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A LEI. O JUIZ. O JUSTO Amílton Bueno de Carvalho Juiz de Direito em Santa Maria ‘A justiça é o pão do povo. ‘Às vezes bastante, às vezes pouco. ‘Às vezes de gosto bom, às vezes de gosto ruim. ‘Quando o pão é pouco, há fome. ‘Quando o pão é ruim, há descontentamento’. (Brecht, Poemas, O Pão do Povo, 2 a ed., Brasiliense, p. 309). Na Faculdade de Direito ensina- ram-me que o profissional capaz era aquele que mais conhecia a lei. No exercício da advocacia percebi que não bastava o conhecimento do di- reito positivo, necessário era saber o que pensavam os Juízes, qual o caminho da jurisprudência. Ao as- sumir a magistratura, quando não mais tinha a responsabilidade ética de pedir ‘bem’, mas sim de decidir, descobri, em meio a angústia e so- frimento, que saber da lei e da ju- risprudência não era suficiente. Os dispositivos legais ao serem apli- cados, com freqüência, resultavam em decisões injustas. A jurisprudên- cia, por comprometida com situa- ções concretizadas, nem sempre chegava ao justo. Ciente de que a função jurisdicio- nal só tem sentido se comprometi- da com o jurisdicionado é que ini- ciei estudo, coletando lições aqui e ali, trocando idéias com colegas e, antes de tudo, colhendo frutos da vivência diária, do que resultou o presente trabalho, onde busco dis- cutir a lei, o dever do Juiz de aplicá-la ou não quando em confli- to com o justo, e, a final, qual o jus- to a ser aplicado. Parece-me claro que, a partir do momento em que uma classe toma o

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A LEI. O JUIZ. O JUSTO

Amílton Bueno de CarvalhoJuiz de Direito em Santa Maria

‘A justiça é o pão do povo.‘Às vezes bastante, às vezes pouco.‘Às vezes de gosto bom, às vezes de gosto ruim.‘Quando o pão é pouco, há fome.‘Quando o pão é ruim, há descontentamento’.

(Brecht, Poemas, O Pão do Povo, 2a ed., Brasiliense, p. 309).

Na Faculdade de Direito ensina-ram-me que o profissional capaz eraaquele que mais conhecia a lei. Noexercício da advocacia percebi quenão bastava o conhecimento do di-reito positivo, necessário era sabero que pensavam os Juízes, qual ocaminho da jurisprudência. Ao as-sumir a magistratura, quando nãomais tinha a responsabilidade éticade pedir ‘bem’, mas sim de decidir,descobri, em meio a angústia e so-frimento, que saber da lei e da ju-risprudência não era suficiente. Osdispositivos legais ao serem apli-cados, com freqüência, resultavamem decisões injustas. A jurisprudên-

cia, por comprometida com situa-ções concretizadas, nem semprechegava ao justo.

Ciente de que a função jurisdicio-nal só tem sentido se comprometi-da com o jurisdicionado é que ini-ciei estudo, coletando lições aqui eali, trocando idéias com colegas e,antes de tudo, colhendo frutos davivência diária, do que resultou opresente trabalho, onde busco dis-cutir a lei, o dever do Juiz deaplicá-la ou não quando em confli-to com o justo, e, a final, qual o jus-to a ser aplicado.

Parece-me claro que, a partir domomento em que uma classe toma o 

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poder, ela se equipa com um aparatolegal buscando nele perpetuar-se.Nas sociedades capitalistas, onde opoder está nas mãos de uma mino-ria (os detentores do capital e seusrepresentantes), a lei tem basicamen-te duas funções: manter coesas asforças que estão no mando e deter-minar a subordinação daqueles quesofrem a opressão (a maioria traba-Ihadora). Por outro lado, o Estado,donde emerge a lei, é, segundo a tra-dição marxista, ‘uma máquina de re-pressão que permite às classes domi-nantes assegurar a sua dominaçãosobre a classe operária, para sub-metê-la ao processo de extorsão demais-valia’ (Althusser, Aparelhos Ide-ológicos de Estado, p. 62). Têm amesma visão de Estado Roberto LyraFilho, O que é Direito, p. 81, eMarilena Chauí, O que é Ideologia,p. 69.

Assim, o direito, visto aqui comolei, nada mais é do que a ideologiavencedora que sanciona, conforme alição de Roberto Aguiar (Direito, Po-der e Opressão, ed. 1984, p. 79). Naótica de Althusser (ob. cit., p. 68), éao mesmo tempo aparelho repressi-vo do Estado (funciona via violência)e aparelho ideológico do Estado (fun-ciona via ideologia). Já para DennisLloyd (A idéia de lei, p. 191), ‘é me-ramente o meio de impor à popula-ção o que o setor dominante consi-dera servir aos seus interesses eco-

nômicos’. Ou, como vê AntônioCarlos Volkmer (Aspectos ideológicosna Criação Jurisprudencial do Direi-to, Revista AJURIS, 34/99): ‘OLegislativo elabora as leis; estas nãorefletem necessariamente o direito,mas sim a ideologia da classe po-liticamente dominante’. Ou, comoquer Marx: ‘O direito é a vontade, fei-ta lei, da classe dominante, que, atra-vés de seus próprios postulados ide-ológicos, pretende considerá-lo comoexpressão aproximativa da justiçaeterna’ (Júlio César Tadeu Barbosa,O que é Justiça, p. 48). Ou ainda,como dizem Trasímaco, Calícles eClítias, que ‘as leis são fruto do po-der arbitrário dos detentores do po-der, que as editam em função de seusinteresses’ (Roberto Aguiar, O que éJustiça, ed. 1982, p. 33).

Essa realidade (lei, escrita inter-pretando a tradição, a serviço dos queestão no poder para estabelecer oumanter determinado sistema) não énova. Já era assim nos tempos daBíblia, pois, segundo especialistas(ver: Michel Clévenot, Enfoques Ma-terialistas da Bíblia, Paz e Terra,1979, p. 31/38), os primeiros textosbíblicos foram escritos quando da ins-talação do Estado monárquico porSalomão, com o objetivo de legi-timá-lo no poder, sendo preciso, en-tão, dar uma nova interpretação àtradição, o que se encontra nos tex-tos de 2 Samuel, cap. 9/20, de 1 

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Reis, cap. 1 e 2, e no documento Ja-vista inserido no Pentateuco. Seme-Ihantemente aconteceu em Atenascom a reforma de Drácon quandopela primeira vez a lei foi escrita, masela serviu muito mais para garantir oprivilégio dos ‘cidadãos’ lançando umfardo ‘mais pesado para a classe dostrabalhadores natos, os escravos’ (G.Glotz, História Econômica da Grécia,Lisboa, Ed. Cosmos, 1946, p. 147),o que não foi diferente nas reformasposteriores, levando o filósofoTrasímaco concluir que ‘a justiça,base do Estado e das ações do cida-dão, consiste simplesmente no inte-resse do mais forte’ (ThomasRansom Giles, Introdução à Filoso-fia, EDUSP, 1979, p. 42). Tal realida-de sempre foi assim e o é atualmen-te, seja nos regimes capitalistas, sejanos socialistas, onde os operárioschegaram ao poder e estabeleceramleis que ali os mantêm, ou onde aburocracia busca perpetuar-se(URSS).

Poder-se-á argumentar que nemtodas as leis na sociedade capitalis-ta servem de instrumento de opres-são da classe majoritária e que vári-as são promulgadas no interesse dooprimido. Mas isso não ocorre por es-pírito de benemerência dos que es-tão no poder: ou são fruto de lutados oprimidos; ou servem como vál-vula de escape à pressão social(concede no periférico para manter

no essencial — Roberto Aguiar, Di-reito, Poder e Opressão, p. 35); oupara justificar que não são opres-sores, visando, assim, a sua manten-ça no poder.

Aliás, Thomas Hobbes já ensina-va que não é a sabedoria mas sim aautoridade que faz a lei (citação deJúlio César Tadeu Barbosa, ob. cit.,p. 53). Diria diferente: é a sabedoriaque faz a lei, mas sábios a serviçodos que dominam.

Cumpre, pois, destruir o mito deneutralidade da lei. Ela é definiti-vamente comprometida com aquelesque estão no poder. Pode estar ou aserviço da maioria, se estes conquis-tarem o poder político, ou a serviçoda minoria, se estes o conquistarem.

Alguns exemplos demonstram aquem serve a legislação vigente nopaís; que compromissos básicos tem.A eles. Todos sabemos que o bemda vida buscado pelo litigante só Iheé concedido, como regra, após o trân-sito em julgado de uma sentença;como exceção, em alguns feitos, oadiantamento é concedido quando orecurso é recebido apenas com efei-to devolutivo; como exceção da ex-ceção, é dado adiantamento provi-sório nas cautelares; como exceção,da exceção, da exceção, concede-seem liminares após justificação prévia,com ouvida ou não da parte contrá-ria; e, como exceção, da exceção,da exceção, da exceção, o Juiz pode 

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deferir o adiantamento sem a oitivado pólo passivo e sem justificação(o art. 797 do CPC fala em ‘casosexcepcionais’). Todavia, a exceção,da exceção, da exceção, da exceção,é regra nas ações de busca e apreen-são previstas no Decreto-Lei n. 911/69. Ali o Juiz obrigatoriamente con-cede liminares de busca e apreen-são sem que se ouça o réu (art. 3°).Tal decreto-lei serve a quem? Às ins-tituições financeiras. Donde veio?Dos Ministros da Marinha, Exércitoe Aeronáutica. Outras excrescênciasdo Decreto-Lei n. 911 foram apreci-adas por Carlos Alberto Álvaro deOliveira (Revista AJURIS, 33/81, n.4; al i também é analisado oDecreto-Lei n. 70/66, a Lei n. 5.741/71 e o Decreto-Lei n. 167/37, entreoutros).

No direito penal a ideologia do-minante mostra-se a nu. Exemplosgritantes:

a) delito de sedução, onde todo oespírito machista aparece: a mulheré incapaz de se proteger, logo, man-ter congresso carnal com ela é cri-me; somente são protegidas as vir-gens, posto que as que já foram‘desgraçadas’ não merecem o res-peito penal; a mulher é propriedadedo pai, criminoso é quem possuí-la;o homem não pode ser vítima do de-lito porque nasceu para o mundo doprazer, ao contrário da mulher quedeve ser casta até o momento da tro-

ca de dono (pai pelo marido, que arecebe solenemente no altar). Noâmbito do direito civil, a situação nãose altera; é anulável o casamento sea mulher não for virgem (art. 219,IV, do CC);

b) dirão alguns que a lei penal ti-pifica aqueles comportamentos queofendem mais à moralidade média.Será verdade? Vejamos o que noscausa maior desagrado: a ofensa àhonra (injúria), a ofensa ao corpo (le-são leve), ou a ofensa ao patrimônio(uma pessoa com grave ameaça quesubtraia um relógio — roubo)? Evi-dente que a ordem de desagrado éem primeiro lugar a honra, após ocorpo e depois o patrimônio. Quaisas penas? Detenção de um a seis me-ses ou multa (art. 140 do CP); deten-ção de três meses a um ano (art.129); reclusão de quatro a dez anos(art. 157), respectivamente. Surgeuma questão básica: quem pratica oroubo, ou seja, a subtração de coisamóvel mediante grave ameaça? Evi-dente que é o pobre. Os outros doisdelitos os não pobres praticam, o deroubo não! Para quem foi feito o dis-positivo legal com tamanha pena?

c) outro exemplo é mais chocan-te: imaginemos o mesmo delito deroubo (mediante grave ameaça sub-traiam um relógio) em confronto como delito de esbulho possessório (me-diante grave ameaça invadam umimóvel — art. 161 do CP). O crime

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é praticamente idêntico, só difere quenum o objeto é móvel, noutro é imó-vel. Como valoramos mais o imóvel,este deveria ser melhor protegido.Mas não é. A pena daquele é de qua-tro a dez anos, a deste é de um aseis meses e multa. Pergunta-sequem comete roubo de relógio? Al-gum latifundiário? Ora, a subtraçãode móvel é crime do pobre, o esbulhopossessório é do rico. Logo, as pe-nas são diferentes, absurdamentediferentes. Todavia, como atualmen-te o povo (= pobre) está invadindoterras, aparecem democratas preocu-pados com a segurança do país epropõem a elevação das penas doesbulho, o que por certo logo virá;

d) o pobre que não trabalha écontraventor, pois não coloca nomercado de trabalho a sua forçapara ser explorada (art. 59 da LCP).E o rico?

e) note-se que ao Judiciário é da-do entrar no caminho do criminosoapenas em parte: a investigação édo Executivo; após, o Judiciário de-fine; e a ‘recuperação’ cabe nova-mente ao Executivo. Dois momen-tos vitais: procura e recuperação nãoIhe pertencem, o Executivo investi-ga quem quer e ‘recupera’ da ma-neira que Ihe parece melhor (tenha-se em mente que os pobres é queestão nos presídios).

E no direito do trabalho como sãoas coisas? Antes de mais nada que

fique claro que não existe direito dotrabalho. O raciocínio é simples: pa-ra existir direito do trabalho deve ha-ver antes direito ao trabalho, o queinexiste. Mais, é direito do trabalha-dor receber Cz$ 804,00 mensais?Evidente que não. É direito ( = vanta-gem) do patrão em pagar tão pouco.Mas o que me causa espanto no Ju-diciário trabalhista é a prescrição bie-nal. Todos sabemos que existem pa-trões que não pagam horas-extrasaos empregados durante anos. Sa-bemos que o empregado que exigeseu direito é despedido, só reclaman-do, pois, quando ocorre a despedi-da. Mas, se trabalhou durante dezanos e durante todo o tempo fezhoras-extras, só pode reclamar osúltimos dois. É a prescrição bienal.O Juiz sabe que acontece isso. Tudofica provado. Tem ciência da explo-ração. Mas nada pode fazer. É umateratologia jurídica. E o fundamentoé a segurança, a paz social. Mas quesegurança e paz social que estãoassentadas no roubo, na exploração?Alguém consegue justificar? E se ficaa explicar a natureza jurídica da pres-crição ...

Mas quando vêm leis a serviçodo oprimido (ver CF, art. 165: I,que garante ao trabalhador saláriocapaz de satisfazer as necessidadesdele e de sua família; XV, que Ihe re-conhece direito a assistência sani-tária, hospitalar e médica preventiva;

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XVIII, que determina a existência decolônias de férias e clínicas de repou-so; art. 176, a educação é direito detodos; art. 160, Ill, é reconhecida afunção social da propriedade; art.153, § 14, é assegurado respeito aopresidiário), ainda assim de nada ser-vem, porquanto não são aplicadas.

Fechner já dizia: ‘Somente paraos desafortunados é que a ordem ju-rídica se torna problemática. Paraeles, essa ordem é, exclusivamen-te, produto do arbítrio dos podero-sos. É proibido pedir esmolas nasportas das igrejas, roubar pão e dor-mir sob as pontes’ (citação de CésarDias Netto, Vice-Presidente daOAB-RS, em discurso proferido naabertura da 5

a Assembléia Regional

de Advogados, Santa Maria,16.5.86).

O direito penal brasileiro tem mui-to em comum com a teologia da li-bertação: optou pelos pobres. O Ju-diciário trabalhista assumiu opreconceito e em latim: ‘in dubio, promisero’!

Tenho, pois, que a lei mereceser vista com desconfiança. Deve serconstantemente criticada sob penade sermos, Juízes, Promotores e ad-vogados, agentes inconscientes daopressão. Inocentes úteis de um sis-tema desumano. Não quero dizerque não se possa optar por tal sis-tema, mas que, se assim se fizer, oseja conscientemente. As facul-

dades de direito, ao perderem o sen-so crítico, buscam fazer crer que alei é inquestionável, que se deveconhecêla mais e mais, porém nãocriticá-la.

Mas, se isso é verdade, e creioque seja, qual é o papel do Juiz quan-do, na apreciação do caso concreto,em confronto com a lei, notar queda aplicação do dispositivo legal ex-surgirá injustiça? Deve aplicar a lei,ou não? O Judiciário deve legitimaro injusto?

A discussão é antiga e por certolonge está de chegar ao fim, tudoporque a opção por uma ou outracorrente emerge de uma postura ide-ológica.

Figuras brilhantes entendem queao Juiz é vedado deixar de aplicar alei quando Ihe parecer injusta. Dizemque ele não pode substituir o legisla-dor. Despontam nessa linha MárioGuimarães, O Juiz e a FunçãoJurisdicional, 1

a ed., p. 330, n. 196;

Carlos Maximiliano, Hermenêutica eAplicação do Direito, 9

a ed., p. 79; n.

82 (a não-aplicação gera instabilidadedo direito); Limongi França, Enciclo-pédia Saraiva do Direito, 48/455(deve ser respeitada a legalidade e oregime); Benjamin N. Cardozo, ANatureza do Processo e a Evoluçãodo Direito, p. 223; Min. Oscar Corrêa(RE n. 93.701-3); Des. Nelson Oscarde Souza, RJTJRGS, 115/356 (osubjetivismo do Juiz é inadmissível

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contra a determinação legal); Des.Edson Alves de Souza, RJTJRGS,114/420 (no respeito à lei o Juiz devehaurir sua força); Des. Oscar GomesNunes, RJTJRGS, 110/419(deixar deaplicar a lei injusta: só se o Juiz fos-se infalível; retira a segurança do ci-dadão; instaura a pior das ditaduras,a do Judiciário); outros dizem que oJuiz é um escravo da lei. Aliás,Montesquieu já dizia: ‘Les juges dela nation ne sont que la bouche quiprononce les paroles de la loi, desêtres inanimés qui n’en peuventmoderér la force ni la rigueur’ (Má-rio Franzen de Lima, Da Interpreta-ção Jurídica, 2

a ed., p. 202). D. Ma-

ria I comunicou ao Vice-Rei do Bra-sil: ‘Advirta aos Desembargadoresque, se desrespeitarem os meus mi-litares, sentirão o peso de minhamão’, ou seja, se desrespeitaremminha lei (Dalmo Dallari, O PoderJudiciário como Instrumento de Re-alização da Justiça, publicaçãoAJURIS, 1985, p. 69).

Antes de coletar opiniões contrá-rias às acima expostas, pretendo dis-cutir as justificativas dadas antes.

O argumento forte é o de que oJuiz não pode substituir o legisla-dor. Mas quem é o legislador? Anossa história demonstra que eleestá a serviço da classe dominante(donos do capital): busca manter aopressão da maioria. Isso deve fi-car claro, posto que, se a ótica dele

fosse outra, evidente que a angús-tia do julgador seria infinitamente me-nor. Sobre quem é o legislador, verRoberto Aguiar, Direito, Poder eOpressão, p. 22.

O legislador através do comandoda lei preceitua genericamente. É-lhe,pois, impossível prever a totalidadedos casos em particular. A lei, pormelhor que seja, como comando ge-ral, pode na casuística levar à injus-tiça flagrante. Ora, ao Judiciário édada a obrigação de, no caso parti-cular, corrigir a situação não previs-ta, ou mal prevista, caso contrário,não teria sentido sua existência. Sea função do Juiz é buscar a vontadedo legislador, qual a razão de ser doJudiciário? Simples seria deixar aopróprio legislador a tarefa da aplica-ção, que o faria administrativamente.O intermediário Judiciário seria meraformalidade, a não ser que sua exis-tência tivesse por fim a hipótese le-vantada por Dallari: esconder o legis-lador, o verdadeiro interessado, ca-bendo ao Judiciário fazer ‘um papelsujo, pois é quem garante aefetivação da injustiça’ (loc. cit., p.65).

Ora, ‘a função jurisdicional trans-cende a modesta função de servir aoscaprichos e à vontade do legislador...’ (Antônio Carlos Wolkmer, RevistaAJURIS, 34/95).

O Judiciário é Poder do Estado ea ele cabe o compromisso, tão sério

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quanto o do Legislativo, de buscar oque é melhor para o povo. A lei éapenas um referencial, o mais impor-tante, mas apenas referencial. A nãoser que se dê a ela o condão de es-tancar o mundo.

O argumento de Carlos Maximi-liano de que a não-aplicação da leigera instabilidade não convence. Aocontrário, o que gera instabilidade éa aplicação da lei injusta. Isso simfaz com que o povo (para ele é dirigi-do o Estado, ou ao menos deveriaser) perca a confiança nas institui-ções. Basta lembrar o exemplo antescoletado da prescrição bienaltrabalhista: a sua aplicação é quegera instabilidade! A instabilidade cri-ada pela aplicação da lei quando in-justa, por certo, é que levou JamesBaldwin, o líder negro norte-ame-ricano, a concluir que o sistema judi-ciário ianque é um meio legal de pro-mover injustiça (Dallari, loc. cit., p.59). 0 próprio Carlos Maximiliano re-conhece que ‘todo o direito escritoencerra uma parcela de injustiça’.Onde a estabilidade? Só se outroPoder do Estado, no caso concreto,puder corrigir. Aí surge o Judiciáriotornando estáveis as relações emsociedade. Mesmo porque é ilusãoafirmar que a ordem jurídica oferecesegurança e que o legislador é sem-pre racional (Warat, Mitos e Teoriasna Interpretação da Lei, p. 47). Mais,o próprio Warat diz que é massifi-

cação jurídica entender que o direitopositivo é o único fator de segurança(p. 135). Outrossim, necessário quese tenha claro o que é a ‘ordem’ nasociedade capitalista, para tanto valea lição de Marilena Chauí, Desordeme Processo, ed. 1986, p. 21/22: ‘Nu-ma sociedade de classes, a ‘ordem’não é a organização social dos mo-res ou do ‘sentimento do direito’,como não é o jogo fluído do proibidoe do permitido, mas é a ordenaçãoda sociedade pela classe dominantee pelo Estado, de tal modo que a ‘or-dem’ é controle social, dominação po-lítica, sujeição ideológica, exclusãocultural, coerção psíquica e física,numa palavra, violência’.

Limongi França fala em respeito àlegalidade e ao regime. Mas legaltudo pode ser desde que se obedeçaaos preceitos legislativos. A respos-ta ao obedecer cegamente ao legalvem de Radbruch, citado por LyraFilho, Para um Direito Sem Dogmas,ed. 1980, p. 131: ‘O jurista que fun-dasse a validade de uma norma tão--somente em critérios técnico-formaisnunca poderia negar com bom funda-mento a validez dos imperativos dumparanóico, que acaso viesse a ser rei’.Todavia, o próprio Limongi diz que,em caso de lei flagrantemente injus-ta, é cabível a resistência direta e atéviolenta. O mesmo argumento servepara ‘o respeito ao regime’: que res-peito merecem o regime sul-africano,

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as ditaduras do Irã, do Afeganistão edo Chile?

No que tange ao subjetivismo doJuiz ao negar a aplicação da lei, éde se ter claro que toda e qualquerdecisão, seja legalista ou não, pas-sa necessária e obviamente pelosubjetivismo do julgador. Aliás, ascoisas no processo emergem deincontáveis subjetivismos: das par-tes ao narrarem os fatos aos seusadvogados; destes ao peticionarem;das testemunhas; dos peritos; e, evi-dentemente, do julgador. Não hácomo fugir disso. Warat até diz que‘uma dor qualquer, a opinião da so-gra do juiz, sua situação social, oclima do Tribunal, os meios de co-municação são, em muitas hipóte-ses, as causas reais dos processosde elaboração das decisões,normativamente disfarçadas’ (ob.cit., p. 52). Não se chega a tanto,porquanto se busca, ao decidir, abs-trair ao máximo os componentespessoais e se não se logra êxito sim-plesmente não se julga (quantas equantas vezes o ânimo do magistra-do não permite momentaneamentedecidir!). Todavia, certo é que taisfatores subjetivos influem e por umarazão muito simples: o homem é umtodo, não é num momento Juiz enoutro homem que sofre angústias.

Voltando. Toda a decisão é frutoda ideologia do julgador (‘o raciocí-nio argumentativo é uma reflexão

processada a partir da ideologia’,Warat, ob. cit., p. 115). No momentoque decide, toda sua história, sua vi-são de mundo, consciente ou in-conscientemente, explode, vem àtona. Assim é com todo o ser huma-no ao realizar seu trabalho. E o sub-jetivismo de que aqui se trata é tem-perado pelo argumento das partes,pela apreciação do sistema, pela ne-cessidade do litigante. Logo, aosubjetivismo do Juiz são incorpora-dos outros subjetivismos, deixando,pois, de ser o subjetivismo dele tão-só.

Além disso, o ato decisório do Juizdenomina-se sentença, que vem de‘sentir’, tal como a palavra ‘sen-timento’. O que se pretende é que oJuiz, ante o fato que Ihe é posto àapreciação, expresse o que dele sen-te e, diante desse sentimento, definaa situação. Existe algo mais subjeti-vo do que ‘sentimento’, ‘sentir’, ‘sen-tença’? Todavia, como as pessoasnão foram educadas para expressaro que sentem (ao contrário, foram-nopara reprimir), busca-se racionalizar,dando-se contornos técnicos paraesconder o sentimento. Tais contor-nos servem, além de esconder (em-bora sem eliminar) o que se sente,para ‘persuadir o órgão censor’, napalavra de Warat (ob. cit., p. 57), e para dar aparência de neutralida-de. A regra é o Juiz apreciar o fato eapurar seu sentimento em relaçãoa ele, para posteriormente buscar

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argumentos técnicos-legais parajustificá-lo. Não é o técnico, a lei, queprecedem ao sentimento, mas esteque precede àqueles, todos emer-gentes da ideologia.

É no respeito à lei que o Juiz devehaurir sua força? Tenho que não. Sea lei é parcial, é comprometida, ser-ve a interesses escusos, como nelabuscar força? O fortalecimento doJuiz deve vir do justo.

O argumento de que o Juiz deveaplicar a lei por ser falível serve tam-bém para justificar a sua não-aplica-ção quando for injusta, porque o le-gislador também é falível. Do con-fronto entre as falibilidades do Juize do legislador, parece-me menosdanoso que se fique com as do Juizque está próximo das partes, sua vi-são é do momento concretizado enão da situação abstrata (o legisla-dor universaliza direitos; o Juiz con-cretiza a universalidade abstrata —Aristóteles, Política, citado porChauí, Desordem e Processo, p.20). Assim, o mais comum é a falibi-lidade do legislador ante litígio pre-sente.

Não se aplicar a lei geraria a piordas ditaduras, a do Judiciário? Nãose pode dizer isso simplesmente por-que não há precedente histórico. Adiscussão é, pois, em tese. Antes demais nada que fique claro que se ad-voga a não-aplicação da lei tão-sóquando ela for injusta.

Difícil imaginar ditadura dos Juí-zes já que ditadura repousa na forçae o Judiciário tem poder desarmado,geralmente inofensivo, na palavra doJuiz francês M. Baudot. Mais, dita-dor é um ou pequeno grupo, com amesma ideologia; Juízes têm as maisvariadas ideologias e são em núme-ro muito elevado (por exemplo, naURSS são eleitos cerca de nove mi-lhões e quinhentos mil Juízes de Tri-bunais Populares — in ‘Em Foco’, 46/39, informativo sobre a URSS). Comose daria tal ditadura?

Ainda mais, ditador age às escon-didas, não permite fiscalização, cor-re em busca de vantagens econômi-cas e da perpetuação no poder. Ora,o Judiciário obra às claras, medianteprovocação; é fiscalizado pelas par-tes, pelos advogados, pela impren-sa, já que seus atos são públicos; asdecisões do Juiz são fundamentadase sujeitas ao duplo grau de jurisdi-ção; e jamais julga no seu interessepessoal.

Por outro lado, são tão poucos oslitígios que chegam ao Judiciário emrazão da aplicação da lei (a grandemaioria dos descompassos é solu-cionada extrajudicialmente ou sequerocorre), que seria uma ousadiapensar-se numa ditadura do Ju-diciário.

Na verdade é que se entende comoditadura do Judiciário o eventual ex-cesso de poder. Mas o que dizer

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do sistema ianque, tido como o maisdemocrático do mundo, onde a Su-prema Corte tem o poder de definirse é ou não legal a própria pena demorte? E nos sistemas aonde vigorao precedente?

Por tudo que se disse anterior-mente, penso que não se deve temerque o Judiciário tenha poderes aoponto de negar a lei quando injusta.

O Juiz é escravo da lei? Não é. Aresposta vem de Dallari (ob. cit., p.61): ‘0 escravo não pensa, o Juiz temque pensar. O escravo não é respon-sável, o Juiz tem que ser responsável.O Juiz é um ser humano dotado deinteligência e vontade. Ele não podeser escravo de ninguém, nem da lei’.Deve-se presumir, no mínimo, que ojulgador seja livre, dotado de inteli-gência e de vontade.

Assim, parece-me que aplicar a leiquando injusta passa a ser um atocômodo no qual o Juiz retira de si,como escravo, toda a responsabili-dade ética pelo julgamento. Ou seja,lamenta a lei ser injusta e afirma quenada pode fazer porque a culpa é dolegislador. É o jurisdicionado?

En passant, é de notar que a ex-pressão ‘escravo da lei’ vem de Cí-cero (Pro Cluentio, 53, citado porJuarez Freitas, Filosofia do Direito, 1

a

ed., p. 139) e não se refere tão-só aosmagistrados, mas a todo o povo: ‘En-fim, para sermos livres, é necessárioque sejamos escravos da lei’.

Doutra banda, figuras não menosbrilhantes estão a afirmar que ao Juizé facultado deixar de aplicar a leiquando injusta. Autores das mais va-riadas correntes filosóficas assimpensam. Vejamos.

Já a Bíblia, no que se refere aosdeveres dos Juízes, diz: ‘A justiçaseguirás, somente a justiça, para quevivas, e possuas em herança a terraque te dá o Senhor teu Deus’(Deuteronômio, 16, v. 20, tradução deJoão Ferreira de Almeida).

Santo Agostinho, citado por Tomásde Aquino, na Suma Teológica, inTextos Clássicos de Filosofia do Di-reito, ed. 1981, p. 21, ensina que se-quer deve ser considerado lei o quenão for justo, mas, sim, corrupçãodela. Logo, faz parte integrante daconceituação de lei o justo e, se talnão ocorre, deixa de ser lei. Noutromomento Agostinho afirma: ‘Sem jus-tiça, o que é o Estado senão um ban-do de ladrões?’ (A Cidade de Deus,IV, 4, citação de Dennis Lloyd, ob. cit.,p. 62).

Platão esclarece que ‘a verdadei-ra lei é somente a justa e não a injus-ta, ainda que os ignorantes tenhamesta última como lei’ (Da Lei, 317, c).Cícero diz que ‘é absurdo pensar queseja justo tudo o que é determinadopelos costumes e leis dos povos’ (DeLegibus, I, 15, 42). Guilherme deHockham aduz que ‘toda a lei civilque contradiz a razão divina ou a  

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razão revelada, não é lei’, razão porque não se deve obedecê-la (Goldast,Il/630, todos citados por Juarez Frei-tas, ob. cit., p. 137/139 e 143).

Na mesma trilha seguem: a) Den-nis Lloyd, ob. cit., p. 95: ‘A lei deveser assimilada à justiça’ (...) ‘a lei semjustiça é uma zombaria, senão umacontradição’; b) Couture: ‘Teu deveré lutar pelo direito. Mas, no dia queencontrares o direito em conflito coma justiça, luta pela justiça’; c) Dallari,loc. cit., p. 73: ‘Num conflito entre alegalidade e a justiça, eu tenho tran-qüilidade em afirmar que a justiçadeve prevalecer’; d) Antônio CarlosWolkmer, loc. cit., p. 93: ‘A atitudedo Juiz, em relação à lei, prossegueBelaid, não se caracteriza jamais pelapassividade, nem tampouco será a leiconsiderada elemento exclusivo nabusca de soluções justas aos confli-tos; a lei se constitui em um outro ele-mento entre tantos que intervêm noexercício da função jurisprudencial’;e) José Maria Rosa Tesheiner, RevistaAJURIS, 21/70, que ensina que sedeva fazer justiça apesar da lei; f) poroutro lado, ilustres Desembargadoresdo Tribunal de Justiça gaúcho têmreiterado seu compromisso como justo no caso concreto (SilvinoJoaquim Lopes Neto, RJTJRGS,102/467; Oswaldo Proença,RJTJRGS, 110/420; Galeno La-cerda, em inúmeras palestras; Cristo-vam Daiello Moreira, para quem o

Juiz é o legislador da situação concre-tizada ).

A jurisprudência gaúcha, em inú-meras vezes, tem decidido negandovigência da lei por entender que aaplicação no caso concreto não é jus-ta. Cito os seguintes exemplos: OAlçada entendeu que ‘o Estado care-ce de autoridade para punir as con-travenções relacionadas com os jo-gos que ele tolera ou explora’ paradescriminalizar o jogo do bicho, en-sinando que ‘a aplicação da lei nãopode se divorciar da realidade social’(Julgados do TARGS, 45/148); a 5

a

Câmara Cível do Tribunal de Justiçaentendeu que ‘é válido o legado dehomem casado à sua concubina’ emafronta ao disposto no art. 1.719, III,do CC. É bem verdade que a funda-mentação não é explicitamente agres-siva ao texto legal, ao que parece, se-guindo a lição de Warat, ob. cit., p.57: ‘O Juiz pode apartar-se da nor-ma sempre que pareça não se apar-tar’, mas no real não aplicou o textolegal (RJTJRGS, 115/371); a 1

a Câ-

mara Cível do Tribunal de Justiçaoutra coisa não fez ao autorizar ocasamento de menor com dezesseteanos, explicitando que o fazia ‘semapego excessivo à literalidade da lei’(RJTJRGS, 117/387).

O magistrado gaúcho SérgioGischkow Pereira, em dois momen-tos, faz coro com Luiz Fernando Coe-lho, professor das Universidades

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Federais do Paraná e de Santa Cata-rina, autor do livro Lógica Jurídica eInterpretação das Leis, nos artigosInterpretação Jurídica e Aplicação doDireito, Revista AJURIS, 27/186, eRelevância do Pensamento Teóricoe Filosófico no Direito: ‘Um exemplodo tradicional problema? Aí vai: ‘Avelha questão de como deve o ma-gistrado conduzir-se em face da lei‘injusta’ nos parece inteiramente su-perada, e pasma que autores emi-nentes ainda tenham dúvidas teóri-cas sobre a solução; a nós se confi-gura evidente que deve prevalecer ajustiça, o que possibilita ao magis-trado corrigir a lei ou declará-lainaplicável. Essa correção, todavia,não implica prolação de uma sen-tença contra legem, pois, se a nor-ma jurídica é portadora de valoraçãoindependente, importa descobri-la nocontexto dos demais valores sociais,isto é, conduzir a norma de direitoao seu lugar no quadro geral dasvalorações; o que a hermenêuticatradicional considera, portanto, umadecisão contra legem nada mais édo que a exclusão a que o Juiz pro-cede das valorações estranhas quea norma possa constituir, porquecontrárias aos princípios gerais dedireito’.

Cabe especial referência à obra deHermann Kantorowicz, autor da cé-lebre monografia Der Kampf um dieRechtswissenschaft (A Luta pela

Ciência do Direito), escrita em 1906sob o pseudônimo de Gnaeus Fla-vius, inauguradora da escola do di-reito livre que entende que deve pre-valecer o direito justo na falta de pre-visão legal ou contra a própria lei.Como ideais, apresenta Kantorowicza popularidade da jurisprudência viva,sua especialização, sua imparcialida-de, sua independência e sua própriajustiça que reclama liberdade, perso-nalidade e competência.

Penso, pois, que ‘o Juiz não é umexecutor cego e, sim, um artista daaplicação do direito’ (Carlos Ma-ximiliano, ob. cit., p. 81). Entendoque a lei injusta não deve ser aplica-da. Evidente que o Juiz não é com-putador. Deve pensar a lei em todasas possíveis interpretações e, nãoencontrando nela respaldo para ojusto, deve negá-la. Os anseios so-ciais assim exigem. É de se notarque não pretendo que se coloque oJudiciário acima dos outros Poderes,entendendo que ele é superior. Não,o que quero dizer é que o compro-misso é com o jurisdicionado; a bus-ca de solução justa para o conflitoestá acima do dispositivo legal.Parece-me cada vez mais claro queo mundo do Juiz, o seu campo deluta, o local onde realiza sua obrade arte, sua fonte de realização pes-soal, e onde sela seu compromissocom a sociedade, é no reinado docaso concreto. 

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Ali ele é soberano para buscar ajustiça. Ao legislador cabe a criaçãode normas genéricas, tão-só.

O Juiz comprometido com o jus-to concretizado é o que querem tam-bém os advogados (ver discurso doProf. Nelson Jobim em nome daOAB/RS, in RJTJRGS, 114/423-428).

Os processualistas lutaram pormuito tempo para provar que o pro-cesso é instrumento de realização dodireito material. Basta ir um poucomais adiante: o direito material é ins-trumento de realização do justo. Émeio e não fim. E o que prepondera,obviamente, é o fim buscado.

A aplicação silogística da lei,como é ensinado nas faculdades,nada mais é do que uma forma deaprisionar o Juiz, tirar-lhe a força cri-adora. Serve, pois, às classes queelaboram as leis, pois fazem dele ummero e frio aplicador do direito posi-tivo.

Uma questão fica àqueles que op-tam pelo primado da lei. Qual a situ-ação penal dos criminosos de guer-ra nazistas que cometeram atos hor-rendos obrigados pelas leis deHitler? Deveriam ou não ser conde-nados? A humanidade disse quesim; a hermenêutica tradicional dis-se que não. Todavia, ao arrepio daótica positiva, receberam condena-ção. Ou seja, o justo foi colocadoacima da lei.

Vale outro exemplo coletado daobra de Dennis Lloyd (p. 188): ‘Algu-mas sociedades orientais, e em par-ticular a chinesa, não aceitaram aidéia de lei como um meio de apli-cação de regras universais a situa-ções particulares, e desprezaram ohomem que buscava recorrer unica-mente a regras’.

Um Judiciário preso a leis injustasgera nos Juízes profunda angústiacomo a manifestada pelo magistra-do gaúcho Márcio Pugina, à qual façocoro: ‘Um Judiciário insensível eacastelado na lei, mesmo que estejatotalmente divorciada da realidade,mesmo quando ela seja instrumentode opressão, é um Judiciário servil,dependente, mesquinho e canhestro.Resultado disto é o triste espetáculode uma justiça impotente, cada vezmais distanciada do povo. Quem denós, de sã consciência, pode dizerque suas sentenças estão a serviçode uma efetiva justiça social? O queé o Judiciário para o homem do po-vo, senão o triste prolongamento doaparelho repressor estatal? O que éo Judiciário para o desempregado semestabilidade, para o sem-terra, para osdeserdados da vida, enfim, senão aponta de lança de um sistema econô-mico elitista, pronto para a estocadafinal? Será que a nós, Juízes, foi dadoo único e medíocre poder de lançarmiseráveis nos presídios e assinarmandados de despejo?’ 

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(Autonomia do Poder Judiciário e oConteúdo Ético da Norma Jurídica,tese junto à Escola Superior da Ma-gistratura Gaúcha). Mais é preciso?

Assim, a lei (que é comprometidacom a minoria opressora na realida-de capitalista) deve ser vista com des-confiança (leia-se: constantementecriticada). Serve ela como um refe-rencial — importante, é verdade —na aplicação do direito. Todavia, doconfronto entre a lei e o justo deveprevalecer este, como se pretendeudemonstrar. Aliás, esse é o exemplodeixado por Cristo (Marcos, 2, 27) aodesobedecer a lei na situação con-cretizada, dizendo que ‘o sábado (alei) foi estabelecido por causa do ho-mem e não o homem por causa dosábado’.

Surge, em conseqüência, uma in-dagação: qual a justiça a ser feita?Dizem alguns que existe uma justiçaneutra, imparcial. A justiça cega ex-pressa não tão famosa e formosaimagem. Tal justiça está fora do mun-do e do processo histórico. Está aci-ma de tudo e de todos. É um sen-timento que existe em todos os ho-mens.

Parece-me claro que inexiste jus-tiça neutra. A cegueira ou ‘neutrali-dade’ só favorece aos fortes. Quem écego ou ‘neutro’ na disputa entreopressor e oprimido é aliado daquele.

A justiça só existe no processo his-tórico, é um valor relativo a ser

extraído a partir da realidade vigen-te. Não pode estar acima ou fora dascircunstâncias sociais e econômicasvividas pelo povo em dado lugar, emdeterminado momento. Do cotejodesses fatos é que se pode afirmarse determinado comportamento é ounão justo. Em dada época matar al-guém era justo (‘Juízes de Deus’, naidade média). Em determinados lo-cais ter a mulher como objeto é tidocomo justo.

No que atine ao Judiciário, queaprecia questões já ocorridas entrelitigantes; que está vinculado ao fatoconcreto; é na concretude que deveverificar se ocorre ou não a justiça.Do cotejo entre as classes em luta;das necessidades pessoais objetivasdos litigantes; até das psicológicas;é que deve emergir ou não o justo.

Repito: a justiça ‘neutra’, aquelaque procura colocar o conflito naconceituação do justo já preexistentee não a que é buscada em função dolitígio, só serve para favorecer os for-tes, os que são intelectualmente do-nos da definição pré-concebida doque é ou não justo, é a justiça dosdominadores que pretende colocar omundo a seu serviço. Esconde, pois,a opção pelos fortes.

Tal idéia de justiça ‘neutra’ leva,em conseqüência, a se tentar fazercrer que o aplicador desta justiça tam-bém neutro é. Diz-se, pois, que oJuiz é neutro como se isso possível 

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fosse. A única forma de uma pessoaser neutra é estar fora do mundo,como se as coisas acontecessemabaixo dela. Na verdade ninguém,nem mesmo o cientista, pode serneutro. Já se disse antes que o atosentencial é fruto da ideologia dojulgador (mesmo as da lavra dospositivistas — Dennis Lloyd, ob. cit.,p. 183) e todos sabemos que a visãode mundo que temos é comprometi-da com a nossa história. Ao decidir,ou se está aplicando uma lei que nãoé neutra, ou se está aplicando umajustiça que também não o é. Logo,não neutra é a decisão. Acresce-se,ainda, que tal decisão é prolatada apartir da ideologia do julgador que porsua vez também não é neutra.

Algumas citações deixam claro aimpossibilidade da neutralidade doJuiz quer na aplicação da lei, quer nabusca do justo. Vejamos.

‘Não percebiam os próprios magis-trados, como até hoje a muitos es-capa, que a preconizada fidelidade àlei, ou o fetichismo legal, era condutatraçada no contexto da ideologiainstitucionalizada’ (Orlando Gomes,A Casta dos Juristas).

‘A era do Juiz politicamente neu-tro, no sentido liberal da expressão,já foi superada’ (Fábio Konder Com-parato, Revista AJURIS, 37/202).

‘En primer lugar, la progressivatoma de conciencia de cada vez másamplios sectores de la magistratura

y los Jueces italianos durante estosúltimos años, en el sentido de enten-der su función judicial y la realizaciónde la justicia no como una funciónneutra, aséptica, que se agotaría to-talmente en la sola aplicaciónmecánica de las leyes vigentes seacual fuere el contenido de éstas, sinoen el más profundo de llegar a lacomprensión de que si el Derecho noes imparcial y justo, ellos, en el fondo,no pueden ser tampoco imparcialesni justos: y que entonces su sublimeministerio no sería realmente el de‘hacer justicia’, sino simplesmente elde convertirse en meros transmisoresy ejecutores de la voluntad, más omenos justa o injusta, que ha logra-do hacerse Derecho’ (Mário Treves,El Juez y la Sociedad, Edicusa,Madrid, 1974, p. 10-11).

Roberto Aguiar, na indispensávelobra O que é Justiça, ed. 1982, p.17/18, ensina que ‘... a justiça não éneutra, mas sim comprometida, nãoé mediana, mas de extremos. Não hájustiça que paire acima dos conflitos,só há justiça comprometida com osconflitos, ou no sentido de manuten-ção ou no sentido de transformação’.

Assim, o que é justo para uns po-de ser injusto para outros, basta vero atual conflito sobre a reforma agrá-ria: para os sem-terra invadir proprie-dades é justo, porque representa apossibilidade de trabalho, de vidadigna; para os donos das terras é

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injustiça pois fere o sagrado direitode propriedade. ‘Uma, é a idéia dejustiça tal e qual entende a classe di-rigente. Outra, é o ideal de justiça dasclasses dominadas’ (Júlio César Ta-deu Barbosa, ob. cit., p. 16).

Que fique claro: o aplicar a lei,em si, não implica justiça ou in-justiça, o que definirá é a aplicaçãodo fato concreto ante uma posturaideológica.

Importante, diante disso, é que nãose estabeleçam, a priori, critérios ti-dos como definitivos para a aprecia-ção do justo. Repito: o justo emergedo caso concreto.

Dizem uns que a justiça é dar acada um o que é seu, mas RobertoAguiar (Direito, Poder e Opressão, p.XVI) pergunta: o que é o seu de cadaum? Segundo quais critérios? A res-posta é que a definição é vazia, comoele mesmo ensina: diz tudo e não diznada. Dependerá, evidentemente, docaso que se apresenta e da visão demundo de quem aprecia. Lyra Filho,‘O que é Direito’, 4

a ed., p. 28, sobre

o assunto cita João Mangabeira: ‘Por-que, se a justiça consiste em dar acada um o que é seu, dê-se ao pobrea pobreza, ao miserável a miséria, aodesgraçado a desgraça, que isso é oque é deles ...’

Nem mesmo a verdade pode serprincípio definitivo da justiça. Poder--se-ia discutir o que vem a ser verda-de. Parece-me que o conceito de ver-

dade é relativo: as de ontem não sãonecessariamente as de hoje. Deve serinterpretada diante das circunstânciase da ideologia de cada um. Inexistepadrão externo definitivo que possaestabelecer o que é ou não verdade:depende sempre da finalidade. É ver-dade, em princípio, o que favorece ooprimido. Logo, também nela não háneutralidade.

Vejamos o seguinte exemplo. NaAlemanha nazista havia muitos reli-giosos que não mentiam jamais. Elesescondiam judeus que, se desco-bertos, seriam mortos em campos deconcentração. À polícia nazista, quechegava na casa deles e perguntavase ali havia judeus, eles eviden-temente não mentiam e os policiaislevavam-nos à morte. Outras pes-soas, em igual situação, correndo orisco de serem presas, mentiam di-zendo que ali não havia judeus e es-tes eram salvos. Uns eram menti-rosos, outros não. Pergunta-se: qualfoi o justo, o mentiroso ou o que fa-lou a verdade? Evidente que justo foio mentiroso.

Dirão que tal argumento é adterrorem, fere a lógica porque fun-damentado na exceção. Mas o Judi-ciário trabalha em cima da exceção.A regra é não ocorrerem litígios, aspessoas entenderem-se sem a inter-venção estatal. O que é exceçãopara o mundo é regra para o Judiciá-rio.

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  O que se quer deixar claro aqui éque na apreciação do caso concretonão se pode partir de regras pré-con-cebidas para definir os critérios dejustiça. O reinado do caso concretoé que afirmará se tal comportamentoé ou não justo (o justo que não é neu-tro, nem está fora do conflito). Crité-rios feitos aprioristicamente servemtão-só de referenciais. Importantes,é verdade, mas só referenciais!

Em acórdão estampado naRJTJRGS, 98/271, o culto Des.Silvino Joaquim Lopes Neto diz que‘não é possível a cada decisãomudar-se a tábua de referênciasvalorativas’. É possível, mesmo por-que a tábua de valores é alteradaconstantemente. O caso concreto, oúnico do mundo, é que dirá quais osvalores, aqui e agora, a serem apli-cados.

Mas se a justiça não é neutra esim comprometida, restam, basica-mente, duas justiças: a do opressore a do oprimido. A opção por qual-quer delas é de índole íntima. O cer-to é que não se pode ficar entre ouacima delas. A minha justiça é acantada por Roberto Aguiar quan-do diz que a justiça é uma bailarinae ‘essa bailarina que emerge nãoserá diáfana e distante, não será detodos e de ninguém, não se poráacima dos circunstantes, mas entra-rá na dança de mãos dadas com osque não podem dançar e, amante

da maioria, tomará o baile na luta ena invasão, pois essa justiça é irmãda esperança e filha da contestação.Mas o peculiar nisso tudo é que avelha dama inconstante continuaráno baile, açulando seus donos con-tra essa nova justiça que não tem avirtude da distância nem a capa doequilíbrio, mas se veste com a roupasimples das maiorias oprimidas. Essanova justiça emergente do desequi-líbrio assumido, do compromisso edo conflito, destruirá aquela encaste-lada nas alturas da neutralidade eimergirá na seiva da terra, nas veiasdos oprimidos, no filão por onde ahistória caminha. O que é justiça? Éesta!’ (O que é Justiça, p. 15/16).

Na minha ótica, pois, o justo estáno compromisso com a maioria dopovo que, obviamente, na realidadecapitalista são os explorados, aque-les que não detêm o poder real (queestá nas mãos dos donos do capital),nem o formal (que está a serviço da-queles).

O justo, como inexiste fora do con-texto histórico, deve ser buscado,sempre e sempre, dentro do conflitoreal e, sempre e sempre, na ótica dooprimido.

O que há de novo aí? Apenas otrocar de lado, porquanto até hoje,consciente ou inconscientemente, ajustiça foi amante da minoria, favo-recendo-lhe, buscando perpetuar asdiferenças de classe, a exploração 

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da maioria oprimida. Agora o que sebusca é uma justiça igualmente com-prometida mas só que com o povona luta por uma sociedade maisigualitária, menos opressora, enfimque dê condições de vida a todos evida em abundância como ambicio-nava Cristo (João, 10.10).

Dentro da sociedade capitalista ajustiça tem sido alvo de crítica comotendo por finalidade servir aos pode-rosos. Dallari, na ob. cit., p. 59, con-ta de sua experiência com umafavelada que dizia: ‘O senhor estáfalando de direito, de justiça, isto tudoé muito bonito, mas isto não é paranós. Isso é coisa para os ricos’.Dennis Lloyd, ob. cit., p. 99, tambémcita um Juiz inglês da era vitorianaque dizia jocosamente que ‘a lei,como o Hotel Ritz, está franqueadaaos ricos e aos pobres indis-tintamente’.

Uma justiça e um Juiz não neu-tros, como sempre foram. Uma jus-tiça e um Juiz comprometidos, comosempre foram. Só que agora cons-cientes e comprometidos com a mai-oria do povo, como poucas vezes fo-ram, buscando ‘uma ciência jurídicada libertação, como já existe uma te-ologia com essa mesma finalidade’(Lyra Filho, Para um Direito semDogmas, p. 18), ou seja, a serviçodo povo.

Um Juiz ao modelo austríaco, quetenha ‘todos os poderes e deveres

considerados necessários para tor-nar a igualdade das partes no pro-cesso não apenas formal e aparen-te, mas efetiva, e válida, assim nãomenos para o pobre, para o ignoran-te, para o mal defendido, do que parao rico e para o erudito’. Que venhaao processo ajudando a parte, auxi-liando a reparar seus erros, que saiada pseudo-passividade que só for-talece aos fortes (Cappelletti, A Ide-ologia no Processo Civil, RevistaAJURIS, 23/25). Um Juiz que siga alição do magistrado francês Baudot:‘Sede parciais. Para manter a balan-ça entre o forte e o fraco, o rico e opobre, que não têm o mesmo peso,é preciso que calqueis um pouco amão do lado mais fraco da balança.Esta é a tradição capeteana.Examinai sempre onde estão o fortee o fraco que não se confundem ne-cessariamente com o delinqüente esua vítima. Tende um preconceitofavorável pela mulher contra o mari-do, pelo filho contra o pai, pelo de-vedor contra o credor, pelo operáriocontra o patrão, pelo vitimado con-tra a companhia de seguros, peloenfermo contra a Previdência Soci-al, pelo ladrão contra a polícia, pelopleiteante contra a justiça’.

Assim, deve-se buscar no âmagodo caso concreto quem é o opressore quem é o oprimido (como seviu de Baudot, opressor pode, porexemplo, ser o empregado e oprimi-

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do o patrão, embora raramente) e apartir daí, com desapego à lei ou aconceitos vagos preestabelecidos,tomar conscientemente o lado dooprimido, fazendo-lhe justiça, a jus-tiça da libertação. Mas se se quertomar a opção pela justiça do maisforte (a postura ideológica pessoalé que define), tranqüilo parece-meque se deve aplicar silogística emecanicamente o sistema legal vi-gente, o que requer menos trabalhoe não leva ao ‘doloroso e difícil exer-cício do pensamento’ ( Rubem A.Alves, A Empresa da Cura Divina:um Fenômeno Religioso, ColeçãoInstituto de Pesquisas Especiais, n.1, cap. IV, p. 116, Ed. UniversidadeCatólica), quiçá até perigoso! Já aopção pelo oprimido requer que senegue a lei com alguma freqüência;o questionamento do sistema comoum todo; a busca no conflito do realopressor; exige competência (fácil éaplicar a lei; difícil é negá-la porquedemanda estudo profundo, comconhecimentos sociológicos e filosó-ficos, sob pena de se receber a pechade irresponsável); que se ouse nospedidos (advogados) e nas decisões(magistrados).

Mas, acima de tudo, necessárioque se conheça a realidade social, opovo. E isso parece ser negado aoJuiz, tanto que existe uma máxima porquase todos aceita: ‘O Juiz é um ho-mem só. Nos discursos de posse de

Desembargadores nas 5a e 6

a Câma-

ras Cíveis do Tribunal de Justiça ga-úcho, em dois momentos os orado-res lembraram da máxima(RJTJRGS, 111/ 345 e 359).

No entanto, se dizem que o Juiz,como profissional, ao julgar é soli-tário, nada de novo há: é só o profes-sor ao dar aulas; o engenheiro ao fa-zer cálculos; o advogado ao prepararsuas teses; o cirurgião ao operar; ooperário ao construir. E todos, inclu-sive o Juiz, nos momentos de dúvi-das buscam socorro na experiênciados outros, seja através de livros,como do convívio com os colegas.

Mas sub-repticiamente isso querdizer que o magistrado, ao ser só,deve ficar distanciado do povo, por-que a massa popular é portadora dedoença contagiosa, ou seja, próxi-mo do povo o Juiz perceberá comclareza a angústia popular e ficarácontaminado por ela. E perto do opri-mido, contagiado pelo seu sofri-mento, evidente que tomará opçãopor ele. A solução encontrada é dei-xar o Juiz só, fora do mundo, dis-tante dos conflitos sociais, para nãose dar conta do que acontece na his-tória. Um Juiz desse tipo será, evi-dentemente, um frio aplicador da lei.A quem ele servirá?

A máxima foi elevada à lei tantoque a LOMAN não permite que o Juizexerça cargo de direção de socieda-de civil, associação ou fundação,

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seja de qual for a natureza ou fina-lidade (art. 36, Il, da Lei Comple-mentar n. 35).

Então, o Juiz só é um homem ina-cessível, distante, frio. Ao ponto de opovo ter medo dele, o que é de-nunciado por Dallari, loc. cit., p.71/72.

Juiz só é aquele do poeta Maia-covski:

‘O Equador estremece sob o somdos ferros.

‘Sem pássaros, sem homens, oPeru está a zero.

‘Somente, acocorados com rancorsob os livros,

‘Ali jazem, deprimidos, os Juízes’.Por certo só, também, é o Juiz do

cineasta Babenco (filme Pixote): umhomem honesto com fascinante boa

vontade, mas alheio à realidade so-cial.

Um Juiz crítico da lei, próximo dopovo, comprometido com o justo dooprimido, e que faça isso de formaresponsável e com competência,fará com que o Judiciário participeda história na busca do homem deque trata Maiacovski no poema De-dicatória:

‘Homens!‘Amados e não amados,‘Conhecidos e desconhecidos,‘desfilai por este pórtico num vas-

to cortejo!‘O homem livre —‘de que vos falo —‘Virá,‘acreditai,‘acreditai-me’!