isso também podemos somar o período de conflito armado entre o governo e a

RENAMO.

Esses eventos provocaram fissuras na esfera social, política, econômica, jurídica,

enfim, na globalidade da sociedade moçambicana no geral, e em N‟kinga, em particular.

Se no passado, o equilíbrio social, ou seja, a estabilidade e a ordem social tinha

como alicerces o sistema de parentesco, agora, a realidade é outra.

A explanação de Joana Tembe e do pastor da Igreja Anglicana refletem esta nova

realidade, caraterizada por novas pressões, novas tensões e novos tipos de conflitos. Do

ponto de vista simbólico mostram que a esfera social, conheceu um movimento de

mudança..

Para sermos mais precisos, vamos mostrar como se deu a mudança das

instituições sociais como o lobolo em Moçambique no período pós-independência. A

seguir vamos fazer a descrição e análise de duas cerimônias de lobolo que assistimos em

N‟kinga no período em que estivemos a fazer trabalho de campo.

76

5.2. O lobolo de Marília Nhaca

Num belo dia, pela manhã, fomos convidados pela família Nhaca para assistir

ao lobolo da sua filha Marília Nhaca, 29 anos, que durante três anos namorara com o

jovem Leonardo N‟kondzo, 34 anos. Em conversa com o rapaz ele nos contou o

seguinte:

“Eu e ela nos conhecemos na Cidade de Maputo. Sou

operador de câmera e trabalho numa empresa de televisão. No

verão, a minha estação emissora organiza concursos de miss,

patrocinadas por uma companhia de telefonia móvel. Foi num

desses concursos que conheci a minha namorada. Começamos a

namorar; fomos nos conhecendo e agora temos dois anos juntos”.

Em Maputo, vivo em casa do meu tio e ela em casa de um

irmão. Decidimos vir fazer a cerimônia aqui em N‟kinga, em casa

dos nossos pais”..

Ele nos disse que a família da noiva tinha sido muito compreensiva e exigiu um

lobolo a alturas das suas capacidades financeiras. Disse-nos que tinha uma boa relação

com a família da namorada. Convidou-nos a assistir o lobolo e o casamento que teria

lugar no dia seguinte. Pelo que nos contou, percebemos que a sua maior preocupação

estava mais concentrada no casamento que teria lugar na Igreja Presbiteriana, mais

conhecido por Missão Suíça e no Registro Civil. Contou-nos que viriam muitas

pessoas da Cidade de Maputo para assistir o casamento e que uma pequena delegação da

sua família iria à casa da noiva, na Sexta-feira para fazer o lobolo. O casamento tinha

sido marcado para Sábado, na vila de Bela Vista, capital do distrito.

A família Nhaca vive no N‟sinhene. A cerimônia teve lugar em Setembro de

2008. A nossa ida a este evento deveu-se a um pedido antecipado à tia da noiva. Quando

chegamos à N‟kinga pedimos aos nossos diversos informantes que nos avisassem caso

tivessem informação sobre a realização do lobolo. Foi assim que chegamos a esta

cerimônia.

77

Quando chegamos a casa dos Nhaca ainda haviam poucas pessoas. Entre os

presentes estavam dois idosos, que mais tarde soubemos que eram da Igreja Presbiteriana,

a congregação religiosa freqüentada pela família a pelo menos duas gerações, alguns tios

e algumas tias. A pouca presença de pessoas para este ato intrigou-nos no início, mas

associamos o fato ao dia, pois se tratava de uma Sexta-feira.

Como tem sido habitual nos últimos tempos em Maputo, às famílias realizam as

cerimônias de lobolo às Sextas-feiras nas vésperas dos casamentos religiosos e civis, que

geralmente se realizam aos Sábados. Foi o caso do lobolo da Marília Nhaca.

Antes de início da cerimônia, conversamos com o senhor Joel Nhaca, um dos tios

mais velhos do pai. Ele foi à casa do irmão na noite do dia anterior porque tinha que se

juntar aos outros irmãos para fazerem os últimos preparativos das cerimônias que iam ter

lugar nos dias seguintes.

Nessa breve conversa quisemos saber o que aconteceria e o que é que se tinha

feito antes. Ele nos disse que como manda a tradição, nas primeiras horas da manhã, na

alvorada, tinham feito o ritual de kupalha, que se trata de uma invocação aos espíritos dos

antepassados. É uma cerimônia em que se apela a benção e proteção dos espíritos dos

antepassados. No campo, ela é feita no ghandzelo, uma árvore especialmente escolhida

como altar da casa.

Segundo Nhaca, nesse ritual informaram aos antepassados que a filha seria

lobolada e pedida em casamento pela família do N‟kondzo. Este ritual é feito em quase

todas as cerimônias familiares.

Chegamos a casa dos Nhaca por volta das 11 horas da manhã, mas a cerimônia

só teve início por volta das 16 horas. Mais tarde contaram-nos que a demora se deveu aos

noivos que ainda não tinham completado as coisas que serviriam para o lobolo. No tempo

em que estávamos a espera do grupo que viria da casa do noivo para lovolar, o noivo

ainda estava no mercado tentando completar as oferendas (roupa do pai, roupa da mãe,

roupa da avó, bebidas cerimoniais) que os seus familiares levariam para a casa da noiva.

78

No meio da impaciência e do murmúrio pela demora, eis que chega a delegação

dos familiares do Leonardo N‟kondzo para fazer o lobolo. Entre eles estava um tio, irmão

do pai do noivo, acompanhado pela esposa, um amigo e vizinho da família do noivo e

uma prima do noivo. Quando chegaram eram aproximadamente, 15, 45 horas.

Um grupo de senhoras foi à porta de casa receber os visitantes entoando, canções

que ressaltavam o valor do nascimento e do casamento.

O atraso já estava consumado. A delegação da família do noivo entrou dentro de

casa e foi dirigida para sala. Os homens sentaram-se nas cadeiras e as mulheres nas

esteiras, junto às malas. Seguidamente, as famílias se reuniram, mas antes houve um

momento para dzungulisar dzanva, uma forma tradicional de cumprimentar em que se

relata a situação geral da família no atinente a saúde, doença e outros aspetos

considerados importantes. No Sul de Moçambique, entre os tsongas é uma forma

tradicional de saudar as pessoas, sejam elas familiares diretas ou não.

A delegação dos N‟kondzo foi apresentada pelo tio do noivo. Pela parte dos

anfitriões, coube ao Nhaca mais velho da família a apresentação dos restantes membros

da sua família.

Sem demoras, o grupo do noivado foi retirando da malinha e das pastas o

conteúdo que trazia para o lobolo. Fora já estavam as caixa de cerveja e de refrigerantes

e as duas garrafas de vinho, tinto e branco.

O tio do novo, entregou à lista ao Nhaca para que se fizesse o acompanhado e

conferência dos artigos.

Ajoelhada na estreita, a prima do noivo começou a colocar cada artigo encima das

esteiras previamente estendidas no meio da sala. À volta estavam os assistentes serenos e

atentos a cada pormenor do que ali se passava.

Da esquerda para a direita foi pondo os seguintes artigos: roupa para o pai,

composta por um terno, uma camisa, uma gravata, um par de calças, um par de sapatos,

79

um par de meias, um cinto e uma bengala. Ao lado, foi colocando a roupa da mãe

composta por uma blusa, um casaquinho, uma saia, um par de sapatos, um par de meias

de rede, brincos, lenços e 5 capulanas43

.

Depois foram colocadas as oferendas para a avó materna da noiva composta por

uma blusa , duas capulanas e um frasquinho de rapé. Seguiram-se os artigos para o avô

paterno da Natália, compostas por camisa, garrafa de vinho branco e um frasquinho de

rapé.

Por cima das roupas foram colocados 2500 Meticais44

de lobolo e mais algum

montante em moedas para outras despesas inerentes a cerimônia. No fim, a prima do

noivo tirou da mala a roupa da noiva composta por um casaquinho, uma saia, um par

meias compridas, um par de sapatos, um fio de ouro, roupa interior, brincos de ouro e

anel de ouro.

Os dois mestres de cerimônia fizeram a conferência dos artigos em função da lista

previamente elaborada e enviada pela família Nhaca. Esta lista é elaborada pela família

da noiva no período em que se começam a encentar os passos para o lobolo. É enviada a

casa do noivo com muita antecedência a fim de permitir que ele se prepare e reúna os

artigos nela contidos. Conclui-se que estava tudo completo. As senhoras entoaram mais

canções enquanto a noiva, que não a vimos durante o tempo em que esperávamos os

N‟kondzo, se prepara para se dirigir a sala onde se iria realizar a cerimônia.

Quando chegou, ajoelho-se em frente ao tio que a perguntou: “Conheces estas

pessoas que nos vieram visitar?” E ela respondeu: “Sim, as conheço”. O tio voltou a

perguntar; “Podemos recebê-las?” E ela respondeu: “Sim, podem recebê-las”.

43

A capulana é um pano que as mulheres amaram na cintura. Em termos de indumentária é um dos

elementos simbólicos mais presentes na cultura Tsonga. As senhoras usam-na quase sempre. Ela esconde

as partes íntimas da mulher e, as vezes as meninas usam-na como saia. É usada para embrulhar os bebés

após o nascimento e para transportá-los às costas da mãe. É o artigo de indumentária feminino que

atravessa todos os grupos populacionais do pais, de norte a sul. 44

Nome da moeda moçambicana que substitui o escudo português que vigorou no país durante o período

colonial.

80

Perguntaram-na se podiam receber as coisas e ela respondeu positivamente

dando assim a anuência ao ato. É ela que deve aceitar receber a visita, porque apesar de

ter havido conversações preliminares entre as duas famílias, é ela que lida com eles mais

tempo na companhia do seu noivo. Naquele momento “só ela os conhecia”. Desta forma,

o acordo entre as duas famílias estava selado.

Seguiu-se um discurso do tio da noiva no qual além de explicar as causas daquela

cerimônia falou da importância do casamento na vida dos jovens. Religioso acérrimo foi

misturando o seu discurso com passagens bíblicas para enaltecer a importância da

cerimônia.

A fase que se seguiria era a mais espetacular do evento. Muitas pessoas que se

encontravam do lado de fora da sala onde decorria a reunião, inclusive àquelas senhoras

que até àquela hora se ocupavam pelos assuntos da cozinha, se aproximaram para assistir

a entrega dos artigos.

Na presença de todos, a Marília pegou numa nota de 100 meticais, ajoelhou-se a

frente dos pais e entregou-a a mãe. O tio, irmão da mãe retirou uma nota, cumprindo os

preceitos tradicionais da cerimônia.

Seguiu-se a fase de trocar de roupa. A noiva saiu com a prima do Leonardo, mas

antes os visitantes pagaram 10 meticais. A tia tirou 20 meticais e saiu com a mãe da

noiva e o vizinho da família N‟kondzo tirou outros 20 meticais e saiu com o senhor João

Nhaca, pai da noiva. O dinheiro acima somava 50 meticais e serviu para pagar a

deslocação da noiva e dos pais para a troca de roupa.

A mãe da noiva regressou com o novo traje e amararam-na uma garrafa de

vinho nas costas, como se estivesse para transportar um bebe. A garrafa representa a sua

filha, noiva que era loboloda. Depois amarrara-na outra capulana por cima para

“protegerem a bebe” das intempéries do ambiente. Minutos depois voltou o pai da noiva

com o novo terno exibindo a sua bengala.

81

Seguiram-se os cantos e conversas entre as pessoas que assistiam a cerimônia.

Toda a gente cantava e sorria contente, batendo palmas.

As duas famílias se felicitaram longamente. Os pais mereceram atenção

especial dos presentes e foram felicitados com abraços e beijinhos de muitas pessoas que

testemunhavam o lobolo da sua filha Marília.

Esta é uma das passagens mais interessantes da cerimônia. As pessoas dançam,

cantam, lançam piadas, dramatizam o nascimento, simulam choros de bebe, simulam

mulheres com dores de parto, enfim, reconstituem-se cenas alegóricas ao dia-a-dia de

uma mãe.

A Marília só voltou a surgir, quando, bastante tempo depois, as celebrações se acalmaram

e as pessoas se voltaram a sentar.

Veio com sua roupa acompanhada por uma amiga que a servia de corteja. A

prima do noivo beijou-a e deu-lhe boas vindas a família dos N‟kondzo. Colocou-lhe

calmamente os brincos, o anel e o fio.

A tia da noiva recebeu a capulana, a blusa e o frasco de rapé em representação da

avô paterna. Foi felicitada e abraçou a sobrinha. O tio recebeu os trajes e o outro frasco

de rapé em representação do avô materno.

Seguiu um longo período de conversas e canções e fotografias enquanto se

esperava da refeição que seria tomada em conjunto. As panelas foram aparecendo na

sala, juntamente com os talheres. Houve uma pequena interrupção para se rezar e

abençoar a refeição e depois as pessoas foram autorizadas a se servir.

Depois da refeição a delegação dos N‟kondzo se despediu e partiu. Era necessário

recuperar o tempo perdido, pois o dia seguinte seria para o casamento Civil e Religioso.

Ainda em N‟kinga tivemos oportunidade de assistir uma outra cerimônia similar. A

seguir vamos narrar a estória do lobolo da Sara N‟gumende.

82

5.3. O lobolo da Sara N‟gumende

José Tembe, 45 anos e Sara N‟gumende 40 anos, vivem juntos há 15 anos, no

terreno dos pais, numa casa de alvenaria, construída em blocos, situada na zona dos

Matsolos, do lado esquerdo da estrada que sai de Salamanga em direção a Ponta de Ouro.

Chegamos a este lugar convidados por um vizinho e membro da família. É um

lugar espaçoso, cheio de árvores de fruta. Quando chegamos, muitos convidados estavam

sentados debaixo de um frondoso cajueiro. No vasto quintal viam-se também mangueiras,

laranjeiras, bananeiras e outras árvores de fruta.

Desta vez tínhamos acertado a hora. Chegamos muito cedo porque o régulo nos

tinha dito que pela tradição, antes da cerimônia do lovolo, faz-se o kupalha, uma

cerimônia de invocação e conversa com os espíritos dos antepassados. Foi interessante,

pois ele havia nos prevenido que os espíritos45

só aparecem de manhã cedo e ao pôr-do-

sol. O ritual começou por volta das 7 horas.

O Tembe mais velho pediu para colocarem as oferendas que iam levar para a

família N‟Gumende no gandzelo, altar, que era uma planta de tronco grande que dá

frutos saborosos conhecidos localmente por Nheve, ou Tinheve.

O chefe de cerimônia pegou um frasquinho de fole, rapé, fez um circulo e no meio

deste, espalharam-se as notas, as roupas , os sapatos e a bengala que iriam ser utilizadas

para lovolar. Perto do local estava um garrafão de cerveja tradicional, uputso, uma garafa

de vinho branco e duas caixas de refrescos.

Durante uma hora aproximadamente, ajoelhado, de cabeça para baixo e mão

direita na testa “chamou” os antepassados pelos nomes, “sintonizou” o antepassado xará

45

Toda a identidade dos grupos se estrutura relativamente às linhas de ascendência constituídas pelos

antepassados mortos. Os antepassados situados num tempo passado (mortos) eram deste modo símbolos

dos grupos vivos e, por isso a crença e o culto dos espíritos é tão importante nestas sociedades [...] Os

antepassados, como referentes de identidade dos grupos, forçam a solidariedade porque são considerados

como a sua benção e todo o seu enfraquecimento, que é visto como um desvio do modelo de

comportamento devido a parentes é penalizado para impor a sua correção( Fialho, 1989: 297)

83

do José e “conversou” com os espíritos. Enquanto a família e os convidados ouviam em

silêncio.

Informou aos antepassados que o Jaime tinha resolvido ir pagar a dívida do lovolo

nos N‟Gumende e pedia a sua proteção para que tudo corresse bem. Deitou o uputso no

chão, servindo aos antepassados. O irmão mais novo do Jaime, um mineiro que tinha

chegado a casa na noite anterior, bebeu o copo do uputso ato seguido pelos restantes

participantes. No fim, o mestre de cerimônia bebeu também o uputso, como mandam as

regras da tradição, finalizando assim a cerimônia.

Um grupo restrito de familiares foi se reunir dentro de casa para conferir o

dinheiro e a roupa acordada com a família da noiva. Vi muitas notas e moedas e pelas

conversas percebi que parte do dinheiro serviria paro o lovolo e o restante seria para as

“multas” tendo o maior peso à multa que se cobra por ter vivido com a rapariga e ter tido

filhos antes do lobolo. O casal tem 4 filhos.

Parte do dinheiro serviria para colocar encima de cada conjunto de roupas e por

cima das caixas de refresco, garrafão de uputso, frasquinho de rapé e da garrafa de vinho

branco.

O grupo que iria fazer o lobolo tinha como timoneiro o senhor Nhaca, vizinho,

amigo da família e dirigente religioso. A rhazhana Laura, irmã mais nova do pai do José,

foi incluída no grupo e teria como tarefa vestir a noiva. Eu trazia uma máquina de

fotografar e tinha pedido estar no grupo, o que foi previamente aceite. A nós juntou-se

também uma outra senhora vizinha e amiga da família.

O lovolo tinha sido marcado para as 13 horas. Saímos, entramos no caminho que

vai ao cemitério, passamos por várias rochas e 30 minutos depois estávamos nos

arredores da casa dos N‟gumende. Algumas pessoas que tinham nos acompanhado

carregando a mala, as caixas e um cesto de bebidas entregaram-nos as coisas e voltaram.

Reorganizamo-nos e finalmente chegamos ao nosso destino.

84

Paramos numa das margens do quintal e algumas pessoas começaram a cantar. De

longe algumas pessoas respondiam os cânticos e minutos depois fomos recebidos.

Entramos numa sala de uma casa previamente preparada com esteiras e algumas caixas

que nos serviriam de cadeiras. O chefe de cerimônia dos N‟gumende cumprimentou-nos

e nos disse que a família estava satisfeita e preparada para nos ouvir.

O Tembe mais velho apresentou-nos e disse que nós também estávamos

satisfeitos por ter chegado o dia de cumprir um preceito tradicional de grande

importância que é o lovolo.

Antecipou-se a dizer que a família Tembe sabia que havia uma multa a pagar aos

N‟gumende pelos 15 anos em que Sara viveu e fez 4 filhos. Tirou duas notas de 100

meticais e uma outra de 50 meticais e entregou a garrafa de vinho branco. Sem demoras e

com o sorriso no rosto os N‟gumende aceitaram e disseram que nos dias de hoje era

muito raro as pessoas cumprirem com as regras.

Cantou-se e as pessoas começaram a ficar mais à vontade. De um e do outro lado

saiam piadas e conversas. O Tembe avisou que iriam começar a tirar as coisas que tinham

trazido para o lovolo. A tia do José abriu a mala e foi colocando as roupas nas esteiras

estendidas no meio da sala. Tirou a roupa do pai, composta por um terno, camisa de

mangas cumpridas, cinto meias, sapatos e uma bengala- que seria para o tio da noiva

pois o pais já tinha falecido. Seguiu a roupa da mãe composta por um vestido, um

casaco de senhoras, meias, duas capulanas e um lenço. Depois tirou a roupa destinada a

avô, uma blusa, uma saia, duas capulanas, um par de sandálias e o frasquinho de rapé. A

roupa do avô era composta por uma camisa de mangas cumpridas, calças, sapatos e a

garrafa de vinho. E finalmente o relógio, a saia, a blusa, os brincos, o anel, os sapatos e a

bolsa da noiva. Por cima das roupas colocaram 1500 meticais em dinheiro.

A família N‟gumende conferiu as coisas com base numa lista previamente

acordada e enviada aos Tembe e notou que faltava uma nkeka, pano branco que se amara

na barriga da mãe simbolizando o nascimento da filha. Houve uma pequena discussão e

chegou-se a conclusão de que além de pagar uma multa de 20 meticais tinham que propor

85

um dia para trazer a nkeka. Em conversa com uma anciã ali presente soubemos que essa

era a regra, mas também era um pretexto para mais uma confraternização entre as duas

famílias.

A Sara que tinha saído da casa do marido no dia anterior foi chamada depois de

ter sido entregue uma nota de dez meticais pedindo autorização para vesti-la. O tio da

Sara agachou-se tirou uma nota de 100 meticais e depois foi a uma pallhota ao lado

acompanhado pelo Tembe, donde voltou trajando o fato do lobolo. A mãe foi se vestir

acompanhado pela vizinha. Os avôs também saíram e voltaram trajando novas roupas.

Por cada membro da família que saia para se vestir os Tembe tinha que desembolsar uma

nota de 10 meticais.

O regresso da Sara era à parte mais esperada da cerimônia. Ela voltou à sala

sentou no meio e a tia do José colocou-as os brincos, abriu um estojo tirou um relógio,

beijou-o e colocou-o no pulso esquerdo da noiva.A tia do José animada e para animar o

ato ia dramatizando fazendo alegorias de quem está a conquistá-la. Depois vieram as

palmas. Antes da intervenção de fecho pedi para fazer mais uma fotografia. As duas

famílias se juntaram, vieram as senhoras que estavam a preparar a refeição da festa e fiz

várias fotografias para a posterioridade.

O mestre de cerimônia agradeceu o gesto dos Tembes e convidou-os a almoçar.

Saímos do local onde se estava a fazer o lovolo, espalhamo-nos pelas sombras da casa.

Serviu-se a comida, antes de se começar a comer rezou-se e depois foi a festa até ao

regresso à casa dos Tembe que só veio a acontecer no início da noite.

5.4. As lições do lobolo de hoje

No decurso do presente trabalho fomos mostrando que as formas de prestação do

lobolo foram variando ao longo do tempo. Com base nos relatos do Junod(1996), vimos

que elas começaram com a entrega de 40 ou 50 enxadas por parte da família do noivo à

família da noiva. Passou-se para o período em que as prestações eram feitas através de

86

Libras Esterlinas, que inicia com a industrialização em Kimberley e Johannesburb, que se

manteve com o “pagamento” por cabeças de gado.

Olhando para os relatos acima, vimos que hoje as prestações incluem roupas,

alianças, bengalas, dinheiro (METICAIS) e outras coisas. Esta é a parte física deste ritual.

Todavia, o nosso maior interesse é procurar explicar a esférica simbólica do lobolo.

Em termos físicos encontramos muitas semelhanças entre o lobolo da Marília

Nhaca e da Sara N‟gumende. Todavia, é preciso notar que enquanto a Marília e o

Leonardo estão a dar os primeiros passos para a vida conjugal, a Sara e o José, já têm

filhos e vivem juntos há 15 anos.

Posto isto, afinal, onde é que está a diferença entre estas duas cerimônias?

O relato mostrou que no caso da Marília Nhaca e Leonardo N‟kondzo, a família

preparou duas cerimônias, uma tradicional para Sexta-feira e uma outra civil e religiosa,

para Sábado. A partida, notamos que estamos perante um acontecimento com três

dimensões: econômica, simbólica e jurídica.

A dimensão econômica tem a ver com a parcimônia que caracterizou este lobolo:

o noivo se esforçou para cumprir todos os requisitos que constavam na lista enviada pela

família da noiva, mas concentrou o maior investimento para a festa que se seguiria aos

casamentos na Igreja e no Palácio dos Casamentos (Registro Cívil). Outra prova da

parcimônia foi a composição da delegação que foi a casa dos Nhaca: tio, tia, vizinho e

prima.

O aspeto simbólico destas cerimônias está no fato de elas terem tido três

dimensões: a costumeira, a religiosa e a cívil, com maior peso para estas duas últimas.

Isto mosta que há um deslocamento no peso simbólico nestas alianças

matrimoniais que ultimamente se fazem. Este é um aspeto importante da mudança.

A componente jurídica deste lobolo foi composta por dois elementos

sociologicamente diferentes: a legitimação e a legalização. Na Sexta-feira, os novos

foram legitimados pela família, aqui se inclui os antepassado, pois o tio da Marília disse-

nos que haviam comunicado aos espíritos da família num m‟palho realizado na

madrugada daquele dia. No Sábado, os noivos foram legalizados pelo Pastor da Igreja

Presbiteriana e pelo Estado moçambicano, através do conservador que dirigiu a cerimônia

de casamento civil.

87

Qual dos dois norteará a vida destes noivos?

A Lei da Família de Moçambique-, Lei nr 10/2004, de 25 de Agosto-, procedeu,

entre outros, ao reconhecimento da união de fato e estabeleceu o regime jurídico quanto

ao regime de bens (que é o de comunhão de adquiridos). Esta lei estabelece que as

pessoas que tenham vivido juntas maritalmente, num período superior a 4 anos podem

fazer o registro de casamento (legalizar), bastando para isso ter quatro pessoas como

testemunhas.

Havendo esta possibilidade, porque é que a família Tembe insistiu em lobolar a

Sara?

Quanto ao lobolo de José Tembe e Sara N‟gumende, primeiro temos que a

assinalar que há um peso simbólico muito forte nesta aliança. Acompanhamos a

cerimônia desde as primeiras horas da manhã e vimos o tio do José no ritual do m‟palho,

invocação aos espíritos dos antepassados, “informando-os” sobre o acontecimento que

haveria naquele dia na família.. No decurso do ritual ele pediu ao pai do pai do José para

falar com o avô homônimo deste, para o comunicar que o neto xará finalmente ia

cumprir aquele preceito da tradição.

Por que é que ele fez isso? A explicação é que na tradição africana acredita-se que

os mortos estão constantemente a “vigiar” os vivos e estes lhes devem obediência e

respeito. Um dos significados simbólicos do lobolo do José é o “pagamento” da dívida

que ele tinha com os antepassados paternos dele e os antepassados paternos da Sara.

Tradicionalmente, naquele instante o avô homônimo do José e a avó homônima da Sara

se encontraram e quitaram-se as dívidas.

O lobolo significou para o José e a família um reencontro com a tradição, um

reencontro feliz com os seus deuses.

Na tradição dos wazinguire uma das formas de perpetuar a continuidade da

família é dar nomes dos avós aos netos que vão nascendo. É desta maneira que eles

renovam e perpetuam a família.

A veneração dos antepassados nos casos em que ela existe(Radcliffe-Brown,

1974, p.85), é parte integrante dos sistemas de parentesco, por ser constituída pelas

relações entre pessoas vivas e mortas e conseqüentemente, afetar as relações entre as

88

pessoas vivas e mortas e conseqüentemente, afetar as relações entre as pessoas vivas que

são membros do grupo.

Olhando para os dois casos, o que se vê hoje em Moçambique, é que a dinâmica

social imposta pelos eventos acima referidos está, aos poucos, impondo uma legalidade

que está fora dos costumes. E está é, nas representações locais sobre a mudança um dos

sinais mais referenciados.

89

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao refletir sobre o lobolo como foco das representações locais de mudança social,

este trabalho procurou nortear-se pela tentativa de analisar o papel do lobolo como uma

instituição dentro do sistema de parentesco tsonga, permeada por uma rede de relações

sociais que constitui parte da rede total de relações que é a estrutura social. Neste

contexto vimos ainda que para um sistema funcionar eficazmente, ele deve proporcionar

métodos de limitações, controle ou resolução de conflitos.

No presente estudo utilizamos o lobolo, como fenômeno social total, para analisar

e interpretar as mudanças na sociedade rhonga.. Como diz Mauss (1974): o fato social

total deve ser apreendido de uma experiência concreta; numa sociedade localizada no

tempo e no espaço.

Como vimos, o lobolo institui uma teia de relações entre parentes do noivo e da

noiva, um sistema. Um sistema de parentesco e casamento pode ser encarado como um

arranjo que capacita pessoas para viverem juntas e cooperarem umas com as outras numa

vida social ordenada. (Radcliffe-Brown, 1974: 62).

Na sociedade tsonga os ritos de iniciação serviam de referência moral e sócio-

cultural. Durante a nossa pesquisa empírica procuramos saber se ainda havia ritos de

iniciação e a resposta do régulo Zanta foi a seguinte:

“Falar de circunsição para as crianças de hoje,

nem pensar... Essa tradição perdeu-se com o tempo.

Essa e outras práticas tradicionais foram

desencorajadas pela revolução. Hoje há muita

gente com doenças venérias e admira-se quando

dizemos que se pode evitar fazendo circunsição.

Também é difícil localizar os velhos que eram

especialistas disso...”

Todavia, como vimos no capítulo 1, os ritos de iniciação eram o verdadeiro

nascimento do indivíduo como pessoa e por isso a comunidade ficava feliz. A criança era

90

a continuidade da comunidade e isso era celebrado durante as noites, com comida

especial, danças, contos e canções.

Os ritos tiveram uma grande importância na sociedade tradicional tsonga, pois

determinavam os valores morais e culturais de muitas gerações. Na percepção dos atores

locais, a transformação social e a supressão drástica destes ritos, iniciada com a

colonização até os nossos dias, levaram a nova geração a perder a sua referência moral,

sócio-cultural e religiosa.

O lobolo instituía um conjunto complexo de normas, de práticas e de padrões de

comportamento entre parentes. Estabelecia a relação social e a relação moral que deviam

existir entre as pessoas e as normas de comportamento que se refletiam em toda a

comunidade. É a alteração nas relações morais e no comportamento a ele relacionados

que é entendido como parte das causas de mudança social nesta comunidade.

Dissemos que certas características da comunidade de N‟kinga assemelham-se

àquelas descritas na literatura sobre campesinato. O campesinato é um grupo social com

muito apego a cultura tradicional(Shanin, 1971), a vida comunitária e subordina-se

econômica e politicamente ao Estado. No caso de N‟kinga, a autoridade tradicional, na

pessoa do régulo e o seu séqüito de indunas era percebido como algo que transmitia o

pulsar da tradição no dia-a-dia da vida das populações locais Percebemos isso quando,

por exemplo o régulo nos disse”: [...] Hoje as pessoas já não respeitam a tradição.

Olham para os velhos como se fossem lixo[...].

Na sociedade tsonga um homem devia respeitar especialmente todos os homens

do grupo etário de seu pai e suas respectivas mulheres e obedecer certas regras de

etiqueta na sua relação com outras pessoas da mesma faixa etária.

A função social desta relação é evidente. A tradição social transmite-se de

geração em geraçào. Para que esta tradição se mantenha tem de existir uma autoridade

por detrás dela. A autoridade reconhece-se como pertencendo aos membros da geração

precedente e são eles que exercem a disciplina (Radcliffe-Brown, 1974, p.142).

Na generalidade, vimos que a percepção de mudança está diretamente ligada a um

sentimento de alteração das instituições sociais. Uma instituição social é a norma de

91

comportamento estabelecido que é reconhecido por um certo grupo ou classe social ao

qual pertence (Radcliffe-Brown, 1973, p.22)

O nosso estudo teve como base muito material bibliográfico relacionado com o

tema lobolo. A luz da teoria de “Fenômeno Social Total” de Marcel Mauss, analisamos as

percepções que vários autores e atores sociais tiveram e têm construído a volta desta

instituição de aliança matrimonial entre os rhongas. A nossa ênfase de estudo foram as

mudanças do ponto de vista simbólico. Como diz Clifford Geertz (1973) no seu ensaio

“A interpretação das Culturas”:

“O conceito de cultura, é essencialmente semiótico.

Acreditando como Max Weber, que o homem é um

animal amarrado as teias de significação que ele

mesmo teceu[...]”

O peso da mudança é mais simbólico, ou seja, cultural do que material. A troca das

enxadas pelo gado e deste pelas libras esterlinas ou pelo metical foi sempre equivalente.

Não é a nível de objetos físicos que esta instituição mudou. A sua mudança é percebida a

nível do seu significado simbólico. E esta mudança vem se refletindo na sociedade

sobretudo no período posterior a independência, momento em que como mostramos no

Capítulo 2, o peso da tradição foi preterido.

Na nossa pesquisa empírica, observamos ainda que o papel outrora

desempenhado pelos anciãos da família passou a ser desempenhado pelos anciãos da

igreja. Na família os anciãos eram vistos como depositários da tradição, as “bibliotecas”

da família, são eles que quando morrem se “transformam” em deuses da família e sempre

foram fonte de referência para a educação das novas gerações.

E vimos, no decurso deste trabalho, que o lobolo tinha uma dimensão simbólica

profunda, pois além dos vivos, ele era, de certa forma, uma forma de reencontro com os

antepassados ou seja, com os deuses da família. Através do lobolo até se quitavam

dívidas acumuladas, como vimos no caso do lobolo tardio dos Tembe a Sara N‟gumende.

92

A conversa com o Leonardo fez-nos percebemos que o lobolo deixou de ser

aquele ato de colaboração familiar que foi outrora. O peso do lobolo estava na união total

dos esforços por parte da família do noivo. No tempo em que se lobolava com gado, este

era usado para que o irmão da mulher loboloda fosse lobolar uma outra mulher para a

família. Não era o valor monetário ou mercantil que estava em causa, era o seu peso

simbólico. Os objetos transacionados eram “divisa” simbólica. Serviam para multiplicar a

teia de relações, deveres e obrigações dentro da estrutura familiar.

Sobre o significado do lobolo e do casamento civil e/ou religioso, mamana Joana

Tembe, 67 anos, fez no seguinte comentário:

“O lobolo não é casamento. É um ato de demonstração do

crescimento da mulher. Com o lobolo certificava-se que a

mulher é parceira de alguém. O lobolo era para os pais e a

família da mulher; era uma forma de mostrar à sociedade

que a filha está com alguém, ou seja, que a mulher já está

crescida e ocupada. Era uma forma de prestigiar a mulher

perante a sociedade. Até os antepassados eram informados

através de m‟palho. O casamento civil é uma festa”.

Outro aspecto novo e diferente é que antigamente (Junod, 1996) toda a aldeia se

envolvia nesta cerimônia. Havia momentos de pausa que consistiam em muitas

brincadeiras que aconteciam até a chegada delegação do noivo, composta na sua maioria

por velhos que chegavam cantando. Isto mostra a importância e o papel dos velhos na

transmissão de valores e o respeito que por estes se tinha.

O missionário e etnógrafo suíço também descreveu o casamento por rapto,

kutluva, que era a maneira que os pobres usavam para arranjar mulheres.Mas diz ainda:

“O raptor se tem o menor sentimento de decência, procura obter o lobolo”. Se a mulher

que tivesse sido roubada por kutlhuva fosse viver imediatamente com o marido irregular

e se instalasse na aldeia dele, os pais combinavam para agir de outras maneiras. Entravam

93

em confrontação com a outra família; invadiam a aldeia do raptor, matavam um porco e

ameaçavam-no e como resposta o lobolo era pago.

O kutluva era algo extraordinário, só os pobres é que o praticavam. Criava

desordem social que era imediatamente resolvida com o “pagamento “ do lobolo.

Pela conversa com o pastor anglicano, em Kinga, percebemos que o que era

anormal passou a ser normal. Há mais situações de kutlhuva do que de lobolo. E isto é

também justificado localmente pela constante pauperização das famílias. A conjuntura

geral do pais alterou, mudou as atitudes das pessoas na maneira de pensar e construir

novos lares.

Antes, nos finais do século XIX e início do século XX, no lobolo que

descrevemos acima, vê-se que há um grande envolvimento da comunidade desde a fase

de namoro, kugangisa, na preparação da festa e na entrega do lobolo. Era esse

envolvimento que institucionalizava a cerimônia pois é aí onde se clarificava o

parentesco por aliança e se clarificavam os papeis sociais e comportamentos. Era esta

gama de aspetos simbólicos que fazia do lobolo o fenômeno social total descrito por

Marcel Mauss.

Mauss observou que a sociedade é primeiramente instituída por uma dimensão

simbólica, e que existe uma estreita ligação entre o simbolismo e a obrigação de dar,

receber e retribuir em todas as sociedades independentemente das mesmas serem

modernas ou tradicionais.

É no lobolo que se determinavam os papeis, que se estabeleciam às regras de

relacionamento entre as pessoas, os lugares que elas ocupariam na esfera social, os

comportamentos e as atitudes. É a erosão destes valores que faz com que as pessoas

sintam que algo mudou na sociedade rhonga.

A análise demonstrou que houve mudanças nas formas de fazer o lobolo, ditadas

pelas condições sociais, econômicas, políticas e históricas que o país atravessou desde os

94

finais do século XIX. No entanto, esta mudança não significou uma transformação

valorativa do estatuto do lobolo.

A pesquisa mostrou que do ponto de vista simbólico os atores locais relacionam a

mudança que têm vindo a acontecer na a sociedade moçambicana em geral e a região de

N‟kinga em particular as mudanças em relação ao papel da autoridade tradicional, o papel

dos anciãos e o abalo que isso veio a provocar na manutenção do lobolo como um dos

pilares estruturantes da vida dos tsongas em geral e dos rhongas em particular.

95

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100

GLOSSÁRIO

A kuna n„kinga- não há problema

Chizinguiri- variante tsonga falada em n‟kinga

Sutho- população do Leshoto

Zulu- etnia sul-africana

Rhonga- variante tsonga do Sul de Moçambique, falado principalmente pelas populações

residentes nos arredores da Baia de Maputo.

Changanas - variante tsonga do Sul de Moçambique

Tswas- populações tsonga residentes em algumas regiões da região de Inhambane

Tatana- pai

Hosi- chefe

Tiko- território

Nganakana- vizinho

Tatana- pai, deus

Muti- casa, família

Muganga- área residencial

Machamba- roça

Mupsana- sobrinho

Malume- irmãos da mãe e irmãos do pai

Rhazhana- irmãos da mãe e irmãos do pai

Gwevar- comprar a grosso

Xima ou upsua- comida feita com base na farinha de milho, comida similar ao angu

brasileiro

Muzho- caldo, ensopado

Nikai- casamento muçulmano

Mutchato ou mutchato - casamento

Ukatine ou kukandza ukati- situações em que uma mulher vai viver com o marido sem

legalizar (registro civil) ou legitimar a união (tradição ou igreja)

Lovolo ou lobolo- aliança matrimonial legitimada pela tradição

101

Kutluva- situação em que a mulher “foge”ou sai de casa para ir viver em casa de um

homem sem consentimento da família

Humbuya- amantismo

Dzimu- trabalho coletivo, algo similar ao mutirão brasileiro

M „palho- cerimônia de invocação dos espíritos dos antepassados

Kungangisa- namoro

Gansa- escolher namorada

Kubuta- pedido, anelamento

Nsimba- gato bravo

Kurhandza- gostar

Kuda ukosi- comer o dinheiro que vem do noivo

Xivongo- apelido

Kulhoma- chegada da noiva a aldeia do noivo

Vuxaka- perentesco

Vukon‟nwana- parentesco por aliança

Munykeni timbeleko- dêem-na sorte de nascer; fazer filhos

Nhololo- astrágalo

Kulhumula mutua- tirar o espinho ou pico

Xigyana- acompanhamento da noiva

Tatana- pai

Mamana- mãe

Timpsalo- ternura

N‟kata, n‟santi- esposa

N‟kata ou nuna- marido

Tinamu- mulheres potenciais

Kutamela mavele- apalpar as mamas da mulher

Nlhampsa- segunda mulher

Gandzelo- túmulo

Psa ila kutsicana- é pecado divorciar

Kundrungulisana- contar as novidades do dia

Hikolwili- estar farto

102

Muhekete- acompanhante

103

ANEXOS

Anexo1: Algumas fotos de N‟kinga

Mulheres trabalhando na roça

As casas encontram-se dispersas no meio da floresta

104

Casa de processamento do mel

A maior parte das casas de N‟kinga são palhotas

105

A entrada da Reserva Especial de Maputo

Uma das margens do Rio Futi

106

As populações fazem criação de animais de pequena espécie

O artesanato local inclui a tecelagem de esteiras

107

Anexo2: A cerimônia do lobolo

Roupas para os pais da noiva

Roupas para os avós e o garafão de vinho

108

Parte do dinheiro do lobolo

A noiva recebendo os brincos e o anel

109

Mulheres preparando a comida

“Bhota” uma das panelas típicas e mais usadas nas festas

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