PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e...

116
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO LETÍCIA BORGES DA SILVA MULTICULTURALISMO E BIODIVERSIDADE – UM DESAFIO AO DIREITO VIGENTE CURITIBA 2007

Transcript of PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e...

Page 1: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

LETÍCIA BORGES DA SILVA

MULTICULTURALISMO E BIODIVERSIDADE – UM DESAFIO AO DIREITO VIGENTE

CURITIBA 2007

Page 2: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Letícia Borges da Silva

Multiculturalismo e biodiversidade – um desafio ao

direito vigente

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito Econômico e Social da PUCPR como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Profº Drº Carlos Frederico Marés de Souza Filho

Curitiba Janeiro de 2007

Page 3: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Letícia Borges da Silva

Multiculturalismo e biodiversidade – um desafio ao

direito vigente

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Direito Econômico e Social da PUCPR. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

__________________________________

Profº Drº Carlos Frederico Marés de Souza Filho Orientador

Centro de Ciências Jurídicas e Sociais - PUCPR

_________________________________________ Profª Drª Claudia Maria Barbosa

Centro de Ciências Jurídicas e Sociais - PUCPR

________________________________________ Profª Drª Alejandra Leonor Pascual

UNB

Curitiba, 14 de Fevereiro de 2007.

Page 4: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da autora e do orientador.

Letícia Borges da Silva

Graduou-se em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná em 2005. Desenvolveu projetos de

pesquisa vinculados ao Programa Institucional de Bolsas para a Iniciação Científica. É advogada.

Ficha Catalográfica

Silva, Letícia Borges da S586m Multiculturalismo e biodiversidade : um desafio ao direito vigente / Letícia 2007 Borges da Silva ; orientador, Carlos Frederico Marés de Souza Filho. – 2007. 122 f. ; 30 cm Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2007 Inclui bibliografia 1. Nativos – Estatuto legal, leis, etc. – América Latina. 2. Multiculturalismo. 3. Diversidade biológica. 4. Direito. 5. Capitalismo. 6. Democracia. I. Souza Filho, Carlos Frederico Marés de. II. Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título. Dóris 4. ed. – 341.1234098 CDD 20. ed. – 306. 446 575.2

Page 5: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

A Carlos Henrique, Joselice, Adilton e Rodrigo pelo amor, carinho e confiança.

Page 6: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Agradecimentos A Deus, pela dádiva de uma vida saudável e exuberante. Ao insigne orientador, Professor Carlos Frederico Marés de Souza Filho, pela atenção, empenho e competência emprestados, tornando possível vivenciar, em cada contato, um momento de crescimento e aprimoramento pessoal. À CAPES e à PUCPR, nas pessoas dos Professores Carlos Marés, Claudia Barbosa e Antônio Carlos Efing, integrantes da Comissão de bolsas, pelos imprescindíveis apoios concedidos. À minha valiosa família Carlos Henrique, Joselice, Adilton, Rodrigo, Elbio (in memoriam) Mara, Ricardo, Odilon e Helena que souberam suportar paciente e incondicionalmente as exigências do processo intelectivo e de pesquisa. Às Professoras Claudia Barbosa e Alejandra Pascual pelas imprescindíveis e brilhantes colaborações dadas ao presente trabalho. Aos amigos, professores e funcionários da PUCPR pela ajuda. A Eva Curelo, Isabel Rosa, Flávia Barossi, Mariângela Ohrem, Clarissa Wandscheer, Paulo Pankararu, Janaína Paim, Karine Finn, Patrícia Carvalho, Patrícia Piazzaroli, Ana Luiza Piva, Leonardo Serafini, Mariana Castro, Ana Paula Liberato pelo carinho e amizade de sempre. A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para minha formação como ser humano. Muito Obrigada!

Page 7: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Resumo

Borges da Silva, Letícia; Souza Filho, Carlos Frederico Marés. Multiculturalismo e biodiversidade – um desafio ao direito vigente. Curitiba, 2007. 122p. Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica do Paraná. O multiculturalismo e a biodiversidade são conceitos novos para o

direito moderno, que foi concebido dentro de uma visão individual e

positivista, centrada na propriedade, posto que fruto da consolidação do

sistema capitalista. Na América Latina, os povos indígenas, assim como

outras comunidades culturalmente diferenciadas, não compartilham do

mesmo direito, vivem conceitos e estruturas próprias sociais e de justiça. O

Estado e o direito passam por uma crise. Uma das formas de superá-la é

consolidar a aceitação do pluralismo jurídico, ao invés de pretender controlar

todas as dinâmicas sociais complexas da atualidade, que sempre conviveram

com o pretensioso monismo jurídico, ainda que não reconhecido por ele. No

presente trabalho, através do método indutivo, faz-se uma análise crítica do

sistema jurídico vigente, no âmbito nacional e internacional, propondo uma

abertura, a um só tempo, política, jurídica e ideológica, no sentido de

viabilizar a concretização dos valores do multiculturalismo de modo efetivo,

aliado à biodiversidade, numa perspectiva de sustentabilidade humana e

socioambiental aliada à necessidade de trilhar caminhos que conduzam à

convivência pacífica e à felicidade coletiva, parâmetros edificadores da paz

mundial.

Palavras-chave Diversidade cultural; América Latina; povos indígenas;

biodiversidade; Estado; direito moderno; capitalismo; democracia; pluralismo

jurídico; direitos socioambientais.

Page 8: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Abstract

Borges da Silva, Letícia; Souza Filho, Carlos Frederico Marés (Advisor). Multiculturalism and biodiversity – a challenge for law in vigor. Curitiba, 2007. 122p. MSc. Dissertation – Programa de Pós-graduação em Direito, Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Multiculturalism and biodiversity are new concepts for modern law

that had your basis on an individual and positivist view centered in the

property right to suport the capitalism system. In Latin America, indigenous

people and others culturally differentiated communities use to have their own

concepts, justice and social structures. Thus, they do not share the others

people´s usual law. There is a crisis of State and law. A way to surpass this

crisis is to perform juridical pluralism actions instead of intending to control

all the nowadays complex social dinamics, that always lived together with the

pretencious juridical monism, in despite of not recognized by it. In the

present work the juridical system in vigor, as national as international, was

analysed by an in inductive method. The propose is a political, juridical and

ideologic change able to realize the multiculturalism value and the associated

biodiversity , in order to provide a human and social environmental

sustainable perspective to guide all in the rhumb of pacific convivence and

colective happiness, builder parameters of world-wide peace.

Keywords Cultural diversity; Latin America; Indigenous people; biodiversity;

State; modern law; capitalism; democracy; juridical pluralism; social

environmental rights .

Page 9: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Sumário 1. Introdução 13 2. Do individual ao coletivo: relação entre capitalismo, Estado,

multiculturalismo e biodiversidade 17 2.1 O direito moderno ocidental atrelado ao sistema

econômico liberal e capitalista 19

2.1.1 A origem do capitalismo e as transformações sociais 21

2.1.2 Propriedade privada e a visão contratualista do direito 26 2.2 Uma mudança paradigmática 27 2.3 - A conquista dos novos direitos coletivos 29 2.4. Povos Indígenas: desrespeito e reconhecimento de direitos 32 2.5 Multiculturalismo nas constituições latino-americanas 34 2.6. Panorama internacional 36

2.6.1 O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial 37

2.6.2 A Organização Internacional do Trabalho e a Convenção 107 39 2.6.3 A Convenção 169 da OIT 41

2.6.3.1 A redefinição do conceito de povos 42

Page 10: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

2.6.3.2 O princípio da autodeterminação dos povos 44

2.7. Multiculturalismo relacionado à biodiversidade 46

3. Realidade multicultural: globalização, democracia e sistemas jurídicos diversos 51

3.1 Multiculturalismo: um desafio contemporâneo 51 3.2 Globalização contra-hegemônica 54 3.3 Democracia e diversidade na sociedade contemporânea 55

3.3.1 Lutas democráticas entrelaçadas: o movimento socioambiental 58

3.4 Para além do direito positivo 60 3.5. A sociedade e o sistema jurídico tukano 62

3.5.1 Poder, ética e direito 63

3.5.1.1 Autoridades tukano 64

3.5.2 Relações com a terra, herança e produção 65

3.5.2.1 Meio ambiente e biodiversidade 66

3.5.3 Obrigações, contratos e comércio 67 3.5.4 Direito de família 69 3.5.5 Questão penal e processo 69

3.6. Sociedade e autonomia kuna 72

3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades tradicionais e Congresso Local 74

3.6.1.2 Congresso Geral 75

3.7. Apontamentos sobre experiências multiculturais 76

Page 11: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

4. Pluralismo Jurídico para a afirmação da sociobiodiversidade 80

4.1 Um direito estatal e monista 80 4.1.1 O Império Romano e a Idade Média 82 4.2 A crise do monismo jurídico 84 4.3 Pluralismo Jurídico 85 4.3.1 Um direito social 86

4.3.2. Pluralismo jurídico e povos indígenas 88

4.3.2.1 Direito consuetudinário 92

4.4 Pluralismo jurídico formal unitário versus igualitário 93

4.4.1 Autonomia indígena 96

4.5 Para a construção de um Estado pluriétnico e multicultural 99

4.5.1 Multiculturalismo na Constituição Federal de 1988 100 4.5.2 Bolívia: uma transformação multicultural 104 4.5.3 As possibilidades reais de um sonho 107

4.5.4 Estado-Nação ou Nações-Estado? 110 5. Conclusão 113 6. Referências Bibliográficas 117

Page 12: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Siglas

Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB)

Constituição Federal de 1988 (CF/88)

Fundo das Nações Unidas para a infância (Unicef)

Instituto Latinoamericano de Servicios Legales Alternativos (ILSA)

Instituto Socioambiental (ISA)

Medida Provisória (MP)

Organização Internacional do Trabalho (OIT)

Organização Mundial do Comércio (OMC)

Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI)

Organizações Não-Governamentais (ONGs)

Organização das Nações Unidas (ONU)

Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura

(UNESCO)

Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP)

Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

(PIDESC)

Proposta Indígena, Originária e Campesina (PIOC)

Trade Related Intellectual Property Rights (TRIPS)

Page 13: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Lista de Figuras e Tabelas Tabela 1 – Aumento do impacto humano 33

Figura 1 - Foto aérea: André Vilas-Boas, s/d, ISA. 49

Figura 2 - Foto aérea: Pedro Martineli, 1999, ISA. 49

Figura 3 - Maloca Kuebi do Rio Kuduari, Kock-Grünberg , 1904, ISA. 62

Page 14: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

1

Introdução

“Tendes, pois, do futuro este temor salutar, que faz velar e combater e não este terror mole e ocioso que abate e enerva os corações.”

Alexis de Tocqueville

Diferença. Talvez, seja este um dos mais intrigantes dilemas da

existência humana. O diferente, nem sempre se quer conhecer, é desafiador,

pode até gerar insegurança e temor... Porém, numa outra perspectiva, é

estimulante, fugaz e belo. Os pontos de vista a respeito da diferença variam

muito, não raras vezes, eles se opõem. O fato é que as diferenças existem, o

que muda, tão somente, é a forma como a tratamos.

A diferença cultural que se faz presente na variedade do “como

viver”, inerente a cada um dos grupos de representantes da espécie humana

espalhados pela superfície do Planeta, e a infinidade de organismos vivos

diversos presentes na flora e na fauna, com quem compartilhamos a vida

neste mundo, fazem surgir o que denominamos de multiculturalismo e

biodiversidade, respectivamente.

Tais conceitos, no entanto, tiveram ao longo do tempo uma conotação

meramente descritiva das situações multifacetadas, no processo de adaptação

de nossos ancestrais às condições ambientais, ao se espalharem pelo mundo,

chegando aos nossos dias, sem muita influência ou implicação no que

respeita à melhor convivência e integração da sociedade como um todo em

busca da felicidade.

O direito, por seu turno, instrumento de equilíbrio das relações

sociais, teve sua construção histórica totalmente dissociada dos conceitos

acima referidos, particularmente, nos últimos quatro séculos em que se

verificou o surgimento e a consolidação do Estado moderno.

Entretanto, refletindo sobre as transformações tão rápidas e profundas

por que passa o mundo de hoje, não há como negar a forte modificação que o

Page 15: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

direito moderno sofreu, e como não poderia deixar de ser, atingiu diretamente

o pensamento a respeito da diversidade cultural e biológica.

Um bom exemplo, a propósito, é a situação dos povos indígenas que

vivem em meio à biodiversidade, manejando a riqueza natural de forma a

preservá-la para as presentes e futuras gerações, mas que, no entanto, foram

por tanto tempo considerados como inferiores pelo sistema capitalista, cujo

modo de produção e de consumo apresentam-se já por demais insustentáveis.

O presente estudo tem como objetivo destacar o fato de que é

necessário ampliar a noção do direito, passando de único e centralizado para

coletivo e plural, libertando-se das amarras do individualismo exacerbado e

do acúmulo de capital, para admitir outras formas de ordenamento social, não

necessariamente codificadas.

Na medida em que essa postura seja consolidada, criar-se-á condições

para que cada cultura, em especial a indígena, atue de forma independente,

autêntica e coordenada, conduzindo a uma preservação efetiva da riqueza

cultural e natural.

No primeiro capítulo, apresentamos um esboço histórico sobre o

sistema capitalista, sua vinculação ao direito individual de propriedade e o

papel do Estado. Em seguida, faz-se uma apreciação das transformações

ocorridas, à luz dos movimentos sociais que se seguiram, conferindo uma

nova racionalidade ao direito, que passou a dar ênfase aos direitos coletivos,

culturais, ambientais e outros.

Deste contexto, destaca-se a atuação dos povos indígenas da América

Latina, cujas reivindicações passam a figurar nas constituições nacionais e

convenções internacionais, as quais lhes atribuem direitos, considerando o

modo de viver de suas comunidades, intimamente relacionado com a

preservação da riqueza cultural, recursos naturais e biodiversidade.

No segundo capítulo, busca-se apresentar uma realidade multicultural

diante do fenômeno da globalização, do fortalecimento e consolidação da

democracia no mundo do pós-guerra, através de uma amostra das múltiplas

faces que se apresentam no mundo contemporâneo, registrando as formas de

vida dos povos tukano e kuna, inseridos cada qual no seu ambiente

Page 16: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

geopolítico, e a necessária reflexão sobre os caminhos que podem levar à

consolidação de uma nova cultura jurídica voltada ao pluralismo.

Por fim, no terceiro capítulo propõe-se um necessário ajuste do

sistema de direito consagrado, discorrendo sobre a exigência de uma

reapreciação dos conceitos de soberania, nação e Estado, a fim de que o ideal

do pluralismo jurídico igualitário possa ser absorvido no plano fático.

Descreve-se, ainda, a fase que passa a Bolívia, atualmente, na sua luta pela

consolidação de um Estado multicultural.

É de suma importância ter em mente, que o direito não há de servir

como obstáculo às transformações sociais. Contemporaneamente, vive-se

uma variada gama de novas possibilidades, fomentadas, inclusive, pelo

ambiente democrático.

Quem pretenda preocupar-se com temas dessa natureza, intimamente

relacionados com as ciências jurídicas, políticas e sociais, há de fazê-lo com

muito senso crítico sobre os valores que permeiam a convivência harmônica

em sociedade, principalmente, aqueles que se apresentam compatíveis com o

fim do individualismo apregoado pelo capitalismo monopolista.

Assim, é que o presente estudo, classificado como interdisciplinar,

valeu-se de técnicas do método indutivo, cujo recurso da associação de

idéias, permitiu, por um lado, exercitar o livre pensar, e, por outro, imaginar

modificações possíveis que venham abrir uma perspectiva renovadora, a um

só tempo dinâmica e desafiadora em torno do tema proposto.

Nessa linha de raciocínio, acha-se a concepção de uma sociedade

plural que precisa superar o conteúdo de dominação, indo além da idéia

assimilacionista proveniente da colonização, e caminhar para uma igualdade

de possibilidades, visando garantir a dignidade de todas as culturas num

mesmo nível.

Claro está que daí emerge uma nova lógica em cena, uma

racionalidade completamente diversa da que vinha sendo adotada no curso da

história do direito. Surgem mecanismos de proteção a interesses supra-

individuais.

Page 17: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Na América Latina, os povos indígenas se organizam para lutar por

direitos há tanto tempo esquecidos e violados.

Os povos que até então eram considerados inferiores recuperam seu

valor, e demonstram sua importância cultural e ambiental para o mundo. Os

organismos internacionais e os Estados vão se abrindo ao debate; aparecem

documentos jurídicos que permitem a proteção do coletivo, inserindo a noção

de diversidade cultural e biológica.

Cada realidade multicultural poderá exigir diferentes soluções acerca

do relacionamento com a sociedade envolvente, o que é inerente à própria

diversidade. A formatação ou uniformização jurídica desta relação acarreta

interferências culturais profundas e muitas perdas também. Daí, a

necessidade de reformulação do direito, permitindo o diálogo de igual para

igual entre todos os povos e a manutenção de suas estruturas organizativas.

Page 18: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

2 Do individual ao coletivo: relação entre capitalism o, Estado, multiculturalismo e biodiversidade

“O homem é o capital mais precioso.”

Karl Marx

O direito, por força das exigências sociais em um mundo onde as

transformações acontecem continuamente, passa por diversas crises no afã de

se adaptar às novas situações estabelecidas. A partir do século XX, por

exemplo, o direito moderno de mero garantidor das relações entre Estado e os

indivíduos, assumiu outros espaços, ganhando incumbências inovadoras, tais

como a regulação da economia e a intervenção em questões sociais.

O direito individual era o mais importante, sendo tratado em um

código próprio e com uma riqueza de detalhes incrível, tais como: a

propriedade existente sobre as terras de um rio que secou, ou sobre os frutos

de uma árvore que caiu em terreno alheio1.

Era a supremacia do direito individual, tendo como representação

mais importante, o direito de propriedade. Todos os demais direitos eram

considerados públicos, mas, simplesmente, no sentido de serem estatais, e

não, coletivos.

Hoje, já não é mais assim, o individualismo vem cedendo pouco a

pouco, perdendo a importância solar no sistema. A propriedade é relativizada,

e somente garantida caso cumpra uma função socioambiental.

A propósito, contemporaneamente, o direito vem sendo revisto,

passando de uma concepção clássica, individualista e liberal, para uma

perspectiva supra-individual, na medida em que há o fortalecimento e a

consagração dos direitos coletivos perante a sociedade.

A crise por que passa o direito, porém, é diferente das outras, e nunca

fora vivenciada em toda sua história, porque agora ela atinge o âmago, o

1 SOUZA FILHO, C. F. M. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, F.; PAOLI, M. C. Os

Sentidos da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global, p. 308.

Page 19: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

cerne da estruturação jurídica que é o direito privado e individual. Da

sociedade, emergiram reivindicações determinantes, considerando os

desequilíbrios gerados pela economia de mercado e a concentração de

riquezas.

O poderio econômico extrapolou sua influência de atuação na vida

das pessoas, até então mais marcante no nível individual, para fazer com que

toda uma coletividade fosse atingida pelos seus efeitos nocivos. Não foi por

outra razão, que surgiram mecanismos para, num processo evolutivo e

gradual, tutelar os chamados interesses difusos e coletivos, como forma de

reação ao modo de produção capitalista concentrador.

Essa mudança de perspectiva que o direito vem enfrentando é um

fenômeno que ocorre, na medida em que as desigualdades sociais provocadas

pelo liberalismo econômico vêm sendo contestadas. As questões trabalhistas,

ambientais, os direitos do consumidor, os direitos culturais etc., fizeram com

que as relações sociais se tornassem cada vez mais complexas.

Poder-se-ia configurar uma situação descontrolada na qual a

sociedade tenderia para um caos, onde a superestimação do direito de

propriedade privada, a liberdade de contratação e a autonomia da vontade

fomentariam cada vez mais a possibilidade de que uns poucos chegassem a

possuir enormes quantidades de bens em detrimento dos demais.

Alguém tinha que interceder como agente moderador: o Estado-

Providência ou do Bem-Estar social foi conseqüência dessa postura de maior

regulação social.

As Duas Grandes Guerras Mundiais, o movimento socialista, a crise

ambiental e o domínio da economia por grandes corporações, trouxeram

problemas que os princípios individualistas do direito não mais bastavam

para atender as demandas da sociedade que se transformava. Criou-se um

impasse, já que o direito acreditava que nada haveria entre o Estado e os

cidadãos, portanto, tudo aquilo que não fosse privado era público.

A dicotomia privado versus público era bem definida, ou seja,

considerava direitos individuais de um lado e todos os demais do outro.

Page 20: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

As coisas que tivessem um certo tom de coletividade (como as

pessoas jurídicas e a massa falida) eram reduzidas ainda à individualidade, ou

eram apenas provisórias ou fictícias2. Para a resolução das questões, através

da simplicidade da indenização, era preciso não só haver um titular individual

e específico para tudo aquilo que fosse objeto do direito, como também, ser

passível de avaliação econômica. Essa lógica não concebia um direito

coletivo que não fosse, tão somente, a soma de direitos individuais. Os

direitos coletivos eram simplesmente invisíveis3 ao sistema, cuja

racionalidade individualista não permitia enxergar a coletividade como

sujeito, como titular de direitos.

Dessa forma, o direito simplesmente desconsiderava o

multiculturalismo e a biodiversidade, enquanto interesses coletivos,

relegando-os ao espaço do abandono ou da exploração alienígena, pois não

cabiam dentro da formatação jurídica moderna; encontravam-se numa zona

intermediária; não eram nem públicos nem privados, portanto, ocultos.

Toda essa estrutura jurídica patrimonialista, no entanto, tinha uma

forte razão de ser. As bases nas quais foi construído o direito moderno estão

ligadas fortemente à legitimação de um sistema econômico determinado que

então passara a vigorar: o capitalismo.

2.1 O direito moderno ocidental atrelado ao sistema econômico liberal e capitalista

A história nos mostra que as transformações sociais por que passava a

Europa e o fortalecimento político da burguesia exigiram do direito uma

resposta, ou seja, era preciso assegurar a estabilidade do novo comércio

nascente. Isto nos permite afirmar que o sistema capitalista incipiente teve

origem temporal e geográfica. “Estado e direito modernos começam a surgir

2 SOUZA FILHO, C. F. M. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, F.; PAOLI, M. C. P. Os

Sentidos da democracia, p.311. 3 Ibid., p.311.

Page 21: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

na Europa lá por volta do século XIII, talvez, antes, teorizados a partir do

século XVI...” 4

É por demais familiar o fato de que o direito moderno foi estruturado

tendo por fundamento as correntes naturalistas e positivistas, baseadas em

padrões culturais centrais, desconsiderando a diversidade social fática e até

mesmo buscando negá-la.

Num primeiro momento, ênfase foi dada ao jusnaturalismo,

considerando o homem detentor de direitos naturais que o acompanhavam

desde o seu nascimento, pelo simples fato de ser pessoa humana.

Assim, sendo naturais, os princípios e as regras de direito

independiam de convenção ou legislação, cabendo ao Estado, apenas,

garanti-los.

Num segundo momento, o positivismo jurídico entendeu que a

sociedade deveria ser organizada por regras do “dever ser”, provenientes das

“exigências organizatórias e das solicitações de natureza ética que daquela

realidade promanam” 5.

A norma jurídica criava o direito, e necessário se fazia escrever e

codificar os direitos naturais. Kelsen6 menciona, claramente, a vinculação do

direito como sendo norma jurídica, ao dizer que: “apreender algo

juridicamente não pode, porém, significar senão apreender algo como

Direito, o que quer dizer: como norma jurídica ou conteúdo de uma norma

jurídica(...)”

Os direitos naturais foram, então, positivados, ou seja, escritos e

garantidos por uma ordem institucional e organizada, a que se convencionou

chamar de Estados nacionais. As constituições foram os documentos políticos

criados para legitimar e dar sustentação a este sistema.

Dessa forma, o processo de positivação dos direitos considerados

naturais confunde-se com o da formação dos Estados que hoje conhecemos.

Para que houvesse organização e paz social era necessária uma entidade

4 Id., A função social da terra, p. 16. 5 LIMA, H. Introdução à Ciência do Direito, p. 45. 6 KELSEN, H. Teoria Pura do Direito. p. 79.

Page 22: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

superior aos indivíduos para garanti-las. Traduz-se, então, a idéia

rosseauniana de contrato social, firmado entre as pessoas e o Estado.

Por trás de toda essa evolução na concepção jurídica, estava a força

motriz, representada pela profunda modificação que ocorria nas relações

econômicas durante esse período: a sociedade saía da Idade Média,

libertando-se das amarras feudais e costumeiras, para ingressar num período

moderno, baseado na propriedade privada e no trabalho assalariado e livre.

2.1.1 A origem do capitalismo e as transformações s ociais

Ellen Wood7 esclarece que, embora a origem do sistema capitalista

tenha sido atribuída às cidades, isso não retrata a verdade factual, não

passando de mera afirmação com o objetivo definido de, intencionalmente,

obscurecer sua característica especificamente agrária.

Por milênios, os homens sobreviveram do trabalho da terra, dos

recursos naturais, e dividiam-se, basicamente, em: produtores diretos

(camponeses) e apropriadores do trabalho dos outros8. Havia o acesso direto

aos meios de produção, e a apropriação do excedente dava-se por meios

“extra-econômicos” (coerção: uso da força de fato, política, militar etc.).

A característica essencial do capitalismo não está no comércio, este já

existia há séculos, o que o distingue são as relações de propriedade entre

produtores diretos e apropriadores do trabalho, seja na agricultura ou na

indústria.

A base da sua consolidação é a expropriação dos camponeses,

relegando-os à condição única de vendedores da sua força de trabalho,

retirando desse contexto a mais-valia que proporciona os lucros. Assim

sendo, o capital não precisa utilizar-se da coerção direta, como fazia os

senhores feudais ou as monarquias, o excedente é concentrado pela própria

engenhosidade do sistema, condicionando os trabalhadores a não terem

escolha, visto não possuírem mais os bens de produção, a matéria-prima e,

7 WOOD, E. M. As origens agrárias do capitalismo, p.12. 8 Ibid, p.13.

Page 23: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

principalmente a terra que, na maioria das vezes, lhes foi violentamente

retirada.

Isso é possível pelo poder regulador do mercado, que nunca, antes,

tivera uma função tão importante como tem no capitalismo. Tudo pode virar

mercadoria: os meios de produção, a força de trabalho, a matéria-prima... O

mercado é determinante na regulação da produção e reprodução social, ele

comanda todas as coisas: do alimento e o básico, ao supérfluo e o luxuoso.

Os imperativos do capitalismo, tais como, competição, acumulação e

maximização do lucro, diferentemente de qualquer outro modo de produção

existente na história, quase sempre, e com maior intensidade, subjugam os

seres humanos e a natureza.

Lígia Osório Silva menciona na introdução ao texto de Ellen Wood9,

que a referida autora quer desmistificar a afirmação de que o capitalismo é

um sistema natural, ou o “equívoco da sua identificação simplista com o

impulso inato da ‘busca pelo lucro’”.

Não se pode garantir que o ser humano teria dentro de si uma pré-

disposição à apropriação individual dos bens, como querem alguns

pensadores do sistema, a exemplo de David Ricardo e Adam Smith, no afã de

considerar o capitalismo uma conseqüência natural da história da

humanidade.

Na Europa, até o século XVII, o comércio orientava-se pela simples

transferência de um mercado para outro, comprando barato e vendendo caro.

O mercado não era unificado, e pendia para os artigos de luxo.

Esses são considerados alguns princípios não-capitalistas de

comércio, que coexistiam, na época, com outras formas de acumulação de

capital, como a renda advinda do sobretrabalho - uma maneira graciosa de

obtenção de riqueza - até então extraído de cargos públicos ou de privilégios

das classes dominantes. Nem os produtores nem as elites dependiam do

mercado para a sua reprodução. Isto mudou completamente no cenário

9 WOOD, E.M. As origens agrárias do capitalismo, p. 09.

Page 24: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

capitalista, em que o mercado ganhou tamanha força que tanto produtores

quanto apropriadores tornaram-se dele dependentes.

A Inglaterra se sobressaiu em todo esse processo, pois era, dos países

europeus, o mais unificado, e isso facilitou a consolidação de um Estado

central forte10.

A base material da economia inglesa era a agricultura, mas, ao

contrário do que ocorrera em outros países como a França, a atividade estava

centralizada nas mãos de poucos latifundiários, os quais detinham alta

concentração de terra.

A adoção dos institutos de cercamento e melhoramento permitiu o

incremento da aplicação capitalista no campo. O primeiro foi uma forma de

apropriação individual da terra, antes comunal e coletiva. O segundo

correspondia ao aumento da produtividade, visando a competição e o lucro,

constituindo-se num dos fundamentos da propriedade e o alicerce da

exploração capitalista, sendo defendido pelos intelectuais da época como

John Locke.

Baseados no desenvolvimento de técnicas agrícolas, os

melhoramentos não só permitiram o aumento, mas também a concentração de

riquezas, e acirrou a competitividade entre os proprietários. O aumento da

riqueza foi se sobrepondo ao princípio da preservação das comunidades

camponesas e da distribuição eqüitativa dos recursos naturais. Paralelamente,

veio, também, a imposição cultural da lógica de mercado.

Houve um sistemático movimento, por parte dos novos proprietários,

no sentido de que não houvesse qualquer empecilho ao uso lucrativo da terra.

As práticas costumeiras e coletivas das comunidades locais interferiam

nitidamente na acumulação capitalista, pois se orientavam por outros

princípios que não o lucro, como por exemplo, limitações ao uso da terra em

prol de um benefício comunitário. O capital, então, optou por negar a

diversidade social e impor um padrão de produção e consumo único e

monocultural.

10 Ibid., p. 16.

Page 25: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

A concepção tradicional e coletiva de propriedade restava superada, e

foi gradativamente substituída por um novo conceito de propriedade:

privada, excludente e altamente produtiva.

Tudo isso foi teoricamente concebido e disseminado, de forma a criar

um falso consenso sobre a idéia de que não passava de um processo natural

de absorção pela sociedade em evolução.

Como bem definiu Locke,11 a propriedade era um direito natural,

assim como o era torná-la produtiva e lucrativa. O direito à melhoria da terra,

no sentido de aumentar a produção e o lucro, foi ganhando cada vez mais

espaço, em detrimento dos direitos costumeiros que perderam seu valor, e dos

quais muitas pessoas dependiam para sobreviver.

Além das comunidades, essa desvalorização atingiu também a

natureza: o valor estava, simplesmente, no trabalho humano. A

biodiversidade não possuía nenhum valor, senão, quando modificada pelo

homem.

Observe-se que, para Locke, a proporção entre natureza e trabalho é

de 1 (um) para 100 (cem). Ele utiliza como exemplo os povos da América,

mencionando serem ricos em natureza e “pobres em todos os confortos da

vida.” 12 O valor está na indústria humana. A natureza raramente é computada

na avaliação. O trabalho é o que agrega maior parte do valor, sem ele, a terra

não valeria quase nada, é apenas a matéria-prima, e bem menos valiosa.

Nos séculos XVI e XVII houve diversas revoltas por causa dos

cercamentos e dessa nova concepção acerca do uso da terra. Porém, as

classes dominantes venceram, e com a Revolução Gloriosa de 1688, foi

consolidado o triunfo do capitalismo agrário com as seguintes características:

maximização do valor de troca por meio da redução de custos e pelo aumento

da produtividade, através da especialização e da inovação (melhoramento);

processo de acumulação e expansão bem diferente do padrão antigo, que era

comunitário; e a criação de uma massa de camponeses expropriados.

11 LOCKE, J. Segundo Tratado sobre o governo civil e outros escritos, p. 105. 12 LOCKE, J. Segundo Tratado sobre o governo civil e outros escritos , p.107.

Page 26: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Surge, enfim, o capitalismo sob vestes dominantes, massacrando as

racionalidades coletivas.

Percebe-se que dele não fazia parte a noção de bem comum. Ao

contrário, buscava a desintegração das comunidades de bases tradicionais,

para sua posterior integração no sistema industrial, que se instalava

paralelamente nas cidades, já agora como pessoas individuais, transformando

os camponeses em trabalhadores livres.

A tríade marxista de proprietários de terras vivendo da renda da terra

capitalista; de arrendatários capitalistas, vivendo do lucro; e de trabalhadores,

vivendo de salários, corresponde às mudanças nas relações sociais que

resultou na transformação do comércio e da indústria na Inglaterra.

A acumulação primitiva de que fala Marx13 corresponde à separação

do produtor dos meios de produção. Essa é a pré-história do capitalismo. E

tudo isso foi ideologicamente concebido.

No feudalismo, os camponeses trabalhavam num regime de servidão,

submetidos ao poder e à proteção de seu senhor. A enganosa proposta do

capital era libertar esses trabalhadores da servidão feudal e transformá-los em

assalariados livres.

Essa liberdade, no entanto, lhes custou a expropriação dos bens de

produção, o que escravizou economicamente os camponeses.

A dependência do mercado foi causa da proletarização em massa. Os

expropriados, sem chances de adentrar na competição da agricultura

“melhorada”, viram-se obrigados a trocar sua força de trabalho por salário

nos grandes centros urbanos. Lá, era necessário consumir bens essenciais,

como alimentos e roupas, haja vista não mais possuírem os bens de produção.

Esse fator impulsionou a industrialização inglesa que, com o passar dos

tempos, sentiu a necessidade de expandir os mercados, através da

colonização de outras partes do mundo.

Analisando profundamente todo esse processo de consolidação do

capitalismo, é possível afirmar que, na Inglaterra, em virtude das condições

13 MARX, K. O capital, p. 261-284.

Page 27: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

favoráveis daquele país, que já contava com infra-estrutura de comunicação e

de transporte já adiantada, houve uma evolução diferenciada dos outros

países.

Assim, a ética do “melhoramento” marcou a expansão capitalista por

grande parte do mundo: por um lado, a exploração máxima da terra

(natureza) e a concentração de riquezas, e, contraditoriamente, o aumento da

pobreza e o desamparo total dos trabalhadores, por outro.

Tudo isso nos leva a inferir que a diferenciada situação inglesa torna

visível que o capitalismo, como vimos, não representa uma conseqüência

histórica, comum a todas as sociedades, ele foi exportado ou copiado, como

uma idéia supostamente pura e natural. A lógica da alta exploração e

subjugação dos povos e da natureza veio a reboque.

Refletindo mais detidamente sobre a essência do capitalismo, e tendo

em mira sua crença em constituir-se num instrumento de felicidade e bem-

estar, o que dizer dos reflexos nefastos produzidos na sociedade como um

todo, presentes até os dias atuais, através das mais variadas formas de

carência e de exclusão?

Não seria, talvez, pelo capitalismo ter-se desenvolvido na contra-mão

da natureza, e em vista disso, ter exigido um trabalho persuasivo árduo e

persistente de seus pensadores, no sentido de forçar um falso consenso a esse

respeito?

Seria um exagero, ou excesso de imaginação afirmar que nem todas as

comunidades, nem todos os povos terão que passar pelo capitalismo, como

uma fase irremediavelmente necessária de sua evolução?

Há povos indígenas e outras comunidades tradicionais, cujo estilo de

vida comprova essa não-natureza humana de lucrar e acumular.

E, ainda assim, caso fosse julgado necessário, é possível pensar-se na

reformulação de tal sistema, o capitalismo, incluindo nele o respeito à

diversidade biológica e ao multiculturalismo, considerando que a sua lógica

interna de exploração contínua e ininterrupta do homem e da natureza é

insustentável, e dificilmente conduzirá à almejada paz mundial.

Page 28: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

2.1.2 Propriedade privada e a visão contratualista do direito

Como se percebeu, o direito de propriedade surge como a ferramenta

mais importante, na época, para o desenvolvimento do sistema capitalista. Ao

Estado coube garantí-lo,14 regulando suas formas de aquisição e transmissão.

Assim, o contrato ganha força, como o instrumento de legitimação e

garantia do direito de propriedade. Somente se discutia as condições de

validade, não importando seu conteúdo, efeitos e conseqüências para as

partes e, menos ainda, para a sociedade.

Os contratantes deveriam ser livres e iguais para poderem celebrar um

acordo válido. Nesse sentido, os princípios de igualdade e liberdade

assumiram vestes meramente formais, falaciosas, e não refletiam a realidade

fática. Serviam apenas à retórica e ao discurso jurídico do liberalismo.

Liberdade e igualdade estavam garantidas pelo Estado, apenas, como

requisitos da propriedade privada e dos contratos que a legitimavam, sem

qualquer preocupação comunitária ou coletiva.

Na esteira dessa concepção, os princípios de segurança jurídica,

autonomia da vontade e pacta sunt servanda, são esculpidos fortemente pela

doutrina jurídica moderna, segundo os ditames privados e interesses

individuais, ignorando a diversidade social fática, considerando, apenas, os

interesses econômicos preponderantes.

Simplesmente, aquilo que não pudesse ser apropriado individualmente

e não estivesse na esfera de disposição contratual, não teria importância para

o direito, e não foi outra a razão pela qual a proteção dos povos tradicionais e

da natureza, enquanto direitos coletivos, foram sumariamente excluídos.

O direito preocupava-se mais com a forma do que com o conteúdo de

suas disposições e, certamente, tal estado de coisas provocou grande

distorção: a exploração contínua do homem pelo homem e da natureza.

14 LOCKE, J. Segundo Tratado sobre o governo civil e outros escritos, p. 110.

Page 29: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

2.2 Uma mudança paradigmática

Com o advento da Revolução Industrial, a sobreexploração capitalista

superveniente desencadeou importantes transformações que se fizeram sentir

no final do século XVIII e começo do século XIX.

As comunidades tradicionais do campo, como visto, foram

desintegradas e expulsas de seus territórios para servirem de mão-de-obra nas

cidades. Tornaram-se trabalhadores individuais e assalariados, desprovidos

do meio de produção (terra), e possuindo apenas sua força de trabalho para

oferecer às fábricas. E assim, embora “livres como pássaros” 15 para o

trabalho industrial, na verdade, os trabalhadores eram escravos da aquisição

mercantil de bens de consumo essencial, como comida, vestimenta, etc.

A classe trabalhadora se organiza e surgem os sindicatos, quebrando a

supremacia do contrato individual de trabalho, exigindo melhores condições

ao operariado, e derrotando a falsa idéia liberal de que nada poderia existir

entre o Estado e os cidadãos.

A “mão invisível”, que exerceria uma auto-regulação do sistema,

concebida pelo economista Adam Smith, que a tudo proveria no campo

social, não prosperou, provocando, ao contrário, muitos conflitos e

desigualdades. Sucessivas crises e revoluções ocorrem por todo mundo, e a

função do Estado diante dessa realidade passa a ser questionada

profundamente. Este, de mero espectador da economia é chamado para nela

intervir, regulando, assim, as atividades sociais de maneira geral.

A crise assumiu tamanha dimensão e forma que não havia outra saída

ao liberalismo: tinha que se reestruturar e atender algumas daquelas

demandas, para assim, poder continuar existindo como sistema econômico

viável.

Surge, então, o Estado de bem-estar social, ou Welfare state, até

mesmo como uma resposta ao desenvolvimento e expansão do socialismo por

todo o mundo.

15 MARX, K. O Capital, p. 269.

Page 30: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Há, nesse contexto, uma mudança fundamental de paradigma com

relação à função do Estado. Sua postura de abstenção é substituída pela de

intervenção. Ele ganha espaço, assume mais responsabilidades, e passa a

garantir outros direitos não apenas individuais.

É o que Norberto Bobbio16 denomina de: “a segunda geração de

direitos”, isto é, os direitos sociais, baseados não apenas no indivíduo e sim

no interesse da sociedade.

Ao contrário das constituições que enalteciam o direito absoluto de

propriedade, como a francesa de 1793, a portuguesa de 1822 e a brasileira de

1824, surgem as constituições cidadãs do século XX, que condicionaram o

direito de propriedade ao cumprimento de uma função social, e reconheceram

novos direitos sociais e coletivos.

A Revolução Mexicana do começo do século XX proporcionou a

primeira delas em 1917. Era a primeira vez que uma constituição protegia

direitos coletivos. Em seguida, veio a Soviética (1918), abolindo a

propriedade privada e, posteriormente, na Alemanha, a de Weimar (1919)

estabeleceu obrigações ao proprietário. O sistema jurídico cede à realidade

social.

2.3 A conquista dos novos direitos coletivos

Diante desse ambiente de mudanças, muitos foram os direitos

conquistados. Uns mais rapidamente, pois essenciais à continuidade do modo

de produção capitalista, como os direitos dos trabalhadores; outros foram

mais tarde alcançados, ou ainda estão sendo construídos.

A dinâmica dos movimentos sociais que se seguiram ocorreu de

maneira diferenciada ao redor do mundo. Em particular, na América Latina,

onde é inegável a diversidade cultural, calcada justamente na

multidimensionalidade17 das relações sociais aqui existentes, tais movimentos

16 BOBBIO, N. A era dos direitos, 1992. 17 SANTOS, B.S. Pela mão de Alice, p. 263.

Page 31: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

foram mais miscigenados e não tão homogêneos como se observou nos países

europeus.

Assim é que, manifestações de classes trabalhistas, de raças e de

gêneros humanos, de minorias excluídas (desempregados, artistas,

transformistas, homo-sexuais etc.), de ativistas do meio ambiente, dos povos

da floresta (indígenas, seringueiros, castanheiros etc.), e demais segmentos da

sociedade, foram se integrando de forma tal que o todo constituído, baseado

na compreensão das diferenças, tornou-se maior do que a soma das partes, e

alcançaram uma nova dimensão e racionalidade: a jurídica.

Não tardou para que toda essa gama de reivindicações exigisse, de

pronto, uma mudança de postura do direito: da individual para a coletiva.

Embora se apresentem como direitos ainda muito recentes no contexto

do sistema, já se encontram presentes no ordenamento jurídico clássico, e

representam veículos concretos de emancipação social.

Antes da abertura da lei para o coletivo, tais direitos eram

considerados meros interesses sociais e/ou políticos. A propósito, o fato de

terem sido só agora consolidados não significa que sejam de construção

recente, muito pelo contrário, não é nenhuma novidade para nós o fato de que

os povos indígenas habitam seus territórios desde tempos remotos, anteriores

à formação dos próprios Estados e, obviamente, da degradação da

biodiversidade ocorrida a partir dos primórdios do sistema capitalista. O que

se vislumbra agora, no entanto, é uma espécie de renascimento dos povos18

em questão, e um despertar do interesse coletivo de cada comunidade

tradicional específica, com possibilidades jurídicas reais e concretas de verem

transformados em realidade seus sonhos, acalentados há séculos e sufocados

ao sabor de muita luta e sangue derramado.

Com as constituições democráticas e cidadãs da América Latina19, os

direitos coletivos começam a se tornar factíveis. Ganharam o status de

18 SOUZA FILHO, C. F. M. O renascer dos povos indígenas para o Direito, 1998. 19 Entre os anos 80 e 90, novas constituições foram promulgadas na América Latina, pois o

continente saía de um longo período marcado pelas ditaduras. Em quase todas essas constituições - outras mais, outras menos, logicamente - é possível perceber a proteção e a

Page 32: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

discussão jurídica, possível de ser travada em ações judiciais, na doutrina, nas

faculdades, nas políticas públicas, enfim, nos diversos setores sociais.

O direito à cultura, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, à

saúde, à educação, à assistência social, os direitos indígenas, de afro-

descendentes e demais minorias étnicas, dentre outros, foram alguns dos

direitos reconhecidos a partir dessa mudança de perspectiva no campo

jurídico e social.

As constituições latino-americanas passam a reconhecer a

sociodiversidade de seus respectivos países: a Colômbia protege a

diversidade étnica e cultural (1991); o México (1992) assume ser detentor de

uma "composição pluricultural"; o Paraguai (1992) reconhece a existência

dos povos indígenas, e ainda, se declara como um país multicultural e

bilíngüe etc. Aos poucos, o direito foi se aproximando da realidade,

reconhecendo e protegendo a diversidade cultural.

Ao lado da proteção ao multiculturalismo veio também a preocupação

com o meio ambiente e a biodiversidade. A América Latina ostenta boa parte

da riqueza biológica mundial e isso provocou o interesse e a necessidade de

proteção. Houve a consagração do direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado, não somente no nível mais alto do ordenamento jurídico de

diversos países, mas também nas legislações ordinárias.

A constatação do déficit ambiental fez com que o mundo se

preocupasse mais com a preservação da biodiversidade, haja vista a

dependência humana dos insumos por ela providos: fibras têxteis, alimentos,

remédios, inseticidas, etc. Assim, vários países se reuniram, a fim de criar

uma legislação internacional para a proteção ecológica.

A Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, realizada

em Estocolmo (Suécia), no ano de 1972, foi a primeira de abrangência

mundial. Esta reunião foi um marco para o então emergente direito ambiental

internacional.

importância dada aos novos direitos coletivos. Para citar alguns exemplos têm-se as constituições da Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Nicarágua, Peru e Venezuela.

Page 33: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Vinte anos mais tarde, realizou-se a Conferência das Nações Unidas

sobre Meio ambiente e Desenvolvimento, na cidade do Rio de Janeiro, no

período de 3 a 14 de junho de 1992, conhecida como “Eco 92”.

Como a própria denominação sugere, veio munida da intenção

desafiadora de conciliar o desenvolvimento econômico com a preservação

ecológica, consolidando a famosa expressão: “desenvolvimento sustentável”.

Diante de toda essa mudança social, o capitalismo teve que ceder e se

deixar permear por novas reivindicações. O multiculturalismo e a

biodiversidade inserem-se, respectivamente, nesse contexto, como campos de

resistência à uniformidade doentia e à dominação criminosa do meio

ambiente; duas mazelas que tanto apregoa o sistema.

Na Europa, a tentativa de coesão e construção de uma identidade

atrelada ao capital se deu com muita violência em relação às comunidades

tradicionais; a mesma e talvez pior atrocidade fora aplicada em território

latino-americano com relação aos povos indígenas e à biodiversidade.

Nenhum povo da América deixou de sentir a chegada dos europeus. A guerra estabelecida com os povos do litoral rapidamente se estendia pelo interior. Os povos sucumbiam ou fugiam. Ao fugir, não encontravam territórios desocupados, mas outros povos com quem tinham de guerrear para disputá-los . Espremido entre dois inimigos, cada povo precisou fazer, a cada momento, sua escolha: lutar ou sucumbir.20

Os povos culturalmente diferenciados que ainda resistem no

continente americano são os remanescentes de uma avassaladora devastação

física e cultural, provocada pelos colonizadores, associada a uma igual

violência com relação à natureza, o que redundou em intensa perda de

biodiversidade.

20 SOUZA FILHO, C.F.M. Multiculturalismo e direitos coletivos. In: SANTOS, B.S.(org.).

Reconhecer para libertar, p.75.

Page 34: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

2.4. Povos indígenas: desrespeito e reconhecimento de direitos

É sobejamente conhecido o processo desumano de dominação,

subjugo, cristianização e de apresamento para servirem de escravos que

foram vítimas os povos indígenas. Como se não bastasse, ainda hoje sofrem

com a violação de sua dignidade, principalmente, devido a um monopólio

cultural ocidental devastador, que insiste em desconsiderar sua cultura e

tradição. Assim, é que, com o objetivo de reverter ou minimizar os prejuízos

sofridos, vem tomando força a cada dia, um movimento indígena que

emergiu nos âmbitos nacionais e internacionais.

A América Latina, em particular, tem uma história indígena bastante

conturbada, marcada por violentos processos colonizatórios, que têm sua

origem na época das conquistas, quando foram covardemente retirados de

suas terras, quer através do extermínio generalizado, fruto do confronto direto

em contundente desvantagem com os colonizadores mais fortemente

armados, ou pela fuga inopinada de seus territórios originais para escaparem

das armas de fogo. Certamente, que a luta era desigual. Sem alternativas,

foram se dispersando e, ao adentrarem em outras terras, conflitos com

diferentes povos ocorriam, provocando ainda mais perda do contingente

indígena.

Estima-se que a população indígena nas Américas seja de

aproximadamente 41.977.600 (quarenta e um milhões novecentos e setenta e

sete mil e seiscentos) habitantes, o que corresponde a aproximadamente

6,33% da população total21. Em alguns países, a porcentagem indígena é

quase zero (Ex: Uruguai com 0,016%), quando na verdade são eles os

habitantes originários dos territórios, hoje chamados de Estados nacionais.

Os povos indígenas detêm modos de produção diferenciados, que se

baseiam na sustentabilidade ecológica dos recursos manipulados. Ao longo

dos tempos, as comunidades indígenas desenvolveram-se através de um

profuso contato com o meio ambiente, e assim, puderam apreender métodos

21 GOMÉZ, M. Derechos Indígenas – Lectura comentada del Convenio 169 de la

Organización Internacional del Trabajo, p. 45.

Page 35: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

de integração total com a natureza e de utilização da biodiversidade,

desenvolvendo processos artesanais de construção de móveis, utensílios e

artefatos de uso comum, de obtenção e sintetização de remédios, cosméticos

e alimentos etc. Tudo isso, manejando os recursos naturais de forma a

contribuir para a manutenção da riqueza biológica, representando uma

importante função na preservação ambiental. Em conseqüência, mantêm em

seus territórios uma alta concentração de biodiversidade.

Com o crescimento capitalista e a busca pelo desenvolvimento

econômico a qualquer custo, muitos países, como o Brasil e os Estados

Unidos, expandiram suas economias, e a procura por terras e recursos

naturais (madeira, água, plantas, animais) aumentou progressivamente.

Para se ter uma idéia, a tabela abaixo mostra o aumento do impacto

humano22:

Indicador mundial 1950 1995 Produção de soja em milhões de

toneladas 17 125

Produção de carne em milhões de toneladas

44 192

Pesca em milhões de toneladas de peixes

21 109

Terras irrigadas em milhões de hectares

94 248

Uso de fertilizantes em milhões de toneladas

14 122

Produção de Petróleo em milhões de toneladas

518 3.301

Produção de carros em milhões de unidades

3 36

Produção de bicicletas em milhões de unidades

11 114

População humana em milhões 2.555 5.732 Tabela 1 – aumento do impacto humano

Certamente, essa demanda atingiu os territórios indígenas, devido à

vasta riqueza biológica neles contida. Com o decorrer do tempo, o problema

se agravou, pois a população indígena aumentava ao passo que os recursos

22 Tabela utilizada por BENSUSAN, N. O impacto humano. In:____, (org). Seria melhor

mandar ladrilhar? Biodiversidade como, para que, por quê, p. 23.

Page 36: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

naturais diminuíam, comprometendo então a sobrevivência e a

autosustentabilidade desses povos.

Como não poderia deixar de ser, suas condições de vida foram

piorando, fazendo emergir uma série de reivindicações. Sendo assim, as

populações indígenas se organizaram, formaram lideranças e passaram a lutar

na defesa de seus direitos, por tantos séculos desrespeitados.

Uma melhor qualidade de vida; a demarcação de seus territórios; o

respeito à sua cultura, língua e tradições; um desenvolvimento econômico

autônomo e sustentável; programas de bem-estar social e possibilidades

efetivas de manutenção da sua diversidade cultural são algumas de suas

bandeiras.

No Brasil, as organizações começaram a se formar a partir da década

de 70, e, com a redemocratização do País, aumentaram significativamente,

incrementando a participação indígena na vida política nacional23.

O tratamento estatal meramente assistencialista, de cima para baixo,

não satisfazia as necessidades desses povos, que cansaram de ser tratados

como pertencentes a uma cultura inferior, transitória, tendente a desaparecer.

Em algumas ocasiões, inclusive, foram legalmente considerados como

incapazes24.

Os povos indígenas começaram, então, uma luta efetiva em busca de

reconhecimento de direitos e libertação da opressão que vieram sofrendo por

tantos anos.

O cenário de mudanças globais com a mundialização da economia, ao

mesmo tempo em que criou espaços de dominação, também impulsionou o

surgimento de concepções multiculturais, a articulação de movimentos

sociais, e favoreceu a transformação da perspectiva individualista.

23 Dados gentilmente cedidos pelo Advogado Indigenista Dr. Paulo Celso de Oliveira Pankararu. 24 Haja vista o Código Civil brasileiro de 1916 (já revogado) no seu art. 6º, inc. III, que

previa o silvícola como incapaz e o art. 16 do Código Penal do Estado de Michoacán no México, que previa ser indígena e analfabeto como causas de inimputabilidade.

Page 37: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

2.5 Multiculturalismo nas constituições latino-amer icanas

Uma das principais vitórias do multiculturalismo foi ver consagrados

nas constituições os direitos sócio-culturais indígenas e, também, de outras

comunidades tradicionais. Isso ocorreu em vários países, principalmente nos

da América Latina, onde proliferaram, uma após outra, constituições

democráticas precedidas de períodos ditatoriais.

A Constituição brasileira de 1988 representa um marco jurídico no

cenário nacional e regional, abrindo espaço para a preservação cultural

indígena, o que nunca antes tinha sido observado numa constituição

brasileira.

O art. 231 menciona que: “são reconhecidos aos índios sua

organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos

originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à

União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Os parágrafos do art. 231 delineiam a aplicação dos direitos

indígenas, definindo o que são terras tradicionalmente ocupadas. Os índios

detêm a posse permanente, enquanto que o domínio é da União, cabendo-lhes

o usufruto exclusivo de todas as riquezas nelas existentes. O § 4.° determina,

ainda, que os direitos indígenas sobre suas terras são imprescritíveis,

inalienáveis e indisponíveis.

Em 1991, a Constituição colombiana apresenta dentre os princípios

fundamentais, a proteção da diversidade étnica e cultural, e destina no art.

171 uma cota para senadores eleitos pelos povos indígenas. Ainda o art. 246

reconhece a existência do direito indígena e suas funções jurisdicionais no

âmbito territorial.

Por outro lado, a Constituição Argentina de 1994, no seu art. 75,

inciso 17, menciona a garantia ao respeito e identidade cultural, o direito à

educação bilíngüe, reconhece a personalidade jurídica das comunidades

indígenas e a posse e propriedade sobre as terras que tradicionalmente

ocupam.

Page 38: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

A Bolívia, também, em 1994, e após décadas de omissão acerca dos

direitos culturais, mesmo sendo um país de maioria indígena, registra na sua

Constituição (Art. 171) o reconhecimento e o respeito aos direitos sociais,

econômicos e culturais dos povos indígenas. Ademais, a constituição foi

além, e declarou-se um Estado multi-étnico, uma coragem que muitos países

vizinhos não tiveram.

Em se tratando de constituições, pode-se citar a da Costa Rica, do

Chile, da Guatemala, do Peru, do Panamá, dentre outras, que mencionam e

garantem a diversidade cultural e a preservação dos direitos indígenas.

2.6 Panorama internacional

Na esfera internacional tem havido uma participação indígena

crescente nos debates e foros colegiados, tanto no âmbito da Organização das

Nações Unidas, da Organização dos Estados Americanos, quanto em fóruns

sociais e nas Conferências de partes de algumas convenções (a exemplo da

CDB – Convenção sobre Diversidade Biológica ou Biodiversidade).

A ONU, em 1982, formou um grupo de trabalho sobre populações

indígenas que impulsionou o Fundo de Contribuições Voluntárias, com o fim

de possibilitar a participação de representantes indigenistas nas deliberações

do grupo. Nesse âmbito, encontra-se em discussão, há mais de uma década,

um projeto para a formulação de uma Declaração de Direitos dos Povos

Indígenas. Recentemente, ela teve seu texto aprovado e deve seguir os

trâmites necessários para a sua implementação em nível mundial. Uma

declaração, embora não tenha caráter obrigatório, representa um documento

contendo as intenções dos Estados partes e, geralmente, impulsiona o

processo de legislação internacional.

Na Conferência de Direitos Humanos celebrada em Viena - Áustria,

no ano de 1993, foi recomendada a criação de uma instância específica para o

tratamento da questão indígena, em sede da ONU. E assim foi feito. No ano

de 2002, criou-se o Foro Permanente dos Povos Indígenas, e já na primeira

reunião houve convergências entre os setores educacional, ambiental e

Page 39: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

cultural, com a participação ativa da Unesco, da Unicef e de outras

instituições governamentais, não governamentais e indígenas. O Foro

Permanente tem sido um importante local de discussão estratégica mundial

dos povos indígenas.

O ano de 1993 foi declarado pela ONU como o “Ano Internacional

dos Povos Indígenas”, e o período até 2004 a “Década Internacional dos

Povos Indígenas”. Nesse interregno houve oportunidades nunca antes

concedidas aos membros dos povos indígenas na esfera internacional:

negociar em organismos internacionais e dirigir-se aos governantes em

assembléias gerais e conferências da ONU. A questão indígena começa a

figurar no cenário político mundial, ocupando um lugar que lhe faltava, e

que, desde muito tempo, deveria estar reservado25.

Na esteira de toda essa movimentação seguiram-se diversos

documentos internacionais que abarcaram direitos culturais de maneira geral.

O setor indígena soma-se a outros direitos de minorias étnicas e raciais que se

integram na luta e privilegiam o fortalecimento do multiculturalismo.

2.6.1 O Pacto Internacional de Direitos Civis e Pol íticos, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Cu lturais e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial

Em 27 de junho de 1989 foi celebrada a Convenção 169 Relativa aos

Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da OIT, um dos mais

significativos documentos internacionais de proteção do multiculturalismo.

Adotada em substituição a antiga Convenção 107 de 1957, a Convenção 169

atualizou o assunto, considerando a evolução do direito internacional

ocorrida e as mudanças sobrevindas na situação dos povos indígenas e tribais

ao redor de todo o mundo26.

25 ARAÚJO, A.V; LEITÃO, S. Socioambientalismo, direito internacional e soberania. In:

BORGES DA SILVA, L.; OLIVEIRA, P.C. Socioambientalismo: uma realidade p. 39-40. 26 O Brasil adotou a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho por meio do

Decreto nº 5.051, promulgado em 19 de Abril de 2004.

Page 40: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

No preâmbulo da Convenção 169, faz-se referência à Declaração

Universal dos Direitos Humanos e, conseqüentemente, aos Pactos

Internacionais dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais, documentos que incorporaram os preceitos da

Declaração, sob a forma de direitos obrigatórios e vinculantes no contexto

internacional.

Os Pactos têm por objetivo a não discriminação entre os povos e

buscam uma igualdade de condições entre todos para o alcance da dignidade

humana. Por outro lado, eles têm um forte cunho ocidental e não consideram

profundamente o princípio do multiculturalismo, no entanto, são aberturas

importantes dentro do sistema jurídico em que, a partir deles, pode-se ampliar

a noção dos direitos, caminhando em sentido do coletivismo.

O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, embora tenha um

viés mais liberal e individualista, não deixou de tratar sobre o direito das

minorias étnicas, ainda que de forma superficial. O art.27 menciona que:

“Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com os outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua”. Mais especificamente, o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais, vai além da noção do individual para abarcar os direitos coletivos.

Visa garantir os direitos à educação, à saúde, ao trabalho, à previdência e ao

seguro social e, também, o direito à cultura.

O art. 13.1 prevê que a educação deve favorecer a “compreensão, a

tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais,

étnicos ou religiosos(...) em prol da manutenção da paz”.

Os povos indígenas, assim como todos os demais, têm o direito à

dignidade humana, que somente será um fato quando forem tratados com

devido respeito a suas tradições e direitos coletivos. Sendo assim, para que se

preserve a diversidade cultural, ainda restante, não se pode considerar os

direitos humanos separados em individuais ou coletivos. Em se tratando dos

Page 41: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

direito culturais, eles não existem isoladamente, mas refletem uma construção

social conjunta que aos poucos vai firmando suas bases, levantando paredes,

moldando suas formas, o chão, o teto. A afirmação desses direitos ocorre

gradativamente, num processo de conquistas e superando a dicotomia

individual versus coletivo.

Os direitos econômicos, nesse contexto, tornam-se bastante

importantes, pois através deles os povos indígenas e comunidades

tradicionais poderão viver por si sós e, assim, preservarem melhor suas

culturas. A garantia da manutenção de suas atividades econômicas ou a

criação de alternativas sustentáveis, quando aquelas já não sejam mais

possíveis (devido à devastação e a falta de recursos naturais nos seus

territórios), permite, ainda, a conservação do meio ambiente e o manejo

adequado da diversidade biológica, pois atividades por eles realizadas são de

baixo impacto ambiental.

Os direitos sociais e econômicos devem ser interpretados à luz do

direito cultural, visando impedir qualquer forma de imposição ou restrição,

interferindo o mínimo possível na estrutura social desses povos.

Outro documento internacional importante para a fundamentação dos

direitos ao multiculturalismo é a Convenção Internacional sobre a Eliminação

de todas as formas de Discriminação Racial de 1965.

Adotada pela ONU, ela busca uma maior aproximação entre as raças,

diminuindo as diferenças abismáticas existentes. Está prevista, inclusive, a

adoção de medidas positivas e/ou ações afirmativas para tornar mais rápida a

eliminação das desigualdades sociais acumuladas ao longo de muitos séculos,

entre brancos, negros, índios, etc.

Entretanto, por mais que esses documentos tratem da proteção dos

direitos humanos, e possam ser utilizados em favor dos povos culturalmente

diferenciados, nenhum deles é tão significativo quanto a Convenção 169 da

OIT. Este é o principal documento que embasa as discussões internacionais

em torno do multiculturalismo, por tratar-se do único instrumento jurídico

internacional de caráter vinculante, aplicado especificamente para os povos

indígenas e tribais.

Page 42: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

2.6.2 A Organização Internacional do Trabalho e a C onvenção 107

A OIT surgiu em 1919, após a Primeira Guerra Mundial, com a

finalidade de promover a justiça social, o direito à livre associação sindical e

o direito à negociação coletiva. Sua principal função tem sido elaborar

normas internacionais que sirvam de diretrizes às autoridades nacionais para

a adoção de políticas mais adequadas na questão trabalhista.

Desde a década de vinte, a Organização se preocupava com a questão

do trabalho rural. Sendo assim, diversas regras foram destinadas à situação

dos trabalhadores do campo.

A atenção voltada para o campo permitiu que se enxergassem alguns

problemas da ocupação rural, evidenciando fenômenos sociais que se

aproximavam dos campesinos, mas que eram derivados de grupos distintos.

A partir daí, verificou-se a situação dos povos indígenas, e também numa

tentativa de integração pelo trabalho, foram assinadas algumas convenções

como a de número 50, sobre o recrutamento dos trabalhadores indígenas, e

outras (64, 65, 104).

No ano de 1957, adotou-se uma convenção de maior amplitude: a

Convenção 107, conhecida como a Convenção sobre Populações Indígenas e

Tribais. Foi um documento muito importante naquele momento, pois era a

primeira vez que um organismo internacional formulava normas vinculantes,

quer dizer, obrigatórias, a respeito dos diferentes problemas enfrentados pelas

comunidades indígenas. E melhor ainda, não abordava apenas questões

referentes ao trabalho, mas delineava um rol de direitos que eram fruto de

intensas reivindicações.

Por outro lado, a grande falha da Convenção 107 da OIT era a

manutenção do pensamento paternalista e integracionista, como reflexo direto

das políticas que estavam sendo aplicadas em alguns países da América

Latina.

Page 43: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

A Convenção 107, em consonância com quase toda a política

dominante no período em que ela surgiu, considerava a transitoriedade dos

povos indígenas. A visão marcante era a de que eles desapareceriam com o

decorrer do tempo, e deviam ser buscados meios adequados para assimilá-los

ou integrá-los à sociedade nacional.

Não restam dúvidas, no entanto, que a OIT buscava impulsionar uma

política favorável com relação aos povos indígenas, ainda que de forma

incipiente. E, nesse sentido, desempenhou a missão de influenciar alguns

países que eram mais reticentes e atrasados no reconhecimento desses

direitos. Assim, não se pode negar o mérito de ter dado partida à discussão, e

de fazer adentrar algumas práticas e políticas relevantes, já consideradas em

países mais avançados nas negociações internas.

Sendo assim, passando a se constituir num instrumento jurídico

recorrente, tornava possível e menos tortuosa a defesa de políticas

condizentes com as demandas indígenas, na medida em que a discussão sobre

o assunto foi ganhando espaço e abrindo os caminhos.

O conceito de população indígena, como uma coletividade, fora

estabelecido pela primeira vez em nível internacional, através da Convenção

107, e, ainda, determinou o direito de igualdade aos seus membros, no

mesmo nível de qualquer outro cidadão nacional. Além disso, o documento

albergou uma série de direitos específicos, como o direito coletivo à terra e o

direito à língua materna.

Não se pode deixar de mencionar o passo importante dado por ela, ao

fazer menção e reconhecer a existência do direito consuetudinário, ou seja,

dos costumes e as formas tradicionais pelas quais as comunidades resolviam

seus conflitos.

Para a época, reconhecer esses direitos de forma explícita era bastante

avançado.

Page 44: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

2.6.3. Convenção 169 da OIT

Já no preâmbulo, a Convenção Relativa aos Povos Indígenas e Tribais

em Países Independentes, como assim é chamada a Convenção 169, declara

que estabelece uma revisão da Convenção 107, após os membros da OIT

terem decidido adotar diversas propostas de revisão parcial discutidas em

pautas anteriores.

Como quase toda convenção internacional, a 169 tem o intuito de ser

aplicada em diversas partes do mundo, América Latina, Ásia, África e,

portanto, teve que ser flexível, contendo disposições mais genéricas,

considerando a amplitude das diversas situações nacionais. Um tratamento

muito detalhado ou pormenorizado poderia comprometer a aplicação e a

efetivação dos direitos nela previstos, além de complicar ainda mais a

negociação.

Sendo assim, a Convenção 169 procurou delinear alguns termos e/ou

instrumentos, com alcance necessário para conduzir a interpretação favorável

aos direitos indígenas em cada país, mas não foi contundente, deixando

sempre uma margem de possibilidade entre fazer ou não fazer. A expressão

“na medida do possível”, reiteradamente utilizada no texto, reflete justamente

essa postura suave que a convenção adotou.

Ao serem reconhecidos os direitos dos povos indígenas, não bastava

a reafirmação de garantias e liberdades individuais, tendo por base tão

somente os princípios de liberdade e igualdade. Era necessário avançar para

uma perspectiva coletiva dos direitos de uma forma específica.

O estilo de vida diverso imprime em cada um dos povos indígenas

uma identidade própria, e, portanto, não há como equipará-los às demais

pessoas que vivem na sociedade de consumo e capitalista. Quando se tratar

da defesa dos direitos humanos indígenas, é preciso ter em mente a idéia de

prevalência da diversidade cultural. Em outras palavras, tratá-los com

igualdade não significa querer integrá-los à sociedade envolvente, mas

garantir condições de promoção do bem-estar social, segundo seus próprios

paradigmas.

Page 45: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

A Convenção 169 da OIT tem o intuito de afirmar os direitos

indígenas e tribais nessas condições, considerando suas peculiaridades

culturais. E, para isso, é preciso reformular alguns princípios de extrema

importância na condução de uma interpretação favorável, como ocorre com

as noções de povo e de autodeterminação.

2.6.3.1 A redefinição do conceito de povos

O artigo 1º da Convenção 169 foi um dos mais debatidos na época de

sua aprovação, porque mencionava a expressão “povos”, e conferia uma nova

definição destinada e específica para aquela situação.

Pode parecer muito natural falar em povos indígenas atualmente, mas

este conceito desperta muita preocupação.

No âmbito do direito internacional, a expressão povos está

diretamente ligada à noção de soberania dos Estados. Ou seja, reflete a idéia

de nação, com território, governo, idioma, organização política e social que,

dentro da concepção cultural reinante, é única e indivisível.

Talvez, seja este um dos motivos pelo qual a Convenção 107, anterior,

preferiu utilizar a expressão “Populações Indígenas”, para evitar a polêmica

em torno da utilização do termo “povos”.

Por isso, a Convenção 169, procurou uma redefinição da expressão,

em busca de uma alternativa para a forma como é utilizada no âmbito do

direito internacional.

Assim, o art. 1.3 menciona que “a utilização do termo "povos" não

deverá ser interpretada no sentido de ter implicação alguma no que se refere

aos direitos que possam ser conferidos a esse termo no direito internacional

”.

Não se pode levar em consideração, a priori, que os povos indígenas

buscam a autonomia política, no sentido de separar-se dos Estados aos quais

pertencem geograficamente, até porque prescindem deles para continuarem

existindo, enquanto povos. O reconhecimento da identidade específica de

suas organizações, distintas das demais existentes na sociedade, é para ser

Page 46: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

encarado no sentido de terem a liberdade de determinar seu futuro e tomar

decisões, por si próprios, sobre aquilo que lhes afetam.

Almejam, portanto, conduzirem-se de acordo com suas organizações

sociais, econômicas e culturais, sem ingerências externas, bem como o direito

de viver em seus territórios e a garantia da sustentabilidade do habitat que os

circunda, considerando a relevância do meio ambiente para a conservação de

suas tradições, culturas e modos de viver. Na sua essência, os povos

indígenas, tribais e comunidades tradicionais necessitam desse grau de

autonomia, caso contrário, passarão a figurar como mais um item no rol das

“espécies em extinção” e, dificilmente, continuarão existindo enquanto

culturas diferenciadas.

Fica claro, portanto, que ao se utilizar a terminologia de povos

indígenas, não significa que sejam excluídos da política nos países em que se

encontram. Participam da vida nacional, mas não compartilham dos

processos tradicionais de desenvolvimento econômico e social, ou dos

programas de integração comunitária em geral, pois estes são direcionados

para a população dominante, em geral de característica cristã e capitalista.

Por isso, há necessidade de reformulação do conceito de povos, e,

também, de soberania, uma vez que, esses conceitos jamais deveriam retratar

unidade nem indivisibilidade, em se tratando de Estados multiculturais, como

os latino-americanos. Ao contrário do que possa parecer, a legitimidade

estatal pode ser mais facilmente alcançada, caso seja reconhecida a

pluralidade cultural, ao invés de uma retórica falsa de identidade única.

A Convenção 169, no art. 2.1, menciona que os governos devem

desenvolver ações coordenadas com vistas a proteger os direitos e a garantia

do respeito e integridade dos povos. Mas, para tanto, é necessário que estes

sejam enquadrados nos critérios de definição do que seja povos indígenas e

tribais, preconizados pelo art. 1.1, a e b., constituindo cada qual, de per si, a

sua consciência de identidade própria, indígena ou tribal (art. 1.2)

Dessa forma, chega-se até a prevenir a atribuição de privilégios

inescrupulosamente reivindicados por outros grupos, não abrangidos por

Page 47: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

estas categorias, como pode ocorrer com relação a grileiros de terras ou

invasores ilegítimos, etc.

2.6.3.2 O princípio da autodeterminação dos povos

Diante da consolidação do termo povos indígenas no contexto

mundial, é possível sustentar, também, que a eles é cabível o direito à

autodeterminação.

Por certo, tal interpretação leva sempre em conta a ressalva do art.

1.3, ou seja, o uso da expressão é aceito desde que não represente soberania

política, no intuito de segregação dos povos indígenas do resto da

comunidade nacional.

O art. 1º do Pacto de Direitos Civis e Políticos e o mesmo artigo do

Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais mencionam: “Todos os

povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam

livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento

econômico, social e cultural”.

Segundo Magdalena Gómez27, como esses pactos estabelecem direitos

humanos, pode-se dizer que o direito à autodeterminação é também um

direito humano.

A mesma autora aponta para o problema de se considerar que os

direitos humanos são de exercício individual, e os direitos dos povos

indígenas são coletivos. Os direitos individuais são aqueles que se exercem

independentemente da sociedade, e são inerentes a toda pessoa humana sem

qualquer distinção de raça, gênero, língua ou religião. Exemplos: o direito à

vida, à liberdade de expressão, a saúde física, dentre outros.

Já os direitos coletivos realizam-se no seio de uma coletividade, não

existem sozinhos ou podem ser exercidos individualmente. Eles dependem da

comunidade como um todo para se concretizar. São aqueles direitos

indispensáveis para que os povos subsistam, como o direito ao território, ao

27 GOMÉZ, M. Derechos Indígenas – Lectura comentada del Convenio 169 de la

Organización Internacional del Trabajo, p. 56.

Page 48: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

uso da língua, à cultura própria, o direito de se autogovernarem ou praticarem

suas próprias normas de organização e controle.

Considera-se que, quando os direitos indígenas coletivos não são

respeitados, torna-se muito difícil que os direitos humanos dos integrantes

desses povos sejam efetivados28.

Assim, podemos perceber o quão importante é a abertura dos direitos

humanos para abranger, também, os direitos coletivos e, dentre eles, o da a

autodeterminação, para que assim se tornem efetivos os direitos indígenas. A

dignidade humana desses povos, por exemplo, somente será atingida quando

se permitir que eles sejam quem realmente são.

Mas, como a adoção do princípio da autodeterminação na prática

internacional remete, também, à idéia de soberania, os Estados integrantes da

OIT consideraram que isso poderia ser um risco. Novamente, a atenção

estava voltada para o perigo de que os povos indígenas pretendessem formar

um Estado à parte, quer dizer, separado dos atuais, e isso fez com que a

Convenção 169 não tratasse da autodeterminação de maneira explícita.

Mais uma vez, nunca é demais lembrar, que não se busca uma

interpretação nesse sentido, ao se defender os direitos indígenas.

Independente do uso que se dê comumente à autodeterminação no direito

internacional, aqui, sua abrangência está no reconhecimento de uma

identidade própria, de que são culturas diferentes, organizadas,

historicamente, antes mesmo da “descoberta” espanhola e portuguesa, em se

tratando da América Latina. Estão além de meros grupos de pessoas com

costumes diferentes e inferiores, como quiseram defender no passado.

Por outro lado, embora a Convenção não fale diretamente em

autodeterminação, ela a deixa subentendida nas entrelinhas. Durante as

discussões para sua elaboração, estabeleceu-se que seriam criados

mecanismos ou procedimentos para atingir tal objetivo gradualmente.

Como em cada Estado a situação indígena varia, até mesmo dentro do

mesmo país, mudando de região para região ou de comunidade para

28 GÓMEZ, M. Derechos Indígenas – Lectura comentada del Convenio 169 de la

Organización Internacional del Trabajo, p. 56.

Page 49: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

comunidade, a Convenção buscou adotar uma postura mais flexível, para

alcançar o reconhecimento gradativo desses direitos. Desde o preâmbulo, ela

trata da necessidade de os povos indígenas e tribais controlarem suas

instituições próprias, mesmo dentro do país onde vivem. E, ainda, ressalta

que deve haver por parte do Estado, a participação e consulta aos povos, nas

tomadas de decisões que os afetem, acerca de seu desenvolvimento social e

cultural.

A Convenção menciona no art. 7.1 que os povos têm o direito de

escolher suas próprias prioridades, no que tange ao processo de

desenvolvimento, porém ressalva que esse autocontrole ocorrerá somente “na

medida do possível”.

Em resumo, a Convenção deixa nas mãos dos Estados o poder de

decisão e controle, em última instância, mas cria mecanismos capazes de

conquistar a autodeterminação dos povos indígenas pouco a pouco, como já

foi referido acima.

Além disso, não se deve esquecer que a Convenção 169, assim como

os tratados de direitos humanos em geral, estabelece patamares mínimos de

proteção. Ela define princípios básicos, um nível abaixo do qual os direitos

não podem cair, mas não representa um teto, isto é, o máximo de direitos que

se pode alcançar.

2.7. Multiculturalismo relacionado à biodiversidade

A biodiversidade tem profunda influência na variedade dos povos.

Formada pela riqueza de organismos vivos existentes no planeta Terra, ela é

o produto da evolução de milhões de anos, dividindo-se em três categorias: os

genes, as espécies e os ecossistemas.

A variedade genética provém da multiplicidade de códigos presentes

nos cromossomos de todos os organismos vivos, desde as bactérias aos seres

humanos, podendo gerar diferenças dentro das mesmas espécies, como por

exemplo, a diversidade de fenótipos do ser humano, os diversos tipos de

milho e assim por diante. A variedade de espécies corresponde à pluralidade

Page 50: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

de seres vivos numa dada região e o inter-relacionamento que ocorre entre

eles. Está representada nas diferentes categorias taxonômicas pertencentes ao

reino animal e vegetal. Já a diversidade de ecossistemas é resultado de

interações bióticas, tais como animais, plantas, bactérias; e abióticas como

clima, solo, salinidade e outros.

A diversidade biológica ou a biodiversidade - termos sinônimos - não se

espalhou de forma uniforme pelo Planeta, de modo que existem ecossistemas

específicos, adaptados às condições peculiares, nas quais se desenvolveram, e

regiões onde se concentra mais a riqueza natural, como é o caso da América

do Sul e Central.

Com o desenvolvimento do pensamento voltado para a preservação

ambiental, que ganhou mais notoriedade a partir dos anos 70, percebeu-se

que, muito da natureza ainda preservada no Planeta, devia-se ao estilo de vida

tradicional, ao modo de produção sustentável e ao manejo ambiental de

povos culturalmente diferenciados. Portanto, a riqueza biológica

remanescente não seria apenas natural, mas também fruto da interferência

antrópica. Em outras palavras, os povos nativos se integram com o meio

ambiente, observam, reagem, apreendem e transmitem ensinamentos de

forma intuitiva e naturalista, os quais chegam a ser compartilhados por nós

através de seus ritos e histórias.

A Convenção sobre Diversidade Biológica29 reconheceu este fato, e deu

especial atenção às populações tradicionais que colaboraram e continuam

trabalhando pela manutenção da biodiversidade.

Prova disso é o seu art. 8 j:

[...] cada parte signatária deve: “em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a

29 Assinada por ocasião da ECO 92, contou com a assinatura de mais de 162 países e tem por objetivo direto a proteção da diversidade biológica mundial. Aprovada no Brasil pelo Decreto nº 2 de 3 de fevereiro de 1994.

Page 51: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

repartição eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas.”

O Brasil é um dos signatários da Convenção e, portanto, está obrigado

a colocá-la em prática. Além disso, foi o país onde se realizou a Conferência,

na qual a Convenção foi assinada, e recentemente sediou a 8ª Conferência das

Partes da CDB (COP8), ocorrida na cidade de Curitiba, entre os dias 13 e 31

de março de 2006, com a presença dos delegados de 188 países.

A biodiversidade brasileira é uma das maiores do Planeta, provocada,

principalmente, por fatores como o clima e a grande extensão territorial.

É o primeiro país do mundo no total de espécies, bem como em

diversidade de mamíferos, anfíbios30, plantas, peixes de água doce e

insetos31; ocupa o terceiro lugar em diversidade de aves e o quarto em répteis.

Isso faz do Brasil um dos países chamados de megabiodiversos, ao lado de

Costa Rica, Colômbia, Índia e outros.

Com esse perfil, o País encerra significativa parcela da riqueza

biológica existente no mundo, logo, tem o dever de se responsabilizar por ela.

Aliada a essa diversidade natural está intimamente ligada a

sociodiversidade. São mais de 220 povos diferentes32, que somam mais de

300.000 pessoas, falando algo em torno de 180 línguas, vivendo em mais de

quinhentas terras reconhecidas e atingindo uma área superior a 100 milhões

de hectares33.

A análise de fotos aéreas de reservas indígenas, como as que se pode

ver abaixo, é uma fonte de constatação da inter-relação entre o

multiculturalismo e a biodiversidade, onde claramente se percebe a riqueza

natural que ainda se faz largamente presente em seus territórios e duramente

ameaçada pela degradação.

30 MESQUITA, A. Biopirataria: fauna e flora brasileira ameaçada pela ação dos traficantes, p.16. 31 BENSUSAN, N. O impacto humano. In:____, (org). Seria melhor mandar ladrilhar?

Biodiversidade como, para que, por quê, p. 18. 32 Disponível em: www.funai.gov.br,

www.socioambiental.org/pib/portugues/quonqua/qoqindex.shtm. [01/08/2006] 33 Correspondente a 12 % do território nacional.

Page 52: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Nessas imagens, percebe-se que a floresta dentro dos limites do Parque

Indígena do Xingu34, importante região biológica da Amazônia, vem sendo, a

duras penas, preservada pelos povos indígenas, diante da gritante devastação

nos seus arredores, provocada por queimadas e pela expansão das fronteiras

agrícolas.

Figura 1 - Foto aérea: André Vilas-Boas/ISA

Figura 2- Foto aérea: Pedro Martineli, 1999

Dessa forma, a defesa do multiculturalismo vê-se fortemente atrelada à

preservação ambiental, e corresponde a uma via de mão dupla. Se por um

lado, o meio ambiente ecologicamente equilibrado é condição para a

manutenção da cultura e da qualidade de vida dos povos, por outro, a

proteção do estilo de vida tradicional beneficia a preservação da

34 O Parque Indígena do Xingu localiza-se no Mato Grosso e abriga 14 povos indígenas,

somando 4.043 indivíduos (2002). Atualmente há uma grande preocupação relacionada com a ocupação desordenada que vem ocorrendo no entorno do parque. http://www.socioambiental.org/pib/epi/xingu/parque.shtm

Page 53: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

biodiversidade. São paradigmas que não cabem dentro de uma formatação

individualista de direito, concebida para atender essencialmente

conveniências capitalistas.

Não devemos esquecer que, na perspectiva do filósofo Fritjof Capra,

vivemos numa teia da vida, onde o conhecimento de nossa função específica,

como co-habitantes de um só planeta e não como consumidores vorazes, tem

sido preservado e ensinado por muitos desses povos tradicionais, com

destaque para os índios nativos das Américas.

A diversidade cultural dos povos indígenas e das demais populações

tradicionais, portanto, está intimamente relacionada com a preservação da

biodiversidade, que, em conjunto, representam um vasto patrimônio a

oferecer para as presentes e futuras gerações.

Page 54: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

3 Realidade multicultural: globalização, democracia e sistemas jurídicos diversos

“Nuestra producción se llama artesanía, y la de ustedes es industria. Nuestra musica es folklore y la de ustedes es arte, nuestras normas son costumbres y las de

ustedes son derecho.”

De acordo com o exposto no capítulo anterior, pode-se dizer que o

direito moderno fez uma opção clara no sentido de excluir não só os povos

culturalmente diferenciados, como também a biodiversidade existente no

planeta. No entanto, isso não significou o fim, pois ambos resistiram e,

embora com perdas, foi-se estabelecendo uma ponte de diálogo com o

sistema jurídico dominante.

A abordagem nas constituições nacionais, a realização das convenções

e reuniões internacionais sobre o tema foram resultados das ferramentas que

os povos indígenas e tradicionais utilizaram para penetrar no sistema jurídico

moderno.

Na pós-modernidade eles buscam um reconhecimento mais efetivo de

seus direitos, pois apesar das importantes conquistas já referidas e analisadas,

persiste um déficit de cumprimento daquilo que se encontra escrito nos

papéis.

Diversos povos indígenas e outras comunidades tradicionais

mantiveram, e, ainda, mantêm sua estrutura social e, porque não dizer,

jurídica. Um dos dilemas atuais é fazer valer essas instituições, e caminhar

para a concretização real do valor do multiculturalismo, e não uma

acomodação superficial e formal de interesses, tão somente.

Page 55: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

3.1 Multiculturalismo: um desafio contemporâneo

O termo multiculturalismo passou a ser utilizado a partir da década de

1970,35 e significa a diversidade cultural existente na sociedade moderna em

contexto mundial. Embora tenha sido esculpido dentro do período moderno,

ele não está apegado ao seu tempo de formulação, de modo que é reflexo de

uma dinâmica entre presente, passado e futuro.

O passado do multiculturalismo, dentro do enfoque ora abordado,

pode ser caracterizado pelo processo de colonialismo, e correspondente à

exploração das Américas. A origem de muitos conflitos e de situações

vividas ainda hoje remete à questão da violência cultural provocada por tais

processos.

O presente multicultural, por sua vez, poderia corresponder à

conquista de vê-lo reconhecido como um valor para o sistema jurídico atual.

Por fim, o futuro, está diretamente relacionado às atitudes em prol da

concretização efetiva desse princípio na esfera social e política mundial.

Apresenta-se, portanto, como um processo dinâmico e interativo, mesclando

diferentes dimensões e contextos temporais.

Bartolomé36 assevera que o multiculturalismo é, ao mesmo tempo,

uma realidade empírica e, também, as valorações e práticas produzidas por

essa realidade.

Resulta imposible uma reflexión social sobre uma configuración multicultural, que no se interrogue sobre los procesos sociales involucrados y sus perspectivas de futuro. A la vez, la multiculturalidad no es ajena a las distintas posiciones de poder que manejam los diferentes grupos culturales, por lo que muchas veces la diferencia fue considerada sinónimo de desigualdad, y se creyó que suprimiendo la diferencia se aboliría la desigualdad, cosa que por supuesto jamás ocurrió.

Na sua essência, a sociedade corresponde a uma fábrica de

diversidade cultural, pois algo peculiar do ser humano é o desenvolvimento 35 JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO de 17 de setembro de 2006. O racha do

multiculturalismo . Artigo originalmente publicado no jornal francês “Le monde”. Tradução de Clara Allain.

36 BARTOLOMÉ, M.A. Processos interculturales, p. 116 e 119.

Page 56: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

de sua vida de diferentes formas, que se interpenetram e coexistem - segundo

Gray,37 isto é um fato inalterável. Quanto maiores e mais complexas se

tornam as sociedades, mais aumentam os contatos culturais e suas tensões,

decorrentes da miscigenação e do intercâmbio existentes. Os conflitos de

valores são tipicamente humanos e não podem ser superados, e sim,

ajustados.

Assim sendo, a diferença apresenta-se como um componente

estrutural da vida social, um dado fático, e não uma etapa que deve ser

ultrapassada como se fosse uma anomalia ou uma doença. Reconciliar-se

com o multiculturalismo, talvez, seja um dos maiores desafios

contemporâneos.

...deberemos acostumbrarnos a lo particolare, a vivir con y en la divesidad, la aceptemos o no como un valor. Y es este mismo aserto lo que hace asombroso que el pensamiento político se haya llevado tan mal con la diversidad cultural. En el caso de la teoria política de raigambre liberal que se ha extendido sobre esa gran porción de la humanidad que llamamos Occidente, la relación con la diversidad ha sido francamente desastrosa: una historia de negación y menosprecio de la primera hacia la segunda. Evidentemente, se requiere una visión política distinta, reconciliada con la diversidad.38 (grifos no original)

A proposta de igualdade forçada, ou a proclamação de um único

modo de vida para a humanidade não prosperou; o multiculturalismo, ao

invés de ser encarado como um problema, deve ser assumido enquanto tal, e

impulsionar a construção de um novo paradigma para as relações sociais. No

entanto, esse movimento se dá dentro de uma postura emancipatória, e não

como mais uma forma de assimilação capitalista.

O multiculturalismo que pretende descrever as diferenças culturais,

nem sempre está ligado a uma noção libertária. Pode muito bem ser

interpretado, e assim muitas vezes o é, por concepções eurocêntricas39 de

cultura, segundo parâmetros estéticos e valores econômicos, morais, sociais

37 Apud DÍAZ-POLANCO, H. Elogio de la diversidad, p. 15. 38 DÍAZ-POLANCO, H. Elogio de la diversidad p. 17. 39 Expressão utilizada por NUNES, J. A.; SANTOS, B.S. Introdução: para ampliar o cânone

do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: SANTOS, B.S. (org.). Reconhecer para libertar, p. 27.

Page 57: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

ou cognitivos universais, que classificam e elegem a importância de uma

determinada cultura em detrimento da outra. Nessa seara, é preciso refletir

não somente acerca de se realizar ou não o multiculturalismo, mas,

principalmente, em como concretizá-lo.

As discrepâncias de desenvolvimento econômico em escala global

provocam muitos debates acerca da possibilidade ou ameaça de assimilação

da cultura pelo fator econômico. A mercadorização do elemento cultural,

através da inserção de uma lógica neocolonial, deve ser lembrada como mais

uma provável reprodução das desigualdades e a manutenção da subordinação,

por tanto tempo vivenciada pelos povos culturalmente diferenciados.

3.2 Globalização contra-hegemônica

Se por um lado, a globalização provoca a uniformização da cultura e

mecanismos de pressão econômica sobre os povos, ela também pode ser

utilizada em prol da consagração de novos paradigmas emancipatórios.

A promessa de que a globalização significaria a generalização do

bem-estar econômico e da equidade social não se confirmou e, ao contrário,

as desigualdades em diversos âmbitos aumentaram ao longo das últimas

décadas, colocando em risco a própria sustentabilidade humana40. Ao lado

disso, há um forte processo de uniformidade cultural e a proclamação de

padrões culturais únicos e superiores, de forma que se chega a afirmar que a

globalização não passaria de um termo inventado pelos países ricos,

economicamente, com a finalidade de dissimular suas práticas de avanço

econômico em outros países41.

Nessa perspectiva, há uma tendência em escala mundial, no sentido de

caminhar-se para uma noção alternativa e contra-hegemônica de

globalização,

“constituída pelo conjunto de iniciativas, movimentos e organizações que, por intermédio de vínculos, redes e alianças locais/globais, lutam contra a

40 DÍAZ-POLANCO, H. Elogio de la diversidad, p. 9. 41 Ibid., p. 10.

Page 58: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

globalização neoliberal mobilizados pelo desejo de um mundo melhor, mais justo e pacífico que julgam possível e a que sentem ter direito.” 42 Assim, o processo de globalização, cria novas demandas provenientes

da transnacionalização econômica, colocando as culturas em maior contato

umas com as outras. Se por um lado ocorre a dominação hegemônica, por

outro há o diálogo e o questionamento do modelo de imposição monocultural

e a homogeneidade capitalista. São fatos paralelos que ocorrem

simultaneamente e vão redesenhando o sistema. A identidade coletiva é

reacendida diante das ameaças de suprimi-la, o que proporciona uma

construção contra-hegemônica da globalização.

Da mesma forma, como os países desenvolvidos influenciam o modo

de vida dos demais povos, através do mercado, o efeito inverso também

acontece, e ainda que não tenha a mesma potência do capital, um pensamento

diverso do dominante vem sendo estabelecido. Observe-se que até mesmo a

aceitação contemporânea do termo multiculturalismo foi, também, fruto do

processo social de migração planetária Sul-Norte, em que a suposta

homogeneidade cultural do império foi ameaçada pela chegada de

contingentes populacionais provenientes de países empobrecidos 43, algo

comum e muito marcante nos grandes centros urbanos mundiais.

Os movimentos em prol da preservação ambiental e da diversidade

cultural, em âmbito mundial, têm se articulado na defesa de uma globalização

não-hegemônica, e são importantes elementos num cenário de abertura do

direito e da política. Mas, essa nova concepção, voltada ao coletivo, somente

tem lugar num âmbito democrático e participativo.

3.3 Democracia e diversidade na sociedade contempor ânea

Embora a tendência capitalista de homogeneização sociocultural

tenha prevalecido em algumas partes do mundo, ela não conseguiu abafar por

42 NUNES, J.A.; SANTOS, B.S. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da

diferença e da igualdade. In: SANTOS, B.S. (org.). Reconhecer para libertar, p. 13-14. 43 BARTOLOMÉ, M.A. Processos interculturales, p.115.

Page 59: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

completo as diferenças, e a utopia igualitária44 não logrou seu objetivo final,

o que, na verdade, significara uma imposição cultural.

Apesar de todo o esforço do poder dominador, a sociedade

contemporânea é essencialmente complexa e diversa. Sua compreensão

implica na aceitação do pluralismo em vários planos.

Constata-se a olhos nus, que a diversidade existe e sempre existiu em

todos os setores, quer da vida humana ou da natureza. São cinco raças

humanas, de diferentes cores, que possuem diferentes sentidos (visão, tato,

olfato...), e se espalham por cinco grandes continentes, os quais contêm uma

infinidade de relações, baseadas em diferenças (religiões, climas, solos,

idiomas, animais, plantas, máquinas, ideologias, etc).

Por essa razão, conclui-se, que parece existir uma certa racionalidade

no universo, que tem por base uma diversidade intrínseca, contra a qual seria

inútil relutar. Talvez, seja por isso que o mito simplista da igualdade entre

todos tenha falhado. O princípio foi reavaliado diante do reconhecimento

gradativo da diversidade na sociedade pós-moderna.

Atualmente, busca-se a edificação de “uma igualdade que reconheça

as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza

desigualdades” 45.

A diversidade, no entanto, nem sempre é aceita na sua plenitude.

Principalmente, em se tratando dos direitos culturais, percebe-se que as

sociedades toleram a diferença, a existência do “outro”, mas não o aceita

verdadeiramente como ele é.

Dentro do espírito liberal de respeito e tolerância, em que o direito à

liberdade e à igualdade de todos perante a lei é meramente formal, há uma

recusa em aceitar o “outro” por completo. Nesse sentido, existe uma lógica

de violência implícita no seu aspecto político 46.

44 CITTADINO, G. Pluralismo, direito e justiça distributiva, p. 75. 45 NUNES, J.A.; SANTOS, B.S. Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da

diferença e da igualdade. In: SANTOS, B.S. (org.). Reconhecer para libertar, p. 43. 46 KOZICKI, K. A política na perspectiva da filosofia da diferença. In: OLIVEIRA, M.

(org.). Filosofia Política Contemporânea, p. 142.

Page 60: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Essa conjuntura gera a necessidade de estabilização, através de regras,

convenções e atos de poder, para que assim, o almejado controle social seja

concretizado. Mas, efetivamente, essas tensões existem, são fáticas, e, não

raras vezes, elas se chocam em interesses, não somente diversos, mas

opostos.

Nessa seara, o direito entra em cena, exercendo um duplo papel: o

primeiro, de regulação social ou resolução de conflitos; e o segundo, de

possibilidade para a concretização de novas reivindicações.

A sociedade plural não permite mais uma única voz, uma estrutura

centralizada e dominante.

Talvez, uma das principais conseqüências da derrota socialista, foi

uma crença superficial de que não é possível construir algo para além do

capitalismo.

O socialismo utópico teve a missão e o mérito de desejar um mundo

melhor, superar a razão do capital frio e explorador. Então, ele se vê

derrotado, mas o capitalismo se reformula, socializa-se, um pouco que seja.

Viu-se, então, o surgimento do Estado-Providência, período que o

sociólogo Boaventura de Sousa Santos47 chama de “a segunda fase do

capitalismo” ou “capitalismo organizado”. Em seqüência, num terceiro

momento, ele vai se desorganizando, enfrenta diversas e sucessivas crises,

criando, assim, um campo fértil para o afloramento dos movimentos sociais

em busca da afirmação de novos direitos. A falsa crença que surgiu com a

queda do bloco socialista, de fim das lutas e da história, não se realizou, e

houve apenas uma mudança qualitativa dos conflitos que passaram a ser

ainda mais étnicos e culturais.

Vale ressaltar, entretanto, que por mais erros que tenham cometido os

liberais, a democracia triunfou junto com eles. E ela, certamente, é o palco

onde, atualmente, se podem sustentar idéias multiculturais. A democracia

corresponde ao espaço que permite o debate para o seu próprio e contínuo

aperfeiçoamento.

47 SANTOS, B.S. Pela mão de Alice, p. 86.

Page 61: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Isto implica, entretanto, numa abertura total da democracia, que não

pode mais se dar ao luxo de encerrar-se na mera representatividade, baseada

apenas no conquistado direito ao voto. É preciso ir mais além, ou seja,

necessário se faz radicalizar a democracia.

Nesse sentido Boaventura de Sousa Santos48 assevera que:

O capitalismo não é criticável por não ser democrático, mas por não ser suficientemente democrático (...) A renovação da teoria democrática assenta, antes de mais, na formulação de critérios democráticos de participação política que não confinem esta ao acto de votar. Implica, pois, uma articulação entre democracia representativa e a democracia participativa. Para que tal articulação seja possível é, contudo, necessário que o campo do político seja radicalmente redefinido e ampliado. (grifo nosso)

É preciso agir em prol de direitos supra-individuais, provocando um

pluralismo social realmente combativo. Antes de ser visto como uma ameaça,

ele deve ser entendido como a própria condição de existência de uma

democracia participativa49. Combativo, no sentido de lutas emancipatórias,

que não cabem mais dentro da formatação capitalista, ocidental e

pretensamente universalista.

A América Latina corresponde a um celeiro para experiências

democráticas e plurais, tendo em vista sua rica miscigenação cultural, ao lado

de uma imensa natureza ainda preservada.

Sendo assim, percebe-se que as lutas democráticas podem ser aqui

facilmente coordenadas: os movimentos étnicos (indígenas, de afro-

descendentes, etc), o movimento ambiental, de gênero humano e outros. Toda

essa gama de lutas demonstra que, tanto a dominação quanto a resistência, se

fazem através de diversos eixos, e reflete-se em condições que permitem o

debate acerca de uma renovação da teoria democrática.

O Direito apresenta-se como uma ferramenta que permite a

consolidação desse novo projeto de sociedade, mas para isso ele precisa

também ser repensado à luz de um horizonte transformador.

48 Ibid., p. 270 e 271. 49 MOUFFE, C. O regresso do político, p. 23.

Page 62: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

3.3.1 Lutas democráticas entrelaçadas – o movimento socioambiental

O panorama de uma sociedade plural e democrática permite que

diversos segmentos encontrem os seus espaços na forma de lutas

emancipatórias e, não há como negar que o direito é um norte para todas elas.

Mas, para a concretização desses novos ideais, muitas vezes, é preciso a

articulação política entre eles, como propôs Chantal Mouffe50.

Essa união de movimentos permite que ganhem mais força e que suas

vozes sejam facilmente ouvidas, uma vez que o capital é organizado

globalmente e a esfera econômica encontrou formas de dominação

intercontinentais.

Um exemplo dessa articulação conjunta é a união dos movimentos

social e ambiental no Brasil.

O socioambientalismo brasileiro – tal como reconhecemos e identificamos – nasceu na segunda metade dos anos 80, a partir de articulações políticas entre os movimentos sociais e o movimento ambientalista. O surgimento do socioambientalismo pode ser identificado com o processo histórico de redemocratização do país, iniciado com o fim do regime militar, em 1984, e consolidado com a promulgação da nova Constituição, em 1988, e a realização de eleições presidenciais diretas, em 1989. (...) A consolidação democrática no país passou a dar à sociedade civil um amplo espaço de mobilização e articulação, que resultou em alianças políticas estratégicas entre o movimento social e ambientalista. Na Amazônia brasileira, a articulação entre povos indígenas e populações tradicionais, com o apoio de aliados nacionais e internacionais, levou ao surgimento da Aliança dos Povos da Floresta51, um dos marcos do socioambientalismo.52

No engajamento pela defesa dos povos culturalmente diferentes

percebeu-se a existência de um importante fator nesse contexto: o direito ao

meio ambiente ecologicamente equilibrado, como uma das condições para a

manutenção da cultura e da qualidade de vida das comunidades tradicionais.

Assim, as reivindicações emancipatórias se completaram.

50 MOUFFE, C. O regresso do político, p. 33. 51 Chico Mendes foi o principal líder deste movimento do qual também se destacou Marina

Silva, a atual Ministra do Meio Ambiente. 52 SANTILLI, J. Socioambientalismo e os novos direitos, p. 31.

Page 63: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

A proteção do meio ambiente destaca-se entre os principais

movimentos dos últimos tempos, e representa uma importante arma na luta

pela criação de uma sociedade plural, mais justa e solidária. Por confrontar o

pensamento liberal clássico de exploração dos recursos naturais, alia-se

constantemente às demandas por novos direitos sociais, tais como os direitos

culturais. Unidos, visam contrapor-se ao estado de coisas atual e surge a

concepção dos novos direitos socioambientais.

Como bem salienta Souza Filho53, “as questões ambientais e culturais

se misturavam de forma célere, na compreensão de que a cultura não

subsiste num ambiente hostil, e não há nada melhor para preservar o

ambiente do que uma cultura a ele adequada”.

Os direitos socioambientais são todos aqueles bens ou interesses

essenciais para a manutenção da vida de todas as espécies (biodiversidade) e

de todas as culturas humanas (sóciodiversidade)54. Portanto, traz uma noção

de sustentabilidade da vida de uma maneira geral: seja a vida natural ou

biológica como também as formas de vida humana que se desenvolvem

através da cultura.

A luta por esse novo direito, inscreve-se numa dimensão coletiva,

baseada no pluralismo, na tolerância, nos valores locais, e também, rompe

com a lógica excludente do Estado moderno e a pretensão de um direito

único que, nitidamente, serve ao sistema econômico dominante.

3.4 Para além do direito positivo

O direito, nesse contexto, começa a ser considerado como instrumento

para a libertação, e não somente ligado à função de conter os conflitos

sociais.

Para isso é necessária a reformulação do sistema, no sentido de

proporcionar essas novas possibilidades democráticas. E, uma tentativa é,

certamente, a visão do direito a partir da perspectiva do pluralismo jurídico.

53 SOUZA FILHO, C.F.M. Introdução ao direito socioambiental. In: LIMA, A. (org.). O

direito para o Brasil socioambiental. p. 25. 54 Ibid., p. 38.

Page 64: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Em particular, muitos povos indígenas possuem um sistema jurídico

próprio, baseado no direito consuetudinário que tem por fonte seus costumes

e tradições.

O direito positivo, no entanto, não considera esses sistemas jurídicos

diferenciados como sendo direito, pois não têm a segmentação e

categorização que tem o positivismo. Ou seja, por não haver uma instituição

centralizada, emanando normas e com real capacidade de coerção, não se

acredita estar diante de um direito.

Para a tradição jurídica que deriva da família romano-germânica-

canônica o lugar ocupado pelo direito consuetudinário sempre foi

considerado marginal, no máximo fonte, um pré-direito. A teoria positivista

tende a separar em zonas bem distintas o que é direito e o que não é.

Kelsen e Hart são autores que representam fortemente este

pensamento, e se referem sempre a um direito primitivo ou rudimentar, pois

eles não teriam um mecanismo de criação e modificação de normas, nem a

separação formal entre usos, moral e direito55.

Essa concepção é tipicamente ocidental, e conforma os interesses

civilizatórios de algumas nações consideradas melhores em relação às outras,

e que, portanto, elas teriam a missão de ensinar ou propagar a forma correta

de sociedade, logo, a de direito também.

Sendo assim, o conceito de direito atrelado à cultura positivista é visto

como o ideal, devendo então ser universal. Quando há o contato com outras

culturas, logicamente, percebe-se que não existem as mesmas categorias e

instituições presentes no direito moderno e, numa típica postura de arrogância

cultural, se nega a elas qualquer reconhecimento ou forma de um direito

próprio.

Foi exatamente isto que aconteceu quando as metrópoles européias

contataram as civilizações indígenas na América Latina. Apesar de serem

55 BALLÓN AGUIRRE, F. Sistema Jurídico Aguaruna y positivismo. In: ITURRALDE, D.;

STAVENHAGEN, R. Entre la Ley y la costumbre, p. 126.

Page 65: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

altamente especializadas em diversas atividades56, e de possuírem estruturas

jurídicas e sociais próprias e organizadas, o colonizador as desconsiderou

completamente, e atribuiu-lhes, apenas, a denominação de costumes,

tradições, mas nunca de direito.

Essa concepção hegemônica aos poucos vem sendo modificada numa

árdua batalha travada contra as concepções universais e positivistas, ainda

muito marcantes no campo jurídico.

Apesar de diferente, os povos indígenas possuem um sistema de

direito que não merece ser desqualificado por não apresentar as

características ocidentais. Se ele é realmente eficaz em suas bases sociais, por

que então não aceitá-lo como direito? Talvez, o maior responsável por esta

negação seja sempre o temido receio de revolução política que ele possa

causar, mas não se pode mais esperar de um Estado latino-americano o não

reconhecimento a esses povos da autodeterminação, o que inclui a aceitar

suas instituições, sob pena de se cometer ainda mais violência, dando

continuidade ao processo de supremacia de uma cultura em detrimento das

outras, o que viola frontalmente os próprios fundamentos jurídicos

constitucionais hodiernos.

Para exemplificar a diversidade cultural dos povos serão analisados

dois sistemas jurídicos e sociais indígenas: o tukano e o kuna, com o intuito

de demonstrar e reforçar a existência do pluralismo e a necessidade de

proteção dessas estruturas diferenciadas, para a verdadeira realização do

multiculturalismo e preservação da biodiversidade na sociedade

contemporânea.

Os dois povos viveram distintos processos históricos e detêm relações

muito diferentes travadas com o Estado do qual fazem parte geograficamente.

56 Haja vista o exemplo da civilização asteca que tinha conhecimentos vastos sobre

construções, uso de metais preciosos, cestarias, cerâmica, tapeçaria e um comércio também bastante desenvolvido. (Museu Nacional de Antropologia: México-DF). Ressalte-se que o uso da expressão civilização não se dá no sentido de fenômeno urbano nem a partir de uma concepção evolucionista, como sendo o patamar mais alto que uma cultura pode chegar. Significa portanto um complexo cultural formado pelo conjunto de várias sociedades com tradições culturais compartilhadas em uma área extensa e com uma certa importância cronológica (BARTOLOMÉ, M. A. Procesos interculturales, p.164 e 165).

Page 66: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Por isso eles foram escolhidos, para justamente dar uma dimensão da

variedade de possibilidades do multiculturalismo em nossa sociedade.

3.5. A sociedade e o sistema jurídico tukano 57

O povo tukano vive na Amazônia brasileira e colombiana, localizado

no alto do rio Negro (noroeste amazônico), na região do rio Papurí, que faz a

divisa entre os dois países e, também, próximo aos rios Paca, Tiquié, baixo

Vaupés e seus pequenos afluentes. No Brasil, a sua população é de

aproximadamente 6.241 pessoas, falando o idioma tukano - uma língua

isolada que não faz parte de nenhum grande tronco lingüístico58.

As aldeias tukano são distribuídas em malocas, habitações

multifamiliares tradicionais, aonde podem viver até quatorze famílias

pertencentes ao mesmo clã.

As malocas representam uma dimensão importante de poder para os

tukano, e é a partir dela que se desenvolve sua organização social, ritual,

política e econômica.

Figura 3 – Maloca Kuebi do Rio Kuduari, chamada Surubinóca. Foto: Kock-Grünberg , 1904, ISA.

57 SIMMONDS, C.; GARCÍA, L.; SJOBERG, H. Sistemas Jurídicos Tukano, Chamí

Guambiano y Sikuani. p. 13-98. 58 RICARDO, B.; RICARDO, F. Povos indígenas no Brasil 2001/2005. São Paulo: ISA, 2006. p. 63.

Page 67: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Cada maloca abriga um clã diferente e tem suas relações baseadas na

reciprocidade. Possui uma maneira própria de ser construída como símbolo

da prosperidade familiar e da procriação. Internamente também são

distribuídas ordenadamente, segundo a idade dos filhos e as disposições

familiares.

As missões católicas que desde há muito tempo têm contato com o

povo tukano vieram pouco a pouco influenciando a cultura, através da

construção de casas individuais para cada núcleo familiar, mas, mesmo

assim, o povo tukano ainda reproduz a estrutura da maloca dentro dos

vilarejos construídos pelos missionários.

A acumulação de bens para os tukano é uma conduta altamente

anormal, e somente observada fora da comunidade, razão pela qual nem se

considera sua penalização. É uma conduta de “behkasa” (brancos). Acumular

está fora do contexto cultural tukano e só ocorre quando da realização de

festas.

O prestígio para o povo tukano é a boa saúde, uma maloca bonita,

alimentação suficiente em termos de caça e pesca, hortas bem cultivadas e

uma convivência harmônica entre os jovens e adultos. A finalidade da cultura

e das tradições é alcançar o bem-estar da sua gente e a felicidade de todos.

3.5.1 Poder, ética e direito

A concepção de poder dos povos tukano está representada pelo

“oake” que é a base fundamental, o equilíbrio e bem-estar de todos.

Tal força tem três dimensões: a primeira se trata da presença abstrata

dos poderes no macrocosmo; a segunda é a institucionalização dos poderes

no ser humano, através dos mitos que determinam a prática cotidiana; e a

terceira representa o comportamento pessoal e social devido, para a obtenção

da finalidade da cultura, possibilitando a manutenção da ordem que permite a

reprodução do poder.

Estas dimensões explicam a ética tukano e remetem às formas de

normatividade e controle social.

Page 68: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

O ordenamento jurídico tukano, do ponto de vista estrutural, é uma

articulação entre um subsistema segmentário, trabalhando em alguns casos

com a compensação; e um outro independente e paralelo que é o sistema

mágico-religioso.

O subsistema segmentário tem um caráter humano, visando que as

faltas cometidas pelos homens sejam resolvidas por eles mesmos, visto que

se encontram num mesmo nível. Já o sistema mágico-religioso se apresenta

como conseqüência das forças do poder abstrato, superior, e não

personalizado, que pode afetar os homens e o meio, mas é independente da

vontade deles.

No primeiro caso (aspecto humano), duas éticas se apresentam como

complementares: a ética de obrigações acerca da organização entre os

próprios homens e a ética da relação entre o homem e a natureza. São padrões

de comportamento social por um lado, e por outro, um conjunto de proibições

em relação à natureza que disciplinam a vida comunitária. A coesão dessas

éticas se dá pela tradição mística e se refletem em atitudes, fatos,

procedimentos, sanções e ordens.

O sistema segmentário é o dominante em termos de controle social,

visto que o mágico-religioso é autônomo e paralelo, proveniente do poder do

firmamento e que não se mistura com o anterior.

3.5.1.1 Autoridades tukano

O “mami” é a autoridade intelectual e espiritual, sendo escolhido

pelos membros da maloca, por consenso, entre aqueles da linhagem

específica. Deve possuir características de prudência e capacidade de

organização suficiente para saber dirigir a comunidade, de acordo com as

normas dos antepassados. Não necessariamente o “mamí” será o dono da

maloca, mas ele é quem determina a produção, aprova as determinações, etc.

Existem três linhas de autoridades tradicionais: a vertical, a horizontal

e a da especialidade. Cada categoria possui subdivisões características, por

exemplo: o organizador, o pensador, o guerreiro, o curandeiro e assim por

Page 69: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

diante, sempre dentro da noção de hierarquia. Trata-se de um sistema

bastante segmentado em que não se verifica a centralização do poder. O

“mamí”, por mais que seja o principal líder, não o é da comunidade inteira, e

sim, de uma determinada maloca, de forma que existem vários “mamí” com

igual poder na sociedade tukano.

As pessoas podem se defender das autoridades tradicionais que

cometam abusos, de duas formas: ou através da crítica social, ou a troca da

autoridade, seguindo a hierarquia correspondente. Dessa forma, há um

fomento para o desempenho de um bom governo.

As relações administrativas e o exercício da autoridade dos “viog”

(chefes) seguem a tradição mítica, e são fortalecidas e incrementadas através

da realização de grandes festas e ritos. Essas reuniões tradicionais abrangem

mais de uma maloca (duas ou três) e, também, pessoas aliadas podem ser

convidadas.

Dizem os tukanos que antes da chegada das missões e da penetração

branca, essas festas eram muito maiores a ponto de reunir todas as pessoas da

região, ocasião em que se faziam trocas, distribuições, praticavam a

reciprocidade, a aproximação das linhagens e resolução dos conflitos, enfim,

a manutenção da tradição. Hoje em dia, existe uma carência de reuniões

tradicionais deste tipo.

Existem algumas organizações regionais tukano, determinadas por

unidades geográficas, que têm um caráter político, e foram concebidas

especialmente para intermediar as relações com o Estado e a sociedade

envolvente, bem como administrar os recursos estatais. No entanto, tais

organizações não possuem o caráter de tradicionais, e enfrentam alguns

impasses com relação à legitimidade, visto que, muitas vezes, jovens

envolvidos com a sociedade nacional são os seus líderes e, em alguns casos,

pode haver contradições com o setor tradicional.

Page 70: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

3.5.2 Relações com a terra, herança e produção

A relação do povo tukano com a terra é de propriedade comunitária,

em que diversas famílias convivem e cada qual possui uma porção do terreno,

onde se fazem as próprias plantações – chamadas de “chagras”. Eles

trabalham com quatro ou cinco “chagras”, visto que fazem o rodízio para o

descanso da terra. A produção é familiar e dividida por sexo e idade.

Dependendo da atividade a ser realizada, os trabalhos podem ser individuais

ou coletivos, com a participação de ambos os sexos e de grupos associados,

também.

Existe o direito de herança sobre os bens do lugar da residência, mas a

propriedade familiar não se transmite a um só membro, é passada a todos e

fica sob responsabilidade do irmão maior. Não se pode vender ou arrendar a

terra, pois, dentro da cosmovisão, ela é considerada sagrada e o que existe é

apenas o direito de possuir aquele território ancestral, direito este que é

também dos animais e de outros povos. A relação aproxima-se do instituto do

usufruto.

O modo, no entanto, de apropriação de um dado território dá-se pela

ocupação na sua forma etnohistórica de migração do povo tukano. Também,

pela herança, hospitalidade, ou o direito de aliança matrimonial e doação

entre pais e filhos vivos. Não existem títulos para comprovar a propriedade e

a tradição em caso de doação se dá através da anuência do “mamí”, que

apenas reconhece aquele direito como resultado do mandato dos mitos.

Podem ser feitas consultas ao “mamí”, que dá oportunidade de controvérsia

para as pessoas que se considerarem lesionadas, no caso de repartição de

território.

Vale ressaltar que a estrutura social dos tukano é bastante

segmentaria, e a concepção de direitos territoriais está baseada em áreas

autocontidas, mas não segregadas.

Page 71: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Muitos povos59 fazem parte da matriz familiar tukano que é

multiétnica, e o seu conjunto representa uma organização social complexa.

Na região da bacia do rio Uaupés, por exemplo, há uma grande convergência

exogâmica entre grupos afins, que falam diferentes línguas. Isso resulta num

dinamismo multilingüístico em que, numa mesma comunidade, muitas vezes,

se fala mais de uma língua indígena, além do português e do espanhol.

3.5.2.1 Meio ambiente e biodiversidade

A relação tukano com a natureza está envolta em considerações de

ordem ética e moral. Ao contrário do homem branco, eles não se apropriam

dos recursos naturais como um direito máximo e indiscutível; compreendem

que a vida e os alimentos somente existem devido ao poder do universo, logo

não há o sentimento de apropriação e sim de consideração.

Eles julgam o homem um ator de destruição que precisa ter

consciência disso, e assim, respeitar a selva com maneiras certas de atuar e

proibições típicas para o depredador. Isso faz com que seus territórios sejam

ricos em biodiversidade, pois o uso do recurso natural é controlado, visando a

sua não escassez.

Percebe-se aqui uma conduta ambiental disciplinada e orientada como

uma verdadeira legislação. Para citar exemplo de algumas regras, os povos

tukano e maku acreditam em “boraró”, uma entidade sobrenatural que

multiplica e protege os animais de caça. Sendo assim, é proibido apenas

machucar o animal, pois “boraró” desaprova essa conduta e pune o culpado

posteriormente 60. Deve-se ter cuidado na caça para não ferir os animais sem

que eles depois possam servir de alimento. Também, é proibido caçar um

número de animais de cada espécie que seja superior ao necessário para o

caçador e sua família; se assim o fizer virá represália (sistema mágico-

religioso), podendo adoecer todos os que consumiram a carne ou seus filhos.

59 Bará, barasano, piratapuyo, tuyuca, makuna, taiwano, e outros. 60 POZZOBON, J. Vocês, brancos, não tem alma, p. 44.

Page 72: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

São princípios e regras bem distintas da cultura capitalista

predominante, de exploração da natureza segundo parâmetros meramente

econômicos, embora nas últimas décadas tenha havido uma tendência, ainda

que incipiente, de sustentabilidade ecológica.

3.5.3 Obrigações, contratos e comércio

Com relação a obrigações e contratos, o povo tukano baseia-se na

reciprocidade. Os trabalhos de construção de malocas, abrir caminhos,

roçados, plantações é feito pelo critério de tratamento mútuo e da retribuição

como, por exemplo, quando da inauguração de uma maloca nova, os

moradores oferecem uma festa e isto representa um sinal de reciprocidade

que é uma conduta contínua e rotineira, entre os membros, de sempre

repartirem e redistribuirem o bem ou o trabalho recebido.

Muitas vezes, a rede de reciprocidade pode ser conduzida pelos

“mamí”, que distribuem as tarefas e fazem os acordos entre as malocas,

como, por exemplo, pescar para tal família ou construir outra maloca em

determinado lugar, ou uma canoa etc.

O mecanismo de repressão ao não cumprimento das obrigações é a

crítica ou a sanção social, que representa o isolamento da (s) pessoa (s) que

não cumpriu a obrigação e até mesmo, dependendo da situação, a retaliação

pode incluir toda a linhagem familiar.

Os contratos de maneira geral são baseados no conceito de troca de

bens, que se realiza de maneira comutativa e concomitante, sem a intervenção

de um meio de pagamento como o dinheiro ou algo que lhe faça as vezes.

Essas trocas, como contrato comutativo, podem ocorrer em zonas

específicas de intercâmbio, que se dá entre os próprios tukano ou com outros

povos também.

As trocas dividem-se em três categorias: a do comércio próximo; de

bens essenciais, como remos, cestarias, cerâmicas pequenas, bancos, etc; a do

comércio distante, de bens escassos ou de luxo, como plumas, dardos e

demais objetos leves, fáceis de transportar e de alto valor cultural; e a do

Page 73: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

comércio silencioso, especificamente com o povo maku, que seria um tipo de

trocas monetárias ilegais. Com a drástica influência cultural que os povos

indígenas de maneira geral vêm sofrendo há anos, houve uma monetarização

da economia tradicional tukano, proveniente de seu contato com grileiros,

missionários, comerciantes e garimpeiros.

Pela regra cultural, é proibida a aquisição de bens tradicionais entre

indígenas e, também, o empréstimo de dinheiro. Esse comércio geralmente é

praticado por membros do povo tukano que são assalariados de comerciantes,

instituições do Estado ou de ONGs que trabalham na região, e não possuem

tempo para as atividades tradicionais. A sanção por parte da comunidade é o

repúdio, concretizado através da crítica social. Na verdade, vive-se uma

contradição entre os setores tradicionais e os indígenas assalariados que se

afastaram da vida comunitária.

Já com os brancos, é possível haver compra e venda e o uso do

dinheiro. Os tukano vão aos povoados e levam pescados, caças, farinha,

mandioca, cestarias, e os vendem por dinheiro que utilizam para comprar

roupas, munições, anzóis, nylon, sal, fósforo, etc. As vendas se realizam nas

ruas ou em lojas dos brancos. Não existem lojas do povo tukano, pois eles

entendem que isto romperia os círculos de redistribuição e reciprocidade

existentes entre as malocas.

3.5.4 Direito de família

As regras de direito de família entre os tukano transcendem à família

nuclear pai, mãe e filhos, para abranger toda a consangüinidade e as alianças

matrimoniais.

As obrigações familiares consistem em visitas dos parentes biológicos

da mesma linhagem às malocas, em que se devem levar presentes como

pescado, caças, farinha, frutas, mantendo, assim, os ciclos de reciprocidade e

de ajuda mútua. Não é obrigatório cumprir estas tarefas, mas são normas

consideradas importantes pela tradição cultural.

Page 74: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

As relações conjugais têm por base a harmonia e deve refletir a

perfeição do macrocosmo. Os casais devem viver bem, entender-se, não se

agredir e, assim, concretizar a harmonia e o amor.

Não existe divórcio entre casais tukano com filhos, pois estes são

considerados sagrados e de grande importância, visto que representam a

esperança de reprodução da organização social tukano. O direito de separação

apenas ocorre caso haja infertilidade do casal.

Homens e mulheres possuem obrigações distintas com relação à

família. As funções do homem são: caçar, pescar, coletar frutas, prover a

lenha, fazer a cestaria, as canoas, os bancos, construir e fazer a manutenção

da maloca e, também, ensinar aos filhos as atividades tradicionais. As

funções da mulher são: semear, colher, cozinhar, recolher água limpa, cuidar

do marido e dos filhos, repartir a comida e ensinar as atividades tradicionais a

suas filhas.

3.5.5 Questão penal e processo

Na questão penal, existem algumas situações que podem ser

consideradas como tipificadas, mas não significam que sejam escritas, visto

que os tukano não têm esta prática. São figuras típicas porque há histórico

dessas violações na comunidade, assim como há outras condutas que não

existem para eles, e são comuns na sociedade envolvente, tais como

seqüestro, bigamia, estupro e outras.

Algumas condutas consideradas criminosas são: rebelião contra os

costumes (geralmente praticada por pessoas que se afastaram da vida

comunitária), ataque à autoridade “mamí” (com pena variada se o agressor

está sóbrio ou bêbado), falso testemunho (mentira), fuga ou abstenção de

cumprimento de obrigação, bruxaria, contaminação, acumulação, exploração

indevida de recursos naturais, homicídio, furto, lesão e outros.

A responsabilidade criminal é pessoal estando o molestador obrigado

a responder pelo dano; se o prejuízo for pequeno ou involuntário não há

responsabilização.

Page 75: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Aqui há uma diferença com relação à mencionada dualidade jurídica

tukano. Pelo sistema segmentário em que predomina a ética humana, os

homens mesmo resolvem as sanções, ou através de negociação e

compensação entre a própria vítima e o ofendido, ou mediante a intervenção

das autoridades (“mamí”).

Já pelo sistema mágico-religioso, a violação das proibições acarreta

procedimentos autônomos, geralmente ligados às enfermidades frente à

liberação descontrolada de poder do macrocosmo.

Não existe pena privativa de liberdade. O castigo corporal pode

ocorrer, sendo geralmente leve e pouco usual. As penas são preexistentes e,

embora, não determinadas quanto à quantidade e à freqüência, são decididas

pelas autoridades no momento do julgamento.

As sanções do sistema segmentário podem ser pessoais ou sociais,

algumas delas são:

a) a expulsão e impossibilidade de convivência comunitária –

no caso de homicídio é aplicada a toda a família, também é

cabível ao ladrão reincidente, ao falsário e a quem causa

lesões pessoais graves. Esta pena é mais grave e é aplicada

pela autoridade “mamí”;

b) a crítica – para aqueles que atacam a autoridade por

embriaguez, prostituição e bruxaria, aplicada por parte do

ofendido;

c) advertência grave de autoridade – para ataque doloso à

autoridade, aplicada pelo ofendido;

d) desprezo – reincidente em furto ou em mentiras;

e) açoite – flagelação por homicídio culposo ou lesão pessoal;

f) destruição – direito do ofendido de destruir objetos do

ofensor, tais como canoas, redes de pesca, remos, etc.

g) rechaço – perda de identidade tukano, impedimento de

retorno ao território ancestral. É aplicada pelo conjunto da

comunidade ofendida, podendo ser ordenada pelo “mamí”.

Page 76: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

A compensação é praticada por meio da restituição, em caso de furto,

com o mesmo bem; o próprio agredido solicita ao agressor que lhe compense

o dano causado. Quando a compensação é grande os irmãos do ofensor

ajudam a pagar, como uma obrigação de reciprocidade frente a ele, e não com

relação ao ofendido.

O “mau desejo” aplicado por parte do ofendido é sempre uma ameaça

para aquele que se abstenha de cumprir a pena ou não pague a compensação.

As penas ou sanções-conseqüências do sistema mágico-religioso

consistem em represálias mútuas que são as enfermidades, erosão, desolação,

provocadas pelo poder abstrato. Para os tukano não existe qualquer

personificação do poder religioso, ele está disperso e, portanto, não faz parte

da cultura venerar deuses, espíritos, fazer orações, adorações etc. Eles

acreditam na manutenção do equilíbrio e da força que provém do cosmos e é

recebido diretamente pelos seres da terra.

Há casos de inimputabilidade para os alienados mentais, loucos,

ébrios e as crianças.

De maneira geral, as condutas inadequadas dentro da sociedade

tukano sofrem uma certa punibilidade natural ou social, que nem sempre

resulta de uma decisão direta, ou seja, há uma forma socializada de repressão

para as condutas que desagradam as tradições comunitárias. As pessoas

procuram se conduzir de maneira adequada para evitar a crítica que atinge

seu estado pessoal e, dependendo do caso, familiar.

Os processos de investigações de algo considerado irregular começam

com uma combinação de testemunhos e indícios que se operam através de

perguntas, e o seu conjunto é averiguado por quem exerce o poder, no caso o

“mamí”, em se tratando de conflitos no âmbito da mesma maloca. Caso

estejam envolvidas diversas unidades residenciais, cada qual investiga o seu

lado, e depois, faz-se uma reunião conjunta dos “mamí” correspondentes para

se chegar a uma decisão final.

Não existem recursos no sistema procedimental, os tukano

consideram o conceito de “ahpoke”, isto é, resolvido. Uma vez que o assunto

foi levado à esfera investigatória e decidido conforme a tradição, são

Page 77: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

considerados terminados, não cabe reclamação posterior, embora haja a

apreciação constante do “mamí” em relação às atitudes dos envolvidos.

Poderá haver uma reconsideração das contradições na prática, mas por outros

motivos, diferentes do que já fora resolvido 61.

3.6. Sociedade e autonomia kuna 62

O povo kuna está localizado em quarenta pequenas ilhas no mar do

Caribe, a leste da embocadura atlântica do canal do Panamá, que vai até a

divisa com a Colômbia.

Dos povos indígenas do Panamá, os kuna são os que mais detêm

autonomia política, o que foi resultado da resistência e uma forte luta para a

proteção de sua integridade cultural e territorial.

Em 1953, eles tiveram alguns de seus direitos territoriais

reconhecidos, e desde então, já começaram a gozar de uma certa autonomia

governamental.

O Panamá, logo após à “descoberta”, transformou-se num local

estratégico para o trânsito de mercadorias e, a partir dessa época, o conflito

entre os kuna e os espanhóis foi quase incessante. As primeiras tentativas de

evangelização, devido às revoltas constantes, terminaram por volta de 1651.

Entre os séculos XVII e XVIII, os kuna se aliam a outros povos, tanto

para travar relações comerciais como para revoltar-se contra os domínios

espanhóis, e atacá-los.

Segundo o testemunho dos próprios kuna, essa brava resistência

contra a ocupação espanhola teve a amarga conseqüência: sua população foi

quase totalmente dizimada.

61 Aqui pode se fazer um paralelo muito claro com os efeitos do princípio da coisa julgada no

direito ocidental; bem como a possibilidade de reabertura do processo em caso de fatos novos, como ocorre na ação rescisória.

62 ALEMANCIA, J. La autonomia Kuna. In: ALMEIDA, I.; RODAS, N.A. (coords). En defensa del pluralismo y la igualdad, p. 125-148.

Page 78: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Enquanto fizeram parte do território denominado de “Gran

Colômbia”, que se tornou independente da Espanha em 1821, o povo kuna

gozou de uma certa soberania e reconhecimento de seu território.

Com a separação do Panamá da Colômbia, em 1903, e a adoção

subseqüente de uma política de construção de uma identidade nacional

baseada no castelhano e na herança espanhola, os kuna voltaram a sofrer

ingerências, por parte, agora, do novo Estado panamenho.

O governo quer regulamentar o comércio marítimo da região de San

Blas, e começam, mais uma vez, as obras de evangelização dos “selvagens”,

de forma que, em 1908 é adotada a lei de civilização dos índios.

Em 1925, os kuna se revoltam e desencadeiam a Revolução de Dule,

da qual resultou um tratado em que se confirmaram os direitos territoriais

autóctones, a revogação das concessões feitas pelo governo e a retirada de

policiais estatais, em troca da aceitação da soberania panamenha e da

implementação do sistema nacional de educação. Nem todas as comunidades

assinaram o tratado, mas ele teve a missão de um cessar fogo. Esta Revolução

foi um marco importante das relações entre o Estado panamenho e os kuna,

afirmando a determinação deles e a aceitação de alguma maneira, por parte

do Panamá, do status particular daquele povo.

Aos poucos, e com muita resistência, eles conquistaram a criação de

uma reserva, e, logo depois, de uma comarca da circunscrição de San Blas,

reconhecendo oficialmente algumas das suas instituições, e legalizando uma

autonomia governamental autóctone. Em troca disso, continuariam aceitando

a soberania panamenha sobre seu território.

Em 1945, formou-se o primeiro Congresso Geral do povo kuna em

que se reuniu a maioria das comunidades. Este congresso foi posteriormente

reconhecido como a instituição suprema dos kuna, legalizado pela lei 16 de

1953, e até hoje ele existe.

Page 79: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia

Apesar de os serviços governamentais estarem presentes na maioria

das comunidades, os Congressos Geral e Local correspondem à forma

tradicional de governo do povo kuna. Eles estabelecem as regras da vida

cotidiana.

Existe o instituto da Intendência que representa o poder executivo do

governo panamenho no território tradicional. É elaborada uma lista tríplice,

por parte do Congresso Geral, sendo a nomeação feita pelo Estado. O

intendente é um membro do povo kuna e atua como intermediador entre o

governo e as estruturas tradicionais.

Os kuna elegem três deputados para a Assembléia Legislativa do

Panamá, e, embora os candidatos estejam filiados aos partidos nacionais, esta

é uma forma de participação deles nas políticas nacionais e uma ponte entre o

sistema tradicional e o panamenho.

A dualidade de instituições, por um lado, estatal, por outro,

tradicional, provoca concorrência e conflito, mas às vezes se complementam.

Ao Congresso cabe velar pelo bem estar e o progresso da comarca,

zelar pela conservação das tradições, gerir os fundos, executar trabalhos e

obras necessárias etc.

3.6.1.1 Autoridades tradicionais e Congresso Local

As autoridades tradicionais, conhecidas como “saylas”, são

depositárias da tradição, pregadoras da religião e da doutrina kuna; os

dirigentes da comunidade. Os “saylas” devem dar preferência aos interesses

de todos, ao invés dos particulares, pensar em longo prazo e ter uma conduta

ilibada, tanto no aspecto público como no privado. Eles são eleitos de acordo

com sua integridade, sentido de bem comum e conhecimento das tradições.

Em geral os “saylas” são pessoas mais maduras com uma boa trajetória no

aprendizado dos rituais e da linguagem.

Page 80: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

As discussões e decisões a respeito da vida comunitária são feitas em

sessões cotidianas do Congresso Local, localizadas na casa de assembléia que

é o centro da vida política e espiritual kuna.

Os dirigentes (dependendo da comunidade pode ser um, dois ou três

“saylas”) se reúnem todas as noites para os cantos rituais e para a gestão dos

assuntos locais. São sessões públicas e todos os moradores têm direito de

voz.

Ao Congresso Local cabe administrar o desenvolvimento econômico,

os trabalhos comunitários e fazer justiça. Suas decisões são tomadas após

examinar os diferentes aspectos da questão debatida, e após os habitantes

expressarem suas opiniões.

Aqueles que violam as regras kuna são punidos com trabalho

comunitário ou com multa, dependendo da gravidade do fato. Caso seja algo

considerado muito grave, o Congresso Local pode entregar o culpado à

justiça panamenha.

Os membros do povo kuna que partem da comunidade para viver em

grandes cidades, quando em número considerável, abrem um local ou uma

sessão urbana onde se reúnem. Essas sessões se reagrupam e enviam uma

delegação ao Congresso Geral kuna. Existe um sistema de imposto para os

membros urbanos, como uma forma de compensação por terem se afastado

dos trabalhos comunitários.

Todas as comunidades kuna têm muito contato entre si. As visitas são

constantes e as decisões que lhes afetam como povo são tomadas em comum.

3.6.1.2 Congresso Geral

Duas principais instituições agrupam todas as comunidades: o

Congresso Geral da Cultura e o Congresso Geral kuna. O primeiro consiste

em favorecer e resguardar a transmissão do patrimônio histórico e cultural, e,

o segundo, é a instância governamental. Ambos os congressos desenvolvem

suas atividades no idioma nativo.

Page 81: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

O Congresso Geral se reúne a cada seis meses, é presidido por três

“sayladummagan” (os grandes “saylas”) que provêm de diferentes regiões do

território. As delegações de cada comunidade são formadas por cinco pessoas

designadas pelos congressos locais, mas apenas os “saylas” têm direito a

voto; os delegados apenas voz. Na maioria das vezes, no entanto, as decisões

são tomadas por consenso.

Outras entidades como os reagrupamentos urbanos, a associação de

trabalhadores do Canal, e alguns organismos não governamentais kuna

podem assistir e falar no Congresso Geral, mas não têm direito a voto.

Os deputados kuna eleitos para a Assembléia Legislativa do Panamá e

alguns funcionários do Estado devem estar presentes para responder

perguntas e dar informações.

Há um secretariado permanente do Congresso e comissões de

economia, assuntos internacionais, projetos, educação, cultura, saúde e

assuntos da mulher. Pode haver ainda a criação de comissões ad hoc,

segundo as necessidades que surgirem.

O Congresso Geral tem uma vasta competência que vai desde

decisões políticas até administrativas, econômicas e judiciais. Não há

separação de poderes em executivo, legislativo e judiciário. Funciona como

uma assembléia deliberativa que reúne todos os membros para, segundo as

diretrizes do “saylas”, decidir sobre a vida comunitária e os problemas que os

afetam.

A autonomia kuna corresponde a uma experiência de Estado

multicultural e, como não poderia deixar de ser, enfrenta dificuldades e

reveses típicos da complexidade desse conceito.

Para os kuna, autonomia significa coisas bem determinadas como não

pagar impostos ao governo panamenho, contribuir para a riqueza coletiva por

meio do trabalho comunitário, ser julgado pelas autoridades tradicionais,

transmitir seus bens segundo a tradição, exercer um certo poder de controle

no desenvolvimento de seus recursos, viver em seu território e resolver os

problemas em conjunto da maneira como bem entendem. Algumas

dificuldades, dentre outras, encontram-se na questão educacional, pois são

Page 82: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

obrigados a aprender o espanhol e aquilo que os panamenhos entendem por

melhor; alem de não disporem de recursos financeiros adequados, o que

limita a capacidade de atuação e os obriga a recorrer a projetos de

cooperação.

3.7. Apontamentos sobre experiências multiculturais

Os povos indígenas tukano e kuna representam bem a idéia do

multiculturalismo e seus desafios na sociedade contemporânea. Ao lado

deles, existem centenas de povos tradicionais pelo mundo inteiro que

possuem um diferente conceito de vida, e que sofrem a cada dia com a

ameaça de verem-se tragados pelo poder dominante e deixarem de ser quem

realmente são.

Uma forma de evitar isto é reconhecer que a subordinação com a qual

eles foram até agora submetidos precisa findar, e a libertação dos povos será

alcançada na medida em que se consagre, como legítimas, suas instituições.

O preâmbulo da Convenção 169 da OIT não deixa dúvidas com

relação a este objetivo “reconhecendo as aspirações desses povos a assumir

o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu

desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas e

religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram”.

O art. 7.1 ainda menciona que:

Os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades, no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma, e de controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural. Além disso, esses povos deverão participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente.

Cada povo, portanto, terá uma prioridade, e para que se preserve a

diversidade torna-se necessário que eles mesmos possam definir o que

melhor lhes cabe.

Page 83: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Os povos tukano vivem mais distantes do contato com o Estado e,

assim, sofrem menos ingerências por parte do ordenamento jurídico nacional.

Já os kuna estiveram, historicamente, mais próximos, até mesmo

geograficamente, em meio a rotas comerciais importantes, o que tornou sua

luta mais sangrenta e a sua cultura mais influenciada e vulnerável aos ditames

e categorias ocidentais.

Percebe-se que a variedade de povos permite a adoção de diferentes

formas de convivência com o país envolvente. Inegável torna-se a

impossibilidade de realização dessas culturas apartadas de suas tradições,

mas cada cultura irá exigir um tratamento diferenciado.

Nesse sentido Miguel Alberto Bartolomé assevera que63:

En una propuesta que busca referirse a situaciones concretas Kumkum Sangari (1999), destaca la necessidade de no subsumir todos los contextos dentro de la perspectiva liberal del multiculturalismo, ya que cada sistema reflejará uma diferente distribución del poder. Por ello reclama la necessidad de entender los distintos tipos de homogeneidad y heterogeneidad que se registran em los sistemas multiétnicos, así como los diferentes tipos de universalismos e particularismos que interactúan. Su visión se manifiesta significativa para reconocer la diferencia existente entre un sistema plural como el canadiense o el suizo y uno como el que se registra en la selva amazónica o entre las comunidades aymaras y el Estado boliviano. No puede ser equiparado, más que de manera formal o enunciativa, todo o contexto plural o multicultural, ya que cada uno reflejará las características específicas de sus protagonistas.

Sendo assim, haverá distintas considerações em relação às situações

culturais fáticas. No caso de povos como o tukano, simplesmente, o existir e

desenvolver-se segundo seus costumes pode ser um caminho adotado, no

sentido de as organizações estatais respeitarem e não interferirem

demasiadamente com serviços públicos, visto que praticamente eles vivem

paralelamente à ação do Estado, dispensando sua atuação64.

Já os povos mais contatados têm maior participação e influência

estatal na suas vidas, provocando a dualidade de instituições (governamental

63 BARTOLOMÉ, M.A. Procesos interculturales, p.118. 64 O sentido de dispensar a atuação estatal não significa uma obrigatoriedade em fazê-lo. Em

alguns casos a presença estatal pode e deve ocorrer.

Page 84: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

e tradicional), como se observou no exemplo kuna. Nesses casos, há que se

buscar a negociação igualitária entre os povos tradicionais e a sociedade

nacional, construindo, passo a passo, a autonomia dos primeiros para que

subsistam enquanto povos diferentes, embora sob o mesmo manto estatal.

Os povos indígenas resistiram à colonização, à assimilação pelo

trabalho, ao sistema individualista focado na propriedade; lutaram, e, hoje, há

instrumentos jurídicos nacionais e internacionais que garantem sua

continuidade, enquanto indígenas, e rompem a lógica de integração até então

propagada.

A análise da situação dos povos tukano e kuna faz perceber que não

pode haver um projeto cultural que caminhe na negação da diversidade fática

e latente. Isto não significa a solução de todos os males enfrentados por esses

povos, mas é a garantia da sua sobrevivência coletiva, enquanto povo. As

aspirações de cada um deles será diferente, o que é intrínseco à própria noção

de multiculturalismo, e deve ser enfrentada como uma maneira de se ajustar

os anseios culturais, dentro de uma perspectiva radicalmente democrática,

como vimos.

Mahajan señala que el multiculturalismo sólo és posible dentro de una democracia pluralista, en la cual los ciudadanos pueden mantener su distintividad cultural relacionándose de manera igualitaria entre sí y con el Estado de cual formam parte. Esta perspectiva, con la cual es dificil no coincidir, no supone uma negación sino la necesidad de redefinición de las lógicas constitutivas de los estados contemporáneos.65 A consolidação de um Estado unitário deve levar em conta os povos

que não dependem de sua estrutura organizacional para continuar existindo

(como os tukano por exemplo), e/ou aqueles que não concordam em absorver

a “nova colonização” ditada pelo Estado, sob o qual estão submetidos

geograficamente (caso dos kuna).

A criação dos Estados nacionais latino-americanos, seguindo o modelo europeu, se deu com a redação de uma Constituição que estabelecia um rol

65 BARTOLOMÉ, M.A. Procesos Interculturales, p.118.

Page 85: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

de direitos e garantias individuais. Isto significou o esquecimento de seus índios e a omissão de qualquer direito que não fosse a possibilidade de aquisição patrimonial individual. Portanto, aos índios sobrou como direito a possibilidade de integração como indivíduo, como cidadão ou, juridicamente falando, como sujeito individual de direitos. Se ganhava direitos individuais, e perdia o direito de ser povo. Apesar disto, os povos continuaram a ser povos. 66

Não se deve lutar contra essa realidade e a opção multicultural será

diversa caso a caso, mas o espaço de construção será fundamentado num

diálogo intercultural amplo, baseado no pressuposto de que “todas as

culturas têm um valor de dignidade humana, o que permite uma

hermenêutica multicultural e transvalorativa” 67.

Para tanto, é preciso haver possibilidades reais dentro do direito,

apontando para a aceitação e efetivação do pluralismo jurídico. Há

instrumentos coletivos voltados para a concretização deste paradigma, e a

realidade exige uma mudança do direito dentro da sua importante função de

pacificar e harmonizar a vida social em busca da felicidade de todos.

66 SOUZA FILHO, C. F. M. Multiculturalismo e direitos coletivos In: SANTOS, B. S. (org).

Reconhecer para libertar, p.78. 67 SANTILLI, J. Socioambientalismo e novos direitos, p. 34.

Page 86: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

4 Pluralismo jurídico para a afirmação da sociobiodiversidade

“É necessária a adoção e o cumprimento de políticas de pluralismo jurídico por parte do Estado mediante as quais se reconheça plena vigência aos sistemas de direito dos povos indígenas que coexistem diferenciados do

direito do Estado e se aplicam em âmbitos determinados dentro do mesmo território.” 68

Em tempo algum, o mundo passou por transformações tão rápidas e

tão profundas como as atuais. Há uma impetuosa avalancha de mudanças,

uma corrente tão poderosa que desagrega instituições, sacode e altera nossos

valores.

A sociologia moderna atribui ao sistema jurídico a função de

integração social que pode ser cumprida através de dois dispositivos: a

orientação do comportamento dos sujeitos e a resolução de conflitos

presentes entre pessoas e grupos69.

Para a compreensão do que vem a ser as instituições multiculturais

atreladas a um manejo sustentável, protecionista da biodiversidade,

profusamente praticado pelas comunidades tradicionais ao longo dos tempos,

e buscar uma maneira de realizá-lo de forma eficaz, não há como deixar de se

repensar o sistema jurídico à luz de uma concepção pluralista.

Estes novos conceitos representam a oportunidade para o direito

clássico moderno abrir-se a novas possibilidades, submetendo-se à

autocrítica, tão necessária em tempos de mudanças.

4.1 Um direito estatal e monista

Conhecido como monismo jurídico, a consolidação do Estado

moderno trouxe a presunção de que lhe caberia, exclusivamente, a produção

68 Declaração de Jaltepec de Cadayoc, 1995, México. 69 ARDILA AMAYA, E. Pluralismo jurídico: apuntes para el debate, p 49.

Page 87: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

de normas sociais, deixando de lado as demais formas de regulação social.

Porém, considerando a estrutura multifacetada inerente à sociedade e a

necessidade de inibição do monopólio estatal e de seu poder de império, essa

postura passou a ser encarada como um problema efetivo frente à realidade,

resumindo sua atuação ao plano meramente formal. O Estado, ainda que o

quisesse, não seria o único a criar normas para orientar as pessoas e resolver

os litígios.

O mito do monismo jurídico nada mais representou do que uma

construção ideológica, visando impor uma pretensa e ilusória unicidade

normativa que, ao longo desses últimos quatro séculos da história ocidental,

tenta sufocar a pluralidade existente no plano fático.70

Em se tratando do ordenamento positivo vigente, pode-se afirmar que,

de uma maneira geral, há uma tendência em não considerar como parte do

direito instituído a organização social e política de culturas diferenciadas.

Isso porque, na típica concepção kelseniana, e segundo a doutrina positivista

dominante, para constituir-se como direito, é preciso haver normas jurídicas

das quais ele provenha, proclamadas por um Estado soberano.

Sendo assim, o direito moderno estatal corresponderia ao melhor e

mais especializado sistema jurídico: a “hipótese mais representativa para o

conhecimento do Direito” 71.

Kelsen defendia que o direito precisava estar centralizado nas mãos

do Estado, e apenas o positivismo poderia ser o caminho para uma concepção

jurídica científica e pura 72. Assim, todos os indivíduos, mesmo que

pertencentes a diversas religiões, línguas, raças e concepções de mundo,

poderiam fazer parte de um direito único: “Todos eles formam uma

comunidade jurídica na medida em que estão submetidos a uma mesma

ordem jurídica, isto é, na medida em que a sua conduta recíproca é regulada

através de uma e a mesma ordem jurídica” 73.

70 ARDILA AMAYA, E. Pluralismo jurídico: apuntes para el debate, p. 53. 71 KELSEN, H. Teoria Pura do Direito, p. 60. 72 Ibid., p.70. 73 Ibid., p. 97.

Page 88: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

O objetivo de tornar puro o direito, sem a influência da ideologia

política, das ciências naturais, da moral, do costume, teve inegáveis razões

históricas. Elas se relacionam com o controle do poder político e com a

consolidação da legitimidade estatal que não fosse atrelada à vontade do

governante. No entanto, a sua vinculação estrita à norma jurídica e ao Estado

de maneira exacerbada, provocou, de tal forma, um afastamento do direito

em relação à sociedade envolvente, que inúmeros foram os aspectos que por

ele não puderam mais ser controlados. Isso foi mais visível nos países onde a

edificação da estrutura jurídica e estatal ocorreu muito distante da realidade

fática, a exemplo das ex-colônias submetidas à aplicação de uma réplica do

sistema das respectivas metrópoles.

Não resta dúvida, que o pensamento positivo centralizador, jamais

permitiria que outras esferas de direito, que não aquela única proposta pelo

Estado moderno e ocidental, se fizessem presentes. Na verdade, a concepção

que se guarda do direito, herdada do pensamento capitalista e positivista, é a

noção de uma uniformização cultural, simbolizando a força da instituição de

um Estado único e forte, garantidor dos direitos meramente privados,

centrados na propriedade. Embora o direito tenha sido fortemente estatizado,

essa construção foi desenvolvida muito lentamente e com dificuldades,

partindo de uma época em que a burguesia assumia o controle da sociedade.

A expansão do capital industrial e a filosofia individualista justificavam a

necessidade de controle por parte do Estado, para a garantia de uma suposta

liberdade que significava, tão somente, poder ou não poder tornar-se

proprietário.

Politicamente, portanto, era interessante desconsiderar a existência do

multiculturalismo, pois ele poderia ser interpretado, e isto ainda hoje se

discute, como um enfraquecimento do Estado central. Isso, porém não quer

dizer que não tenha havido opções de pluralismo jurídico na história da

humanidade como veremos a seguir.

Page 89: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

4.1.1 O Império Romano e a Idade Média

Os romanos, ao contrário do que possa parecer, não impuseram

totalmente o seu direito aos povos conquistados, permitindo a manutenção de

jurisdições locais. O conhecido jus gentium incorporava práticas normativas

das sociedades conquistadas, e buscava conciliar situações de conflitos,

enquanto necessidade de resolver a pluralidade sócio-jurídica existente.

Além disso, os romanos utilizavam outras fontes de direito, e não,

somente, a estatal ou pública oriunda do governo. O direito consuetudinário

dos juristas e a expressão do costume e das práticas populares eram, também,

reconhecidos como direito. Até o final da era imperial os romanos não deram

importância à monopolização do direito pelo Estado 74.

Pelo curso da história, depreende-se que as intenções romanas não

priorizavam a pluralidade cultural, a preocupação se resumia à ampliação de

domínios territoriais e a conquista de outros povos, mas é interessante notar

que existiram possibilidades alternativas ao monopólio do direito, e o

problema de conciliar as diferenças já se observava há séculos. Isso porque,

como vimos, é inerente à vida humana desenvolver-se de muitas formas,

sendo assim, o pluralismo acompanha a vida em sociedade.

A Idade Média foi caracterizada pela descentralização territorial, e,

conseqüentemente, por um poder pulverizado, o que abriu espaço para a

concorrência de instituições normativas.

Havia regulação social por parte dos costumes locais, dos agentes

municipais, dos estatutos das corporações de ofícios, além das diretrizes da

realeza, do direito espiritual (direito canônico) e do próprio direito romano. O

direito era extraído de atividades desenvolvidas no seio das corporações, dos

grupos e das comunidades. O Estado era apenas mais uma dessas instituições,

e não a central.

Nos séculos XVII e XVIII, buscando a centralização do poder, “o

absolutismo monárquico e a burguesia vitoriosa emergente desencadearam o

74 WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico: Fundamento de uma nova cultura no Direito, p. 169.

Page 90: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

processo de uniformização burocrática, que eliminará a estrutura medieval

das organizações corporativas, bem como reduzirá o pluralismo legal e

judiciário” 75.

Foi a partir da Revolução Francesa e das reformas de Napoleão que o

ideal mítico do monismo jurídico se fez presente, através da promulgação de

um código único para reger a vida de toda a sociedade.

O liberalismo ganha força e o Estado burguês se consolida. Com o

passar do tempo, surge a nova relação de poder, baseada no capital e no

monopólio do direito pelo Estado. Assim, tal sistema, sendo considerado o

mais adequado, passou a ser aplicado e copiado em todo o mundo.

4.2 A crise do monismo jurídico

O falso ideário de que todos seriam felizes sob as vestes de apenas um

direito foi sendo desfeito, a partir das constatações de que não é possível a

manutenção de um modelo único diante do pluralismo real.

Na perspectiva de Sousa Santos76 houve um aumento da

conflituosidade social provocado pelo desenvolvimento capitalista em suas

três fases, a saber: o período clássico do século XIX; o período organizado do

Estado-Providência; e agora, num terceiro momento, que é o do capitalismo

desorganizado.

Na medida em que aumentam as desigualdades sociais e crescem as

demandas por direitos e justiça, há uma pulverização dos conflitos, que

brotam aqui e ali; o Estado agiganta-se, mas não consegue uma cobertura

completa ou mesmo controlar tal situação. A crença do monismo é desfeita, e

percebe-se uma crise de regulação estatal.

El paradigma del Estado del derecho se quiebra. Pierde eficacia el derecho estatal como mecanismo de asignación que reduce al mínimo los costos privados de transacción. Se tambalea la seguridad jurídica que sustenta el principio de legalidad monista. Se habla de crisis del derecho por la ineficacia de la norma legal como orientadora de las relaciones sociales, se

75 Ibid., p. 170. 76 SANTOS, B. S. Pela mão de Alice, p.85-87.

Page 91: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

habla de crisis de la administración de justicia por la incapacidad del aparato jurisdiccional de atender la conflictividad. En realidad lo que ocurre es que el mito monista ya no es suficiente para entenderse con la nueva realidad. 77

Há uma instabilidade na administração da justiça, gerada pela

incapacidade do aparelho judicial diante da quantidade e da qualidade dos

novos conflitos. O Poder Judiciário vai sendo reformado e reformulado...

O Estado, pouco a pouco, abandona a presunção de submeter ou

impor suas decisões e passa a propor a participação da comunidade. Ele se

retrai, reconhece formas de justiça não estatais, e, embora as estabeleça como

meras competências, sem abrir mão da total pretensão monista, esta, a cada

dia, vai sucumbindo, e a realidade pluralista ganhando espaço.

4.3 Pluralismo jurídico

O pluralismo jurídico, hoje, é reconhecido pelo conjunto de dinâmicas

jurídicas distintas daquelas provenientes do direito estatal, que com elas

competem na função de regular a sociedade. O núcleo da discussão converge

para a descaracterização do Estado como a única fonte do direito, entendendo

que diversas racionalidades sociais podem provocar o fenômeno jurídico. A

sociedade contemporânea, essencialmente complexa, é composta por diversas

instituições e organizações de que o Estado faz parte, mas, ainda que se

queira entender ser ele o mais importante, isso não ocorre.

Certamente, o momento de globalização da economia em que se vive,

permite ainda mais tal discussão, pois ela se apresenta como um fator que

relativiza, sobremaneira, a concepção de Estado como o ente mais importante

ou central na constelação social como um todo.

Diversas empresas e organismos internacionais, supra-estatais ou não

governamentais, podem, hoje, determinar, controlar e produzir muito mais

regulação de comportamentos sociais, e até políticos, do que o próprio Estado

nacional e seu pretenso direito único.

77 ARDILA AMAYA, E. Pluralismo jurídico: apuntes para el debate, p. 53.

Page 92: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Sendo assim, a absorção do pluralismo jurídico nesse momento pode

configurar-se como extremamente estratégica e oportuna, visto que a

globalização exige uma abertura do Estado, e o enfraquecimento de “velhos

conceitos e dogmas, que sempre serviram de argumento ideológico para não

reconhecer diversidades culturais internas.” 78

A fase atual do capitalismo caracteriza-se por uma nova relação local-

mundial em que surge uma outra dinâmica das relações políticas, econômicas

e socioculturais, voltadas para uma maior participação e interação da

sociedade civil e do cidadão, realidade esta que não é mais centrada no

Estado, como sendo o agente propulsor ou o responsável pela condução da

sociedade ao bem comum. Então, ele se vê na necessidade de se adaptar a

nova ordem de coisas no cenário internacional, e isso contribui para a

construção de um perfil menos presunçoso acerca do direito.

Hoje, é possível reconhecer e aceitar um conjunto de dinâmicas

paralelas às do direito estatal que competem na regulação social, e constituem

uma estrutura de pluralismo jurídico.

Para apreender o direito, a partir da noção do pluralismo, no entanto, é

necessário considerá-lo mais sob a ótica de eficácia social.

4.3.1 Um direito social

Segundo Aguirre79, faz-se necessário escapar do papel atribuído ao

sistema jurídico, fundamentado no aspecto meramente formal, e reorientar

sua análise em função de critérios políticos e sociais que, na verdade, dão

coerência a qualquer sistema normativo.

Se o “direito” é sancionado por autoridades não presumidas ou

usurpadas, cuja comunidade lhes outorga poder para tal, possui eficácia

social, comprovada pela aceitação das normas pelo povo que, ao vivenciá-las

no cotidiano, através de um comportamento de acordo, as modifica e/ou as

78 SOUZA FILHO, C.F.M. Autodeterminação dos povos e jusdiversidade. In: ALMEIDA,I.;

RODAS, N. A (coord.). En defensa del pluralismo y la igualdad, p. 243. 79 BALLÓN AGUIRRE, F. Sistema Jurídico Aguaruna y positivismo. In: ITURRALDE, D.;

STAVENHAGEN, R. Entre la Ley y la costumbre, p. 137.

Page 93: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

mantém vigentes, não têm porque não ser considerado direito. Assim sendo,

funciona como uma instituição que identifica, aplica e faz respeitar normas

de conduta80.

Dentro das comunidades indígenas, por exemplo, há um dinamismo

em relação a novas formas de coordenação e lideranças, e uma competência

em torno da faculdade de emitir e garantir as normas para os membros da

comunidade, como se percebeu na análise do sistema jurídico tukano e kuna.

Para Santi Romano81, a instituição que surge como um ente social

adequadamente estruturado e baseado em relações estáveis e permanentes,

reflete um verdadeiro ordenamento jurídico. Antes de qualquer norma ser

norma, há uma organização social que lhe fundamenta e dá sentido, sendo ela

apenas um produto. O Estado representa, somente, uma entre todas as demais

instituições humanas existentes.

Talvez, seja por isso que o Estado contemporâneo em diversos países,

como os latino-americanos, não consegue dar conta da conflituosidade e

alcançar a almejada paz social, porque se sustenta na idéia ilusória de uma

instituição central. Mesmo entre aqueles que são relativamente homogêneos

no aspecto cultural, são poucos os conflitos que têm trâmite judicial estatal.

Outros cenários sociais, tais como a família, a vizinhança e a empresa

acabam por absorver muitas demandas, à luz de normas substantivas e

procedimentais, informadas segundo ordens de regulação alheias ao Estado82.

O direito social provém da organização das coletividades e da

participação e integração efetiva dos grupos que compõem a sociedade.

Materializa-se a partir de dentro da realidade fática, sendo o pluralismo

jurídico uma conseqüência metodológica de análise, configurando-se como

uma espécie de “empirismo radical”83.

A partir do momento em que um conceito de direito é levado em

consideração, com íntima dependência de um sentido social, em que se 80 HOEKEMA, A. J. Hacia un pluralismo jurídico formal de tipo igualitário, p. 70. 81 ROMANO, S. L´ordinamento giuridico. Firenze: Sansoni, 1957. Apud WOLKMER, A. C.

Pluralismo Jurídico: Fundamento de uma nova cultura no Direito, p. 172-173. 82 ARDILA AMAYA, E. Pluralismo jurídico: apuntes para el debate, p. 50. 83 WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico: Fundamento de uma nova cultura no Direito, p. 179.

Page 94: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

consagram os aspectos relevantes de efetividade sócio-política, torna-se

visível a adoção do pluralismo jurídico como possibilidade de sustento e

concretização do multiculturalismo.

Diversas são as dinâmicas de relações sociais que se autoregulam,

prescindindo das tradicionais instituições hegemônicas, como as listadas

abaixo84:

a) Dos povos tradicionais, indígenas e locais que vivem em suas

próprias organizações, sem a necessidade de regulação social

estatal ;

b) Das comunidades excluídas ou marginalizadas, a exemplo das

favelas, fruto da exclusão política e cultural provocada pelo

desenvolvimento capitalista desequilibrado;

c) Das associações populares que emergem como resultado da ação

de novos movimentos sociais localizados e alternativos (opção

sexual, de gênero, raça, ideologia, etc), que, por iniciativa própria,

vivem apartadas do modelo predominante de cultura;

d) De situações que se apresentam em crises institucionais ou de

violência permanente, visivelmente contrários a ordem jurídica

oficial e que estabelecem um novo eixo de poder (como ocorre em

relação às Farc – Forças Revolucionárias da Colômbia)

e) De âmbito do comércio internacional, no caso da chamada lex

mercatoria, que se apresenta como uma estrutura jurídica da

prática contratual em nível mundial de empresas e organizações,

baseada no estabelecimento de cláusulas e regras que transcendem

as fronteiras nacionais.

Sobre cada um destes tópicos, naturalmente, seria possível discorrer a

respeito, no entanto, devido ao enfoque socioambiental do presente trabalho

84 Ibid., p. 53.

Page 95: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

vamos nos ater, por ora, às relações travadas entre os povos indígenas que

podem, sem muito esforço, ser estendidas a outras populações tradicionais85.

4.3.2. Pluralismo jurídico e povos indígenas

As relações entre o sistema jurídico dos povos indígenas com o direito

“oficial”, reinante nos países onde estão inseridos, talvez, representem o

primeiro caso onde o conceito de pluralismo jurídico pode ser constatado.

Não há como negar o fato de que tais povos não compartilham sequer

das noções de território, soberania, e, menos ainda, dos interesses nacionais

(sejam eles sociais, individuais, políticos, econômicos ou espirituais)

relativos ao país de origem.

Tal situação pode ser explicada remontando-se ao período colonial.

As metrópoles, ao dominarem os povos, instauravam nas suas

colônias o seu próprio direito. Tinham por objetivo criar, nas terras de além-

mar, uma sociedade à sua imagem e semelhança, muito embora, como não

podia deixar de ser, sua abrangência ficasse mais restrita aos centros

regionais, gradualmente formados com predominância dos súditos

imigrantes. As comunidades nativas e/ou locais, em sua maioria pacíficas,

quando escapavam da dizimação, permaneciam praticando seus costumes e

mantinham suas próprias formas de regulação.

Um caso bastante conhecido é o da Índia86, onde conviviam o direito

inglês e as estruturas jurídicas dos povos nativos. Com a independência das

colônias, a situação, a rigor, não sofre mudança para tais comunidades, visto

que o direito nacional ocupa o lugar do direito colonial. 85 Tais como, seringueiros, quilombolas, caiçaras, ribeirinhos e outros. A legislação brasileira

perdeu a chance de definir o que seriam populações tradicionais na lei nº 9.985/2000, que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. O artigo foi vetado por ter sido o conceito considerado muito abrangente, mas ele dizia o seguinte: “População tradicional: grupos humanos culturalmente diferenciados, vivendo há, no mínimo, três gerações em um determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu modo de vida, em estreita dependência do meio natural para sua subsistência e utilizando os recursos naturais de forma sustentável." Sobre o assunto ver: VULCANIS, A. Presença humana em unidades de conservação. In: Borges da Silva, L.; OLIVEIRA, P.C. Socioambientalismo: uma realidade – Homenagem a Carlos Frederico Marés de Souza Filho, p. 47-62.

86 ARDILA AMAYA, E. Pluralismo jurídico: apuntes para el debate , p. 54.

Page 96: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Tal estado de coisas, também pôde ser observado nos países latino-

americanos de colonização portuguesa e espanhola, onde, ainda hoje, povos

tradicionais coexistem paralelamente ao Estado formado. Esse é um dos

motivos que muitos dos estudos de antropologia jurídica foram e são aqui

realizados (a exemplo de Abel, 1982; Galanter, 1981; Moore, 1978; Pospsil,

1971 e outros87).

Nunca é demais relembrar que as dimensões existenciais de quem

vive nos centros urbanos são, completamente, diversas de quem vive nas

comunidades locais.

Nestas últimas, o modo de produção é baseado no suprimento e na

satisfação das necessidades de todos - uma postura essencialmente coletiva.

A finalidade da cultura e o prestígio social estão relacionados a esta

satisfação geral e ao equilíbrio com o universo; prescindem da acumulação de

riquezas ou das aspirações individuais e egoístas - fato este corroborado pelo

estudo do povo tukano.

A utilização dos recursos naturais se dá de uma forma consciente e

sustentável, com um baixo grau de impacto ambiental, e ainda, é orientada no

sentido de evitar uma possível escassez. Por esse motivo, a presença de

recursos ambientais em seus territórios é muito grande, promovendo, como

vimos, a preservação da biodiversidade.

Já o modelo capitalista é calcado na acumulação de bens e no

individualismo competitivo. Parte-se da noção de que os seres humanos têm

o direito de manipular a natureza em maior ou menor grau, como desejarem.

A natureza é meio, a humanidade, fim88.

Os povos indígenas, como de resto, outras comunidades locais,

orientam-se por princípios espirituais, morais e éticos diversos, através de

uma visão holística de mundo, sem o cientificismo, a racionalidade ou o

particularismo ocidental.

87 GARCIA VILLEGAS, M. Notas preliminares para la caracterización del derecho en

América Latina, p.36. GUEVARA-GIL, A.; THOME, J. Notes on Legal Pluralism, p. 75-89.

88 GALTUNG, J. Direitos humanos – uma nova perspectiva, p. 25.

Page 97: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Como não poderia deixar de ser, tudo isso levou, por óbvio, a uma

construção jurídica completamente diversa, e que não depende da atuação do

Estado para se concretizar.

Os povos indígenas, embora desenvolvam relações independentes da

esfera jurídica nacional, mantêm contatos com o Estado e demais instituições,

através de diversos setores: educação, saúde pública, segurança, saneamento

e outros, haja vista o exemplo kuna, em maior grau, e o tukano em menor.

Mas isso, não significa que seus estatutos jurídicos sejam desconsiderados,

ou que os índios estejam integrados ou a caminho de serem absorvidos pela

sociedade envolvente.

A preservação dos institutos jurídicos indígenas faz estabelecer

condições de igualdade, em termos de reconhecimento como povos que são e,

a partir daí, sua relação com o Estado pode ser travada mediante diálogo89, e

não imposição.

As diferenças culturais são extremamente marcantes de povo para

povo. O termo genérico índio pode conduzir erroneamente à suposição de

que todos são similares90. Na verdade, isso não ocorre. Por mais que haja

semelhanças entre eles, cada povo indígena tem sua cultura e estrutura

jurídica e social diversa de outro, e que precisa ser respeitada e aceita na sua

diferença.

Norberto Bobbio, ao tratar das relações entre os ordenamentos

jurídicos, de uma maneira geral, menciona as tensões que podem existir entre

o Estado e outros ordenamentos, que ele denomina de menores. A partir

dessa interação, o autor estabelece algumas soluções possíveis.

Especialmente, em relação aos grupos étnicos com costumes,

civilização e histórias muito diferentes das do resto da comunidade nacional,

em que podemos inserir os povos indígenas, Bobbio determina duas posturas

que podem ser adotadas pelo Estado91:

89 Sobre a posição de diálogo intercultural e seu fomento ver a Declaração universal da

UNESCO sobre a Diversidade Cultural. 90 SOUZA FILHO, C. F. M. O renascer dos povos indígenas para o Direito, p. 38. 91 BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico, p. 172.

Page 98: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

a primeira requer, frente ao ordenamento menor, o procedimento que chamamos de recusa, isto é, o do desconhecimento das regras próprias do grupo étnico e da substituição violenta pelas normas já em vigor no ordenamento estatal; a segunda poderá ser realizada através do processo de reenvio, isto é, atribuindo-se às normas, provavelmente a um grupo de normas, formadas integralmente no ordenamento menor, a mesma validade das normas próprias do ordenamento estatal, como se aquelas fossem idênticas a estas.

No entanto, a posição do Estado, em geral, continua Bobbio, é a da

indiferença. Em outras palavras, tais ordenamentos têm suas regras, mas o

Estado não as reconhece, ou não lhes dá nenhuma proteção para coexistirem,

e, por vezes, ocorrem conflitos entre ambos ordenamentos.

O Estado brasileiro em sua história, ao lado de outros latino-

americanos, tratou os povos indígenas com omissão e indiferença, em relação

a suas leis e direitos, tornando-os juridicamente invisíveis, na parca noção de

que eram inferiores, e seu direito não era direito, e sim costume.

Até a década de 50 e 60, aproximadamente, as políticas de

desenvolvimento de vários países se encaixavam num conceito de

modernidade, comprometido com a abolição e repressão total a outros

sistemas de direito e a autoridades diferentes das estatais92. O Estado era

concebido como liberal, unitário e monocultural, baseado no princípio de

direitos iguais para indivíduos iguais. E, nessa perspectiva, somente eram

aplaudidas e fomentadas as práticas culturais num sentido meramente

folclórico, ou seja, sempre quando não interferiam em relevantes conceitos,

tais como, direito e Estado.

Essa concepção foi e vem sendo, gradativamente, desconstruída.

Vários fatores incidiram para a eliminação deste conceito integracionista. A

“modernidade” de agora (pós-modernidade), salvo em alguns países de

orientação obstinada e estritamente neoliberal, reconhece que não se pode

avançar sem a cooperação genuína dos elementos que compõem a sociedade

civil como um todo.

92 HOEKEMA, A. J. Hacia un pluralismo jurídico formal de tipo igualitário, p. 63.

Page 99: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Os povos indígenas e outros povos culturalmente diferenciados se

uniram e, como vimos, buscaram seu reconhecimento e conquistaram

importantes mudanças no cenário jurídico e político, tanto nacional quanto

internacional.

As vitórias merecem destaque, no entanto, é inegável que ainda há

muito para se avançar no estabelecimento de um sistema capaz de abarcar

novas formas de estruturação jurídica e social, para a afirmação efetiva do

direito à diferença cultural e à autodeterminação.

4.3.2.1 Direito consuetudinário

Pode-se dizer que o direito consuetudinário dos povos indígenas

corresponde a um conjunto de normas que regem a vida e as relações dos

povos, bem como suas autoridades constituídas, fazendo-se respeitar pelo

costume, buscando evitar que haja perturbação da ordem estabelecida e da

vida pacífica da comunidade, ou ainda, que prejuízos materiais sejam

causados. Não é escrito nem codificado, e difere do direito positivo vigente

no país em que se encontram.

Dentro desse espectro de coisas, reside um dinamismo constante, que

permite a inserção de novas formas de coordenação e liderança, ao passo que

estas comunidades evoluem no tempo e no espaço.

Há uma gestão comportamental de seus membros e uma divisão de

competência entre as autoridades tradicionais. Portanto, há uma perceptível

estrutura jurídico-social. Mais que um costume ou tradição, é preciso que o

Estado reconheça e aceite plenamente o direito indígena ou tradicional como

direito que é.

Essa é a posição mais aceita atualmente em algumas convenções

internacionais que tratam dos direitos dos povos indígenas, tal como a

Convenção 169 da OIT. Ainda assim, são políticas de mera compensação

pelas desvantagens sofridas por grupos indígenas, não representando a

aplicação de um pluralismo jurídico mais maduro, como veremos adiante.

Page 100: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Isso não significa que são sem importância, muito pelo contrário, têm

sua validade na medida em que representam algumas das conquistas no

caminho de luta pelos direitos indígenas. Entretanto, faz-se necessário e

urgente continuar na busca por uma autonomia mais ampla.

Não parece sensato que o direito estatal tenha a faculdade de

determinar, unilateralmente, a legitimidade e o âmbito dos demais sistemas

de direitos, como os indígenas. Ele aceita a validade das normas de outros

ordenamentos ou, como Bobbio mesmo escreveu, de “ordenamentos

menores”, gerados nas comunidades especiais que, como tais, representam

uma parte diferenciada, mas também constitutiva da sociedade como um

todo. Portanto, elas têm capacidade para instituir seu direito, e este deve ser

reconhecido como parte integrante da ordem jurídica nacional.

Vale ressaltar, que as demais comunidades tradicionais, como a dos

quilombolas devem também ter o seu direito reconhecido, tendo respaldo nos

avanços atingidos pelo direito indígena.

Dentro da prática jurídica monista, construída artificialmente até a

contemporaneidade, em que o direito é muito mais visto como instrumento de

dominação do que de libertação, é bem provável pensar-se que essa estrutura

poderá representar um retrocesso na evolução política de uma nação.

Soberania, governo e território, certamente se vêem ameaçados. Mas,

devemos considerar que está, no mínimo, encerrando (se já não está

encerrado), o projeto de construção de uma sociedade homogênea e

monocultural, tendo em vista as exigências sociais contemporâneas e o

reconhecimento do multiculturalismo nas constituições e convenções

internacionais.

Os povos indígenas e outras comunidades tradicionais não têm por

objetivo separar-se geograficamente. Eles não almejam a criação de um outro

país, mas querem viver na diferença que lhes é própria.

Uma nação, em especial, latino-americana, não se formará

solidamente, buscando o monopólio cultural, e sim, dando lugar à inquietante

pluralidade, trazendo-a do plano fático para realizá-la, sobretudo, no campo

jurídico.

Page 101: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

4.4 Pluralismo jurídico formal unitário versus igualitário

Uma das premissas do pluralismo é a coexistência de diversos

sistemas jurídicos num mesmo espaço-tempo.

Uma vez delimitada a existência do direito social indígena

consuetudinário, e a sua omissão por muitos séculos, cabe refletir sobre como

será hoje a sua interação com o ordenamento jurídico positivo nacional.

André Hoekema93 menciona que existem dois tipos de pluralismo

jurídico: o social e o formal, sendo este último dividido em unitário e

igualitário. Pelo pluralismo jurídico social entende-se a já mencionada

descentralização do poder jurídico estatal (item 4.3.1), considerando a

multiplicidade de variáveis sociais, sendo uma delas, as oriundas da

diversidade cultural.

Sendo assim, a partir da existência do pluralismo no seu sentido

social, emerge a concepção de um pluralismo, também, no aspecto formal,

ligando-se ao relacionamento que será travado entre os diversos sistemas de

direitos, mais especificamente, a relação com o sistema considerado oficial.

Os Estados, de maneira geral, têm adotado a postura de determinar,

unilateralmente, a legitimidade e o âmbito dos demais sistemas jurídicos. Isso

significa uma posição bastante clara, qual seja a de não equiparar o direito

consuetudinário com o direito “oficial”. O primeiro teria uma função

meramente complementar, sob condições previamente definidas pelo Estado,

e desde que não contrarie as suas normas, que são consideradas as mais

importantes.

Tudo isso, corresponde à manifestação de um pluralismo jurídico

unitário que preserva a autoridade estatal, caracterizando-se apenas como

uma débil relação plural. Na verdade, mantém a concepção de primazia

cultural. Por isso, o uso da expressão pluralismo unitário.

Essa é a posição adotada pela Convenção 169 da OIT, quando,

expressamente, no seu artigo 8.º, menciona:

93 HOEKEMA, A. J. Hacia un pluralismo jurídico formal de tipo igualitário, p.70 passim.

Page 102: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

1. Ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser levados na devida consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário.

2. Esses povos deverão ter o direito de conservar seus costumes e instituições próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Sempre que for necessário, deverão ser estabelecidos procedimentos para se solucionar os conflitos que possam surgir na aplicação deste princípio. (grifo nosso)

Para Hoekema, as políticas de reconhecimento do direito indígena,

dificilmente, vão além dessa concepção unitária e imatura, entendendo ser

isto uma forma de mera compensação histórica pelo sofrimento causado a um

grupo marginalizado ou minoritário94.

Dentro deste contexto, a construção de um pluralismo mais combativo

e eficaz deve se posicionar na vanguarda das ações, no sentido de consolidar

uma verdadeira simultaneidade igualitária entre todos os sistemas de direito.

O direito indígena não complementa, ele substitui o direito estatal nas esferas

sociais em que prevalece a sua aplicabilidade. Nessa visão, desponta a idéia

de pluralismo jurídico formal igualitário.

De qualquer forma, também, dentro desse conceito, há uma chancela

estatal unilateral, mas esta ocorre na direção de que o direito consuetudinário

seja reconhecido como parte integral da ordem jurídica nacional, em situação

de igualdade perante o direito estatal, atuando como o oficial nas esferas

sociais correspondentes.

O fato de se fixar limites territoriais para a aplicação do direito

indígena ou a quem ele se aplica, não significa a perda do caráter pluralista,

visto que representam regras a respeito da vigência e aplicabilidade de cada

direito, o que é necessário, quando se trata de buscar a articulação entre

multiplicidade de sistemas jurídicos. Podem ser consideradas simples regras

de procedimento, que objetivam apenas conduzir a qual sistema adotar. O

direito internacional privado representa, no direito ocidental, a forma de

como fazer essa indicação dos sistemas. 94 HOEKEMA, A. J. Hacia un pluralismo jurídico formal de tipo igualitário, p. 71.

Page 103: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

O pluralismo jurídico formal de tipo igualitário consagra a existência

de regras e procedimentos legais num modelo federal, mas não significa que

reconhecer o direito indígena implique numa conseqüente forma federalizada

de Estado em relação aos povos, embora no plano fático haja realmente uma

aproximação desta concepção.

São regras formais que disciplinam a relação entre sistemas jurídicos

equivalentes. O “reenvio”, que Bobbio95 menciona para o tratamento das

relações entre ordenamentos jurídicos diversos, precisa ser estabelecido de

uma maneira a adequar as situações plurais, e o desenvolvimento dessas

regras se dá quanto à forma e não quanto ao conteúdo. Elas buscam,

justamente, conferir legitimidade e assegurar o valor legal e jurídico das

decisões produzidas no âmbito dos povos culturalmente diferenciados,

considerando-as iguais às emanadas pelo próprio Estado. Inegável a

constatação de necessária reformulação da postura estatal que esse processo

exige, passando do conceito de “mono” para “pluri”. São processos

compartilhados que pressupõem a contínua eliminação de preconceitos e

diferenças.

A utilização desta noção voltada para a aplicação das regras num

modelo federal pode ser observada em Nunavuut, região situada ao norte do

Canadá, onde foi instituída uma unidade pública diferenciada que, em

nenhum aspecto, difere-se das demais províncias canadenses, a não ser pelo

fato de, naquele território, viverem o povo inuit, que representa a maioria da

população96. Na Região Autônoma da Costa Atlântica da Nicarágua e,

também, no caso de algumas comarcas do Panamá, tais como vimos no

exemplo do povo kuna, há uma regulamentação, visando incluir

procedimentos legais federais, dentro de uma perspectiva de pluralismo

jurídico que caminha para o formal de tipo igualitário.

Como se pode perceber, o reconhecimento gradativo dessa nova

estrutura jurídica conduz a uma reavaliação do próprio sistema político e para

a distribuição dos poderes dentro de cada país.

95 BOBBIO, N. Teoria do ordenamento jurídico, p. 172. 96 HOEKEMA, A. Hacia um pluralismo jurídico formal del tipo igualitário, p. 72.

Page 104: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Impossível, portanto, falar numa adoção efetiva do pluralismo sem

passar pela reflexão acerca de autonomia.

4.4.1 Autonomia indígena

O conceito de autonomia provém do princípio de autodeterminação

dos povos e, a partir dele, também se constrói e consolida o direito ao

multiculturalismo.

Isso porque, analisando mais detidamente o assunto, conclui-se que

ilusório seria conceber um sistema juridicamente pluralista, num âmbito de

total controle dos territórios indígenas e tradicionais por parte do Estado.

A autonomia pode ocorrer em diversos setores, econômico, social,

cultural, político, dentre outros. Por autonomia política entende-se a

capacidade, formalmente garantida, nas mãos de uma comunidade para se

autogovernarem, mediante organização própria, orientada por suas normas e

critérios, com possibilidades efetivas de gestão e administração dos recursos

que lhe são cabíveis.

No que tange aos povos indígenas e demais comunidades

culturalmente diversas, não se busca a autonomia de uma forma a segregar-se

territorialmente dos Estados. Aqui haverá o mesmo impasse conceitual no

âmbito do direito internacional, por está ligada, esta autonomia, ao princípio

de autodeterminação dos povos e à conseqüente noção de soberania que lhe é

atribuída neste panorama.

Praticamente, a maioria dos povos indígenas não busca soberania, e

sim uma autonomia política interna97, dentro mesmo dos Estados dos quais

são partes. Isso significa que são necessárias regras de adaptação de um

sistema pluralista, na perspectiva realmente formal igualitária ora tratada.

A autonomia, no entanto, pode acontecer em diferentes graus, e

adaptar-se a condições especiais de cada povo, o que é inerente à própria

diversidade. Nem toda autonomia vai refletir um pluralismo igualitário, mas,

certamente, este funciona como norte ou ideal a ser buscado.

97 HOEKEMA, A. J. Hacia un pluralismo jurídico formal de tipo igualitário, p. 73.

Page 105: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Os povos indígenas vivem numa árdua batalha para a manutenção de

uma autonomia cultural, lutando para se preservarem, enquanto povos

diferentes.

Essa dificuldade de manutenção da cultura, muitas vezes, faz-se

presente por causa da não autonomia que possuem para gerir sua própria vida

no aspecto econômico, jurídico e social. É claro, que nem todos os povos

vivem a mesma realidade, e alguns conseguem manter mais possibilidades de

autonomia em relação a outros. A verdade é que essa questão torna-se mais

problemática, quando, por força de interesses diversos, estes povos se vêm

pressionados a tomarem uma determinada atitude ou posição, como acontece

em casos emblemáticos, e não raros, de exploração de recursos hídricos, de

jazidas minerais, petróleo e conhecimentos tradicionais associados à

biodiversidade.

A autonomia política, assim, reflete-se como requisito da

determinação cultural, porque a última vê-se, fortemente, comprometida,

quando a primeira não é realizada. Muitas vezes, o processo de consulta aos

povos indígenas, quando da aprovação de algum projeto de exploração em

seus territórios, não significa que lhes seja dada a autonomia por eles

desejada. Participar de atividades como esta, relaciona-se mais com a

preocupação de dar uma satisfação a sociedade em geral com relação à

transparência das negociações.

Uma autonomia política ampla reflete-se numa variada possibilidade

de os povos determinarem sua vida e os assuntos que entendem importantes,

como a forma de escolha de seus dirigentes, a recuperação da sua cultura e

valores, a promoção do ensino do idioma, direção da economia, da saúde, do

controle dos recursos naturais etc.

Como se observou no caso kuna, o governo panamenho, no acordo

feito com aquele povo, não abriu mão da imposição do sistema educativo

nacional, visando justamente o controle da cultura, e a não configuração de

uma autonomia mais ampla; uma espécie de liberdade vigiada.

O Estado mantém as rédeas da situação, reservando-se a competência

de retomar os poderes conferidos, e, sendo ele o competente para dirimir o

Page 106: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

conflito entre ambas jurisdições, ditar leis que sejam plenamente válidas,

inclusive, no território tradicional. Esse tipo de autonomia é verificada em

Nunavuut (Canadá) e nas Regiões Autônomas da Nicarágua. A lei estatal

determina o que é ou não reconhecido pelo direito consuetudinário.

Essa espécie de autonomia limitada, em alguns casos, representa

quase uma concessão do governo aos povos indígenas, mantendo-se a

superioridade estatal. Não raras vezes, até, essa autonomia é interpretada por

setores da elite, a exemplo de grandes latifundiários, como um real privilégio

“dado” às minorias, atrapalhando o desenvolvimento econômico do país.

Um pluralismo jurídico formal de tipo igualitário exige um nível de

autonomia mais profunda, no entanto, como as mudanças, em geral, não

ocorrem abruptamente, uma autonomia limitada corresponde já à condução

do processo de abertura do sistema, e representa possibilidades reais de

emancipação cultural.

Vale sempre lembrar que essa postura voltada para o pluralismo

jurídico efetivo relaciona-se diretamente com a preservação ambiental da

biodiversidade associada, pois a garantia da continuidade da estrutura jurídica

e social dos povos indígenas, proporciona a manutenção do seu padrão de

vida, que melhora e enriquece a diversidade biológica mundial.

Não se deve, portanto, adotar uma postura meramente utilitarista com

relação a esses povos, ou atribuir-lhes a mera função de “jardineiros” do

planeta.

(...) ao discurso da biodiversidade corresponde também uma diversidade cultural, dada a existência de grupos humanos que adaptaram e enriqueceram a natureza.(...) O reconhecimento da diversidade cultural implica o reconhecimento de outros modos de vida alternativos, que, muito embora tenham beneficiado a biodiversidade, não esgotam sua importância nessa função, antes pelo contrário, transcendem tal dimensão utilitária.98

A riqueza cultural, talvez, seja um dos principais legados a deixar para

a humanidade, e se constitui num verdadeiro patrimônio reconhecido há

98 FLOREZ ALONSO, M. Proteção do conhecimento tradicional? In: SANTOS, B. S (org.).

Semear outras soluções – os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. p. 293-294.

Page 107: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

tempos pelo direito e garantido para as futuras gerações99. O suporte100 dessa

riqueza são as sociedades diferenciadas que precisam ser protegidas, pois a

cultura é em si algo abstrato e se materializa, nesse caso, em diferentes povos

e estruturas sociais.

4.5 Para a construção de um Estado pluriétnico e mu lticultural

Levando-se em consideração que na moderna concepção de Estado

um dos pilares de sustentação é o controle exclusivo do direito, torna-se

muito difícil negar que alterações profundas terão que ocorrer na estrutura

estatal, uma vez reconhecido e consagrado o regime de pluralismo jurídico

social, caminhando para o formal do tipo igualitário.

A mudança na relação jurídica estatal modifica a noção que se tem do

próprio conceito de Estado. Sendo ela baseada no monismo jurídico, tem-se

um Estado central, com soberania una e indivisível na clássica doutrina de

Jean Bodin. Adotado o pluralismo jurídico efetivo, tende-se a uma

relativização dos conceitos e a construção não de uma nação única, mas de

um Estado plurinacional, o que não implica em sua desintegração como será

visto adiante.

4.5.1 Multiculturalismo na Constituição Federal de 1988

Á luz do que se lê na Constituição Federal brasileira de 1988, é

possível afirmar que foram abertas possibilidades reais de mudanças, e que

ela caminha num sentido, em que se pode vislumbrar a adoção de um

multiculturalismo no plano jurídico, embora de maneira tímida e não de

forma direta como gostaríamos.

Os direitos culturais foram contemplados, garantindo-se a manutenção

das culturas que contribuíram na formação da identidade nacional.

99 Haja vista a criação da UNESCO em 1972, como entidade internacional dedicada à

preservação do patrimônio cultural da humanidade exigindo a responsabilidade dos Estado quanto aos bens culturais.

100 SOUZA FILHO. C. F. M. Bens culturais e sua proteção jurídica, p. 48

Page 108: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Art. 215: O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. §1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.(grifo nosso)

O art. 216 elenca os modos de criar, fazer e viver dos grupos

formadores da sociedade brasileira, como sendo parte do patrimônio cultural

nacional. Por este dispositivo, também, as comunidades diferenciadas têm

proteção acerca dos seus estilos de vida e garantia de poderem continuar

vivendo na diferença.

Na ligação do direito ao patrimônio cultural e dos direitos dos povos indígenas, está a proteção das culturas vivas, locais e atuantes no cenário brasileiro. Esta proteção gera um direito coletivo que se pode entender como a proteção da pluriculturalidade da organização social brasileira, expressa no artigo 215 §1º. Podemos chamar a isto um direito à sociodiversidade. 101

O art. 231, que trata dos índios, é mais contundente no sentido da

adoção do pluralismo, uma vez que menciona o reconhecimento da

organização social indígena, bem como dos seus costumes e tradições.

A garantia do espaço para a manutenção desta sociodiversidade é

imprescindível e, por isso, a Constituição menciona que os direitos territoriais

indígenas são originários, ou seja, anteriores a formação do próprio Estado

brasileiro.

Ao estabelecer o conceito de terras tradicionalmente ocupadas, no §1º

do art. 231, fixada está a relação da sociodiversidade com a biodiversidade,

considerando a necessidade dos recursos ambientais para os povos indígenas.

Paralelamente, foram, também, reconhecidos os direitos dos

quilombolas, comunidades tradicionais afro-brasileiras remanescentes dos

antigos quilombos da época escravagista, a exemplo de sua proteção cultural,

como grupo étnico formador do processo civilizatório nacional, tendo sido

101 SOUZA FILHO, C. F. M. O renascer dos povos indígenas para o direito, p. 183.

Page 109: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

proporcionado o direito coletivo ao território, assim dispondo a Constituição:

“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando

suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-

lhes os títulos respectivos.”

Percebe-se que, embora não sejam utilizados termos de mais peso

pluralista como autonomia, a Constituição Federal de 1988 conduz a um

processo de abertura em que se pode vislumbrar um horizonte mais amplo, e

dar passos largos em direção a ele. Não se fez menção ao direito

consuetudinário ou a sistema jurídico para designar a organização social

indígena, por exemplo, mas, numa visão integrada de contexto regional e

mundial é inegável a possibilidade de desenvolver-se hermenêutica nesse

vetor.

A partir de uma análise sistemática dos dispositivos constitucionais

mencionados, aliados aos princípios de dignidade humana102, igualdade103,

bem como aos objetivos fundamentais da República, quais sejam de se

construir uma sociedade justa, solidária104 e livre de discriminação105, é que

se afigura inegável o aspecto multicultural, pluralista e coletivo da

Constituição de 1988. Sua profunda preocupação com a preservação da

riqueza cultural brasileira é imanente.

As ferramentas para a construção gradativa do pluralismo jurídico

estão disponíveis, embora não com a certeza de uma política verdadeiramente

comprometida por parte do Estado brasileiro, pois este ainda se encontra

muito preso às amarras do monismo e do formalismo jurídico, mas que

inegavelmente tende ao estabelecimento de uma plurietnicidade mais efetiva.

Em nosso País vive-se uma intensa miscigenação, onde vários grupos

étnicos são formadores e integram a identidade nacional. Na verdade, melhor

seria o termo “diversidade nacional”, ao invés de identidade, para representar

o povo brasileiro, pois o que percebemos é a existência de uma identidade

diversa nacional.

102 Art. 1º, III. 103 Art. 5º, caput. 104 Art. 3º, I CF/88. 105 Art. 3º, IV CF/88.

Page 110: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Desde os povos originários, como são os indígenas, até aqueles que

foram brutalmente seqüestrados das terras africanas, para serem aqui

forçados ao trabalho, sem esquecer dos diversos grupos de imigrantes

europeus e asiáticos que aqui chegaram, toda essa miscelânea cultural teria

que ser considerada, quando da elaboração de uma constituição que almejava

representar legitimamente a vontade popular.

Por essa razão, a Constituição cidadã - como ficou conhecida, devido

ao seu caráter inovador e democrático - protegeu a diversidade cultural e

cedeu espaço para a afirmação do pluralismo jurídico e de um Estado

multicultural.

Nesse sentido, Souza Filho106 menciona que:

(...) a Constituição abre as portas para o reconhecimento da jurisdição indígena, quer dizer ao reconhecimento das normas internas que regem as sociedades indígenas e os processos pelos quais se decidem os conflitos por ventura ocorrentes. Mais alguns passos e os povos indígenas poderão, em seus idiomas tradicionais, exercer entre seus membros seu direito tradicional.

No âmbito da legislação infraconstitucional acha-se em discussão, no

Congresso Nacional e na sociedade civil, a proposta para alteração no atual

Estatuto do Índio - Lei nº 6.001/73. A idéia é dar uma nova roupagem à

regulamentação atual, a qual se acha muito distante da realidade coletiva que

se apresenta no panorama mundial, dando-lhe o título de Estatuto das

Sociedades Indígenas. A opção pelo nome sociedades ao invés de povos

denota o não enfrentamento da questão pelo prisma contemporâneo. Embora

a concepção ideológica que se esconde por trás dessa atitude seja de

enfraquecimento da idéia de autodeterminação indígena, é consenso da

maioria que, na prática, não deverá haver comprometimento significativo a

esse respeito, considerando a inconteste consagração do termo povos, e o

amadurecimento em torno da temática voltada para a sua emancipação.

A Constituição Federal modificou, sobremaneira, a interpretação da

Lei 6.001/73 que refletia, ainda, uma política ultrapassada de integração dos

106 SOUZA FILHO, C. F. M. O renascer dos povos indígenas para o direito, p. 162.

Page 111: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

índios à comunhão nacional. A partir de 1988 a legislação ficou em

descompasso com a realidade.

Como vimos, toda essa mudança no aspecto constitucional ocorreu

não apenas no Brasil, mas em toda a América Latina. A maioria delas

contemplou os direitos culturais e abriu caminhos para a formação jurídica do

multiculturalismo. Algumas foram mais contundentes e outras mais tímidas e,

de maneira geral, houve uma verdadeira revolução no continente, relativa à

mudança de posição acerca dos direitos dos povos originários.

Esse processo não parou com a celebração das constituições, até

porque nem sempre o que está escrito no documento político é realizado. Não

raras vezes, observa-se um grande descompasso com o que se garante nas

constituições e o reflexo na vida dos povos. Apesar do discurso pluralista,

social e democrático, muitos Estados optam por continuar adotando uma

política indigenista débil e muito aquém dos compromissos assumidos

constitucionalmente.

A Bolívia em particular viveu, nos últimos anos, mudanças profundas

no aspecto sóciopolítico e, principalmente, relacionadas com o tratamento de

sua maioria indígena. Ao lado da Colômbia e Paraguai, teve uma das

constituições mais ousadas no aspecto de reconhecimento da diversidade

cultural. Reconheceu aos povos indígenas sua própria jurisdição, embora os

mecanismos de adequação entre o sistema nacional e o indígena107, tenham

ficado a cargo de uma demorada lei posterior.

A realidade boliviana de hoje corresponde a uma verdadeira

transformação de um Estado uno para pluriétnico e multicultural. Por isso

vamos nos deter a analisá-la ainda que rapidamente.

4.5.2 Bolívia: uma transformação multicultural

Recentemente, acompanhamos com muito destaque da mídia a vitória

nas urnas do primeiro presidente de um Estado nacional latino-americano que

107 As chamadas regras federais ou a instituição do pluralismo jurídico formal na perspectiva de Hoekema mencionadas no tópico anterior.

Page 112: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

assumiu a identidade indígena: Evo Morales. Fato histórico e oriundo das

intensas transformações que estão acontecendo no aspecto do

multiculturalismo no cenário latino-americano. Iniciando o novo governo, o

Presidente convocou uma Assembléia Nacional Constituinte que visa editar

uma nova constituição para o país.

Segundo o censo de 2001108, 62% da população boliviana é indígena,

sendo a maioria pertencente aos povos quechua (30,7%) e aimara (25,2%).

Na região andina, 75% da população se autoidentifica109 como pertencente a

algum povo indígena. Portanto, na Bolívia, não se fala em minoria étnica e

sim em maioria absoluta.

Esses dados, certamente, estimulam a reconstrução da identidade

boliviana que fora, até então, voltada para um conceito de Estado único, no

máximo mestiço, como também ocorreu no México e em diversos outros

países da América.

Para se ter uma idéia, a situação dos povos indígenas da Bolívia não

mudou muito com a independência do país em 1825. Como aconteceu com

praticamente toda a América Latina, o direito do colonizador foi substituído

pelo direito nacional, sendo o último praticamente copiado do primeiro. A

tendência era desconhecer a pluralidade étnica do país, encarada sempre

como fraqueza e doença do Estado monista que, para assegurar

materialmente seu poder, buscava a consolidação de uma só cultura.

Em 150 anos de história boliviana, após sua independência, houve

alternância de regimes ditatoriais, promulgação de constituições e

importantes revoluções como a de 1952, até que em 1982 a democracia se

consolidou.

Com a queda do muro de Berlim e o fim da bipolarização mundial,

houve a adoção definitiva de um modelo neoliberal naquele país.

A Bolívia, no ano de 1994, aprova a Lei de Participação Popular que

proporcionou ao movimento dos cocaleiros (plantadores tradicionais da folha

108 ALBÓ, X. Hacia una Bolivia plurinacional e intercultural, p.2. 109 O critério da autoidentificação para o reconhecimento da identidade indígena foi trazido

pela Conveção 169 da OIT.

Page 113: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

de coca) e aos campesinos uma atuação social marcante voltada,

principalmente, para combater o impositivo modelo neoliberal vindo de fora.

Aliado a estes movimentos estava o MAS (Movimento ao Socialismo

– Instrumento Político para a Soberania dos Povos), partido político que foi

criado em 1995 como referência daqueles movimentos, com um conteúdo

étnico muito forte, e propondo mudanças relativas à exploração dos recursos

ambientais. Na liderança do MAS estava o aimara Evo Morales que iniciou

um processo de alianças com outros setores da sociedade boliviana.

Por outro lado, a elite organizada da região de Santa Cruz crescia em

tamanho e força política, o que provocou quase um empate nacional dividido

entre os dois movimentos. O MAS foi crescendo a cada disputa eleitoral e

culminou na vitória de Evo na última eleição presidencial.

Em 15 de agosto de 2006 o governo iniciou o processo da Assembléia

Nacional Constituinte com o intuito de elaborar uma nova constituição

política, conforme já era exigido no país há anos. O texto final deverá contar

com a aprovação de 2/3 de seus membros eleitos e, depois, ainda será

submetido a um referendo popular. Dos 255 participantes da Constituinte, 92

são oriundos dos povos originários, dos quais quase a metade são mulheres.

O debate atual encontra-se um pouco emperrado. O MAS, que

representa quase 54% da Constituinte, ainda não elaborou um documento

sério acerca do que será a nova constituição. Em meio a este estado de coisas,

houve a explosão econômica no preço dos hidrocarbonetos (componente

essencial da economia boliviana) e, também, os problemas relacionados com

sua gestão. Até 14 de agosto de 2006 havia 84 projetos compilados pela

Representação da Presidência para a Assembléia Constituinte.

A proposta, considerada por Xavier Albó110 como a mais interessante,

corresponde à realizada pela Assembléia Nacional das organizações mais

importantes do país, constituídas de povos indígenas, originários, campesinos

e de colonizadores da Bolívia, que foi debatida e elaborada durante diversas

reuniões no âmbito regional e uma no âmbito nacional. Ainda não representa

110 ALBÓ, X. Hacia una Bolivia plurinacional e intercultural, p. 14.

Page 114: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

um documento final acerca do que será a constituição, mas é a proposta que

melhor atende os anseios dos diversos povos existentes no país.

A Proposta Indígena, Originária e Campesina (PIOC) apresenta no

próprio título aquilo que quer para o futuro da Bolívia: Por um Estado

Plurinacional y la autodeterminación de los pueblos y naciones indígenas,

originárias y campesinas. O preâmbulo do documento resume as principais

idéias constantes da proposta:

El Estado Plurinacional es un modelo de organización política para la descolonización de nuestras naciones y pueblos, reafirmando, recuperando y fortaleciendo nuestra autonomía territorial, para alcanzar la vida plena, para vivir bien, con una visión solidaria [y] de esta manera ser los motores de la unidad y bienestar social de todos los bolivianos, garantizando el ejercicio pleno de todos los derechos. Para [su] ...construcción y consolidación... son fundamentales los principios de pluralismo jurídico, unidad, complementariedad, reciprocidad, equidad, solidaridad... [Está]... basado en las autonomías indígenas indígenas, originarias y campesinas... como un camino hacia nuestra autodeterminación como naciones y pueblos, para definir nuestras políticas comunitarias, sistemas sociales, económicos, políticos y jurídicos, y en este marco reafirmar nuestras estructuras de gobierno, elección de autoridades y administración de justicia, con respeto a formas de vida diferenciadas en el uso del espacio y el territorio. Jurídicamente nuestra propuesta se fundamenta en los derechos colectivos consagrados en Tratados Internacionales de Derechos Humanos, como el Convenio 169 de la OIT. Es de especial importancia nuestro derecho a la tierra y los recursos naturales: buscamos poner fin al latifundio y a la concentración de la tierra en pocas manos, y al monopolio de los recursos naturales en beneficio de intereses privados. [Su] estructura... implica que los poderes públicos tengan una representación directa de los pueblos y naciones indígenas, originarias y campesinas, según usos y costumbres, y de la ciudadanía a través del voto universal. (grifos nossos)

Trata-se de uma verdadeira revolução de todos os conceitos

envolvendo as noções de direito e Estado - uma nova concepção, fundada no

coletivismo e na crença de que a felicidade não é algo que se constrói

individual e egoisticamente.

O processo de constituinte deve continuar buscando uma

reestruturação da Bolívia, numa tentativa pioneira e louvável em prol do

reconhecimento efetivo do multiculturalismo, assumindo, definitivamente,

uma condição fática que lhe é peculiar, mas não muito distante das demais

realidades latino-americanas.

Page 115: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Como bem afirmou Albó111, este panorama, como não poderia deixar

de ser, apresenta muitos desafios, problemas nada fáceis de serem resolvidos.

Por todo o continente latino-americano podem ser encontradas réplicas dessa

situação, em maior ou em menor grau.

Cabe a cada país escolher o rumo que vai tomar.

4.5.3 As possibilidades reais de um sonho

O estudo acerca da situação boliviana, certamente, representa um

alento e esperança para o valor diversidade. Percebemos que, como bem nos

ensinou Ferdinand Lassale, a constituição, por mais importante que seja

como documento político de “uma nação”, não passa de folhas de papéis

escritas que apenas representam a divisão do poder dentro de uma

determinada sociedade.

Esta é, em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fatores reais do poder que regem uma nação. Mas que relação existe com o que vulgarmente chamamos Constituição? Com a Constituição jurídica? Não é difícil compreender a relação que ambos os conceitos guardam entre si. Juntam-se esses fatores reais do poder, os escrevemos em uma folha de papel e eles adquirem expressão escrita. A partir desse momento, incorporados a um papel, não são simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito – instituições jurídicas. 112 (grifos no original)

Nessa perspectiva podemos refletir: quais são os fatores reais de poder

de um país latino-americano? Qual é a nossa realidade? Não devemos nos

afastar dela para pensar num futuro ou num projeto de país.

A constituição, uma vez sendo considerada mera folha de papel, pode

ser rasgada e escrita uma outra - assim como o faz a Bolívia neste exato

momento.

Em outros casos, talvez, isso não seja necessário.

111 Palestra proferida em 19/10/2006 no V Congresso da Rede Latino-americana de

Antropologia Jurídica na cidade de Oaxtepec,Morelos-México. 112 LASSALE, F. A essência da Constituição, p. 17-18.

Page 116: PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CENTRO DE … · 2013. 1. 30. · Sociedade e autonomia kuna 72 3.6.1 Instituições, sistema jurídico e autonomia 74 3.6.1.1 Autoridades

Uma constituição que garante, dentre os mencionados fatores reais de

poder, o lugar e o reconhecimento do multiculturalismo abre espaço para uma

conduta de real efetivação, a depender da vontade política.

O presente desafio de concretizar o pluralismo jurídico é

paradigmático, pois envolve uma reformulação quase total dos conceitos

concebidos por séculos de história ocidental. Ele está ligado diretamente à

relativização das noções de soberania, propriedade e direito positivo,

colocando-os em cheque e naturalizando uma crise que também fora negada

por muito tempo.

É visível a crise do Estado e de seu Direito (...). Todos os primados do Direito chamado moderno, seus fundamentos, o direito individual como direito subjetivo, o patrimônio como bem jurídico, a livre manifestação de vontade estão abalados. Com este abalo outros dogmas perdem a credibilidade, como a separação de poderes, a neutralidade e o profissionalismo do poder judiciário, a representatividade dos parlamentos, a soberania nacional, a supremacia da Constituição. Esta crise é diferente de outras já havidas e às vezes mal superadas, porque atinge o âmago, os alicerces do sistema jurídico. 113

Um novo direito, um novo Estado, para uma nova realidade: a do

século XXI. O novo é quase sempre difícil de ser aceito, pois em geral tudo

se mostra diferente, e , por isso, uma grande ameaça ao clássico, ao “estar

acostumado”. Por preguiça ou falta de coragem, pode-se preferir não realizá-

lo e deixar as coisas nos seus lugares, entendidos como devidos, quando na

verdade não o são.

Às vezes, porém, a falta de vontade não é desinteressada. O silêncio e

a inércia são fortes atitudes, principalmente, quando se tratando de direito.

O não enfrentamento do problema corresponde à sua negação. É em si

mesmo uma meticulosa e bruta forma de opressão. Trata-se de uma violência

113 SOUZA FILHO, C. F. M. Os direitos invisíveis. In: OLIVEIRA, F.; PAOLI, M. C (orgs).

Os Sentidos da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global, p. 307.