A Literatura Do Trauma

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A Literatura do Trauma Márcio Seligmann–Silva http://acd.ufrj.br/pacc/z/numero4.html http://www.lemos.com.br/cult/cult23/dossie1.htm Literatura de testemunho é um conceito que nos últimos anos tem feito com que muitos teóricos revejam a relação entre a literatura e a “realidade”. O conceito de testemunho desloca o “real” para uma área de sombra: testemunha-se, via de regra, algo de excepcional e que exige um relato. Mártir – no sentido de alguém que sofre uma ofensa que pode significar a morte – vem do grego “martur”, testemunha. Devemos, no entanto, por um lado, manter um conceito aberto da noção de testemunha: não só aquele que viveu um “martírio” pode testemunhar; todos o podem. E, por outro lado, o “real” é – em certo sentido,e sem incorrer em qualquer modalidade de relativismo – sempre traumático. Pensar sobre a literatura de testemunho implica repensar a nossa visão da História – do fato histórico. Como lemos em Georges Perec – autor de W ou a memória da infância –, “o indizível não está escondido na escrita, é aquilo que muito antes a desencadeou”. A impossibilidade está na raiz da consciência. A linguagem/escrita nasce de um vazio – a cultura, do sufocamento da natureza; o simbólico, de uma reescritura dolorosa do real (que é vivido como um trauma). Aquele que testemunha se relaciona de um modo excepcional com a linguagem: ele desfaz os lacres da linguagem que tentavam encobrir o “indizível” que a sustenta. A linguagem é antes de mais nada o traço – substituto nunca perfeito e satisfatório – de uma falta, de uma ausência. O mesmo Perec afirma ainda: “sempre irei encontrar, em minha própria repetição, apenas o último reflexo de uma fala ausente na escrita, o escândalo do silêncio deles [os pais de Perec, assassinados pelos nazistas ] e do meu silêncio... A lembrança deles está morta na escrita; a escrita é a lembrança de sua morte e a afirmação de minha vida”. A experiência traumática é, para Freud, aquela que não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre. Os exemplos de eventos traumáticos são batalhas e acidentes: o testemunho seria a narração não tanto desses fatos violentos, mas da resistência à compreensão dos mesmos. A linguagem tenta cercar e dar limites àquilo que não foi submetido a uma forma

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A Literatura do TraumaMárcio Seligmann–Silva

http://acd.ufrj.br/pacc/z/numero4.htmlhttp://www.lemos.com.br/cult/cult23/dossie1.htm

Literatura de testemunho é um conceito que nos últimos anos tem feito com que muitos teóricos revejam a relação entre a literatura e a “realidade”. O conceito de testemunho desloca o “real” para uma área de sombra: testemunha-se, via de regra, algo de excepcional e que exige um relato. Mártir – no sentido de alguém que sofre uma ofensa que pode significar a morte – vem do grego “martur”, testemunha. Devemos, no entanto, por um lado, manter um conceito aberto da noção de testemunha: não só aquele que viveu um “martírio” pode testemunhar; todos o podem. E, por outro lado, o “real” é – em certo sentido,e sem incorrer em qualquer modalidade de relativismo – sempre traumático. Pensar sobre a literatura de testemunho implica repensar a nossa visão da História – do fato histórico. Como lemos em Georges Perec – autor de W ou a memória da infância –, “o indizível não está escondido na escrita, é aquilo que muito antes a desencadeou”. A impossibilidade está na raiz da consciência. A linguagem/escrita nasce de um vazio – a cultura, do sufocamento da natureza; o simbólico, de uma reescritura dolorosa do real (que é vivido como um trauma).Aquele que testemunha se relaciona de um modo excepcional com a linguagem: ele desfaz os lacres da linguagem que tentavam encobrir o “indizível” que a sustenta. A linguagem é antes de mais nada o traço – substituto nunca perfeito e satisfatório – de uma falta, de uma ausência. O mesmo Perec afirma ainda: “sempre irei encontrar, em minha própria repetição, apenas o último reflexo de uma fala ausente na escrita, o escândalo do silêncio deles [os pais de Perec, assassinados pelos nazistas] e do meu silêncio... A lembrança deles está morta na escrita; a escrita é a lembrança de sua morte e a afirmação de minha vida”. A experiência traumática é, para Freud, aquela que não pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre. Os exemplos de eventos traumáticos são batalhas e acidentes: o testemunho seria a narração não tanto desses fatos violentos, mas da resistência à compreensão dos mesmos. A linguagem tenta cercar e dar limites àquilo que não foi submetido a uma forma no ato da sua recepção. Daí Freud destacar a repetição constante, alucinatória, por parte do “traumatizado”, da cena violenta: a história do trauma é a história de um choque violento, mas também de um desencontro com o real. (Em grego, vale lembrar, “trauma” significa ferida.) A incapacidade de simbolizar o choque – o acaso que surge com a face da morte e do inimaginável – determina a repetição e a constante “posterioridade”, ou seja, a volta après-coup da cena. É interessante notar que Freud desenvolveu o seu conceito de trauma, entre outros textos, em Para além do princípio do prazer (1920), um trabalho que inicia com uma reflexão sobre o caráter acidental e excepcional do acidente traumatizante, mas que depois se ocupa em descrever as pulsões estruturais (eros e – sobretudo! – tanatos) com base em termos muito semelhantes. Portanto, a leitura que Walter

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Benjamin fez desse texto de Freud – no seu ensaio Sobre alguns temas em Baudelaire (1939) – e que normalmente é vista como uma apropriação indevida do conceito freudiano de trauma, por alargá-lo demais, de certo modo está in nuce em Freud. Para Benjamin, o choque é parte integrante da vida moderna: a experiência agora deixa de se submeter a uma ordem contínua e passa a se estruturar a partir das inúmeras “interrupções” que constituem o cotidiano moderno. Evidentemente, na medida em que tratamos da literatura de testemunho escrita a partir de Auschwitz, a questão do trauma assume uma dimensão e uma intensidade inauditas. Ao pensar nessa literatura, redimensionamos a relação entre a linguagem e o real: não podemos mais aceitar o vale-tudo dito pós-moderno que acreditou ter resolvido essa complexa questão ao afirmar simplesmente que “tudo é literatura/ficção”. Ao pensarmos Auschwitz fica claro que mais do que nunca a questão não está na existência ou não da “realidade”, mas na nossa capacidade de percebê-la e de simbolizá-la.

Antimonumento foi concebido para desaparecer O Monumento contra o Fascismo em Hamburgo-Harburg, na Alemanha, de autoria do casal Jochen Gerz e Esther Shalev-Gerz, é na verdade um anti-monumento: o pilar de aço de 12 metros de altura e recoberto por uma película de chumbo foi instalado em 1986 e depois, aos poucos, enterrado no seu pedestal até desaparecer por completo em 1993. O público participou da obra escrevendo no monumento com cinzéis: palavras antifascistas, mas também neonazis. Os Gerz expressaram a necessidade e a impossibilidade da memória literalizando o dito de Nietzsche: "Fora com os monumentos!"

"Observação do significado ausente"Saul Friedländer, um dos maiores historiadores da Shoah (“catástrofe”, em hebraico, termo que prefiro utilizar por não ter as conotações sacrificiais incluídas em Holocausto), resumiu o estado atual das pesquisas sobre esse evento com as palavras: “Três décadas aumentaram o nosso conhecimento dos eventos em si, mas não a nossa compreensão deles. Não possuímos hoje em dia nenhuma perspectiva mais clara, nenhuma compreensão mais profunda do que imediatamente após a guerra.” O trabalho de luto que realizamos com relação à Shoah – um trabalho dúbio, fadado a sempre recomeçar, muito mais melancolia que propriamente luto –, Fridländer compara ao que Maurice Blanchot denominou de “observação do significado ausente”. Portanto, o “paraíso liberal do ceticismo espertalhão” – na expressão de Gertrud Koch –, que nega a existência do real (em vez de negar apenas a existência de uma determinação única e ontológica do mesmo), serve de guarda-chuva para as idéias dos (in)famosos negacionistas de Auschwitz e simplesmente evita a reflexão sobre o “espaço” entre a linguagem e o real. Não é fora de contexto, aliás, recordar que Lacan descreveu a constituição do simbólico como um passo anterior à constituição do

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“real, na medida em que este constitui o âmbito do que fica fora da simbolização”. Para ele “o que não veio à luz do simbólico aparece no real” (nas palavras de Lacan: “Ce qui n’est pas venu au jour du Symbolique, apparaît dans le Réel”). O real resiste ao simbólico,

contorna-o, ele é negado por este – mas também reafirmado ex negativo. O real se manifesta na negação: daí a resistência à transposição (tradução) do inimaginável para o registro das palavras; daí também a perversidade do negacionismo que como que “coloca o dedo na ferida” do drama da irrepresentabilidade vivido pelo sobrevivente. Este vive a culpa devido à cisão entre a imagem (da cena traumática) e a sua ação, entre a percepção e o conhecimento, à disjunção entre significante e significado. Primo Levi abriu o seu livro Os afogados e os sobreviventes – uma das mais profundas reflexões já escritas sobre o testemunho – lembrando a incredulidade do público de um

modo geral diante das primeiras notícias, já em 1942, sobre os campos de extermínio nazistas. E mais, essa rejeição das notícias diante de seu “absurdo” fora prevista pelos próprios perpetradores do genocídio. Estes estavam preocupados em apagar os rastros dos seus atos, mas sabiam que podiam contar com a incredulidade do público diante de barbaridades daquela escala. Levi lembra a fala de um SS aos prisioneiros narrada por Simon Wiesenthal: “Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós ganhamos; ninguém restará para dar testemunho, mas, mesmo que alguém escape, o mundo não lhe dará crédito... Ainda que fiquem algumas provas e sobreviva alguém, as pessoas dirão que os fatos narrados são tão monstruosos que não merecem confiança: dirão que são exageros e propaganda aliada e acreditarão em nós que negaremos tudo, e não em vocês. Nós é que ditaremos a história dos Lager (campos de concentração).”Auschwitz pode ser compreendido como uma das maiores tentativas de “memoricídio” da história. A história do Terceiro Reich, para Levi, pode ser “relida como a guerra contra a memória, falsificação orwelliana da memória, falsificação da realidade, negação da realidade”. Os sobreviventes e as gerações posteriores defrontam-se a cada dia com a tarefa (no sentido que Fichte e os românticos deram a esse termo: de tarefa infinita) de rememorar a tragédia e enlutar os mortos. Tarefa árdua e ambígua, pois envolve tanto um confronto constante com a catástrofe, com a ferida aberta pelo trauma – e, portanto, envolve a resistência e a superação da negação –, como também visa um consolo nunca totalmente alcançável. Aquele que testemunha sobreviveu – de modo incompreensível – à morte: ele como que a penetrou. Se o indizível está na base da língua, o sobrevivente é aquele que reencena a criação da língua. Nele a morte – o indizível por excelência: que a toda hora tentamos dizer – recebe novamente o cetro e o império sobre a linguagem. O simbólico e o real são recriados na sua relação de mútua fertilização e exclusão.A memória – assim como a linguagem, com seus atos falhos, torneios de estilo, silêncios etc. – não existe sem a sua resistência. Elie Wiesel, que resolveu redigir o seu relato testemunhal, Nuit, dez anos após a

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libertação do Campo de Concentração de Auschwitz – portanto, após dez anos de silêncio e de resistência à memória –, narra-nos que o seu testemunho nasceu de uma promessa que ele fizera na sua noite de chegada a Auschwitz. Jamais je n’oublierai cette nuit, la première nuit de camp qui a fait de ma vie une nuit longue et sept fois verrouillée, “Nunca me esquecerei dessa noite, a primeira noite do campo que fez da minha vida uma noite longa e sete vezes selada”. Como Harald Weinrich nos chama atenção no seu belíssimo livro Lethe. Kunst und Kritik des Vergessens (Lete. Arte e crítica do esquecimento), Elie Wiesel utilizou a dupla negativa para a sua promessa – “nunca me esquecerei” – em vez da forma afirmativa: “vou me lembrar”. A memória só existe ao lado do esquecimento: um complementa e alimenta o outro. Esses conceitos não são simplesmente antípodas, existe uma modalidade do esquecimento – como Nietzsche já o sabia – tão necessária quanto a memória e que é parte desta. O geógrafo Pausânias narra que, na Beócia, o rio do Esquecimento, o Lete, corria ao lado da fonte da Memória, Mnemósina. Segundo os antigos, as almas bebiam do rio Lete para se livrar da sua existência anterior e posteriormente reencarnar em um novo corpo (como se lê em Virgílio, Eneida, VI, 713-716). Para o sobrevivente, a narração combina memória e esquecimento. Primo Levi afirma que não sabe se os testemunhos são feitos “por uma espécie de obrigação moral para com os emudecidos ou, então, para nos livrarmos de sua memória: com certeza o fazemos por um impulso forte e duradouro”. Jorge Semprun, que foi libertado de Buchenwald em 11 de abril de 1945, compôs o seu testemunho sobre a sua experiência no Lager apenas em 1994. A explicação para esse “atraso”, esse après-coup, está clara no texto: Semprun optara pelo esquecimento. Graças a Lorène, ele narra em L’ écriture ou la vie, “que não sabia de nada, que nunca soube de nada, eu voltei para a vida. Ou seja, para o esquecimento: a vida era o preço”.Por outro lado a modalidade da memória da catástrofe tem uma longa tradição no judaísmo – uma cultura marcada pelo pacto de memória entre Deus e seu povo: um não deverá esquecer-se do outro. A religião judaica é antes de mais nada estruturada no culto da memória. Suas principais festas são rituais de rememoração da história (no Pessah a leitura da Haggadah traz a história do Êxodo com o intuito de transportar as gerações posteriores àquele evento; no Purim recorda-se a salvação dos judeus da perseguição de Haman; no casamento judaico, em um ato de luto, um copo é quebrado para recordar, em meio à comemoração, a destruição do Templo e a impossibilidade de reparo – o tikkun na tradição da mística judaica – desta perda). A Torá, como é conhecido, é mantida atual graças aos seus comentários midrachísticos. O filósofo norte-americano Berel Lang aproximou de modo particularmente feliz a literatura sobre a Shoah e a tradição do comentário bíblico: em ambos os casos trata-se de uma reatualização, de uma recepção après-coup de algo que nunca pode ser totalmente compreendido/traduzido. O comentador, assim como o que compõe seu testemunho, tenta preencher os espaços abertos no texto/história, sabendo que essa tarefa é infinita, e, mais importante, com a

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consciência de que a leitura é perpassada por um engajamento moral, por um compromisso ético com o “original”. A necessidade de testemunhar Auschwitz fica clara se nos lembrarmos dos inúmeros livros de memória redigidos logo após aquela tragédia. Os chamados Yizkor Bikher não são nada mais do que uma continuidade tanto da tradição iconoclasta judaica como da outra face dessa tradição: a da escrita e a da narração como meio de manter a memória. Em um desses livros podemos ler: “O livro memorial que irá imortalizar as memórias dos nossos parentes, os judeus de Pshaytsk, servirá, portanto, como um substituto do túmulo. Sempre que nós tomarmos este livro, nós sentiremos que nós estamos ao lado do túmulo deles, porque até isso os assassinos negaram a eles.” Escritura e morte se reencontram aqui nos livros de memória, mas agora no sentido oposto, ou seja, não mais da morte como estando na base da linguagem, mas sim na medida em que o texto deve manter a memória, a presença dos mortos e dar um túmulo a eles.

Saída para a luz, parte do monumento Passagens, construído por Dani Karavan em homenagem a Walter Benjamin no cemitério de Portbou, na Espanha (fronteira com a França), local onde o filósofo se suicidou em 1940

Catástrofe e a arte da memória O texto de testemunho também tem por fim um culto aos mortos. Não por acaso esse culto está na origem de uma antiqüíssima tradição da arte da memória ou da mnemotécnica (ars memoriae). Vale a pena recordar nesse contexto a anedota acerca do poeta Simônides de Ceos (apr. 556-apr.468 a.C.), considerado o pai dessa arte, e que foi narrada, entre outros, por Cícero (De oratore II, 86, 352-354), por Quintiliano (11,2,11-16)e por La Fontaine. Nessa anedota, Simônides é salvo do desabamento de uma sala de banquete onde se comemorava a vitória do pugilista Skopas. O que nos importa nessa história é o que se sucedeu após essa catástrofe. Os parentes das vítimas não conseguiram reconhecer os seus familiares mortos que se encontravam totalmente desfigurados sob as ruínas. Eles recorreram a Simônides – o único sobrevivente – que graças à sua mnemotécnica conseguiu se recordar de cada participante do banquete, na medida em que ele se recordou do local ocupado por eles. A sua memória topográfica procedia conectando cada pessoa a um locus (ou topos: daí se ver a mnemotécnica como um procedimento topográfico, como a descrição/criação de uma paisagem mnemônica). A memória topográfica é também antes de mais nada uma memória imagética: na arte da memória conectam-se as idéias que devem ser lembradas a imagens e, por sua vez, essas imagens a locais bem conhecidos. Aquele que se recorda deve poder percorrer essas paisagens mnemônicas descortinando as idéias por detrás das imagens. Essa anedota que está na origem da tradição clássica da arte da memória deixa entrever de modo claro não apenas a profunda relação entre a memória e o espaço, e portanto notar em que medida a

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memória é uma arte do presente, mas também a relação entre a memória e a catástrofe, entre memória e morte, desabamento. Em português, note-se, fica acentuada a dialética íntima que liga o lembrar ao esquecer, se pensarmos na etimologia latina que deriva o “esquecer” de cadere, cair: o desmoronamento apaga a vida, as construções, mas também está na origem das ruínas – e das cicatrizes. A arte da memória, assim como a literatura de testemunho, é uma arte da leitura de cicatrizes. (Georges Perec, aliás, narra na sua obra autobiográfica a importância que ele atribuía a uma cicatriz no seu lábio superior, uma marca de “uma importância capital” que ele nunca tentou dissimular. Outra revelação para nós 1942, sobre os campos de extermínio nazistas. E mais, essa rejeição das notícias diante de seu “absurdo” fora prevista pelos próprios perpetradores do genocídio. Estes estavam preocupados em apagar os rastros central no seu livro é um plano de redigir um livro que justamente deveria se chamar Les lieux [Os locais ] – “no qual eu tento descrever o devir, no decorrer de doze anos, de doze lugares parisienses aos quais, por uma razão ou outra, estou particularmente ligado”. Walter Benjamin realizara em parte esse projeto – tendo Berlim como topos – nos seus textos autobiográficos Infância berlinense e Crônica berlinense.)

Estética e ética Mas voltemos por último ao tema inicial da “inimagibilidade” da Shoah, à sua inverossimilhança. Para Aharon Appelfeld – um judeu da Bucovina, local de origem de outros dois escritores centrais na literatura de testemunho: Paul Celan e Dan Pagis – “tudo o que ocorreu foi tão gigantesco, tão inconcebível, que a própria testemunha via-se como uma inventora. O sentimento de que a sua experiência não pode ser contada, que ninguém pode entendê-la, talvez seja um dos piores que foram sentidos pelos sobreviventes após a guerra”. Já Aristóteles, o primeiro grande teórico da recepção das obras de arte, dizia na sua Poética: “Deve-se preferir o que é impossível, mas verossímil, ao que é possível, mas não persuasivo” (1460a). E Boileau, no século XVII, escreveu ecoando Aristóteles: “O espírito não se emociona com o que ele não acredita” (Arte poética, III, 59). Os primeiros documentários realizados no imediato pós-guerra, extremamente realistas, geravam esse efeito perverso: as imagens eram “reais demais” para serem verdadeiras, elas criavam a sensação de descrédito nos espectadores. A saída para esse problema foi a passagem para o estético: a busca da voz correta. A memória da Shoah – e a literatura de testemunho de um modo geral – desconstrói a Historiografia tradicional (e também os tradicionais gêneros literários) ao incorporar elementos antes reservados à “ficção”. A leitura estética do passado é necessária, pois essa leitura se opõe à “musealização” do ocorrido: ela está vinculada a uma modalidade da memória que quer manter o passado ativo no presente. Em vez da tradicional representação, o seu registro é do índice: ela quer apresentar, expor o passado, seus fragmentos, cacos, ruínas e cicatrizes. Não só na literatura, também nas artes plásticas percebe-se esse percurso em direção ao testemunho, ao trabalho com a memória das catástrofes (lembremos apenas das obras de Cindy

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Sherman, Anselm Kiefer, Samuel Back e Francis Bacon). As fronteiras entre a estética e a ética tornam-se mais fluidas: testemunha-se o despertar para a realidade da morte. Nesse despertar na e para a noite – como dizia Walter Benjamin: “a noite salva” – despertamos antes de mais nada para a nossa culpa, pois nosso compromisso ético estende-se à morte do outro, à consciência do fato de que a nossa visão da morte chegou tarde demais.

Márcio Seligmann - Silva: Professor de teoria literária na UNICAMP, autor de Ler o livro do mundo.