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A literatura famélica em O Quinze de Rachel de Queiroz

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A literatura famélica em O Quinze

de Rachel de Queiroz

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

CLÉBIO DOS SANTOS LIMA

A LITERATURA FAMÉLICA EM O QUINZE DE RACHEL DE

QUEIROZ

NATAL, RN

2019

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CLÉBIO DOS SANTOS LIMA

A LITERATURA FAMÉLICA EM O QUNZE DE RACHEL DE QUEIROZ

Dissertação apresentada ao programa de pós-

graduação em Ciências Socais como

exigência parcial a obtenção do título de

mestre em Ciências Socais sob orientação do

Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas.

NATAL, RN

2019

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Lima, Clébio dos Santos. A literatura famélica em O quinze de Rachel de Queiroz /Clébio dos Santos Lima. - 2019. 106f.: il.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras eArtes, Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais,Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2019. Orientador: Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas.

1. Literatura brasileira - Dissertação. 2. Alimentação -Dissertação. 3. Fome - Dissertação. 4. Queiróz, Rachel de, 1910-2003. O quinze - Dissertação. I. Dantas, Alexsandro GalenoAraújo. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 316:821.134.3(81)-3

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRNSistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -CCHLA

Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748

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CLÉBIO DOS SANTOS LIMA

A LITERATURA FAMÉLICA EM O QUINZE DE RACHEL DE QUEIROZ

Dissertação apresentada ao programa de pós-

graduação em Ciências Socais como

exigência parcial a obtenção do título de

mestre em Ciências Socais sob orientação do

Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas.

Aprovada em: __/__/__

Prof. Dr. Alexsandro Galeno Araújo Dantas

(Orientador)

Fagner Torres de França

(Membro interno)

Hermano Machado Ferreira Lima

(Membro externo)

Orivaldo Pimentel Lopes Júnior

(suplente)

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Aos famintos por conhecimento, dedico.

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AGRADECIMENTOS

A Alex pela aposta no estudo e as zelosas orientações, sempre disposto às

aventuras interdisciplinares.

Aos queridos colegas das orientações coletivas pelos momentos frutíferos de

discussões e conversas, em especial, Jadson Maia, Rebekka Fernandes.

Ao grupo de pesquisa Marginália.

A professora Michelle Jacob por toda disposição em partilhar pesquisa e tantos

outros trabalhos conjuntos, e o professor Orivaldo Pimentel, ambos pelas

contribuições na qualificação.

Aos membros da banca.

A professora Ceiça Almeida por tantas inquietações em sala de aula.

A Edglei Silva que sempre presente é minha fonte de entusiasmo.

Aos mais que queridos Gabriel Pochapski e Yuri Kamozaki pelos cafés,

gargalhadas e ombro amigo. Foram vocês que tornaram meus momentos de

escrita mais leves.

A Viviany Chaves companheira de banco, de conversas e noitadas.

Companheira pra vida.

Aos de longas datas, Janine Beatriz, Maristela Oliveira, Yanne Carvalho, João

Pedro, Hugo Félix, Juliana Cândido e Adriana Fernandes, responsáveis por me

arrancar os melhores risos.

A minha segunda alma, minha mãe.

Aos funcionários do PPGCS sempre prestativos e acolhedores, sobretudo aos

mais que queridos Otânio e Jefferson

À Capes pelo financiamento da pesquisa.

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"Doer, dói sempre.

Só não dói depois de morto.

Porque a vida toda é um doer."

- Rachel de Queiroz, Dôra, Doralina:

romance. 1984.

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RESUMO

A literatura traz possibilidades de estudos para compreender os fenômenos

inerentes à condição humana. A obra O Quinze, da escritora cearense Rachel

de Queiroz, foi utilizada neste trabalho como objeto de pesquisa, como corpus

de conhecimento para compreender o fenômeno da fome e suas implicações no

espaço social alimentar a partir da ótica da Segurança Alimentar e Nutricional.

Para além de uma descrição dos elementos da fome, comuns em obras

regionalista, a literatura foi aqui entendida como próprio espaço fruto da

interrelação entre autor, pesquisador e corpus. Esta é maneira que uma corrente

atual da geografia literária enxerga o espaço narrativo. Espaço este que aqui foi

chamado de literatura famélica. Para essa demanda foram realizadas 6 leituras

da obra integral com o intuito de interceptar as passagens que fizessem relações

Espaço narrativo e Social Alimentar vigente. Foi elaborada uma matriz de

classificação dessas informações que subsidiou o tratamento dos dados,

inferências e interpretações. A análise retornou as seguintes questões: (1) a

literatura funciona como mecanismo para produção histórica de uma poética da

dignidade no contexto da fome (2) As dimensões do espaço alimentar marcado

pela incorporação de novos repertórios alimentar resulta quadro de violação do

Direito Humano à Alimentação Adequada e um regime de Insegurança (3) As

desordens físicas, psicológicas e sociais são consequentes da ausência de uma

política pública de Segurança alimentar e nutricional. Refletir sobre este

fenômeno alimentar é uma possibilidade de adentrar num escopo de

significações que vai além de interpretações objetivas. Através da escrita de

Rachel de Queiroz pode-se compreender como os sujeitos em situações de

escassez alimentar compreendem, enfrentam e resolvem este problema.

Observa-se ainda a importância de olhar para o problema da fome com um olhar

ampliado sobre o ato alimentar, sobretudo no cenário de injustiças sociais.

Palavras-chave: literatura, alimentação, fome, segurança alimentar.

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ABSTRACT

Literature offers possibilities of studies to understand the phenomena inherent to

the human condition. The novel O Quinze by the writer from Ceará, Rachel de

Queiroz, was used in this work as an object of research, as a corpus of knowledge

to understand the phenomenon of hunger and its implications in the social food

space from the perspective of Food and Nutrition Security. In addition to a

description of the elements of hunger, common in regionalist works, literature was

understood here as the very space of the interrelationship between author,

researcher and corpus. This is way a current current of literary geography sees

narrative space. This space has been called the famished literature. For this

demand were made 6 readings of the integral work with the intention of

intercepting the passages that made relations Narrative Space and Social Food

in force. A matrix of classification of this information was elaborated that

subsidized the treatment of the data, inferences and interpretations. The analysis

returned the following questions: (1) the literature serves as a mechanism for the

historical production of a poetics of dignity in the context of hunger. (2) The

dimensions of the food space marked by the incorporation of new food repertoires

results in violation of the Human Right to Adequate Food and a regime of

Insecurity (3) Physical, psychological and social disorders result from the

absence of a public policy on food and nutrition security. Reflecting on this food

phenomenon is a possibility to enter into a scope of meanings that goes beyond

objective interpretations. Through the writing of Rachel de Queiroz one can

understand how the subjects in situations of food shortage understand, face and

solve this problem. It is also observed the importance of looking at the problem

of hunger with an enlarged view on the food act, especially in the scenario of

social injustices.

Keywords: literature, food, hunger, food security.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

CAPA - Criança Morta (1994) de Cândido Portinari

Imagem 1 – A casa velha do junco

Imagens 2 – Rachel de Queiroz na Academia Brasileira de Letras.

Imagem 3 – Primeira capa da obra O Quinze

Imagem 4 - Espaço Social Alimentar de Jean-Pierre Poulain e Rossana

Proença

Imagem 5 – El Triunfo de La Muerte (ano c. 1562) de Pieter Brugel

Imagem 6 – The Last Road de Nina Machenko

Imagem 7– Retirantes de Cândido Portinari

Imagem 8 – Jornal noticiando o êxodo rural e os campos de concentração no

Ceará

Imagem 9 – Pessoas mortas durante a travessia do sertão

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Obras completas de Rachel de Queiroz

Quadro 2 – Fatores determinantes da fome

Quadro 3 – Dimensões do espaço narrativo da obra

Quadro 4 – Citações diretas da obra sobre crises emocionais e psicológicas

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SUMÁRIO

Apresentação, 12

Introitos: fome e literatura, 16

A PESQUISA 23

Apresentação do corpus, 24 Sistematização dos dados, 24

RACHEL DE QUEIROZ, 30

Ciência e literatura, 32 A filha da caatinga: Rachel de Queiroz, 39

A FOME, 53

O regime da escassez, 55 As políticas da fome, 61 A LITERATURA FAMÉLICA, 68

A modelização do espaço social da fome, 68 Sentenças do regime da escassez: o corpo faminto, 75 Violação do direito humano à alimentação, 80

CONSIDERAÇÕES FINAIS, 88

REFERÊNCIAS, 90

ANEXOS, 97

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APRESENTAÇÃO

Chegara à completa loucura da fome, sentia-me oco, sem sofrimento,

já não detinha as rédeas da imaginação. Refletia calado, metido em

mim. Mediante saltos extraordinários de raciocínio, procurei aprofundar

o sentido da nova palavra.

Knut Hamsun – Fome

A fome nunca foi tema para as salas de visitas. Nas palavras de Câmara

Cascudo “dizer que se tem fome quando o almoço se eterniza, é um primor de

deseducação”1. São quadros indigestos: falamos da abundância e das

promessas futuras frente às conquistas e avanços no campo tecnológico e

científico, da esperança de dias melhores, mas ainda não conseguimos avançar

passos tão largos pra uma necessidade tão íntima e necessária que é o comer.

O fato é que conhecemos a fome e estamos habituados a ela, por uma

necessidade vital do corpo, sentimos fome duas ou três vezes por dia. Mas ao

mesmo tempo, para muitos de nós, nada mais distante do que a verdadeira

sensação de passar fome.

Os retratos mais cruéis que perdura entre tempos de colheita e

abundância resulta do desperdício, da ganância que grassa os nichos de

riqueza, que age em surdina e mata silenciosamente, pois pode passar

despercebida ou mascarada por outra causa. Pensar a respeito desse assunto

sempre me intrigou “por que em meio a tanta produção de alimentos e os

saberes necessários de uma boa nutrição, ainda existem pessoas que não têm

o mínimo para uma refeição digna? Como um nutricionista pode falar sobre

comida para quem não tem acesso a ela?” Tomado por essas inquietações foi

que decidi explorar a temática na pós-graduação.

É de modo racional e concebível questionar-se que lugar habita um

nutricionista nas Ciências Humanas. Acredito que no decorrer do tempo somos

1 CASCUDO, Luís da Câmara. O historiador da fome. In: ASCOFAM. O drama universal da

fome. Rio de Janeiro, 1958. P 296.

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vários e, sobretudo, ao escrever uma pesquisa. As travessias que percorre o ser

pesquisador é uma viagem de olhos vendados em mares ainda não revelados,

parafraseando Clarice Lispector. É ofício do viajante não pertencer a nenhum

lugar e poder conquistar todos os horizontes possíveis sem deslembrar suas

origens. O norteamento dessas trilhas é indubitavelmente a aspiração pelo

conhecimento e o deleite da escrita. O percurso me foi árduo, contudo, é

inenarrável o aprazimento em meio a esta tarefa. Uma experiência não somente

de criação, mas descobrimento da complexa condição humana que está para

além dos rigores disciplinares e racionalizações. Seguimos aprendendo.

Este trabalho na verdade, é fruto de um percurso acadêmico que se inicia

em 2013 quando ainda era estudante do curso de Nutrição/UFCG. Na época,

estava entretido às disciplinas de Bioquímica e Metabolismo de Nutrientes

quando me deparei em um outro universo que, inconscientemente já habitava

em mim: o gosto pela literatura. A partir daí encontrei pessoas dispostas a me

ajudar a pensar mais sobre outras relações com a alimentação. Cada vez mais

crescia o número de interessados no tema e, aos poucos unificamos nosso grupo

e institucionalizamos nossas reuniões. Naquele momento erámos o Grupo

Universalidades, Literatura e Alimentação, ou simplesmente o GULA.

A partir desse grupo a pesquisa intitulada Atlas culinário da literatura

brasileira2 surgiu. Uma proposta enraizada na ideia em desvendar as fronteiras

da arte, da alimentação e de uma nova forma de pensar a ciência. Eu sou apenas

um viajante que corajosamente despiu-se das amarras fisiológicas da Nutrição

e seguiu em frente com os olhares voltados para uma das maiores escritoras

brasileiras sobre a fome. A jornada findou aqui, com o cuidado intelectual do

primoroso professor Alex Galeno e suas zelosas orientações. De bagagem

teórica farta, é um grande explorador das aventuras transdisciplinares; no meio

de tantas turbulências que enfrentei já na reta final do curso, foi apenas por ele

que prossegui com este trabalho. Meu processo de construir uma profissão

quase foi interrompido por um anúncio trágico. Os problemas familiares se

intensificaram de uma forma a me empurrar numa caverna fechada e escura.

2 MEDEIROS, M.; CHAVES, V.; LIMA, C. Culinary Atlas of BrazilianLiterature. Razón y palabra,

v. 20, n.3, 2016, p. 207-32.

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Era apenas eu e minha solidão de voz forte que ecoava me aconselhando a

acabar com tudo. Mas, cá estamos. Retornei as tarefas e me dei conta que

estava vivo pra continuar.

Certa vez, numa aula de teorias contemporâneas da cultura a professora

Ceiça Almeida disse, parafraseando-a, que a pesquisa é uma forma de organizar

o caos. Apesar de entender naquele momento o que ela quis dizer, eu gostaria

de estar tão convicto disso como ela. Mas tentei organizar meu caos. Permita-

me então, apresentar como foi feito.

A obra de Rachel de Queiroz possibilita a construção não somente em

nível epistemológico como também no sentido de apoiar uma análise tanto

sociológica como literária. Nesse sentido, o romance cearense como corpus do

estudo reflete o esforço de traçar o espaço social da fome e os fenômenos que

o cerca. Este são os principais temas da pesquisa: fome, literatura e espaço.

Nessa discussão as Ciências Humanas e Sociais podem oferecer grandes

contribuições. À luz da ideia de Espaço Social Alimentar (ESA) proposto por

Jean-Pierre Poulain e Rossana Proença permite, ao mesmo tempo, fazer a

Sociologia para os sociólogos e criar as condições de aplicação de um diálogo

pluridisciplinar com as Ciências da Alimentação e da Nutrição. Pensando no

papel da literatura nessa empreitada, ao falar de espaço partimos de uma ideia

que ultrapassa as interações entre os sujeitos e o lugar onde habitam; é dessa

forma que geografia literária proposta por Sheila Hones caminha: o texto literário

em si pode ser compreendido como um espaço próprio resultante de

interrelações entre o seu contexto de produção, a voz ficcional e os sentidos

atribuídos pelo pesquisador (leitor). Por fim, o debate com a fome vem dos

contributos de Josué de Castro e seu trabalho em traçar a Geografia da Fome.

Após algumas notas introdutórias inerentes a pesquisa, o primeiro

capítulo explica o porquê da escolha do corpus de pesquisa, como a geografia

literária pode apoiar análises relacionadas a fome e de que forma o espaço social

alimentar pode ser uma ferramenta de análise nesse contexto. Além desse

construto, está apresentada Rachel de Queiroz e suas geografias literárias e de

vida. O capítulo posterior segue com a construção dos dados, bem como o

tratamento, interpretações e inferências destes.

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Por fim, os dois últimos capítulos foram escritos no intento de ampliar as

questões colocadas anteriormente: a fome histórica como produto das

iniquidades sociais rompe a naturalização da falta de alimentos. E a seção

seguinte expõe como a questão da fome vem à tona a discussão política e de

que forma a obra de Rachel de Queiroz contribui para essa discussão.

Finalizamos o estudo com a modelização alimentar a partir das dimensões do

ESA e suas significações.

Estas foram as categorias de análises encontradas para responder os

objetivos deste trabalho. As considerações finais ou conclusões, sintetizam as

proposições da investigação em uma avaliação concisa.

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INTRÓITOS: FOME E LITERATURA

Ítalo Calvino diz que um clássico, entre outras peculiaridades, “provoca

incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente

as repele para longe”. São obras que formam um endosso de literaturas

contemporâneas a todos os tempos que atuam como dobras na memória

mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual3. A partir dessa

afirmação poderíamos pensar a respeito de uma literatura brasileira clássica: a

famélica.

O início do século XX foi marcado por um movimento literário que se

desguardou dos princípios libertadores e rigorosos da estética europeia

transmutando-se para centralidade político-social “ao querer denunciar pelos

recursos literários não só as mazelas oriundas do passado colonial e

escravocrata da sociedade brasileira, mas também os regimes ditatoriais que

assolam a vida republicana”4. Esta foi a proposta apresentada pela geração

subsequente da semana de Arte Moderna de 1922. Uma nova ordem literária

surgiu; a literatura dos anos 30 ou também chamada de regionalista, diante das

novas configurações históricas, apresentou experiências artísticas nascidas em

tempos beligerantes, apresentando uma outra demanda: a necessidade de um

maior envolvimento social, um olhar acurado para a região nordeste e a eclosão

de alguns dilemas, até então obscuros, como a fome, considerado um tema

delicado, proibido e pouco aconselhável a ser discutido em público5.

Os romancistas desse movimento apresentam copiosos relatos sobre a

fome em suas obras. A inauguração fica à cargo de José Américo de Almeida

com o romance A bagaceira (1928) ambientado entre as grandes secas do

século XIX (apogeu em 1989) e a seca de 1915. O autor evidencia seus

3 CALVINO, Italo. Por que ler os clássicos. 5.ed. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Editora companhia das letras, 2004, p 12.

4 SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Ed UFMG, 2004, p. 46.

5 KIFFER, Ana Paula. Graciliano Ramos e Josué de Castro: um debate acerca da fome no

Brasil. Via Atlântica, Rio de Janeiro, 2009.

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personagens, descrições e paisagens com forte apelo simbólico, sobretudo à

fome e miséria.

Graciliano Ramos em Vidas secas (1938) lança uma visão da sociedade

brasileira em seus níveis mais profundos em uma dimensão social e psicológica

da repressão política junto a dimensão natural. O autor invoca personagens

agarrados com a miséria e a fome à fuga da seca. Entre a esperança e o

desalento enfrentam as contrariedades da natureza e a opressão subalterna em

uma narrativa que se constrói em meio ao silêncio, e quando há diálogo, duras

e ríspidas palavras são lançadas. A desolação é tanta que, em um trágico

episódio o papagaio, até então visto como membro do grupo, é devorado pela

própria família6.

O desígnio do sertanejo e de tantas vidas secas é não padecer da morte

Severina. Aquela anunciada por João Cabral de Melo Neto:

— Finado Severino, quando passares em Jordão e o demônios te atalharem

perguntando o que é que levas... — Dize que levas cera,

capuz e cordão mais a Virgem da Conceição. — Finado Severino, etc..

. — Dize que levas somente coisas de não: fome, sede, privação.

— Finado Severino, etc.. . — Dize que coisas de não,

ocas, leves: como o caixão, que ainda deves.

— Uma excelência dizendo que a hora é hora. — Ajunta os carregadores

que o corpo quer ir embora. — Duas excelências... -

...dizendo é a hora da plantação. — Ajunta os carreadores... -

...que a terra vai colher a mão7.

6 RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 107a ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.

7 MELO NETO, João Cabral. Morte Vida Severina. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p. 7

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A vida e a caminhada do “não” refletem uma imagem da expressiva

impetuosidade das literaturas. E dentre elas, há uma autora em especial e única

mulher desse movimento, ainda não citada, que faz desse encontro uma

constante em sua obra: Rachel de Queiroz.

Debaixo de um juazeiro grande, todo um bando de retirantes se arranchara: uma velha, dois homens, uma mulher nova, algumas crianças. Os meninos choramingavam, pedindo de-comer [...] dominava agora uma eterna preguiça da vida, da eterna luta com o sol, com a fome, com a natureza8.

Em seu clássico inaugural O Quinze (1930), Rachel de Queiroz edifica

fidelidade às figuras humanas, à paisagem, aos costumes e à linguagem da

região, que incorpora com vivacidade a fala comum para abordar questões

complexas testemunhadas em sua vida: a escassez de vida, os movimentos

migratórios, a seca nordestina. Uma obra que foge dos requintes linguísticos e

também alimentar, o que importa para Chico Bento, um de seus personagens, é

não padecer de fome. O romance cearense não é o único livro que trata sobre o

assunto, mas a crítica pondera seu destaque: Para Mario de Andrade, Rachel de

Queiroz através de sua obra nos dá um modo novo de conceber a ficção sobre

o flagelo brasileiro. O crítico literário Augusto Frederico Schmidt também

comenta que “O quinze é mesmo o que temos de melhor no gênero” 9.

É uma obra prolífera de imagens estéticas do sertão nordestino, da

pobreza e da seca voraz. Contudo, existem nas páginas de Rachel de Queiroz

narrativas que ultrapassam as imagens descritas na obra e que refletem um

contexto histórico e amplia a discussão das mazelas sociais sob o olhar do leitor.

Estas narrativas foram aqui chamadas de literatura famélica. E este é o objetivo

do trabalho: compreender a partir de sua literatura as modificações causadas

8 QUEIROZ, Rachel de. O quinze. 107. Edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017, p. 48.

9 SCHMIDT, Augusto Frederico. Fortuna Crítica (Uma revelação: O quinze). In: QUEIROZ, Rachel de. O quinze. 107. Edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017, p. 157.

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pela fome no espaço alimentar. Uma fome que é histórica e lança uma

problematização para além de obra literária.

A obra de Rachel de Queiroz e outros literatos regionalistas serviram a

Durval Muniz (2009) como parte estruturante para fundamentar sua tese. O autor

discute a importância de Rachel na Invenção do Nordeste ao mesmo tempo em

que faz uma alerta: à primeira vista, a literatura de Queiroz e os demais

representantes do romance nordestino contribui para uma invenção na história

brasileira, assim, não pode ser tomado como objeto de estudo fora desta

historicidade, sob pena de se cometer anacronismos e reduzi-lo a um simples

recorte geográfico naturalizado10.

Tomando por base essa ideia, um campo científico que, recentemente,

toma esse modelo de análise e que aqui foi utilizado como parte estruturante

do trabalho é a geografia literária. O uso de passagens literárias como dado de

análise, foi sendo modificado por um crescente destaque humanístico na

experiência subjetiva do lugar. O enfoque que inicialmente encontrava-se nos

recortes geográficos passou a entender o papel do texto literário como próprio

espaço que conta com a interação de múltiplos agentes. O espaço narrativo

aparece como produto de interrelações entre autor, voz narrativa e leitor, e não

apenas como recipiente de representações ou descrições caracterizadas na

obra11 12. A literatura famélica em O Quinze foi pensada nesse seguimento13.

10 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4ª ed. Recife:

FJN; Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2009.

11 BROUSEAU, M. Geography’s literature. Progress in Human Geography, v. 18, n. 3, p. 333- 353, 1994.

12 HONES, S. Literary geography. In: RICHARDSON, D. et al. The encyclopedia of geography. New Jersey: John Wiley & Sons, 2017.

13 Além deste, outros estudos propuseram estudar a fome lançando mão da literatura como objeto de conhecimento, como corpus de pesquisa. Pereira Filho (2010) tomou posse das obras do brasileiro Rodolfo Teófilo (A fome) e do norueguês Knut Hamsun (Fome), ambas publicadas em 1890, para discutir a disparidade entre os escritores explorando os limites humanos e questões como a ânsia e a carência. Outra aposta em desenvolver um produto científico que relaciona fome e literatura foi realizado por Chaves e Jacob (2018), dessa vez, com a obra Quarto de despejo de Carolina Maria de Jesus, propositaram compreender a literatura como via para subjetivação e enfrentamento da situação de precariedade alimentar vivenciada pela poetisa. As autoras firmam contrato com a literatura para produção de um conhecimento no contexto da fome.

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Grandes períodos de fome e escassez alimentar na história da

humanidade se designa como sequela de injustiças e vulnerabilidades sociais –

miséria, guerras, marginalização − que atinge centenas de milhares de pessoas

no mundo. Não seria demais imaginar o alcance desses fenômenos no centro

das discussões políticas, nas agendas científicas e em numerosos estudos

acadêmicos. Discorrer sobre essa temática envolve a percepção de angústia ou

preocupação diante da incerteza de uma alimentação irregular (em termos de

qualidade e quantidade) até sua total privação14. Corpos famintos que tantas

vezes não come nem a metade do necessário. E são milhares em escala

planetária.

A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO)

em seu relatório anual (2017) alertou que após uma década em constante

declínio, a fome no mundo está novamente em ascensão, no ano de 2016, afetou

815 milhões de pessoas que correspondem a 11% da população global15. No

Brasil foi possível identificar que 14,7 milhões de brasileiros passam por alguma

restrição ou privação alimentar devido à falta de recursos para adquirir alimentos,

sendo o Nordeste a região mais afetada (38,1%) segundo os dados do

levantamento suplementar da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

(PNAD)16.

Este quadro tem direcionado historicamente o reconhecimento da

alimentação adequada como direito humano na ótica da Segurança Alimentar e

Nutricional (SAN), ocupando de forma progressiva a agenda pública em um

processo de construção participativa de saberes e ações, com impactos

expressos sob a estrutura político-institucional de diversos setores

14 DIAS, Eliotério Fachin. A Fome, a pobreza e o Direito Humano à alimentação adequada. Revista Jurídica UNIGRAN. Dourados, MS, v. 11, n. 2, 2009.

15 FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS (FAO). The State of Food Security and Nutrition in the World: Building resilience for peace and food security, Rome. 2017.

16 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD - 2013. Segurança alimentar. Rio de Janeiro/RJ, 2014.

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governamentais e da sociedade civil17,18. No Brasil, a conceituação da SAN foi

desenvolvida considerando, como objetivo estratégico e permanente, sua

subordinação às políticas públicas aos princípios da Soberania Alimentar, sob

uma ótica multidimensional e integradora, estando diretamente relacionada à

luta pelo direito humano à alimentação. Nesses termos entende-se o conceito de

SAN como a “realização do direito humano a alimentação, e a garantia do acesso

regular e permanente a uma alimentação saudável, de qualidade e quantidade

suficiente, e que não comprometa o acesso a outras necessidades essenciais”

19.

Entretanto, ao tomar posse em 2019, o atual presidente da república Jair

Messias Bolsonaro (2019 – 2022), tornou pública a decisão de extinguir, por meio

da Medida Provisória 870, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e

Nutricional (Consea), principal órgão de participação democrática na construção

de propostas e diretrizes da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar

e Nutricional20. Em nota sobre a medida, a Associação Brasileira de Saúde

Coletiva (Abrasco) afirma que com a extinção do conselho “fica automaticamente

fechado o principal canal de diálogo, compartilhamento de experiências e

vocalização de demandas concretas relacionadas ao tema” e enfatiza que “foi a

partir do CONSEA que o Estado brasileiro reconheceu a responsabilidade de

17 BRASIL. Lei de Segurança Alimentar e Nutricional: conceitos, lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Brasília, DF: [s.n.]; 2006.

18 BRASIL. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Construção do Sistema e da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional: a experiência brasileira. Brasília: CONSEA, 2009.

19 BRASIL. Lei de Segurança Alimentar e Nutricional: conceitos, lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Brasília, DF: [s.n.]; 2006, p. 1.

20 A MP 870 revogou todos os artigos da lei relacionados às competências do Consea, bom como os artigos que estabelecem a sua composição. A medida provisória retirou do Consea a prerrogativa de convocar a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional e de definir os parâmetros “de composição, organização e funcionamento” do grupo. Pela redação antiga da lei, cabia ao Consea propor, em cima das deliberações da conferência, as diretrizes e prioridades do plano nacional de segurança alimentar e nutricional. Também foi revogado o trecho da legislação que deixava com o Consea a tarefa de articular, acompanhar e monitorar a implementação do plano nacional. O presidente ainda revogou trecho da lei com os critérios de composição do Consea, com um terço de representantes do governo e dois terços de representantes da sociedade civil.

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enfrentar as causas da fome e organizar um marco político legal para a garantia

do direito humano à alimentação adequada” 21.

Por este cenário, encaramos esta pesquisa como uma possibilidade

analítica que colabore com o contexto do atual sistema político alimentar inserido

no princípio da democratização alimentar, visando um cenário em que os

cidadãos têm conhecimento e se envolvem ativamente com as questões que

perpassam o espaço onde se inserem. É a partir dessa compreensão que

pontuamos as guias que foram construídas para a literatura famélica em O

Quinze. Assim, (1) estão elencados os elementos do espaço descritivo e

narrativo da obra e (2) relacionados com o regime da escassez. E por fim, (3) o

espaço narrativo da fome no romance.

21 Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Nota da Abrasco em defesa do direito humano à alimentação adequada! Não à extinção do Consea! ABRASCO, 2019. Disponível em https://www.abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2019/01/Nota-da-ABRASCO-em- rep%C3%BAdio-%C3%A0-extin%C3%A7%C3%A3o-do-CONSEA.pdf Acesso 23 jan 2019.

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A PESQUISA

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3 SISTEMATIZAÇÃO DO ESTUDO

3.1 APRSENTAÇÃO DO CORPUS

Compreender o significado que os acontecimentos e interações têm para

os indivíduos é uma tarefa apoiada por pesquisas qualitativas. Este trabalho de

ênfase interdisciplinar trata-se, portanto, de um estudo qualitativo do tipo

exploratório.

Aqui foi utilizado a 107ª edição do livro, publicada em 2017 pela editora

José Olympio. Na trama de 26 capítulos magros e ligeiros encontra-se um total

de 141 páginas. A autora situa a história do romance no Ceará a partir de um

fato histórico importante da época: a seca de 1915, uma das estiagens que mais

marcaram o sofrimento do sertanejo nordestino, e que dá origem ao título do

livro. A trama centra duas narrativas.

3.2 SISTEMATIZAÇÃO DOS DADOS

Inicialmente foram tecidas três leituras flutuantes da obra integral com o

objetivo de reconhecimento do corpus e tratamento dos dados, à medida em que

as leituras aconteciam grifos em cores diferentes eram feitos com o intuito de

selecionar informações para alimentar o espaço narrativo de acordo com a

proposta de Sheila Hones (ver apêndice I). Em seguida, uma matriz foi

arquitetada, a priori, compondo as três dimensões do espaço narrativo proposto

por Sheila Hones, as quais foram nomeadas de espacialidades narrativas22. A

primeira diz respeito ao contexto de produção da obra, o objetivo é reconstruir

o quadro em que ele instala o projeto de literatura apresentado pela autora. A

segunda corresponde ao espaço ficcional, este, envolve a configuração

espacial do que é desvelado na obra em si e suas relações com o objeto de

interesse na pesquisa: a alimentação. Para essa tarefa foi usado a ideia de

espaço social alimentar (imagem 5) de Jean-Pierre Poulain e Rossana Proença

que corresponde “as inter-relações entre um grupamento humano e o seu meio

que, encontra na alimentação um campo de aplicação particularmente fecundo”.

Nele destacam-se seis dimensões principais que focalizam espaços e sistemas

22 HONES, S. Literary geography. In: RICHARDSON, D. et al. The encyclopedia of

geography. New Jersey: John Wiley & Sons, 2017.

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diversos: o comestível, a produção alimentar, o culinário, os hábitos de consumo

alimentar, a temporalidade e as diferenciações sociais. As ações privilegiadas

aqui se confundem com a sinopse da obra e os objetos enfatizados são aqueles

que se aproximam da materialidade ambiental do espaço. E por último os

sentidos do leitor dizem respeito a uma concepção que ultrapassa sentidos de

um leitor passivo, que apenas interpreta o que o autor quis dizer. No nosso caso,

este sentido são as leituras que a obra em análise nos permite fazer sobre

alimentação. Precisamente nos pontos em que essas leituras nos levam a

reflexões que giram em torno da Segurança alimentar e nutricional e dos

princípios que a orientam, o direito humano à alimentação e a soberania

alimentar, conforme já pensado por Medeiros (2014)23.

Um dos argumentos desse modelo é o espaço narrativo não como coisa,

mas como um evento geográfico de colaboração dinâmica. Um processo de

reflexão de “com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou não

passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia”24.

Esta é uma abordagem que compreende a escrita literária como eventos em

algum lugar e em algum momento específicos e criam interrelações complexas

na criação do autor e sua interpretação pelos leitores. Embora uma diversidade

de teóricos literários aceite que os leitores são essenciais para completar um

texto, o romance como um evento revela a contingência espacial e temporária

(e instabilidade) de interpretações leitoras. Os eventos estão situados de

maneiras particulares — formas que provavelmente não serão repetidas — o

que nos ajuda a entender que cada leitura de um romance, cada performance,

provavelmente será diferente da anterior, mesmo para o mesmo leitor25.

23 MEDEIROS, Michelle. Marcel Proust para além das madeleines. Uma culinária indócil.

2014. 252f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, Natal, 2014.

24 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 01. São

Paulo: Ed. 34, p. 96, 1995. p. 12.

25 HONES, S. Literary geography: setting and narrative Space. Social and; Cultural Geography, v.12, n.7, 2011, p. 685-699.

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Quadro 3. Dimensões do espaço narrativo da obra

CONTEXTO DE PRODUÇÃO

1930. Fortaleza/CE. Romance que mostra a luta do povo

nordestino contra a seca e a miséria. Demonstrando

preocupação com questões sociais e hábeis na análise

psicológica de seus personagens, destaca‐se no

desenvolvimento do romance nordestino. O título faz referência

à grande seca de 1915.

ESPAÇO FICCIONAL

A trama centra duas narrativas. De início, entremeados pela

seca e falta de recursos para sobrevivência (1) a saga de Chico

Bento e sua família pelas terras cearense é o principal fio

condutor da ficção. Ele, sua esposa Cordulina, a cunhada

apelidada de Mocinha e cinco filhos partem do Logradouro a

caminho de Fortaleza para de lá seguir até o Amazonas. É

desse núcleo que vêm as cenas mais impactantes de toda a

obra: fome, miséria, desalento e morte são palavras-chave que

decodificam o enredo. Por outro lado, (2) a relação infrutuosa

de Vicente e Conceição sustenta outra narrativa. Vicente tenta

enfrentar a seca e manter os animais vivos até a chegada das

primeiras chuvas. Ele e Conceição vivem um caso de amor,

apenas idealizado, pois há uma barreira intelectual e social

impede que o namoro se concretize. Ela é a moça que não se

contentou esperar pelos dias de São José. Ele vive seu ofício

de vaqueiro: prioriza o trabalho na fazenda acima de todas as

outras coisas. Seguem todos a desolação da seca, onde

nenhuma natureza prospera, nem paixão floresce. A pungência

literária não nega características psicológicas. O leitor imerge

sobre os pensamentos e sentimentos dos personagens. A

análise exterior que compõe a obra é possível, mas a autora

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vai soltando uma característica aqui, outra além, sem

interromper a narrativa para pormenores.

SENTIDOS DO LEITOR

É notória a crítica social a qual a autora encaminha para o leitor:

a fome como produto de injustiças sociais, e que não atinge do

mesmo modo a todos: há explicitamente uma diferenciação de

classes que desponta, sobretudo, com desolação das

contrariedades naturais e políticas (próprias do contexto

histórico). É possível ainda identificar uma abertura para a

discussão da (in)segurança alimentar e nutricional, visto que,

esta, não se dissocia da fome e miséria.

ESPAÇO

NARRATIVO

O espaço narrativo faz clara referência ao sertão e todas as

suas mazelas políticas, sociais e históricas. A fome e a seca

são temas recorrentes neste espaço narrativo. Ambas

acompanhadas de: movimentos migratórios,

fanatismo religioso, que trazem elementos do contexto de

produção das obras e do espaço ficcional trazido pela autora.

FONTE: dados da pesquisa

Após essa etapa, a matriz inicial foi remodelada, agora, com a inserção

das dimensões do espaço social alimentar junto as espacialidades narrativas.

Para esse processo mais três leituras sucessivas foram empreendidas com o fim

de preencher a matriz. Em cada leitura eram destacados por cor fragmentos que

pudessem servir para delinear o espaço social alimentar (cada cor correspondeu

a uma dimensão específica – verde, rosa, amarela, azul e laranja – ver anexo 1)

bem como os câmbios que a obra deixava entrever. Em seguida, os fragmentos

foram sendo lançados na matriz. A seguir, um exemplo que ilustra um fragmento

deste compilado.

As dimensões do espaço social alimentar delimitadas por Jean-Peirre

Poulain e Rossana Proença (2003) são:

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O espaço do comestível: corresponde as múltiplas substâncias naturais

- minerais, vegetais e animais, as quais podem, potencialmente, servir de

alimento e são colocadas pela natureza à disposição dos homens.

O sistema alimentar: A segunda dimensão corresponde ao conjunto de

estruturas tecnológicas e sociais empregadas desde a coleta até a preparação

culinária, passando por todas as etapas de produção e de transformação. Ela

constitui o sistema de ação que permite a um alimento chegar ao consumidor.

O espaço do culinário: três características englobam esta dimensão. O

culinário no sentido geográfico do termo, ou seja, o espaço físico de distribuição,

preparação e posição da cozinha. O senso social, o qual representa a repartição

sexual e social das atividades de cozinha, e por fim, no sentido lógico do termo,

englobando relações formais e estruturadas.

O espaço dos hábitos de consumo: envolve o conjunto de rituais que

rodeiam o ato alimentar no seu sentido estrito.

A temporalidade alimentar: é um ritmo cotidiano, suas alternâncias de

tempos de cada refeição e as diferenças das comidas.

O espaço de diferenciação social: marca as fronteiras identidade entre

os grupos humanos de uma cultura e de outra, mas também no interior de uma

mesma cultura, entre os membros que a constituem.

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Imagem 4 – O espaço social alimentar. FONTE: Poulain e Proença (2003)

Com os dados organizados de acordo com as categorias elaboradas,

foram dadas significâncias aos dados com objetivo de extrair o destaque das

informações obtidas. Esse momento foi essencial para produzir sínteses a fim

de responder à questão inicial levantada nesta investigação.

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RACHEL DE QUEIROZ

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1 GUIAS PARA PENSAR A LITERATURA FAMÉLICA

No texto O algodão da terra a escritora Elvira Bezerra pontua três

questões essenciais que iluminaram a construção literária de Rachel de Queiroz.

Dentre eles, o que há de mais genuíno são suas experiências de vida e andanças

pelo sertão cearense, que tão íntimos, ecoam em suas obras. Em verdade, O

quinze não se traduz como autobiografia ou diário pessoal da escritora, mas

guarda sentimentos profundos que vai além de descrições narrativas e mantém

o viço de uma verdadeira arte sobre os movimentos da história. Esse processo

mais amplo se exprime na novidade formal do romance, cuja construção literária

abarca a dimensão problemática da experiência a que ele dá forma.

A literatura nesse papel, como afirma Alex Galeno (2014) “é fornecedora

de imagens que dizem sobre nossa ação diante do mundo”26. E o autor, como

intérprete social, encaminha valiosas percepções que a ciência habitualmente

posterga a segundo plano. Logo, antes de apresentar Rachel de Queiroz, surge

uma questão de plano teórico: o que justifica uma análise sobre fome a partir de

sua obra?

3.1 CIÊNCIA E LITERATURA

A obra literária regionalista tem sido definida, de acordo com Ligia

Chiappini, como “qualquer livro que, intencionalmente ou não, traduza

peculiaridades locais”, e que forma uma estética espacial. Decerto, toda obra

literária seria regionalista, enquanto, com maiores ou menores mediações, de

modo mais ou menos explícito ou mais ou menos mascarado, expressa seu

momento e lugar e que pode ser apreendida como objeto de estudo27.

No campo das ciências humanas é possível observar o interesse de

acadêmicos sobre estudos das relações sociais e o espaço. Edward Soja

fundamenta sua crítica de Geografias Pós-modernas à medida que elenca os

26 GALENO, Alex. Comunicação, crueldade e compreensão. In: GALENO, A. FRANÇA, F. AZEVEDO, G. Ensaios indisciplinados: comunicação, cultura e arte. EDUFRN: Natal. 2014, p. 261.

27 CHIAPPINI, Ligia. Do beco ao belo: Dez teses sobre o regionalismo na literatura. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 15, 1995, p. 153-159.

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contributos de Henri Lefebvre, Michel Foucault, John Berger, Ernest Mandel e

Anthony Giddens. Nota-se o debate sobre a importância da espacialidade na

teoria e na prática social — o que torna visível o espaço como a (re)produção da

sociedade. Um fenômeno inerente que se pode incluir a essa discussão é

alimentação: tema que foi explorado por Vidal de La blache (1954) em seu

clássico Princípios de Geografia Humana. O autor estabelece que entre as forças

mais significativas que ligam o homem a um determinado espaço é o alimento28.

Em verdade, grande parte dos problemas alimentares enfrentados pela

Saúde Coletiva têm profundas conexões com o cotidiano das pessoas e o lugar

onde elas habitam. O processo de territorialização emerge como instrumento

profícuo para localizar eventos e entender os contextos de uso do território em

todos os níveis das atividades humanas (econômicos, sociais, culturais,

políticos), viabilizando estas como categoria de análise social a atenção integral

em saúde, que considera o homem em sua dimensão biopsicossocial, por

conseguinte, a dimensão alimentar29. Logo, o construto dessas dimensões

supracitadas faz com que diversos sistemas alimentares sejam produzidos. Isto

porque, na constituição desses sistemas, intervêm fatores de ordem ecológica,

histórica, cultural, social e econômica que implicam representações e

imaginários sociais envolvendo escolhas e classificações, que variam em cada

território disposto. Suas inúmeras facetas se ordenam em dois grandes

universos, pelo menos. O primeiro se estende do biológico ao cultural, da função

nutritiva à função simbólica. O segundo, do indivíduo ao coletivo, do psicológico

ao social. O homem biológico e o homem social, a fisiologia e o imaginário, estão

próximos e mesclados no ato alimentar30.

Edificar um instrumento metodológico com fins de estudo para um

fenômeno (espaço e alimentação) multidimensional, complexo e com múltiplos

28 VIDAL DE LA BLACHE, Paul. Princípios de Geografia Humana. Lisboa, Edições Cosmos,

1954.

29 GONDIM, Grácia; MOKEN, Maurício. Territorialização em saúde. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Dicionário da Educação Profissional em Saúde. Brasília: MS, 2009. Disponível em: <http://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/tersau.html>. Acesso em: 12 set. 2018.

30 FISCHLER, C. El (h)omnívoro: el gusto, la cocina y el cuerpo. Editorial Anagrama, Barcelona, 1995.

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acessos demanda a construção de um referencial epistemológico que abarque

estes pressupostos. A ideia de espaço social alimentar proposta por Poulain e

Proença (2003) constitui “um objeto sociológico total no sentido Maussiniano do

termo quer dizer que coloca em movimento ... a totalidade da sociedade e de

suas instituiç es”. Esta ferramenta funciona como uma possibilidade que

assinala a conexão bioantropológica do estudo de fen menos alimentares

deriva do conceito de espaço social de George Condôminas que busca

“compreender as interrelaç es entre um grupamento humano e o seu meio, e

encontra na alimentação um campo de aplicação particularmente fecundo”31.

Tratando-se da fome, a conexão entre o homem e o seu meio, ou seja,

seu espaço, é princípio elementar para compreender o fenômeno. No Brasil,

Josué de Castro em seu estudo pioneiro intitulado Geografia da Fome (1946)

baseou-se nos princípios estabelecidos por Vidal de La Blache e outros

geógrafos como Carl Ritter (1779-1859) e Alexander Von Humboldt (1769-1859)

para “localizar com precisão, delimitar e correlacionar os fen menos naturais e

culturais que ocorrem à superfície da terra”. O resultado apresentado foi uma

representação cartográfica em cinco áreas alimentares e as principais carências

nutricionais existentes no país: a área Amazônica, o Nordeste açucareiro, o

Sertão Nordestino, o Centro-Oeste e o Extremo-Sul32.

Outra apresentação, pouco mais ambiciosa em termos de território,

provém do Martín Caparrós e sua obra A fome publicada em 2016. Entremeado

na Índia, Bangladesh, Sudão do Sul, Estados Unidos, Argentina, Madagascar e

Nigéria o autor apresenta disposições causais de como a fome se expressa em

cada uma das regiões a as influências condicionantes do espaço político, social,

cultural e econômico.

Acredita-se que discutir eventos acerca da alimentação, sobretudo da

fome, é uma tarefa que pode ser apoia através das produções literárias como

31 POULAIN, Jean-Pierre; PROENCA, Rossana Pacheco da Costa. O espaço social alimentar:

um instrumento para o estudo dos modelos alimentares. Rev. Nutr. [online]. 2003, vol.16, n.3,

pp. 245-256.

32 Castro J. Geografia da fome (o dilema brasileiro: pão ou aço). 10a Ed. Rio de Janeiro: Antares Achiamé; 1980, p. 34-35.

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fonte de acesso àquele espaço. Pois, as obras de arte, como nos lembra Edgar

Morin, guardam reflexões sobre o humano e abriga um cosmo de possibilidades

transcendentais. Pois, para além de uma estética da representação, pautada sob

os direcionamentos de uma mimesis, a arte é criação do novo, poiesis33 34. A

geografia literária enquanto campo do conhecimento reflete essa potência

criativa.

O conhecimento de uma poética social revela possibilidades para a

compreensão da sociedade e seus espaços. É dessa forma que Walter Benjamin

percebe a obra de Baudelaire. Com sua grande sensibilidade perceptiva, ele viu

nessa obra uma fonte primacial, complexa, para compreender a relação entre

homem e o lugar em que habita35. O espaço literário surge como categoria de

análise. Nesse sentido, é considerado como uma metáfora central e topos na

literatura, e a crítica literária pondera o espaço como uma nova ferramenta e

participação. Da mesma forma, a literatura revela-se como um campo ideal para

estudos das Ciências Humanas36.

A ideia de representar os espaços literários não é recente. Um estudo que

remonta historicamente o campo, mostra que há mais de um século

pesquisadores tentam empreender esta tarefa, sobretudo, por meio da

construção cartográfica. Um representante que talvez tenha feito isso em

primeira instância e de forma mais sistematizada foi Franco Moretti, que tenta,

em Atlas do romance europeu 1800-1900 (1997)37, ler fenômenos culturais,

33 MORIN, Edgar. A Cabeça Bem-feita: Repensar a Reforma, Reformar o Pensamento.

Tradução de Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

34 MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1999.

35 BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire – Um autor lírico na época do Alto Capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1988. (Obras Escolhidas, v. 3).

36 PERALDO, Emannuelle. Literature and Geography: The Writing of Space throughout History. Cambridge Scholars Publishing; 1 ed. 2016.

37 Moretti discute tanto a distribuição das formas literárias no espaço geográfico quanto o efeito do espaço na literatura. No primeiro capítulo, Jane Austen e Sir Walter Scott são os temas de sua investigação sobre a ligação entre o enredo de um romance e os locais onde a história se passa - o campo, a fronteira e as colônias. O segundo capítulo diz respeito a uma comparação da Paris de Balzac com a Londres de Dickens, enquanto a terceira é dedicada a uma investigação sociológica sobre a dispersão de gêneros em toda a Europa. Moretti está convencido de que a geografia determina a forma literária. Sem um certo tipo de espaço, um certo tipo de história é simplesmente impossível. A geografia é o espaço informacional que

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descritos nas obras literárias do século XIX, sob o apoio de mapas e diagramas.

O ensejo deste autor localiza-se em uma década, anos 90’s, onde a abordagem

do espaço começa tomar o lugar de um dos conceitos primordiais de análise nas

Ciências Humanas: o de temporalidade. Sobre essa abordagem, Pierre

Monbeig, apontou a necessidade de a Geografia trazer para seu escopo leituras

não-técnicas com a finalidade de expressar seus conteúdos de forma mais

vívida, mais humana. Leituras como as de literatura, que tão bem descrevem o

espaço vital, poderiam ser auxiliares neste intento38 39.

No entanto, a geografia literária ultrapassou simplesmente a combinação

das duas disciplinas para aprender umas com as outras. No passado, havia um

foco nas maneiras pelas quais as configurações descritas em um romance

ajudam a conectar esse espaço com localizações físicas no mundo. Este ainda

é um bom ponto de partida para estudar as muitas facetas da geografia literária,

todavia, mais recentemente uma abordagem interdisciplinar tem sido vista como

mais útil e melhor representante de como essas tradições acadêmicas trabalham

juntas para forjar novos conhecimentos. Novos estudos no campo da geografia

literária precisam demonstrar mais do que apenas a “análise literária de temas

geográficos ou a análise geográfica de textos literários”. Há menos preocupação

com a precisão de um cenário específico e mais investigação sobre a geografia

do próprio texto e o que nós, como leitores, podemos aprender com isso40.

O uso de passagens literárias descritivas como dado de análise foi sendo

modificado por um crescente destaque humanístico. Inicialmente o enfoque que

estrutura a narração e programa as possibilidades da trama. A título de exemplo, em seus mapas, Moretti mostra que a estrutura dos romances de Dickens está ligada à estrutura geográfica (e social) de Londres. A Paris de Balzac (com suas margens esquerda e direita do Sena) programa outros anseios e planos do que a Londres socialmente estratificada de Dickens, ou a fronteira nos romances de Scott.

38 PIATTI, Barbara; REUSCHEL, Anne-Kathrin; HURNI, Lorenz. Literary Geography–or How

Cartographers Open up a New Dimension for Literary Studies. In: INTERNATIONAL

CARTOGRAPHY CONFERENCE, 24, 2009, Santiago de Chile. Disponível em:

<&lt;http://icaci.org/files/documents/ICC_proceedings/ICC2009/html/nonref/24_1.pdf&gt;>.

Acesso em: 31 jul. 2018.

39 MONBEIG, Pierre. Novos estudos da Geografia Humana brasileira. São Paulo: Difusão

européia do livro, 1957.

40 HONES, S. Literary geography. In: RICHARDSON, D. et al. The encyclopedia of geography. New Jersey: John Wiley &amp; Sons, 2017, p. 8.

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se encontrava nos recortes geográficos passou a entender o papel da narrativa

literária como um evento espacial próprio que conta com a interação de múltiplos

agentes; assim como propõe Sheila Hones (2017), a autora diz que a geografia

apresentada em um romance é entendida como resultante das relações entre o

escritor, o texto e o leitor. Nesse sentido, a geografia é uma co-construção

edificada pelo o autor e o leitor, com o texto também escrevendo parte da

geografia contida nele. Pois de fato, não existe uma compreensão única do corpo

literário dispostas de leitores ou obras genéricos, o que existe são potenciais de

criatividade moldados por eles. Saunders (2010) observa que “se quisermos

obter uma compreensão mais completa do evento espacial do texto, precisamos

entender as outras interseções a partir das quais ele é composto; aqueles que

ocorrem no processo de criação do trabalho e não apenas o seu consumo”41.

Essa guia transdisciplinar foi usada por Hones em suas análises literárias:

a autora tomou o espaço narrativo no romance Let the Great World Spin (2009),

de Colum McCann. Ela indica que esta é uma tentativa de conectar teoria e

método em estudos literários com teoria e método em geografia cultural. Seu

trabalho propõe uma combinação de espaço geográfico e literário e rejeita a ideia

de que o espaço dentro de um romance é simplesmente contido dentro do

cenário. O romance foi usado como um estudo de caso para testar possíveis

práticas dentro da geografia literária — esta pesquisa não foi projetada para ser

uma crítica do romance. Hones observa que o livro oferece apenas uma

abordagem do “amplo espectro do trabalho” que está sendo feito em geografia

literária e questiona como o futuro da disciplina pode parecer, à medida que

acadêmicos de estudos literários continuam adicionando discussão complexa.

A partir das dimensões do espaço narrativo proposto por Sheila Hones é

que o romance de Rachel de Queiroz foi aqui analisado, para esse trabalho, três

pontos elementares versa a literatura famélica em sua obra. São eles:

Primeiro: A trama de Rachel é encarnada pela seca, fator de um

determinismo da natureza impiedosa, uma expressão objetiva dos infortúnios

sociais para aqueles que não tinham melhores condições de sobrevivência nos

41 SAUNDERS, A. Literary geography: reforging the connections. Progress in Human Geography, v. 34, n. 4, 2010, p. 1-17.

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períodos prolongados de estiagem, sendo forçados a migrarem. A partir das

dimensões apresentadas por Hones é possível traçar uma análise da fome que

foge a imagem naturalizada da seca, neste caso há, o envolvimento político-

social revelado pelo contexto de produção. A voz da autora como militante

política de esquerda expressava o ensejo de uma transformação anunciada na

obra. Pode-se considerar que a sua utopia era um ordenamento da natureza e

que, portanto, a ordem social deveria estar mais de acordo com a “natureza

humana”, a autora

trabalha com uma imagem idealizada do homem do sertão nordestino, o mito do sertanejo, ao mesmo tempo em que fala de ação e valentia, fala de reação ao urbano, às modificações tecnológicas, fazendo da denúncia das transformações sociais, trazidas pelo capitalismo e sua ética mercantil, o ponto de partida para a utopia de uma sociedade nova que, no entanto, resgatasse a pureza, os vínculos comunitários e paternalistas da sociedade tradicional. O seu socialismo se aproxima mais de uma visão paternalista de fundo cristão e exprime a revolta de uma filha de famílias tradicionais da região, que vê a vida dos seus degradada pelo avanço das relações mercantis e pelo predomínio das cidades. Seus personagens são subversivos à medida que contestam a ordem capitalista, mas a sua visão de sociedade futura mistura-se com uma enorme saudade de um sertão onde existia “liberdade”, “pureza”, “sinceridade”, “autenticidade”. Seus personagens se debatem mais contra o social do que pela mudança social. São seres sempre em busca desta verdade irredutível do homem contra as “mentiras” e o “artifício” do mundo moderno42.

Segundo: o espaço social alimentar engajado às dimensões narrativas

do romance constitui uma ferramenta de análise que ultrapassa a compreensão

alimentar por apenas a coleta de dados contidos na obra, e parte para o fomento

de resquícios históricos imbricados no contexto de sua produção sob o olhar da

autora. Ainda é possível inserir o trabalho do leitor (pesquisador) como voz ativa

de relação com o objeto de estudo e o tempo atual.

Terceiro: estudos que tomam obras literárias como corpus ganham um

campo cada vez mais dinâmico de abertura para uma abordagem

transdisciplinar. Ao aproximar eixos múltiplos de conhecimento há diversas

contribuições sobre os princípios de sua prática cientifica, desde a observação e

42 ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 4ª ed. Recife: FJN; Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2009, p. 142.

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descrição do lugar ao desenvolvimento de novas concepções e abordagens

subjetivas nas relações sociais. A literatura como expressão artística cumpre o

papel disseminador do conhecimento humanístico, do ato de criação e da

produção artística. Como foi visto, a literatura pode viabilizar a produção de

estudos científicos por uma ótica que rompe com o pragmatismo dos estudos

cartesianamente biomédicos para o fenômeno alimentar. Assim, encontra-se no

diálogo da literatura com o tema da fome, uma maneira de despertar no mundo

inquietações do imaginário, (re)pensando sobre como compreender os aspectos

singulares daqueles que têm fome.

2.2 A FILHA DA CAATINGA: RACHEL DE QUEIROZ

Requer na tentativa de construir vida e obra de Rachel de Queiroz

atravessar suas geografias literárias e também de vida. Professora de formação,

escritora por experiência, Rachel viveu grande parte da juventude numa casa de

alpendre e arquitetura franciscana entre os grandes clássicos da literatura

francesa e russa. Lugar modesto, mas intelectualmente primoroso. O gosto pelo

ofício da escrita demonstra ser de família, a jovem parente do também escritor

José de Alencar quando questionada como poderia ser apresentada responde:

“Bem, eu também sou filha da caatinga. Do sertão central do Quixadá, semeado

pelos altos serrotes de granito, no meio dos quais a cidade se aninha” 43.

Os movimentos desse sertão ressequido, a natureza morta e o desalento

dos que caminham por essas paisagens são codinomes para uma das maiores

obras da literatura regionalista (e por que não nacional?). Para aqueles que

nunca viajaram entre as páginas de O Quinze reconhecem-no quando escutam

falar sobre o cenário e os personagens que deram origem a obra. A responsável

pelo feito apresentou-se inicialmente pela imagem abscôndita de Rita de Queluz.

Mas, não demorou muito para revelar-se verdadeiramente: chama-se Rachel

Franklin de Queiroz, filha do juiz de Direito e fazendeiro Daniel de Queiroz e

Clotilde Franklin de Queiroz.

Nasceu no dia 17 de novembro de 1910 em Fortaleza estado do Ceará,

mais precisamente na casa número 86 (hoje 814) da rua Senador Pompeu.

43 QUEIROZ, Rachel de. As terras ásperas. In: . As terras ásperas. 2ªed. São Paulo: Siciliano, 1993, p. 202.

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Lugar sem memórias para menina que logo aos 45 dias de nascida foi levada

para as terras da família na fazenda do Junco, em Quixadá, sertão do estado44.

Residiu por lá até os três anos de idade, quando retornou a Fortaleza devido a

promoção de emprego ao seu pai Daniel. Na capital, nomeado promotor, pouco

exerceu a profissão, logo decidiu deixar o cargo e dirigiu-se até o Governador

com a carta de demissão em mãos. Abandonou a carreira jurídica para exercer

o seu real ofício: professor de Geografia lecionando no Liceu do Ceará até o ano

191545.

Tempo depois, de volta à Fortaleza e ainda no mesmo bairro, após uma

breve estada nas cidades do Rio de Janeiro e de Belém, Rachel “[...] tinha

loucura pra frequentar uma escola e ninguém deixava. Já estava com oito anos

e nunca entrara numa sala de aula”. Isso porque sua família era pouco devotada

tanto à educação formal quanto à educação religiosa. Tal situação só foi atendida

quando Rachel passou a frequentar a escola de Dona Maria José a pedido de

sua mãe, Clotilde. Mais tardiamente somente aos dez anos de idade conseguiu

matrícula no Colégio da Imaculada Conceição por insistência de sua avó

paterna, que não se conformava de a neta ainda não ter recebido uma educação

religiosa46.

Na vida estudantil Rachel trouxe à tona preciosos interesses de geografia

e história, mas era um fiasco quando tinha que revelar o que sabia de

matemática, gramática, ciências e catecismo, diz ela que:

[...] não sabia tabuada, nem conta de multiplicar, quanto mais dividir e frações! Não sabia catecismo, nem ci ncias, não distinguia um advérbio de um adjetivo, só conjugava verbos “de ouvido”, não tinha a menor noção do que fosse análise gramatical, pior ainda, análise lógica.

44 FANINI, M. As mulheres e a academia brasileira de letras. História, v. 29(1), 2010. p.345-367.

45 ACIOLI, Socorro. Rachel de Queiroz. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2007.

46 QUEIROZ, Rachel de; QUEIROZ, Maria L. de. Tantos anos. 3ªed. São Paulo: Siciliano, 1998, p. 17.

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Mesmo assim, com um esforço aqui e um empurrão acolá da irmã Apolline

que muito ajudara, em 1925, aos quinze anos de idade, Rachel saía com o

diploma de professora primária, normalista47. Após a graça de sua formação,

passados dois, em 1927, Daniel, seu pai, comprou o sítio do Pici – nome

proveniente de um riacho que ainda existe no perímetro do sítio (hoje uma casa

com amplo quintal) e cujo nome era grafado Picy “Tinha açude, pomar, baixio

de cana, num vale fresco e ventilado, para os lados da lagoa de Parangaba. Só

que nesse tempo se dizia Porangaba, tal como fala José de Alencar em

Iracema”48.

Decorrente da proximidade do sítio de Fortaleza, Rachel começou a

frequentar a roda dos literatos da cidade, liderada por Antônio Sales (romancista

e poeta cearense), sendo ela a única mulher que frequentava os cafés da Praça

do Ferreira, o que para sociedade da época era um estrondoso escândalo. Ainda

em 1927, Rachel se iniciava na literatura escrevendo as primeiras crônicas no

jornal O Ceará, ofício que conseguiu quando, com o pseudônimo de Rita de

Queluz, publicou uma carta satirizando o concurso “Rainha dos Estudantes” –

concurso o qual, ironicamente, ganhou três anos depois, quando professora

substituta de História no Colégio da Imaculada Conceição. Rachel, portanto, foi

jornalista antes mesmo de ser romancista, profissão que fazia questão de

reivindicar e que influenciou sobremaneira seus romances, no que a própria

escritora evidencia “Os meus romances é que foram maneiras de eu exercitar

meu ofício, o jornalismo”49.

47 Em 1965 o Colégio da Imaculada Conceição completou cem anos. Para celebrar o feito seus dirigentes organizaram um livro, Colégio da Imaculada Conceição: do Gênese ao Apocalipse, nesse ínterim, Rachel era uma escritora consagrada e, como uma ilustre ex-aluna, escreveu sobre os espaços, as pessoas e os instantes que marcaram sua vida naquele local que ela carinhosamente chamava de Santa Gaiola. No capítulo denominado Livro de Rachel, em alusão aos livros que compõem a Bíblia Sagrada escreveu: Nossa Santa Gaiola, agora centenária. Tentei captá-lo num livro [As Três Marias], mas não consegui. Como lhe apanhar a essência íntima, aquele perfume de convento e jardim, de mocidade e clausura, de arrebatamento e misticismo? Lá nos moldaram a alma. Por mais que o mundo, depois, nos batesse e arrastasse, nos seduzisse e açoitasse – o velho molde ficou, irredutível. É uma espécie de irmandade que nos identifica a todas e que reconhecemos imediatamente, seja qual for o tempo e a distância, como um sinal maçônico (p. 163).

48 QUEIROZ, Rachel de; QUEIROZ, Maria L. de. Tantos anos. 3ªed. São Paulo: Siciliano, 1998, p. 77.

49 FANINI, M. As mulheres e a academia brasileira de letras. História, v. 29(1), 2010. p.345- 367.

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Foi a aparição nos jornais que autografou sua bravura como escritora. Do

ponto de vista estilístico, a iniciante é a mesma que se consagraria na crônica e

no romance. Àquela época, em seus dezesseis anos de idade, utilizou a

imprensa como ducto para expressar suas inquietações mais latentes: temas

sociais e políticos, que tratou sem rodeios, em linguagem corrente e objetiva. Em

segundo lugar, os três mil quilômetros que separavam Rachel de Queiroz de São

Paulo não lhe embaraçavam a consciência em relação ao momento literário que

se vivia no final da década de 1930, quando, no Sudeste, o movimento

modernista chegava ao final da primeira fase. Acompanhava tudo à gosto, que

graças a sua mãe, possuía em mãos revistas literárias brasileiras e estrangeiras.

Nesse município, havia várias fazendas da família Queiroz (Junco, Califórnia,

Arizona, Biscaia, Não Me Deixes, Manaus, Umari, entre outras), mas as

lembranças mais fortes de Rachel são conduzidas, especialmente, às

experiências que teve no Junco, Califórnia e Não Me Deixes. Junco e Não Me

Deixes são, ainda hoje, fazendas da família Queiroz e ficam a cerca de 20

quilômetros da sede do município de Quixadá. A família Queiroz era de uma elite

rural, cuja atividade econômica principal tinha base na lavoura e na pecuária.

Criavam gado e plantavam algodão, milho, feijão e mandioca, entre outras

culturas50.

50 FONTES, Lilian. ABC de Rachel de Queiroz. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012. 223p.

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Imagem 1 - (A casa velha do Junco é toda de taipa, com o madeirame de aroeira, o envaramento amarrado com tiras de couro cru. Tem quase duzentos anos de idade e ainda é a mesma, tirando um quarto a mais, um corredor a menos, faz pouca diferença de como a deixou o seu construtor e primeiro dono, o velho Miguel Francisco de Queiroz, nosso tio-bisavô. FONTE: http://familiaqueirozbarreira.blogspot.com/?zx=7edd661183fa902f.

Mesmo que sua educação formal tivesse tardado, o mesmo não

aconteceu com a formação literária. Já no início de sua adolescência via-se

Rachel vagueando pela casa com um exemplar de A cidade e as Serras de Eça

de Queiroz. Mas em seu íntimo o que arrojava seus pensamentos para escrita

era a geografia humana a qual experenciou (tão nítida em seu primeiro

romance). Apesar de ter nascido em Fortaleza, foi em Quixadá que Rachel

plantou definitivamente suas raízes afetivas. No junco Rachel, teve uma infância

recheada de histórias e aventuras, de experiências que alimentaram a sua

imaginação de escritora. Cantadores, danças, vaqueiros e vaquejadas, comidas

e bebidas típicas; todas essas peculiaridades faziam parte do cotidiano do pátio

da fazenda. Rachel também convivia com parentes e agregados, os mais

diversos que inspiraram mais tarde muitos dos personagens que apareceriam

em suas histórias51.

51 FONTES, Lilian. ABC de Rachel de Queiroz. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012. 223p.

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Califórnia era a fazenda da família comandada por Rachel Alves de Lima,

avó paterna da escritora. Fazenda com casa enorme, famosa por suas 85 portas.

De lá Rachel traz lembranças da cozinha de sua avó e de histórias em torno das

riquezas da fazenda. Do nome que batiza a fazenda. Rachel tinha a fazenda

Califórnia como o centro do seu mundo, pois era lá onde se reuniam, em torno

de sua avó paterna, filhos, genros, noras e netos. Na fazenda, passavam as

férias ao som de piano ou gramofone, de cavalgadas, novenas e namoros. Com

a morte de sua avó, aos poucos, a fazenda foi sendo esquecida. Logo

começaram a escavar a casa velha, atrás de botija de ouro com que alguém

tinha sonhado, ocasionando a derrubada do casarão de taipa. Hoje, vale lembrar,

o que era a fazenda tornou-se um dos distritos do município de Quixadá, o distrito

Califórnia52.

Ainda sobre as geografias de Rachel, Cavalcante (2016) diz que a

fazenda Não Me Deixes já possuía esse nome antes de Rachel deixá- la

conhecida mundo afora. Foi seu tio bisavô, que comprou a fazenda e colocou

um sobrinho para morar nela. Este sobrinho, que tinha o sonho da borracha no

Amazonas, acabou vendendo a fazenda e mudou- se para lá. Sabendo disso,

Miguel comprou a fazenda de volta do comprador. Oito anos se passaram e o

sobrinho voltou doente e sem dinheiro; Miguel, então, legou-lhe o mesmo

pedaço de terra, mas sob a condição de não mais sair de lá. A partir de então, a

fazenda passou a se chamar Não Me Deixes.

Ao iniciar a carreira, a dubiedade de sua forma de expressão vista pela

crítica, não a impediu de publicar nos jornais crônicas, folhetins e poesias. Optou

pela última para tratar dos temas que a moviam: a seca, o êxodo, a miséria, a

fome e figuras históricas da mitologia cearense. Agrupou dez poemas sob o título

de Mandacaru e redigiu um prefácio dirigindo-se aos literatos do Sul, oferecendo

o livro como contribuição ao projeto modernista. Diante disso, não é espantoso

imaginar que, aos vinte anos incompletos, publicou, em 1930, o hoje clássico

romance O Quinze, que tratamos nesse estudo.

Para escrever sua obra de estreia, Rachel usou uma vestimenta feita de

“algodão da terra”. Daí uma linguagem simples, disposta em 26 capítulos curtos,

52 ACIOLI, Socorro. Rachel de Queiroz. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2007. 135p.

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como se propositalmente, a autora os dispusesse em cenas numa galeria de

imagens. À publicação de O Quinze, fome, seca e miséria registram a

centralidade literária. A narrativa dividida entre o campo e a cidade possui como

elemento de ligação, a persistência do trabalho humano contra as situações

adversas impostas pela natureza. O que prevalece é a luta diante da monotonia

cinzenta da paisagem e a falta de recurso elementar para vida. Não se cuida

nesse enredo a preocupação de um requinte linguístico, nem alimentar. O que

importa para Chico Bento e sua família é matar a fome e encontrar meios, líticos

ou ilícitos, de salvar-se da miséria, adquirir dignidade e ajeitar-se na vida. Por

outro lado, os sentimentos abstratos de Conceição, jovem professora

empenhada num romance incerto com Vicente, fiel ao seu ofício de vaqueiro, é

um rapaz “alegre e dedicado, amigo do mato, do sertão, de tudo o que era inculto

e rude.”53

À primeira vista, Rachel dava prosseguimento à literatura da seca. Tema

caro para os românticos, alastrou-se na crônica jornalística e no movimento do

naturalismo. Decerto, o romance foi agraciado. A tiragem modesta de mil

exemplares com recursos financeiros próprios, recebeu críticas positivas de

vários intelectuais e confere à escritora o Prêmio da Fundação Graça Aranha,

consagrando-a como personalidade literária no país54. Em uma publicação no

Diário Nacional, Mario de Andrade faz menção a Raquel de Queiroz elucidando

que O Quinze “é mais que uma conversão da seca à realidade, é uma conversão

à humanidade”55.

Após essa lendária saga sertaneja outros romances foram tecidos pela

autora. Salientamos lançou ao público o seu segundo romance João Miguel e

posteriormente Caminhos de Pedra e As três Marias. Cronista emérita, publicou

mais de duas mil crônicas, cuja seleta propiciou a edição de outros livros, como:

A donzela e a Moura Torta, 100 crônicas escolhidas, O brasileiro perplexo e O

caçador de tatu. Neste emaranhado literário a fome não se traduz como sendo

53 QUEIROZ, Rachel de. O quinze. 107. Edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017. P. 16.

54 GASPAR, Lúcia. Rachel de Queiroz. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php>. Acesso em: 6 ago. 2018.

55 ANDRADE, Mario de. Táxi e crônicas no Diário Nacional. Duas Cidades, 1976. P. 251-252.

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sua única instância alimentar. A autora não hesita de trazer à mesa suas

memórias gustativas: O livro O Não Me Deixes: suas histórias e sua cozinha é

realmente um deleite. São histórias e receitas provenientes de suas vivências

junto às fazendas Junco e Califórnia, vivências que compuseram o sabor

posteriormente encontrado na fazenda Não Me Deixes. Rachel, a partir de suas

reminiscências, funda uma geografia do sabor que entrelaça a cozinha sertaneja

e cearense às pessoas e lugares que lhe eram caros56 57. São desta fazenda as

lembranças de Flávio Salek, sobrinho-neto da escritora que, na apresentação do

livro O Não Me Deixes: suas histórias e sua cozinha nos transporta alguns dos

sabores ali encontrados:

Ir para o Não Me Deixes significava mudar completamente os gostos e cheiros, pois a cozinha sertaneja é muito diferente da que comemos aqui no sul. Até hoje, quando me sento à mesa da Fazenda, ao provar o feijão-de-corda temperado com coentro fresco e nata de leite, sinto a lembrança daquele mesmo sabor e do seu impacto distante. O arroz com colorau e o leite grosso são outros sabores de que me lembro. As carnes de carneiro, guisadas e muito pesadas, não agradavam ao meu paladar de então, e eu muito menos tolerava as terríveis buchadas e paneladas. Em compensação, no prato do garoto substituíam-se as carnes por um maravilhoso ovo mexido. Um ovo de galinha de terreiro, rico em proteínas das minhocas ciscadas na terra, a gema de uma cor amarelo-ouro e uma consistência mais rígida do que a dos pálidos ovos de granja que hoje temos de comer58.

Essas tramas, porém, não configuram nosso único privilégio queiroziano.

Sua carreira é extensa, como pode-se conferir abaixo:

56 QUEIROZ, Rachel de. O Não Me Deixes: suas histórias e sua cozinha. 2ªed. São Paulo: ARX, 2004. 112p.

57CAVALCANTE, Tiago Vieira. O sabor no lugar não me deixes de Rachel de Queiroz. Geosaberes, Fortaleza, v. 7, n. 12, p. 31 - 39, maio 2016. ISSN 2178-0463. Disponível em <http://www.geosaberes.ufc.br/geosaberes/article/view/532>. Acesso em: 25 fev. 2018.

58 SALEK, Flávio de Q. A cozinha de minha avó. In: QUEIROZ, R. O Não Me Deixes: suas histórias e sua cozinha. 2ªed. São Paulo: ARX, 2004. p. 8-9.

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Quadro 1 – Obras completas de Rachel de Queiroz

1930 O Quinze

1932 João Miguel

1937 Caminho de Pedras

1939 As Três Marias

1948 A Donzela e a Moura Torta

1950 O Galo de Ouro

1953 Lampião

1958 A Beata Maria do Egito

1958 Cem Crônicas escolhidas

1964 O Brasileiro Perplexo

1967 O Caçador de Tatu

1969 O Menino Mágico

1975 Dora, Doralina

1946 As Menininhas e Outras Crônicas

1980 O Jogador de Sinuca e Mais Historinhas

1986 Cafute e Pena-de-Prata

1992 Memorial de Maria Moura

1995 Cenas Brasileiras

1997 Nosso Ceará

1998 Tantos Anos

2003 Memórias de Menina

2011 Pedra Encantada FONTE: (Academia Brasileira de Letras): http://www.academia.org.br/academicos/rachel-de-

queiroz/bibliografia

Como resultado dessa sapiência e destreza literária foi concedido a

Rachel de Queiroz o título de ser a primeira mulher a ocupar uma cadeira na

Academia Brasileira de Letras, em 1977. Nesse período já explorava os espaços

cariocas, onde viveu até o fim de sua vida. Ela conhecia a cidade desde criança

quando, com cerca de seis anos de idade, sua família se mudou para lá, pois

seu pai, Daniel, iria trabalhar como advogado com o seu tio, Eusébio de Queiroz.

Desse tempo, o que mais a marcou foi a viagem de navio que a levou até a então

capital federal. Em especial, o momento em que passavam entre Sergipe e

Alagoas e o comandante do navio, Nestor de Noronha, chamou a menina para

mostrar-lhe o rio São Francisco

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Na cidade frequentou, entre outros locais, a Livraria José Olympio, local

dileto de encontro de vários escritores, como José Lins do Rego, Graciliano

Ramos e Carlos Drummond de Andrade, entre outros. Ao chegar ao Rio, com 29

anos, Rachel logo se juntou ao grupo; comparecia diariamente à loja da Rua do

Ouvidor, integrando-se à conversa dos homens, até mesmo trocando piadas

picantes. Com toda essa convivência, as visitas ilustres e as conversas

acaloradas, José Olympio passou a chamar sua livraria de “a Casa” e o poeta

Drummond definiu o que tinha nela de tão diferente “tinha alma”59.

.

Imagem 2 – Rachel de Queiroz na Academia Brasileira de

Letras.

59 FONTES, Lilian. ABC de Rachel de Queiroz. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012. 223p.

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O delineamento das formas da narrativa oral com o romance, dependente

da obra, responde a um particularismo da arte e da vida de Rachel. É pela forma

artística que se percebe a novidade da experiência, cuja sedimentação formal,

pelas mãos da narradora, renova o ciclo da seca. Na obra O quinze as imagens

iniciais do romance suscitam: a cena doméstica rodeada pela paisagem morta.

A efígie da jovem leitora, na solidão do quarto, contrapondo-se à ameaça que

vem do mundo exterior. A delicada figura se forma aos poucos, entremeando-se

a pequenos gestos no interior da casa de fazenda do Logradouro, onde se

encontram as duas mulheres: Conceição faz as tranças, pouco dialoga com a

avó, ceia em silêncio, dirige-se ao quarto, contempla a lua pela janela, vai até a

estante em busca de um livro. A naturalidade é o que se observa primeiro. Reina

uma absoluta ausência de ênfase na linguagem, despida e próxima da fala

corriqueira. Os diálogos são curtos, a descrição sucinta, onde quase se ouve o

silêncio.

Pela idade, a autora não poderia ter vivido os fatos dramáticos que

transformaria na matéria de seu romance, mas, trabalha com os acontecimentos

sedimentados na memória social da região ligados à experiência da narradora

que ali se formou. Rachel foi uma voz do sertão: conseguiu dar expressão, de

um ângulo pessoal, ao drama da região de modo a torná-lo reconhecível no

detalhe concreto e no mais íntimo, a uma só vez, transfigurado em universo de

ficção de valor simbólico geral.

Sua literatura máxima: O Quinze

O Quinze, primeira obra de Rachel de Queiroz ocupa um lugar de

destaque no cânone da literatura brasileira. Josué de Castro dedica Geografia

da Fome a Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida reconhecendo-os

como os grandes romancistas da fome. A autora usou o discurso direto escrito

em 3 pessoa e um narrador onisciente, que estando de fora da história, se

introduz na intimidade dos personagens. Tudo se sabe a respeito deles, desde

traços físicos quanto psicológicos. A obra traz uma linguagem simples e direta.

O relato das paisagens é feito com clareza.

Há em toda obra, como afirma Hones (2011) um tempo da criação

intrínseco no espaço ficcional que organiza os acontecimentos atribuindo

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significados aos escritos e tornando-o possível de ser vivido. Rachel de Queiroz

traz no modelo de uma história tradicional, de um tempo linear, organizada a

partir de uma estrutura simbólica de seu tempo tratando a temática da seca a

partir de sua experiência para elaborar um novo discurso. Isto é, sua narrativa

traz conhecimentos a partir de relatos orais e de suas leituras60.

A narrativa é enxuta, prende-se aos elementos essenciais e dispensa o

supérfluo. Dois enredos são apresentados: (1) as incertezas da relação amorosa

entre Conceição e Vicente e a (2) saga de Chico Bento e sua família.

Conceição é uma jovem professora de 22 anos que sempre dedicava

algum tempo de suas férias no interior do Ceará junto a sua avó Dona Inácia,

amorosamente chamada de Mãe Nácia (que lhe criara desde que morrera a

mãe). A casa ficava na fazenda da família (no Logradouro), nas redondezas do

Quixadá. Conceição “chegava sempre cansada, emagrecida pelos dez meses

de professorado e voltava sempre mais gorda com o leite ingerido à força”. A

professora não demonstrava muito interesse para assuntos comuns às mulheres

dessa idade, como casamento e formar uma família. A não ser que fosse uma

paixão discreta por seu primo Vicente, um

jovem trabalhador, “alegre e dedicado,

amigo do mato, do sertão, de tudo o que

era inculto e rude”, que prefere ser

vaqueiro e ajudar o pai na fazenda, ao

contrário do seu irmão que desde cedo

interessou-se a estudar e tocar a vida

longe do sertão. Vicente também

corresponde os sentimentos de

Conceição, no entanto, o destino deles se

separa quando, por causa da grande

seca, a professora convence, com muita

Imagem 3 – primeira capa do livro O Quinze.

Reprodução Fotográfica Horst Merkel. FONTE:

Enciclopédia Itaú Cultural

60 HONES, S. Literary geography. In: RICHARDSON, D. et al. The encyclopedia of geography.

New Jersey: John Wiley & Sons, 2017.

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persistência tirar sua avó a sair dali para sua casa em Fortaleza61

Na capital, Conceição se ocupava no Campo de Concentração para os

refugiados da seca: um lugar onde os retirantes do sertão recebiam como forma

de ajuda comida e abrigo. Foi lá que ela encontrou por acaso Chiquinha Boa, a

mulher que trabalhara por um período na fazenda de Vicente e que foi ao Campo

de Concentração porque ouviu falar que o governo estava ajudando o povo que

sofria com as consequências da seca.

No meio das conversas Conceição descobriu, sem nenhuma intenção, o

caso de amor entre Vicente e ”uma caboclinha qualquer”. Conceição

decepcionada com a situação recebe Vicente alguns dias depois como havia

prometido de visitá-las, porém:

“(...) foi descobrindo uma conceição desconhecida e afastada, tão diferente dele próprio, que, parecia, nunca coisa nenhuma os aproximara. Em vão procurou naquela moça grave e entendida do mundo, a doce namorada que dantes pasmava com a sua força, que risonhamente escutava os seus galanteios, debruçada à janela da casa-grande, cheirando o botão que ele lhe trouxera... E ao fim da visita, quando ela falava sobre o efeito da seca na vida da cidade, pareceu-lhe até pedante...Tinha na voz e nos modos uma espécie de aspereza espevitada, característica de todas as normalistas que conhecia...”62

Depois da visita, deitada na cama, com a luz apagada, Conceição recordava do

primo.

“Num relevo mais forte, tão forte quanto nunca o sentira, foi-lhe aparecendo a diferença que havia entre ambos, de gosto, de tendências, de vida... ele era bom de ouvir e de olhar, como uma bela paisagem, de quem só se exigisse beleza e cor. Pensou no esquisito casal que seria o deles...Pensou que, mesmo o encanto poderoso que a sadia fortaleza dele exercia nela, não preencheria a tremenda largura

que os separava.”63

No início de dezembro aparecem as primeiras chuvas. Com as boas

novas Dona Inácia volta sozinha para o Logradouro e Conceição permanece na

61 QUEIROZ, Rachel de. O quinze. 107. Edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017, p. 17-21. 62 Ibid., p. 86.

63 Ibid., p. 88.

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capital junto com seu afilhado Manuel, Chamado de Duquinha, o filho caçula de

Chico Bento que foi dado a pedido insistente dela, para que ele tivesse um rumo

e cuidados melhores.

No último capítulo, que resume os detalhes de uma agitada quermesse

de Natal em Quixadá realizada três anos após a terrível seca quando tudo

parecia razoavelmente estabilizado, Conceição aparece. Numa conversa com o

novo dentista da terra enquanto observavam a felicidade de uma amiga que

parecia feliz agora que estava casada e tinha uma filhinha, Conceição é acusada

de não ter felicidade semelhante “por que não quer”, a moça sempre com

respostas prontas, insinua que é feliz sim, por outros motivos e que não teve o

mesmo destino da amiga porque nunca encontrou ninguém que valesse a pena.

inalmente, ela se conforma que apesar de reconhecer que ela seria sempre

considerada “estéril, in til e só”, perante as conveni ncias da sociedade, ela

adoça a amargura e o vácuo da maternidade vazia de seu coração com a

presença de Duquinha que ela o adotara como verdadeiro filho. E segue o

destino de uma mulher que é “acalentar uma criança no peito”, em seu caso, não

no sentido literal, mas em relação aos seus cuidados infinitos, sua dedicação e

seu carinho64.

O enredo da obra segue em outra realidade, a história de Chico Bento e

sua família acontece simultaneamente a de Conceição. O Vaqueiro das

Aroeiras, por conta da seca, fica sem emprego restando apenas duas opções:

ficar no sertão e morrer de fome, ou então migrar para algum outro lugar para

tentar sobreviver. Junta um pouco de dinheiro, troca e vende algumas reses e

consegue uma burra negociando com Vicente. Começam a viajar (ele, a

mulher, a cunhada Mocinha e os cinco filhos). A cunhada Mocinha, no trajeto,

encontra uma casa para trabalhar (casa da dona Eugênia), vendendo café na

estação de trem. Porém, ela passou mais tempo namorando e se engraçando

com os homens do que trabalhando. Eugênia, revoltada, despediu Mocinha,

que continuou vivendo por aí. Na história, acabou se tornando uma “mulher da

vida”, com um filho sem pai.

64 QUEIROZ, Rachel de. O quinze. 107. Edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017, p. 139-

144.

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Chico Bento continuou sua saga. Josias, seu filho, morrendo de fome,

comeu uma mandioca crua e acabou morrendo envenenado. A burra já estava

morrendo, então Chico a vendeu por 6 mil réis antes dela morrer. Depois vem o

episódio da cabra roubada: Chico Bento encontra uma cabra no caminho e,

desesperado, a mata para poder comê-la. Nesse ínterim, aparece o dono da

cabra e, ao ver o animal morto, se revolta. Acusa Chico Bento de ladrão e recolhe

o corpo do animal. Chico Bento, desesperado e com a família morrendo de fome,

pede para o dono da cabra deixar um pouco de carne. Ele, revoltado com Chico

Bento, deixa apenas as tripas para Chico Bento e vai embora.

Pedro (outro filho de Chico Bento) sem qualquer resquício desvanece nas

terras sertanejas. Chico Bento busca ajuda na delegacia para sua surpresa o

delegado reconhece sua presença: era o Luís Bezerra, um velho amigo. O

delegado ajuda a procurar o menino e descobre que ele se misturou com

comboieiros de cachaça (o que seria melhor para o menino do que ficar com o

próprio pai e conviver com sua desgraça de retirante). O delegado alimentou e

arranjou passagens de trem para Chico Bento e o que restou da sua família viajar

para Fortaleza. Ao chegarem lá, os retirantes ficam no Campo de Concentração,

onde se deparam com Conceição que prontamente os ajuda. Logo Chico Bento

conseguiu um trabalho no açude do Tatuape. A moça enviou um bilhete à

senhora que administrava o serviço, tentando comovê-la com a história da

família do vaqueiro.

Conceição adota Duquinha (Manuel), o caçula dos filhos de Chico Bento,

já que estava doente e precisava de amparo: a caminhada do sertão quase lhe

foi o desencarne. Chico Bento na esperança de tocar uma vida melhor resolve ir

para São Paulo em busca de novas oportunidades, visto que o emprego no

açude não estava oferecendo nenhum progresso (pagavam muito pouco, mal

dava para sobreviver e sustentar a família). Conceição se mobiliza e consegue

as passagens para eles que embarcam em pouco tempo num “navio, escuro e

enorme, com sua bandeira verde de bom agouro, tremulando ao vento do

Nordeste, o eterno sopro da seca” levando-os para um lugar longe do seu sertão

onde sempre houvesse inverno para o pão de cada dia.

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A FOME

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O REGIME DA ESCASSEZ

A fome é o tema transversal em toda a obra de Rachel. Inerente a

escassez de alimentos e de água, há uma questão essencial que necessita ser

colocada em pauta: a fé que consola o povo.

Por um longo tempo não se debatia em público o tema da fome. Era uma

problemática que se fazia real e presente no cenário brasileiro, e que devido aos

tabus pregados, principalmente pelas classes abastadas, poucas intervenções

eram realizadas. É possível identificar uma série de discursos que intensificam

o distanciamento das mazelas que são apresentadas aos personagens, aos

verdadeiros fatores desencadeadores dessa miséria. A fome, muitas vezes, era

tratada pelos povos como um “castigo”, um “mal merecido”. É o caso dos

nordestinos religiosos, como retrata O Quinze pela personagem de Mãe Nácia,

que se conformavam com a condição de sua terra árida e a escassez de água,

e afirmavam para si mesmos – como forma de consolo - que “Deus quis assim”.

Para Chico Bento e tantos outros retirantes, a fé atua como principal aliada

no sentido de dá mais força em sua caminhada e talvez amenizar o sofrimento.

O comer era sempre servido quando Deus quisesse. Até hoje em dia onde as

pessoas que se encontram em cenários de vulnerabilidade social, tendem a

direcionar a causa e qualquer possibilidade de mudança de sua situação para

uma intervenção divina. Ao observar o espaço ficcional da obra é possível notar

o contexto histórico baseado na desigualdade social e na negligência dos

espaços de pobreza.

Josué de Castro designa a fome não é uma fatalidade da natureza apesar

de ter relação com ela. Essa observação torna-se mais evidente a partir de uma

diagnose dos grandes períodos de fome: cicatrizes sociais do corpo histórico.

Problematizar o fenômeno da fome é desenhar um labirinto de múltiplas

entradas. Existem rastros dos movimentos de desequilíbrio alimentar — mesmo

que haja contratempos do ponto de vista instrumental e metodológicos de se

mensurar tais acontecimentos — que aparecem como cicatrizes sociais.

Episódios de conflitos, carestias e pestilências são referências não unitárias das

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grandes hambrunas65 como elenca Martín Caparrós (2016). Tempos

calamitosos, vorazes. A cada época em qualquer sentido bussolar, as

hambrunas perpetuaram-se no tempo. Pode-se elencar nesse processo a

dissolução de impérios, a miscigenação de povos e culturas, a crise das

estruturas produtivas – iniciadas devido ao declínio da agricultura –

despovoamento dos campos, as grandes epidemias e pestes66 67.

Nos conta Amiano Marcelino (2000) In media res sobre a fome no império

romano. Em Antióquia durante o século IV crises sociais foram motivadas por

uma instabilidade na agricultura sob o império de Galo César. A classe

dominante era constituída por grandes latifundiários e proprietários

inquestionáveis da quase totalidade das terras produtoras de trigo. A produção

do cereal era pouco eficiente, ao contrário do arroz, sobre o qual descansava as

glórias da civilização chinesa, o trigo não resistia por longos períodos no mesmo

solo. A escassez das plantações e a consequente falta de suprimentos

provocaram episódios conflituosos pela sobrevivência e a chamada classe

inferior padeceu de fome. Relata Fernand Braudel (1995) que a fome já

incorporada no regime biológico destes tornou-se estrutura da vida cotidiana68

69.

Sagaz no tempo, a fome envolveu grande parte da Europa durante a Idade

média. As crises de escassez de alimentos foram causadas pela rigidez do

sistema feudal combinado com as precárias práticas culturais e aumento

excessivo da população urbana. A falta generalizada e contínua de alimentos

provocou a desnutrição. Nos séculos V e VI a carência de alimentos obrigava

então a elaborar novas técnicas de sobrevivência adaptadas às dificuldades da

65 Palavra de origem africana usada pelo autor — sem tradução para o português — que significa fome generalizada, escassez absoluta de alimentos em uma determinada região.

66 CAPARRÓS, Martin. A fome. Tradução de Luís Carlos Cabral. 1a edição. Bertrand Brasil, Rio de Janeiro. 2016.

67 MONTANARI, Massimo. A fome e a abundância: história da alimentação na Europa.

Tradução de Andréa Doré. Bauru: EDUSC, 2003.

68 BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo – As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

69 AMIANO MARCELINO. History. Tradução de John C. Rolfe, III vol. Cambridge/London: Harvard University Press/Loeb Classical Library, 2000.

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realidade ervas e raízes, pães “de fantasias” e carnes de qualquer espécie. A

maior parte Europa experenciou grandes períodos de crise alimentar. Na

Inglaterra a fome fazia grande quantidade de vítimas. O canibalismo era comum

e vastas epidemias agravavam a situação. A maior parte da população,

impulsionada pela fome, vagava em busca do que comer causando uma

desordem social para época. Neste cenário, a entropia no setor alimentício

marcou durante vários séculos, visto que:

No setor primário, a produção era relativamente estática (limites técnicos da agricultura medieval) e o consumo dinâmico (crescimento populacional). Dessa forma, entre oferta e procura de gêneros alimentícios havia um equilíbrio precário, que se via comprometido por qualquer acidente natural (estiagem, pragas etc.). De fato, a busca de terras no período de expansão levara ao cultivo de áreas pouco férteis, de maneira que cresceu a produção em termos absolutos, mas não a produtividade. Assim, precisava-se lançar mão de mais terras, e em muitas regiões elas foram arrancadas ao gado: a transformação de pastos em zonas de cultivo diminuía a disponibilidade de adubo, prejudicando a produção agrária. Muitas vezes, terras de cultivo resultavam de um desflorestamento excessivo, o que alterava o regime local de chuvas, com óbvios reflexos negativos para a agricultura. Ocorreram assim diversos períodos de escassez, mais ou menos regionalizados: Portugal, por exemplo, de meados do século XIV a fins do século XV, conheceu 21 crises de subsistência. Ademais, verificaram-se pelo menos cinco períodos de fome generalizada em quase todo o Ocidente, cada um deles de anos70.

.

70 FRANCO JÚNIOR, Hilário. A idade média: o nascimento do ocidente. 2a ed. Brasilienses: São

Paulo. 2001. P 60.

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Imagem 5 - El Triunfo de La Muerte ano c.1562 de Pieter Bruegel. A obra encontra-se no Museu do Prado, em Madri na Espanha. Bruegel, em sua cena dramática, descreve aspectos da vida no século XVI, a guerra final acontece em primeiro plano. À direita, na parte inferior da pintura, a Morte, montada num esquelético cavalo, com uma longa foice na mão representa os flagelos acometidos da época: a fome e a peste negra. FONTE: Museu del Prado.

O espectro da fome narrado por Amiano parece uma reprise nessa

empreitada cronológica. Desta vez ao longo da Revolução Francesa entre 1789

e 1799. O movimento revolucionário de cunho político-social marcou a queda do

absolutismo e confinou alguns obstáculos capitalistas. Todavia, a ruptura da

estrutura do Estado absolutista só foi factível através de medidas radicais. Com

a insuficiente produção agrícola resultante dos entraves feudais à produtividade,

bem como as dificuldades encontradas nos fenômenos climáticos, causou

elevação no preço do trigo, tornando assim o pão um alimento quase proibitivo

às camadas de baixa renda e, consequentemente, acentuando a miséria e a

fome. Contudo, historiadores ressaltam: a pobreza e miséria são eventos

anteriores à Revolução rancesa, “a fome era um fato cotidiano para os pobres

franceses [...] que lutaram sem nenhuma forma de assist ncia” 71.

Se a monocultura do trigo envolveu copiosos eventos seculares de fome

e desnutrição, vejamos o caso irlandês An Gorta Mór. De 1845 a uma data

variável entre 1849 e 1852, um período de fome, doenças e emigração atingiu a

71 GONÇALVES, Jussemar Weiss. A Revolução Francesa e a invenção social da pobreza.

Revista Biblos, Rio Grande, v. 23, n. 1, 2009, p. 9-24.

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Irlanda provocando a morte de milhões. A causa aparente foi escancarada como

catástrofe natural e seus efeitos severamente agravados pelas ações e inações

do governo Whig, liderado por Lorde John Russell. Explosões sucessivas de

ferrugem da batata — ou para dar o seu nome próprio, o fungo Phytophthora

infestans — roubaram mais de um terço da população dos seus meios habituais

de subsistência durante quatro ou cinco anos consecutivos. Embora tivesse uma

rica história de violência agrária, o país estava em paz. Além disso, seu sistema

de comunicações (estradas e canais) havia melhorado, o estado vitoriano tinha

uma burocracia substancial e crescente (gerou um exército de 12.000

funcionários na Irlanda por um curto período de tempo em 1847), e a Irlanda

ficava no campo do que era então as grandes nações do mundo72. Por que,

então, não era mais capaz de lidar com os problemas causados pelo fracasso

da safra de batata? Questiona o estudioso do caso Comarc Ó Grada.

Karl Marx tomou a questão pormenor e comenta sobre o sistema de

exploração agrária. Os ingleses, dominaram as terras, conquistaram e

apropriaram de praticamente toda produção agrícola na Irlanda. Enormes

frações de terra do país foram repassadas compulsoriamente a latifundiários

para administrar suas posses. Por sua vez, arrendavam as terras a própria

população irlandesa em troca de sua mão-de-obra e de uma parcela da produção

total. A junção entre os elevados preços de arrendamentos e decrescentes

porções de terra disponíveis para o plantio, empurrou os irlandeses para a

subsistência e gerou um enorme fardo financeiro sobre a economia da Irlanda73.

Mais tarde, nos anos de 1932 e 1933, a Ucrânia vivenciou um dos mais

trágicos capítulos ocorridos na história da humanidade, que custou a vida de

milhões de pessoas. O Holodomor ou a “Grande fome da Ucrânia” foi uma

catástrofe ocorrida durante o regime soviético liderado pelo comunista Josef

Stalin, que instaurou um novo sistema de exploração feudal-militar no

campesinato. Stalin forçou uma coletivização acelerada e total da agricultura,

72 DONNELLY, James S. The Great Irish Potato Famine. Rural History: Cambridge University,

v. 13. n. 2. pag. 253–259, 2002. Disponível em <http://journals.cambridge.org/abstract_S0956793302230149> Acesso em 13 de setembro de 2018. 73 MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 3v. 1983.

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isto é, apropriação estatal das terras, colheitas do gado e das alfaias, com o

propósito de estabelecer um controle político sobre a produção do campesinato,

como modo de forçar o apoio ao regime soviético; também utilizou deste plano

de coleta o direito de assumir rigorosamente o controle sobre as produções

agrícolas através de uma implementação caótica, arbitrária e abusiva desses

bens perante esta nova política e devido a resistência da população camponesa,

em poucos meses esta ordenação já havia provocado a morte de seis milhões

de pessoas. O genocídio causado pela fome causou um extermínio do

campesinato ucraniano. A fome se estendeu de maneira progressiva e logo

apareceram os casos de canibalismo. Atos de desumanização e de massificação

da morte registrados no Holodomor, é vista até hoje como grande regressão

civilizacional74.

Um tanto análogo ao Holodomor, outro período crítico na história da

humanidade que foi marcado por chacinas de fome, foi a conhecida Segunda

Guerra Mundial (1939-1945), vista como a maior catástrofe provocada pelo

homem. Durante este conflito militar global, foi deliberado como estratégia de

extermínio, o hunger plan ou “Plano da ome” estruturado por Herbert Backe em

1941. O objetivo era organizar uma extraordinária fome em massa na Europa

Ocidental, exterminando assim toda a população urbana da União Soviética

ocidental, removendo 30 milh es de “bocas in teis” da cadeia alimentar. Além

disso, entre dois e três milhões de prisioneiros de guerra soviéticos, cerca de

57%, morreram de inanição. O grande número de mortes por fome também

atingiu os países de Bengala (apogeu em 1943) e Vietnã (em 1945).75

74 RIBEIRO, Luís de Matos. Holodomor: O Genocídio Ucraniano. Associação Internacional de

Estudos Ibero-Eslavos. Revista IberoSlavica, Lisboa, 2011.

75 GERWARTH, Robert. O carrasco de Hitler: a vida de Reinhard Heydrich o supervisor da

solução final para a questão judaica e a origem do holocausto. Tradução Mário Molina. São

Paulo: Cultrix, 2013.

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Imagem 5 - Quadro The Last Road de Nina Marchenko, a obra que foi produzida como menção ao Holodomor. A arte retrata a morte trágica do povo da Ucrânia e seu sofrimento durante esse período de tempo. Fonte: The National Museum "The Memorial in Commemoration of the Famines Victims in Ukraine".

Neste ponto cronológico o Brasil não passa despercebido. O ano de 1915

é o palco histórico para problematizar a fome. A relatora desse cenário é Rachel

de Queiroz, e ele está descrito até o final deste trabalho. Após esses

apontamentos históricos é necessário sintetizar conceitualmente os termos

fome, desnutrição e pobreza, visto que estes são pontos chave inerentes ao

espaço narrativo da obra. Além disso, o elemento essencial para a discussão

iniciada nesta seção: a desnaturalização da fome e seu reconhecimento como

produto de ações sociais.

2.2 AS POLÍTICAS DA FOME

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e a expansão dos conflitos

para além das fronteiras europeias, desastrosos impactos econômicos afetaram

todo o sistema mundial. Nesse delicado cenário, os Estados Unidos, líder do

bloco capitalista, viu-se na necessidade de fortalecer sua área de influência em

todos os continentes, com o objetivo de diminuir a expansão do domínio

comunista liderado pela União Soviética. Nessa guerra de posições, a fome e a

pobreza deveriam ser combatidas por meio de cooperações internacionais, para

evitar que se configurassem quadros de instabilidade social e política em países

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pobres que pudessem desencadear processos revolucionários. O combate à

fome em escala internacional passou a ser um elemento estratégico importante

no jogo de disputas pelo controle geopolítico mundial76.

Os resultados logo surgiram: ampliaram-se as dimensões do debate e a

problemática da fome passou a ser entendida como um fenômeno complexo e

de causação múltipla. O indício dessa conjuntura foi a realização da Conferência

de Alimentação de Hot Springs, nos Estados Unidos, em 1943, que marcou esse

novo envolvimento internacional em torno da questão. Essa foi a primeira

conferência realizada pelas Nações Unidas para debater inúmeros

fomentos diante do cenário atual após o fim da guerra. Entre as proposições, foi

definida a criação da Organização das Nações Unidas para Alimentação e

Agricultura – Food and Agriculture Organization (FAO) –, que veio a ocorrer em

16 de outubro de 1945, com ativa participação do Brasil tendo como

representante Josué de Castro, desde a sua criação. A partir de então, a FAO é

considerada a principal iniciativa de articulação internacional para a elaboração

e o planejamento de estratégias contra a fome em nível global77.

Mesmo após essa mobilização a luta contra fome ainda tinha muitos

entraves. Em 1974 foi realizada a I Conferência Mundial de Alimentação das

Nações Unidas, em Roma. O evento ocorreu em um cenário mundial em que os

estoques de alimentos estavam bastante escassos, com quebras de safras em

importantes países produtores. Uma solução apresentada foi a modernização do

setor agrícola principalmente em países em desenvolvimento, amparadas pelas

inovações da indústria química. Um processo que passou a ser conhecido como

Revolução Verde e investiu na tese de que “o flagelo da fome e da desnutrição

no mundo desapareceria com o aumento significativo da produção agrícola, o

que estaria assegurado com o emprego maciço de insumos químicos

(fertilizantes e agrotóxicos)”78. Uma medida equivocada e que logo se percebeu

que não se tratava de um déficit de produção. A desnutrição e a fome não

76KINGDON,John,W. Agendas, alternatives and public policies. United States of America: A ddison-Wesley Longman, 1995.

77 HIRAI, Wanda; ANJOS, Flávio. Estado e segurança alimentar: alcances e limitações de políticas públicas no Brasil. Revista textos & contextos, v. 6, n. 2, 2007.

78 MALUF, Renato; MENEZES, Francisco. Caderno segurança alimentar. Conferências do Fórum Social Mundial, 2000, p. 1.

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deixaram de estar presentes, atingindo gravemente parcela importante da

população mundial. Em crítica sobre esse contexto, José S. Gonçalves afirma

que devido o sistema de produção agrícola moderno e eficiente, a diversidade

de culturas alimentares foi severamente afetada e grande parte dos agricultores

familiares precisou migrar para os centros urbanos, gerando desemprego e

precarização social79.

A FAO então passou a declarar que a fome global não dependia apenas

de uma questão técnica e de pouca disponibilidade de alimentos, mas está

intimamente ligada a pobreza.

As causas da nutrição inadequada são muitas e intimamente inter- relacionadas, incluindo limitações ecológicas, sanitárias e culturais, mas a causa principal é a pobreza. Isto, por sua vez, resulta dos padrões de desenvolvimento socioeconômico, que na maioria dos países mais pobres têm-se caracterizado por um alto grau de concentração de poder, riqueza e renda nas mãos de relativamente pequenas elites compostas de indivíduos ou grupos nacionais ou estrangeiros80.

Os fatores determinantes da fome em uma sociedade praticamente se

justapõem aos determinantes da pobreza, de maneira que o combate a esses

fatores não pode estar separado de estratégias ampliadas. Nesse caso, os

principais fatores determinantes da fome em uma nação podem ser avaliados a

partir dos elementos apresentados no quadro.

Quadro 2 - Fatores determinantes da fome

Fatores Descrição

79 GONÇALVES, José S. Mudar para manter: pseudomorfose da agricultura brasileira. São Paulo, CSPA/SAA, 1999.

80 FAO apud JONSSON, Urban. As causas da fome. In: VALENTE, Flávio Luís. (Org.). Fome e desnutrição: determinantes sociais. São Paulo: Cortez, 1989.

Toda sociedade tem uma história que pode ser

Históricos entendida como a interação entre economia, política,

ideologia etc. Nesse contexto, a fome pode advir de

diversos fenômenos, como: imperialismo,

colonialismo, neocolonialismo, escravidão, êxodo

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Tecnológicos e

ecológicos São relacionados às condições materiais e técnicas

de produção (recursos potenciais), tais como:

recursos naturais, clima, fertilidade do solo, know-

how tecnológico.

Culturais e ideológicos Envolvem fatores relacionados à superestrutura da

sociedade, tais como: ideologia, religião, opiniões,

concepções morais, crenças e hábitos, leis

tradicionais etc.

Fonte: Jonsson (1989).

Um estudo comandado por Flávio Valente (2003) traz uma análise crítica

sobre os conceitos de fome e pobreza correlacionando suas implicações na

elaboração de políticas públicas no Brasil. O autor evidencia o conceito de fome

desde aquela sensação fisiológica relacionada à vontade de comer até as

condições mais severas de fome que afligem o ser humano, associada à pobreza

e a exclusão social. Para ele:

ver os filhos passarem fome é passar fome. Comer lixo é passar fome. Comer o resto do prato dos outros é passar fome. Passar dias sem comer é passar fome. Comer uma vez por dia é passar fome. Ter que se humilhar para receber uma cesta básica é passar fome. Trocar a dignidade por comida é passar fome. Ter medo de passar fome é estar

rural, leis de herança, guerras, estamentos

sociais etc.

São relacionados às condições sociais de produção

Econômicos (estrutura econômica da sociedade), e envolvem:

relações de propriedade, posse ou acesso a meios

de produção, estrutura de poder, normas de

exploração do trabalho etc.

São principalmente relacionados a estrutura e

Políticos funcionamento do Estado, tendo por base: estrutura

de poder (militar e política), legislação e as cortes,

direitos democráticos, política fiscal, organização de

poder do Estado etc.

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cativo da fome. Estar desnutrido também é passar fome, mesmo que a causa principal não seja falta de alimento81.

A partir desse contexto entende-se a definição de fome por duas

vertentes: aguda e crônica. A fome aguda resulta na urgência de se alimentar,

sendo momentânea e expressa no apetite. Diferentemente, a fome crônica se

expressa de modo permanente, e ocorre quando a alimentação oferecida no dia-

a-dia não fornece a quantidade de energia suficiente para manter o adequado

funcionamento do organismo e para a realização das atividades cotidianas82. A

fome aguda e crônica pode ser comparada com a conceituação de áreas de fome

endêmica e epidêmica dadas por Josué de Castro. Segundo o autor, quando se

considera na população nítidas manifestações carenciais no seu estado de

nutrição, de modo permanente, observa-se uma fome endêmica ou qualitativa.

Por sua vez, quando é de modo transitório, observa-se uma fome epidêmica ou

quantitativa, é o caso das grandes fomes ocorridas no sertão brasileiro83.

Inerente a fome ainda pode-se falar à respeito de uma consequência

notória. Monteiro no estudo citado anteriormente afirma que a desnutrição, ou as

deficiências nutricionais, é uma doença que pode ter mais de uma modalidade,

sendo decorrente da insuficiente oferta de alimentos tanto em energia quanto em

nutrientes ou até mesmo do inadequado aproveitamento biológico dos alimentos

consumidos – devido alguma doença, em especial doenças infecciosas. No que

diz respeito à pobreza, pode ser definida como a “condição de não satisfação de

necessidades humanas elementares como comida, abrigo, vestuário, educação,

assist ncia à sa de, entre outras.” São consideradas famílias pobres quando a

renda inferior está classificada à linha da pobreza. Quando a linha da pobreza

está baseada apenas no custo da alimentação, fala-se em extrema pobreza,

indigência ou mesmo em insegurança alimentar. É importante ressaltar que a

extrema pobreza, infelizmente, ainda se faz presente na realidade cotidiana,

81 VALENTE, Flávio Luiz Schieck. Fome, desnutrição e cidadania: inclusão social e direitos humanos. Saúde e Sociedade, v.12, n.1, p.51-60, 2003.

82 MONTEIRO, Carlos Augusto. Fome, Desnutrição e Pobreza: além da semântica. Saúde e Sociedade, São Paulo, v.12, n.1, p.7-11, 2003.

83 CASTRO, Josué de. Geografia da fome. O dilema brasileiro: pão ou aço. 6.ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2006.

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tanto do Brasil como do mundo, para mais de um milhão de seres humanos, os

quais sobrevivem com menos de um dólar por dia84.

Nos últimos anos, o problema da insegurança alimentar e nutricional (IAN)

no mundo é um tema que se tornou central e de relevância incontestável no

contexto político-social, na qual tem ocupado destaque nas agendas científicas,

políticas, econômicas, sanitárias e cada vez mais tem alcançado o cenário das

políticas públicas. Com o propósito de minimizar o problema da fome no Brasil e

no mundo, foram criadas políticas e ações voltadas para a garantia e promoção

da Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) da população85.

Sobre SAN muito se tem discutido e aprimorado ao longo dos anos e

ainda permanece em fase de elaboração. Ele evolui conforme avança a história

da humanidade, como também se modifica perante os mecanismos de ordem

social e as relações de poder de uma determinada sociedade86. No Brasil, no

ano de 2006, de acordo com o documento aprovado na II Conferência Nacional

de Segurança Alimentar e Nutricional, a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e

Nutricional (LOSAN) foi sancionada pelo Presidente da República Luís Inácio

Lula da Silva, na qual foi declarado que:

Art. 3o. A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis87.

Intimamente relacionado a SAN destaca-se o Direito Humano à

Alimentação Adequada e Soberania Alimentar. Visto que, a política de SAN deve

englobar princípios e ações cruciais para a garantia da promoção e efetuação do

84 MONTEIRO, Carlos Augusto. Fome, Desnutrição e Pobreza: além da semântica. Saúde e Sociedade, São Paulo, v.12, n.1, p.7-11, 2003.

85 CONTRERAS, Jesús; GRACIA, Mabel. Alimentação, sociedade e cultura. Editora Fiocruz, Rio de Janeiro, 2011, p. 334.

86 BURITY, Valéria. et al. Direito humano à alimentação adequada no contexto da segurança alimentar e nutricional. Brasília, DF: Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH), 2010, p. 14.

87 CONSELHO MUNICIPAL DE SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL (Juiz de Fora). O que é segurança alimentar e nutricional sustentável: história no Brasil e em Minas Gerais. Juiz de Fora, 2011, p. 2.

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DHAA, de modo que seja coesivo com a abordagem dos direitos humanos.

Nesse sentido, entende-se que a SAN é uma estratégia para a garantia do

DHAA. Antes de problematizar o conceito de DHAA, é importante que se

compreenda a definição de Direitos Humanos, uma vez que estes direitos se

fazem necessários para proteger o ser humano da injustiça e garanta uma vida

justa e com plena dignidade.

Tais direitos foram firmados internacionalmente na Declaração Universal

dos Direitos Humanos (1948). Existem alguns princípios que os regem, na qual

são denominados: (1) Universais – pois se aplicam a todos os seres humanos,

independente de gênero, raça, cor, orientação sexual, idade, religião ou qualquer

outra característica pessoal ou social; (2) Indivisíveis – o conjunto de direitos

civis, políticos, culturais, sociais, econômicos são todos igualmente necessários

para a garantia de uma vida digna; (3) Inalienáveis – são intransferíveis, portanto

não podem ser subtraídos, vendidos e tão pouco cedidos voluntariamente; (4)

Interdependentes e inter-relacionados – um direito não pode ser realizado sem

a existência dos demais, ou seja, para realização efetiva de um direito requer a

garantia dos outros

Dessa forma, os direitos humanos devem garantir a todas as pessoas

condições básicas para se obter e desfrutar de uma vida com plena dignidade,

assegurando à liberdade, à igualdade, acesso ao trabalho, à terra, à saúde, à

moradia, à educação, à água e aos alimentos de qualidade, entre outros

condicionantes essenciais. Nesse sentido, alimentar-se é uma condição básica

que deve estar ao alcance de todos, portanto deve ser considerada como um

direito humano. Alimentar-se, é um ato de complexidade que vai além da

atividade essencialmente biológica e de sobrevivência do ser humano. É um ato

que alcança dimensões sociais, culturais, econômicas, ecológicas, e que se

fazem essenciais para a obtenção de uma vida com qualidade.

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LITERATURA

FAMÉLICA

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4. A LITERATURA FAMÉLICA DE RACHEL DE QUEIROZ

4.1 A MODELIZAÇÃO DO ESPAÇO SOCIAL DA FOME

Infortúnio. Essa é uma palavra que poderia definir bem alguns dos

personagens principais em O Quinze. Os Bentos.

Expulsos do Logradouro por uma ordem vinda de Maroca das Aroeiras

devido à falta de trabalho, Chico Bento junto a Cordulina, sua esposa, e seus

filhos se veem obrigados a encarar as piores agruras do cansaço, da fome, da

sede e da morte, na fuga sob o sol inclemente. O objetivo de chegar à capital

Fortaleza e de lá seguir para o norte, era a única esperança de uma vida digna

que, segundo falatórios, nas terras amazonenses o ciclo da borracha provia

muito trabalho. Mas, na ocasião atual apenas incertezas. Naquele sertão os

caminhos eram muitos e ao mesmo tempo nenhum, poucas almas ali restaram.

Aos que decidiram permanecer, a preocupação com o sustento da vida e

uma alimentação regular era corriqueira. Não muito distante do casebre

“encostado a uma jurema seca, defronte ao juazeiro que a foice dos cabras ia

pouco a pouco mutilando, Vicente dirigia a distribuição de rama verde ao gado”

uma cuidado aparentemente paliativo para as reses magras e sofridas com

grandes ossos furando o couro. O desejo de Vicente era deixar os animais

morrer à míngua, assim como fez a dona Maroca das Aroeiras88.

Em verdade, o exílio advindo da seca não atingiu a todos do mesmo

modo. As palavras de Josué de Castro ressaltam que a fome é hierárquica, por

isso nem todos foram atingidos por ela na mesma intensidade. As marcas da

diferença social são patentes: Conceição e Dona Inácia prontamente

embarcaram de trem, enquanto Chico Bento sem qualquer recurso havia de

ganhar o mundo a pés, sem comida, sem passagens, muito menos dinheiro, a

conformação era desalento de vida, estavam desamparados, desabrigados,

inconformados e invisíveis89.

88 QUEIROZ, Rachel de. O quinze. 107. Edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017, p. 19.

89 Ibid,. p. 40.

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Mesmo nessa inquietação com futuro, para os retirantes era preferível

morrer durante a caminhada, a permanecer na fazenda e ter o mesmo fim. Mas

o nordestino teima em não morrer, mesmo quando a morte se anuncia sem

nenhum amparo, nem do governo, nem do Santo José. Já Conceição e sua avó,

ao conforto, sem muitas preocupações partiram apenas com saudade e as

lembranças do velho Quixadá, onde Vicente permaneceu temendo uma

realidade antagônica dos Bentos: o vaqueiro e sua família tinha com o que

sobreviver.

Infere-se que a diminuição na quantidade de alimentos seja fruto da

diminuição da produção alimentar, neste caso, a produção de alimentos no

contexto da seca é um cenário habitual. Sabe-se que em um modelo alimentar,

perpassam um conjunto de estruturas empregadas em todas as etapas de

produção e de transformação do alimento. Por via desse sistema é que o

alimento chega até os comensais por canais de acesso do sistema alimentar

(dentre esses canais se sobressai o cultivo e a colheita). Esse é um dos

destaques na obra de Rachel de Queiroz. Da partida do Logradouro até os

confins do Ceará, as dimensões que compõem o espaço alimentar e descritivo

das paisagens, são evidentes. Desde a topografia, as características do solo, as

formas da vida vegetal, a fauna, a economia e a vida social da região, tudo traz

marcado, com uma nitidez inconfundível, a influência da falta de água nesta

região semidesértica. O solo arenoso, empoeirado denuncia a pobreza de

nutrientes90 91.

A criação de gado e da agricultura de sustentação com que trabalham os

vaqueiros mostra a base dos recursos alimentícios da região. É da terra que o

sertanejo, usando métodos culinários simples, retira ingredientes da base de seu

regime alimentar, segundo Josué de Castro uma “alimentação sólida, porém

bem equilibrada, a qual constitui um bom exemplo de como pode um grupo

90 POULAIN, Jean-Pierre; PROENCA, Rossana Pacheco da Costa. O espaço social alimentar: um instrumento para o estudo dos modelos alimentares. Rev. Nutr. [online]. 2003, vol.16, n.3,

pp. 245-256.

91 CASTRO J. Geografia da fome (o dilema brasileiro: pão ou aço). 10a Ed. Rio de Janeiro:

Antares Achiamé; 1980.

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humano retirar de um meio pobre recursos adequados às necessidades básicas

de sua vida”92.

Ao analisar o espaço ficcional da obra é possível observar que Chico

Bento e a família passam por dois momentos de fome. O primeiro marcado pela

incerteza e o medo de não ter o que comer, e o segundo, diga-se de passagem,

o mais cruel, marcado pela total privação alimentar.

Na primeira noite pelo deserto cearense os Bentos caíram nas terras

devastadas e se arrancharam no vazio da noite. Carne de bode seca (salgada

em demasia), farinha de mandioca e alguns pedaços de rapadura eram todos os

insumos carregados do Logradouro. Logo prepararam uma trempe de galhos

secos para assar a carne sobre as brasas. No silêncio da noite era possível ouvir

apenas o barulho do sal estalando no fogo. Ao pôr o primeiro pedaço na boca

Chico logo cuspiu. Era incomestível. “sal puro! Mesmo que pia!”. Ao contrário

dele, os meninos, que de tanta fome não sentiram quaisquer diferenças

gustativas, “rasgavam as lascas de carne, que engoliam lambendo os dedos”.

Os menores, passado o furor do apetite, exigiam o que beber; gemiam e

pigarreavam entretendo a garganta sedenta com o doce da rapadura93.

Esta é a primeira imagem do espaço alimentar. Ingredientes que

simbolizam a cosmologia alimentar do sertanejo desde épocas coloniais formam

o cardápio dos retirantes. O espaço do comestível, como única refeição do dia,

aparece simples, monótona e insuficiente, com presumível consumo decadente

de nutrientes, como vitaminas e minerais, e claramente energético. Além disso,

demanda-se que os comensais tenham acesso e consumo de alimentos que

obedeça às leis de variação, harmonia, cor e sabor adequados. Esta não é, nem

de longe, a realidade aqui assumida. Em casos de extrema escassez esses

atributos não são considerados, mas é a única predileção visto que a

necessidade imediata é de calar a fome.

Existe uma ampla variação de elementos naturais — minerais, vegetais e

animais, os quais podem iminentemente servir de alimento, mesmo que apenas

92 CASTRO J. Geografia da fome (o dilema brasileiro: pão ou aço). 10a Ed. Rio de Janeiro: Antares Achiamé; 1980, p. 182.

93 QUEIROZ, Rachel de. O quinze. 107. Edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017, p. 47.

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uma pequena parcela esteja à disposição dos homens. A seleção desses

elementos, como categoria do espaço comestível pode servir como objeto de

análise em termo de performances adaptativas. Contudo, não se deve reduzir

apenas a isto: as representações simbólicas do comer revelam a arbitrariedade

entre as culturas e participam da diferenciação cultural dos grupos sociais

quando, em biótopos equivalentes, as escolhas são diferentes de uma cultura

para outra, de um determinado grupo para outro. O espaço do comestível, assim

como o sistema culinário são, portanto, a escolhas que cada cultura opera no

interior do conjunto de elementos colocados à sua disposição pelo meio natural,

ou que poderá ser implantada pela decisão do grupo94.

Na obra esta decisão é por muitas vezes reprimida, a soberania alimentar

é retraída, uma vez que para um grupo que passa fome escolher o que comer é

ação de luxo. A partir de então, a escassez torna-se motor da neofilia. A falta de

alimentos faz com que grupos incorporem ao seu repertório ingredientes antes

tidos como culturalmente não comestíveis95. Essa ampliação é vista em O

Quinze. A fome aparece como motora da incorporação de novos alimentos,

antes percebidos culturalmente como não adequados para o consumo. A

alimentação passou a depender da incerteza, na verdade, do inesperado.

Josué de Castro concluiu que o regime alimentar habitual da área do

Sertão Nordestino apresentava-se quantitativa e qualitativamente equilibrado,

atendendo sem déficits e sem excessos às necessidades nutricionais do

sertanejo. Entretanto, esse equilíbrio nutricional estava sujeito às rupturas

cíclicas dos períodos de seca, quando se desorganizava completamente a

economia regional e instalava-se a fome epidêmica. O autor ainda relata que nos

períodos de seca o sertanejo passava imediatamente para um regime de

subalimentação, limitando a quantidade e a variedade de alimentos, reduzindo a

sua dieta ao consumo de um pouco de feijão e farinha de mandioca. Quando a

seca persistia e esses recursos alimentares se esgotavam, o sertanejo lançava

94 POULAIN, Jean-Pierre; PROENCA, Rossana Pacheco da Costa. O espaço social alimentar:

um instrumento para o estudo dos modelos alimentares. Rev. Nutr. [online]. 2003, vol.16, n.3,

pp. 245-256.

95 Fischler C. L'Homnivore. Paris: Odile Jacob; 1990.

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mão de outras estratégias de sobrevivência, como por exemplo consumir as

“iguarias bárbaras” do sertão.

No outro dia cedo durante o percurso, a família de Chico deparou-se com

outro grupo de retirantes:

Encostando-se ao tronco, Chico Bento se dirigiu aos esfoladores:

— De que morreu essa novilha, se não é da minha conta?

Um dos homens levantou-se, com a faca escorrendo sangue, as mãos tintas de vermelho, um fartum sangrento envolvendo-o todo: - De mal- dos-chifres. Nós já achamos ela doente. E vamos aproveitar, mode não dar para os urubus.

Chico Bento cuspiu longe, enojado: E vosmecês têm coragem de comer isso? Me ripuna só de olhar...

O outro explicou calmamente: - Faz dois dias que a gente não bota um de-comer de panela na boca...

Chico Bento alargou os braços, num gesto de fraternidade: - Por isso não! Aí nas cargas eu tenho um resto de criação salgada que dá para nós. Rebolem essa porqueira pros urubus, que já é deles! Eu vou lá deixar um cristão comer bicho podre de mal, tendo um bocado no meu surrão!96

A benevolência de Chico Bento teve um preço. Os insumos repartidos em

ato de fraternidade eram as últimas reservas que restaram do Logradouro. O

grupo de retirantes seguiu a caminhada sem nenhuma reserva e a desolação da

fome havia de chegar e com ela a primeira grande tragédia: a morte do filho por

envenenamento.

Num roçado abandonado, Josias o filho do meio, quase caindo de fome,

não acompanhou os passos da família, longe dos olhos de Cordulina e Chico

Bento que muito estava distraído a procura de um abrigo para passar a noite. O

menino entrou na roça, escavacou com um pequeno pau o chão, numa cova,

onde um tronco de manipeba apontava; e dificultosamente, conseguiu encontrar

uma raiz aparentemente suculenta: avidamente roeu o pedaço seco até os

96 QUEIROZ, Rachel de. O quinze. 107. Edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017, p. 49.

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dentes rangerem. E não demorou muito para o corolário: a criança estiolada foi

o grande primeiro sinal do desalento.

La se tinha ficado o Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz de dois paus amarrados, feita pelo pai. Ficou em paz. Não tinha mais que chorar de fome, estrada afora. Não tinha mais alguns anos de miséria pela frente da vida, para cair depois no mesmo buraco, à sombra da mesma cruz97.

Há uma delicadeza definida de Rachel de Queiroz ao relatar o sofrimento

infantil, uma preocupação compreensível, se considerar que o processo da fome

se manifesta de maneira mais agressiva na criança. A inquietação de Chico

Bento e Cordulina aumenta após a morte de Josias. Um sentimento de

impotência por não poder saciar a fome daquele que depende de seu auxílio, um

momento impossível de suprir as necessidades básicas dos filhos. A chegada

da fome absoluta diferentes consternações: primeiro, as crianças que não

compreendem o momento processo de penúria alimentar; segundo o dos pais,

que sabem que nada pode ser feito, a não ser esperar por providências divinas.

É observável como a fome expande a dimensão alimentar, e por assim

dizer, do culinário. Em O Quinze este espaço desponta transformações simples

e rápidas, ainda que feitas com esmero. Nesses termos é necessário

compreender que “a cozinha é um conjunto de aç es técnicas, de operaç es

simbólicas e de rituais que participam da construção da identidade alimentar de

um produto natural e o transformam em consumível”. Tomando as reflexões de

Claude Lévi-strauss, explica-se.

Um dos eixos do pensamento levistraussiano exposto no I e III volume da

obra Mitológicas é que a culinária marca uma passagem da natureza à cultura.

Para demonstrar essa ideia o antropólogo elabora um triângulo: nos três vértices

temos as categorias fundamentais que falam sobre os estados nos quais os

alimentos se apresentam para os homens: cru, cozido e podre. O cru é o polo

97 Ibid., p. 70.

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não marcado do triângulo, este é o estado o qual se encontram todos os

alimentos do espaço comestível. A partir deles temos duas possibilidades de

transformações opostas: uma cultural, que dá origem ao cozido, e há sempre um

cuidado próprio ao saber culinário, a exemplo da trempe para assar a carne e

preparar o café ou a raspagem feita por Cordulina para da mandioca fazer o

beiju. E outra natural que gera o podre, como as carnes fétidas que o grupo de

retirantes iam-se banquetear98.

Esse modelo se apresenta como uma lente conceitual para analisar a

alimentação, o resultado aqui se deu por uma modificação imbricada no hábito

alimentar da família. Assim como a linguagem, de acordo com Lévi-Strauss, a

cozinha é uma atividade universal, presente em qualquer sociedade humana,

sendo constituída por cada cultura de modo inconsciente, criando assim sua

própria estrutura. Aqui considera-se que a cozinha (o sistema culinário) não

possui um sentido de espaço físico, é mais amplo. Procedimentos culinários ou

práticas de higiene, é um sistema de significados na qual é moldada pelas

práticas alimentares e pelos elementos culturais e simbólicos de um determinado

grupo social, e assim como a linguagem ela é regrada99. Pelo impulso da fome,

carne em estado de putrefação e raiz crua tóxica tornaram-se parte da refeição

dos retirantes e que para além de desobedecer a uma regra cultural alimentar,

instaura o quadro de insegurança alimentar e nutricional.

A fome emerge como uma batalha a qual o retirante tenta vencer um

pouco a cada dia. Depois de sucessivas tragédias, o filho mais velho, Pedro, se

decide sem comunicar aos pais, seguir caminho sem eles, talvez tivesse seguido

alguém. E léguas após, Chico Bento chegando ao Acarape, lugar onde supunha

que ele pudesse ser encontrado, vai pedir ajuda ao delegado, que era por acaso

um compadre seu. Manda saírem em busca do rapaz, mas não o encontram, um

98 LÉVI-STRAUSS, Claude. A origem dos modos à mesa. Tradução de Beatriz Perrone-

Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 435. (Mitológicas, 3).

99 De acordo com Contreras (2011) as regras são normas estabelecidas para impor uma ordem, criadas para ditar como as coisas devem ser realizadas ou organizadas. Questões jurídicas, políticas, sociais são estabelecidas por regras. No tocante à alimentação isto não ocorre de maneira diferente. A espécie humana possui regras sobre o que comer e como comer. Claude Lévi-Strauss estruturou um modelo universal (triângulo culinário) para se compreender as regras culinárias de acordo com diferentes culturas.

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volta com a notícia de que ele provavelmente teria partido com um grupo de

comboieiros de cachaça. Cordulina já nem chora mais, e pensa que talvez fosse

para a felicidade do menino. Talvez também porque os sentimentos já tivessem

se esvaído pela desnutrição, para os corpos famintos, esta é a sentença da fome.

4.2 SENTENÇAS DO REGIME DA ESCASSEZ: O CORPO FAMINTO

Ao traçar zonas fronteiriças entre o biológico e social, Jean-Peirre Poulain

e Rossana Proença assinala que, independentemente da importância que se dá

às dimensões sociais e políticas como determinantes da conduta alimentar, o

certo é que as consequências derivadas da alimentação, neste caso da fome,

são fundamentalmente fisiológicas. A obra descreve bem os fantasmas da seca:

estado de osso e pele, magreza extrema, ventre inchado e pele seca dos corpos

famintos. Além das consequências imediatas da fome sobre o corpo, Rachel

ainda revela o montante de situações que degradam o indivíduo em seus

aspectos emocionais e psicológicos. A luta incessante contra a seca e a fome

acarreta determinados enfrentamentos como, por exemplo, crises de depressão,

ou nas palavras de Mãe Nácia “pessoas loucas” pois “fome demais tira o

juízo”100.

Em diversas passagens do espaço ficcional da obra é possível detectar

sinais que assinalam esse quadro: tristeza profunda, revolta, delírios e

transgressão são estados comuns oriundos do período de fome epidêmica.

Abaixo seguem trechos da obra sobre situações de desordem emocional:

Quadro 4. Citações diretas da obra sobre crises emocionais e psicológicas

página Citação direta

48 “os meninos choramingavam pedindo de comer. E

Chico Bento pensava: “Por que, em menino, a

inquietação, o calor, o cansaço sempre aparecem com

o nome de fome?”

100 QUEIROZ, Rachel de. O quinze. 107. Edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017, p. 84.

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57 “— Mãe, tô com fome de novo...

— Vai dormir, diacho! Parece que tá espritado! Soca

um quarto de rapadura no bucho e ainda fala que tem

fome! Vai dormir!”

72 “— Chico, eu não posso mais... Acho até que vou morrer. Dá-me uma zoeira na cabeça!”

73

82 “— contar o quê? Histórias de seca? Diz que um negro lá pras bandas de Morada Nova matou um menino, salgou, e ficou comendo os pedaços, aos poucos”.

83 “Vicente contava a história de uma mulher conhecida que endoidecera, quando viu os filhos morrendo à falta de comida” “— Talvez tenha enlouquecido também de fome.”

FONTE: Queiroz (2017)101.

Ao analisar estas passagens, no que diz respeito à condição emocional e

psicológica, pode-se observar a perturbação frente a necessidade de alimentar-

se. Os eventos são registrados em curtos intervalos de tempo, o que demarca

uma cotidianidade para os que sofrem e os que rodeiam os famintos. Para Josué

de Castro, a fome pode causar distúrbios mentais e, por isso, a loucura está

muito próxima dela. Mesmo que a fome não se apresente como causa direta

desta enfermidade, ela pode ser o limite para que ela se manifeste.

Uma investigação sobre essa questão foi publicada na Folha de São

Paulo em 31 de maio de 1998. O estudo realizou uma análise sobre a

reportagem Seca e fome acirram distúrbios mentais e constatou que parte da

população no sertão do Ceará apresentaram “surtos de desequilíbrio” com

comportamentos agressivos e violentos. O motivo para o aumento dessas

ocorrências se deu mais aparente nos períodos de seca e estiagem na região,

101 QUEIROZ, Rachel de. O quinze. 107. Edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017.

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em que a fome, castigou os moradores transformando-os nos “loucos da seca”102

103.

Pode-se questionar então, o que há em comum entre o regime da

escassez e a deturpação mental? Ambas produzem sofrimento. A fome pode ser

responsável pelo desmonte ético de cada indivíduo, assim como da referência

de sujeito cidadão e seu comportamento em sociedade, onde o sofrimento

acumulado pela miséria e a opressão de quem nada possui (moradia, dignidade,

comida), faz com que o sujeito submetido a tais situações, se revolte e possa

agir sem qualquer controle, resultando em partes na perda da dignidade, que,

para o homem nordestino, não está nas suas posses, mas na sua conduta. Chico

Bento, em decorrência da miséria em que se vê, mata uma cabra que encontra

pelo caminho. Sua fome e a de seus filhos falam mais alto, e ele esfacela o

animal, sem qualquer questionamento sobre o ato de se apropriar do alheio.

Além desse tipo de confronto, os famintos lidam com outro produto

advindo da fome: o corpo magro, sofrido e desfigurado. Num repentino momento

Chico Bento recordou de Cordulina na época do casamento, sua memória

embaraçada trouxe imagens de uma mulher de branco, gorda e feliz. A imagem

real e a evocada de sua esposa atormentou a cabeça do vaqueiro seus olhos

só podiam ver uma Cordulina de pele empretecida e “magra como a morte”. Além

dela, repousava no colo da mulher, seu filho quase que sumindo entre os trapos,

a criança era só osso e pele104.

Em verdade, sabe-se que do ponto de vista sócio-antropológico o ato de

comer tem forte relação com a dimensão corporal do humano. Bem como o

alimento, o corpo propaga um aglomerado de significados que fundamentam a

existência do sujeito, seja individual ou coletiva, podendo ser moldado de acordo

com o contexto social e cultural. O corpo pode ser compreendido como áxis da

relação com o mundo, na qual todos os significados tomam uma forma e são

102 GUIBU, F. Seca e fome acirram distúrbios mentais. Folha de São Paulo, 31/05/98. 1º caderno, p. 17-18, 1998.

103 REBELLO, Lêda Maria de Vargas. Loucuras da fome. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 643-646, 1998.

104 QUEIROZ, Rachel de. O quinze. 107. Edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017, p. 72-73.

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refletidos na fisionomia de cada pessoa. Como nos lembra o sociólogo Claude

ischler “somos aquilo que nós comemos”, tanto por um plano real como

imaginário. O alimento absorvido, além de proporcionar a energia vital

necessária para a sua manutenção do corpo e que, portanto, atua na sua

modificação. Por isso, a incorporação de nutrientes é válida também no plano

imaginário, uma vez que permite cruzar a fronteira entre o eu e o mundo,

concedendo que se construa sua natureza, sua identidade105 106.

Tanto o corpo como o comer são instituidores de uma identidade individual

ou coletiva. Os corpos dos retirantes foram moldados pelas violações e privações

da inanição, a imagem da desnutrição e da magreza extrema opera como

espelho das injustiças sociais. A fome além de definhar e corroer a sua carne,

produziu marcas da identidade corporal como as duas imagens de Cordulina

deliradas por Chico Bento. Nesta situação, o comer ou a privação, através do

corpo, atuam como marcadores do espaço da diferenciação social107.

Nas sociedades multifárias, as diferentes classes e culturas orientam as

significações e valores que os indivíduos possuem com o seu corpo. A forma

estética do corpo pode representar um conjunto de condutas dadas por uma

determinada classe social. À vista disso, tem se observado que indivíduos de

classes baixas preferem pela estética do corpo gordo, isto pode ser explicado

pelo fato de que o padrão de estética que valoriza o ac mulo de gordura, “a

barriga cheia”, são formas de guerrear contra a ameaça da fome108.

Rachel de Queiroz não oferece nenhuma representação imagética dos

corpos famintos da seca de 1915. Mas, além dos registros nas obras literárias,

outros artistas também propuseram reflexões neste contexto, porém, em

molduras de arte. Cândido Portinari (1903-1962) nasceu em Brodowski no

105 POULAIN, Jean-Pierre; PROENCA, Rossana Pacheco da Costa. O espaço social alimentar: um instrumento para o estudo dos modelos alimentares. Rev. Nutr. [online]. 2003, vol.16, n.3, pp. 245-256.

106 FISCHLER, Claude. El (h)omnívoro: el gusto, la cocina y el cuerpo. Barcelona: Editorial Anagrama, 1995.

107 POULAIN, Jean-Pierre; PROENCA, Rossana Pacheco da Costa. O espaço social alimentar: um instrumento para o estudo dos modelos alimentares. Rev. Nutr. [online]. 2003, vol.16, n.3, pp. 245-256. 108 LE BRETON, David. A sociologia do corpo. 2. ed. Tradução de Sônia Fuhrman. Petrópolis: Vozes, 2007.

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Estado de São Paulo e ficou conhecido por suas obras de pintura em retratar a

história do brasil em amplos aspectos. Dentre delas, a obra Retirantes de 1944,

como o próprio nome anuncia, retrata uma família migrando em terras

sertanejas.

Imagens 7: Retirantes de 1944. Fonte: Museu de Arte de São Paulo – MASP109.

O contorno escuro dos personagens dá um tom pesado à obra. Ao fundo

é possível notar características da paisagem do sertão. Os quadros retratam de

uma forma assustadoramente magra, onde a pele fina cobre os ossos. Em os

Retirantes uma criança pequena de barriga inchada caracteriza o quadro de

109 https://masp.org.br/busca?search=portinari

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Kwashiorkor. Assegura-se que o caminhar seja em busca de um mundo melhor.

4.3 A VIOLAÇÃO DO DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO

A seca ensinou à humanidade grandes lições na relação entre o homem

e a natureza: seja pelo desmonte da agricultura ou a relação de algumas

populações em lidar com um regime de escassez de alimentos. Daí a

importância de se pensar bases de uma política de segurança e soberania

alimentar para que cada comunidade ou nação possam produzir e gerenciar sua

comida de modo a não ficar tão vulnerável a embargos climáticos. O sertão de

Rachel de Queiroz sofreu com a falta de alimentos e também de políticas que

assegurassem o direito à alimentação.

A seca trouxe à tona miséria, sangue, conflitos. Em várias passagens a

autora não silencia diante dos governantes, culpando-os pela situação

catastrófica que afetava o povo oprimido. A imagem da jovem leitora solitária é

a matriz da organização formal da obra; a partir de Conceição o enredo vai se

moldando numa unidade de sentido. Ela é a personagem que imita a escritora,

não apenas pelas proximidades literárias ou as leituras sobre a pedagogia, mas

pelo princípio de mover os caminhos sociais: Rachel de Queiroz projeta na

protagonista meios para subjetivar-se e trazer à tona às experiências da fome

vistas por ela, e mais do que isso, denunciá-la como iniquidade social. As

palavras de Josué de Castro ressaltam que a fome é hierárquica, por isso nem

todos foram atingidos por ela, mas, o fato é que todos foram submetidos a um

regime diferente ao que tinham antes da grande seca. A seca, portanto, marca

um período na história do sertanejo não apenas de carências, mas também de

descaso político-social.

Ao analisar a situação de vulnerabilidade, pobreza e miséria face à

insegurança alimentar presente na obra, é possível notar o cenário descrito por

Rachel retratando o Brasil carente de uma política de alimentação e combate à

fome. Apenas com Josué de Castro, 15 anos depois da publicação de O Quinze,

foi que os primeiros inquéritos sobre fome e subnutrição evidenciaram o quadro

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brasileiro110. Nessa época, as questões governamentais eram voltadas na

tentativa de amenizar os efeitos do clima e não a questão alimentar, como mostra

um estudo realizado por Campos (2014) que tenta remontar os períodos de

secas e o envolvimento de políticas públicas no semiárido111.

Segundo o autor do estudo a periodização foi organizada em cinco fases,

a terceira delas chamada de a hidráulica da solução (1877-1958) foi o primeiro

posicionamento efetivo do governo central para criar uma política de redução da

vulnerabilidade do semiárido às secas. Dentre as propostas, estava a construção

do açude do Quixadá para melhorias na agricultura e no desenvolvimento local.

As secas agrícolas persistiram, porém os impactos na economia e nas

populações estivessem relativamente menores, não significou que as pessoas

tivessem acesso e garantias à alimentação regular e de qualidade, como bem

afirma Josué de Castro.

A família de Chico Bento não representa um caso isolado da época.

Estima-se que na capital Fortaleza um amontoado de 8 mil pessoas estava na

mesma situação. Se as ações contra a seca não foram efetivas para conter a

situação dos famintos e manter a organização outras diligências deveriam ser

tomadas. Isto é, sertanejos que partiram para Fortaleza, o governo local

precisava tomar uma atitude para que a grande leva de retirantes não afetasse

a ordem vigente e nem os interesses da elite. A resposta em decorrência do

grande fluxo migratório foi a criação dos campos de concentração112. A obra

retrata a situação do Alagadiço, o que seria o “auschwitz cearense”

E, sem saber como, acharam-se empolgados pela onda que descia, e viram levados através da praça da areia, e andaram por um calçamento

110 SOUZA, Nathália Paula de et al. A (des)nutrição e o novo padrão epidemiológico em um contexto de desenvolvimento e desigualdades. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 7, p. 2257-2266, Julho 2017.

111 CAMPOS, José Nilson B. Secas e políticas públicas no semiárido: ideias, pensadores e períodos. Estud. av., São Paulo, v. 28, n. 82, p. 65-88, Dezembro 2014.

112 O propósito do campo de concentração era evitar que os retirantes chegassem a Fortaleza, trazendo “o caos, a miséria, a moléstia e a sujeira”, como informavam os boletins do poder público à época.

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pedregoso, e foram jogados a um curral de arame onde uma infinidade de gente se mexia, falando, gritando, ascendendo fogo.

[...] Chico Bento olhava a multidão que formigava ao seu redor. Na escuridão da noite que se fechava, só se viam vultos confusos, ou alguma cara vermelha e reluzente junto a um fogo. Tudo aquilo palpitava de vida, e falava, e zunia em gritos agudos de meninos [...] E estendendo a vista longe, até aos limites do Campo de Concentração, onde os fogos luziam mais espalhado, o vaqueiro sacudiu na boca uma mancheia de farinha que lhe oferecia a mulher, e procurando quebrar entre os dedos um pedaço de rapadura, murmurou de certo modo consolado: — Posso muito bem morrer aqui; mas pelo menos não morro sozinho...113

Estas ações foram urgentes e necessárias para o governo da época como

garantia de que não houvesse qualquer insurreição do homem flagelado,

desesperado de fome e que o mesmo permanecesse submisso à sua realidade

hostil. Um vasto campo de cajueiros e mangueiras, ainda que sem qualquer

condição infra estrutural, onde famílias inteiras de flagelados se abrigavam do

relento nas copas das árvores ou em barracas rudimentares sem conforto

mínimo ou qualquer privacidade. As condições sanitárias eram deploráveis, a

ração (única comida ofertada) não atendia à demanda da população e a

proliferação de doenças e desfechos fatais eram uma constante, já que não

havia serviço de saúde disponibilizado pela capital para a população. O campo

de concentração do Alagadiço fugiu completamente aos objetivos de seus

idealizadores e passou a ser um local onde a promiscuidade era patente. A falta

de moralismo como saques e assassinatos eram uma constante, assim como o

adoecimento psíquico grave, visto que foram mencionados vários casos de

perda total da razão e de altas taxas de suicídios.

O Quinze possibilita uma reflexão sobre a evolução que o Brasil sofreu

entre os anos de 1915 até os dias atuais, no tocante das políticas públicas

voltadas para as causas sociais e, sobretudo, veiculadas à questão da

alimentação como um direito básico e igual para todos. A narrativa de Chico

Bento prático daqueles que estão às margens de uma vida sem dignidade,

refletindo a imagem de uma população brasileira que não tinha meios para

vencer a situação de extrema precariedade alimentar. Nos dias de hoje, grande

113 QUEIROZ, Rachel de. O quinze. 107. Edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2017, p. 94-95.

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parte dos homens, mulheres e crianças possuem meios para terem acesso a um

alimento de qualidade e em quantidade suficiente, sendo assegurados pelas

políticas e ações governamentais da SAN. Com esta evolução, mudanças

ocorreram no cenário brasileiro e, atualmente, por causa das decisões políticas,

o Brasil está fora do mapa da fome no mundo, o que confirma assim a afirmação

de Josué de Castro que: a fome é um fenômeno social de causas políticas.

Imagem 7 – Notícia sobre o Campo de Concentração dos Flagelados, publicada no Jornal O

POVO, em 16/04/1932. Fonte: Museu de imagens114.

114 http://www.museudeimagens.com.br/grande-seca-do-nordeste/

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Imagem 8 - Vítimas da seca. Crianças e adultos jazem ao lado da linha férrea que

levava para o Campo de concentração de Senador Pompeu. Fonte: Museu de imagens115

Neste ponto da discussão, pode-se perceber que não é a seca,

propriamente, a principal causa da fome que Rachel de Queiroz pronuncia na

obra, apesar de sua constância. O flagelo narrado de O Quinze, assim como a

epidemia de cegueira de Saramago ou a peste de Camus, são grandes

calamidades destruidoras da ordem, que servem de subterfúgio para romper o

verniz civilizatório que encoberta o ser humano e o meio o qual se insere. O

espaço narrativo evidencia o sofrimento que a seca desencadeia mediante as

reações dos diferentes personagens frente à tragédia, com isso, traça um perfil

de certos caracteres humanos apreendidos no próprio espaço literário. Encontra-

se homens e mulheres sendo desumanizados.

Ao traçar a modelização do espaço alimentar na obra, torna-se claro as

condições de pobreza, fome, desamparo político e violência que caracterizam

115 http://www.museudeimagens.com.br/grande-seca-do-nordeste/

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um cenário de violação dos direitos humanos e de uma alimentação adequada.

Desde o contexto histórico da obra até os dias atuais passaram-se mais de um

século, e ainda é possível notar — em grandes escalas numéricas — famílias

como a de Chico Bento que enfrentam diariamente situações de Insegurança

Alimentar e Nutricional (ISAN). Um cenário o qual Josué de Castro questiona se

a calamidade da fome é “um fenômeno natural, inerente à própria vida, uma

contingência irremovível como a morte? Ou será a fome uma praga social criada

pelo próprio homem?” O próprio responde, seguramente, que a natureza não é

mesquinha e que na verdade eventos como a fome e a guerra desobedecem a

qualquer lei natural e são, em sua completude, criações humanas. E Rachel de

Queiroz de alguma forma relatou isso.

Em verdade, não se pode atribuir um conjunto de causas metafísicas a

essa problemática, mas deve-se reconhecer que a mesma ocorre pela pauta da

matéria humana, e que abre um ponto chave para essa discussão: em que

circunstância o espaço narrativo e social alimentar em O Quinze auxilia a pensar

a problemática da fome nos dias atuais? Superar as desordens alimentar envolve

uma transformação dos modelos alimentares como bem nos lembra Raj Patel

“To overcome the food crisis, we need to transform the food system.”116

Sob o olhar retirante medidas ínfimas: campos de concentração para

famintos e miseráveis, construção de barragens e açudes pouco ofereceu

dignidade aos Bentos e seus semelhantes, pelo contrário, o resultado foi um

amontoado de doença e mais miséria. De outra vertente, os proprietários de terra

perderam gradativamente a força trabalhadora da agricultura. Rachel de Queiroz

utilizou-se da temática para explorar a condição humana diante da impotência

do homem frente aos acontecimentos naturais intensificados pela realidade

social e econômica do sertanejo pobre.

Caso fosse possível retratar a vida de famílias como os Bentos no cenário

no Brasil atual, certamente outras medidas ligadas à SAN concederiam uma

melhoria na situação alimentar e os recursos para prover alimentos. Programas

como Bolsa Família, Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE),

116 PATEL, Raj. Shattuck, Annie. Holt-Giménez, Eric. Food Rebellions: Crisis and the Hunger for Justice. Foreword by Walden Bello. 2009.

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Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) entre outros, contemplam famílias

que estão em situação de vulnerabilidade social, garantindo assim o direito à

uma alimentação regular e adequada. Caso se tome o Programa Bolsa Família

como um exemplo prático para relacionar com a situação de vida de Carolina,

pode-se contextualizar uma realidade totalmente distinta e com mais dignidade,

uma vez que, os objetivos do programa são o de assegurar o DHAA, promover

a SAN, contribuir para a erradicação da extrema pobreza e conquistar um espaço

de cidadania pela parcela da população mais vulnerável à fome.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Partindo da leitura de uma autora que advoga para a construção da

literatura famélica, por meio da obra O Quinze de Rachel de Queiroz apresentou-

se a fome histórica como marca das iniquidades sociais. A escassez da terra e

de políticas que resultam na violação do DHAA, visto que foram rompidas as

duas dimensões indivisíveis: o direito de permanecer livre da fome

(independente da situação climática) e da má nutrição e o acesso regular e

permanente a uma alimentação adequada e suficiente em termos de qualidade

e quantidade. A fome é um fenômeno ligado à questões históricas e políticas, e

isso ser pode revelado na trajetória dos retirantes que sofreram na penúria do

sertão.

O espaço social alimentar caracterizado pela insegurança alimentar e

nutricional apresentou a alimentação nestes cenários de crise. A redução de

alimentos A redução da quantidade de alimentos implicou na inserção de

alimentos outrora não comestíveis do ponto de vista cultural; quanto à produção

de alimentos, observou-se uma diminuição da produção alimentar no contexto

da região, sobretudo no âmbito dos pequenos produtores; na dimensão do

culinário do culinário: comida de retirante, com transformações simples e

rápidas, improvisadas com adereços ofertados da natureza; no âmbito da

partilha percebe-se uma modificação dos ritos de comensalidade no contexto da

escassez, o comer solitário, durante as poucas refeições não havia diálogo,

apenas lembranças e reflexões da condição do exílio, a fome parece

comprometer tanto a sociabilidade como a ritualização alimentar; na questão da

temporalidade, a fome como cicatriz do corpo histórico.

A dificuldade do acesso aos alimentos é marcada por uma variação cíclica

do clima dos períodos de abundância e escassez: (1) tempo de abundância,

marcada pelo consumo de produtos de alto valor energético como farinha, carne

seca e feijão e agregam um valor simbólico ligado a fartura, aos tempos de

inverno. (2) A escassez, resulta na migração, na fome e o trabalho torna-se um

caminho de sobrevivência em meio às condições precárias.

A literatura famélica atuou como um espaço para produção de uma

poética de busca pela dignidade. Um espaço frutífero que emerge da interrelação

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entre a produção histórica contida na obra, a voz de denúncia da autora e as

perspectivas em contribuir com este trabalho, dada pela visão do leitor e

pesquisador. Rachel deixa evidente a imagem de quem somos quando não

comemos; e por isso a necessidade de lutar por aqueles que tem fome.

De forma encorajadora, os movimentos de base ampla para a soberania

alimentar - literalmente, o governo autônomo do sistema alimentar das pessoas

- estão disseminados e crescendo rapidamente apesar dos atropelos políticos

do atual governo. Precisa-se lutar pelo o direito das pessoas a alimentos

saudáveis e culturalmente apropriados produzidos através de métodos viáveis e

sustentáveis e seu direito de definir seus próprios sistemas alimentares e

agrícolas, a soberania alimentar propõe que as pessoas, ao invés de monopólios

corporativos, tomem as decisões relativas à nossa comida. Esta é uma premissa

desta pesquisa.

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ANEXOS

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ANEXOS 1

Páginas do corpus marcada com cores para cada dimensão do ESA.

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ANEXO 2

Inferências e dados da pesquisa

A obra

a. Espacialidade geral

Quixadá, passagens pelas terras do sertão cearense e Fortaleza.

b. Ficha técnica (edição utilizada para análise)

Título: O Quinze

Escritora: Rachel de Queiroz

Editora: José Olympio

ISBN: 978-85-03-01292-8

Edição: 107ª

Número de Páginas: 205

Ano: 2017

RESUMO DOS CAPÍTULOS

Capítulo Descrição breve

I Apresentação: Conceição planeja sair do Quixadá com sua avó Dona Inácia para Fortaleza

II Apresentação: Vicente e o trabalho do campo

III Apresentação: Chico Bento e a família

IV Preocupação de Vicente em manter o trabalho com o gado e o despejo de Chico Bento

V Tentativa de Chico Bento em conseguir passagens e insumos para viajar com a esposa e os filhos

VI Partida de Conceição e Dona Inácia no trem rumo à capital

VII Início da migração de Chico Bento

VIII Vicente e seus devaneios: sertão à beira morte e Conceição distante de seus olhos.

IX A primeira desolação da fome dos que caminham por terra

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X A morte de Josias envenenado

XI Conceição no campo de concentração em Fortaleza

XII A fome já instaurada: Chico Bento rouba e esfola animais para sobrevivência

XIII Breve relato de Mocinha

XIV Vicente vai até Fortaleza

XV Desaparecimento de Pedro, o filho mais velho de Chico Bento e Cordulina

XVI Chegada de Chico bento aos campos de concentração

XVII Retorno de Vicente ao Quixadá

XVIII Encontro de Conceição e Chico bento no campo de concentração em Fortaleza

XIX Chico Bento consegue trabalho nas escavações de açudes

XX Partida para nova vida: Chico Bento consegue viajar

XXI Vicente e os delírios da vida; saudades de um romance que nunca aconteceu

XXII Conceição e o trabalho solidário

XXIII Morte do Duquinha, filho mais novo de Chico Bento e Cordulina.

XXIV Início das chuvas

XXV Há esperança! Dona Inácia prepara-se para o retorno ao Quixadá

XVI Desfecho: nova terra, nova vida!

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Página Espaço ficcional

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“Encostado a uma jurema seca, defronte ao juazeiro que a foice dos

cabras ia pouco a pouco mutilando, Vicente dirigia a distribuição de rama

verde ao gado. Reses magras, com grandes ossos agudos furando o

couro das ancas, devoraram confiadamente os rebentões que a ponta

dos terçados espalhava pelo chão”.

30 “depois olhou um garotinho magro que, bem pertinho, mastigava sem

ânimo uma verg ntea estorricada”.

30 “- Ô sorte, meu Deus! Comer cinza até cair morto de fome”

36 “Agora, ao Chico Bento, como nico recurso, só restava arribar. Sem

legume, sem serviço, sem meios de nenhuma espécie, não havia de ficar

morrendo de fome, enquanto a seca durasse”.

37 “ ... matando as criaç ezinhas que restavam, para comerem em

caminho, que é que faltava? Nem trem, nem comida, nem dinheiro...”

38 “Sonolenta, ainda, a meninada se levantava, esfregando os olhos,

espreguiçando-se em bocejos rasgados, em longas distensões que lhes

salientavam o relevo das costelas”.

40 “— Desgraçado! Quando acaba, andam espalhando que o governo ajuda

os pobres... Não ajuda nem a morrer!”

41 “— Ô mocinha! Vê se tu dás um pirão de peixe a este menino que anda

em tempo de me comer os peitos!”

41 “— Como se foi, Chico? Trouxe o dinheiro e as passagens?”

“— Que passagens! Tem de ir tudo é por terra, feito animal! Nesta

desgraçada quem é que arranja nada! Deus só nasceu pros ricos!”

43 “— Deixar tudo assim, morrendo de fome e de seca! Fazia vinte e cinco

anos que eu saía do Logradouro, a não ser para o Quixadá!...”

46 “O vaqueiro foi aos alforjes e veio com uma manta de carne de bode,

seca, e um saco cheio de farinha, com quarto de rapadura dentro”.

47 “Sem se importarem com o sal, os meninos metiam as mãos na farinha,

rasgavam as lascas de carne, que engoliam, lambendo os dedos”.

48 “os meninos choramingavam pedindo de comer. E Chico Bento pensava:

“Por que, em menino, a inquietação, o calor, o cansaço sempre aparecem

com o nome de fome?”

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49 “— Mãe, queria comer... me dá um taquinho de rapadura!”

“— De que morreu essa novilha, se não é de minha conta? Um dos

homens levantou-se com a faca escorrendo sangue, as mãos tintas de

vermelho, um fartum sangrento envolvendo-o todo ”

“— De mal dos chifres. Nós já achamos ela doente. E vamos aproveitar,

mode não dar para os urubus. Chico Bento cuspiu de longe, enojado:

— E vosmecês têm coragem de comer isso? Me ripuna só de olha...

O outro explicou calmamente:

— Faz dois dias que a gente não bota um de-comer de panela na boca...

Chico Bento alargou os braços, num gesto de fraternidade:

— Por isso, não! Aí nas cargas eu tenho um resto de criação salgada que

dá pra nós. Rebolem essa porqueira pros urubus, que já é deles! Eu vou

lá deixar um cristão comer bicho podre de mal, tendo um bocado no meu

surrão!”

50 “— Chico, que é que se come amanhã?”

“— Sei lá! Deus ajuda! Eu é que não havera de deixar esses desgraçados

roerem osso podre...”

51 “Recordando a labuta do dia, o que dominava agora era uma infinita

preguiça da vida, da eterna luta com o sol, com a fome, com a natureza”.

56 “Chegou a desolação da primeira fome. Vinha seca e trágica, surgindo

no fundo dos sacos vazios, na descarnada nudez das latas raspadas”.

57 “— Mãe, tô com fome de novo...

— Vai dormir, diacho! Parece que tá espritado! Soca um quarto de

rapadura no bucho e ainda fala que tem fome! Vai dormir!”

57 “— Ah! Minha rede! Ô chão duro dos diabos! E que fome!”

“Levantou-se, bebeu um gole na cabaça. A água fria, batendo no

estômago limpo, deu-lhe uma pancada dolorosa. E novamente estendido

de ilharga, inutilmente procurou dormir.”

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59 “Chico Bento também já não estava no rancho. Vagueava à toa, diante

das bodegas, à frente das casas, enganando a fome e enganando a

lembrança de que lhe vinha, constante e impertinente, da meninada

chorando, do Duquinha gemendo: Tô tum fome! De tumê!”

63 “A criança era só osso e pele o relevo do ventre inchado formava quase

um aleijão naquela magreza, esticando o couro seco de defunto,

empretecido e malcheiroso.”

77 “E um foguinho de garranchos, arranjado por Cordulina com um dos

últimos fósforos que trazia no cós da saia, assaram e comeram as tripas,

insossas, sujas, apenas escorridas nas mãos”.

84 “Vicente contava agora a história de uma mulher conhecida que

endoidecera, quando viu os filhos morrendo à falta de comida.

Dona Inácia observou:

— Talvez tenha enlouquecido também de fome. Fome demais tira o

juízo”.

92 “— Então, compadre, que foi isso? A velha largou você?

— Ela não quis tratar do gado mode a seca, e mandou abrir as porteiras...

E eu fiquei sem ter o que fazer. A morrer de fome lá, antes andando...”.

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APRESENTAÇÃO DOS PERSONAGENS

Personagens principais

Conceição: Neta de Dona Inácia. É culta e tem ideias avançadas sobre

a condição feminina de sua época. Tinha vocação para ser “solteirona”

não sentia vontade de casar, tendo uma perspectiva diferente do

comportamento feminino tradicional da época (casar e fazer crescer os

filhos). O único homem que lhe despertou desejos é o primo Vicente. Ela

é a figura principal da obra, uma vez que faz a ligação dos dois planos já

citados da histórias.

Dona Inácia (Mãe Nácia): Avó de Conceição, espécie de mãe, pois foi

quem a criou depois que a mãe verdadeira morreu. É dona da fazenda

Logradouro, na região de Quixadá. Não aprova as ideias liberais da neta,

mas tem muito carinho e cuidado por ela.

Vicente: Filho de fazendeiro rico (major). Desde menino, quis ser

vaqueiro. No início, isso causava tristeza e desgosto à família,

principalmente à mãe, Dona Idalina. Vicente é o vaqueiro não-tradicional

da região. Cuida do gado com um desvelo incomum, mas cuida do que é

seu, ao contrário dos outros (Chico Bento é o exemplo) que cuidam de

gado alheio. Tem boas condições financeiras, mas é humano em relação

à família e aos empregados. Não é um rico metido.

Chico Bento: É o vaqueiro pobre que cuida do rebanho de Dona Maroca,

da fazenda das Aroeiras, na região de Quixadá. Ele e Vicente são

compadres e vizinhos. Chico Bento tem a mulher (Cordulina) e cinco

filhos, todos ainda pequenos. Expulso pela seca e pela dona da fazenda,

Chico Bento e família empreendem uma caminhada desastrosa em

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direção a Fortaleza. Perde dois filhos no caminho: um morre envenenado

(Josias), o outro desaparece (Pedro). Antes de embarcar para São Paulo,

doa o mais novo (Duquinha) para a madrinha, Conceição (que estava em

Fortaleza, com a Dona Inácia, por causa da seca). De Fortaleza, Chico

Bento e parte da família vão, de navio, para São Paulo.

Cordulina: É a esposa de Chico Bento. Personifica a mulher submissa,

analfabeta, sofredora, com o destino atrelado ao destino do marido. É o

exemplo da miséria como consequência da falta de instrução.

Personagens Secundários:

Chiquinha Boa: trabalhava na fazenda de Vicente, mas deixou a região

rural na época da seca achando que o governo estava ajudando os pobres

que migravam para a capital;

Luis Bezerra: amigo e compadre de Chico Bento e Cordulina. Também

trabalhou na fazenda de Dona Maroca (fazenda de Aroeiras), mas saiu e

se tornou delegado;

Pedro: filho de Chico Bento que desaparece durante a peregrinação da

família sertão a dentro;

Josias: filho de Chico Bento que morre envenenado;

Duquinha: filho caçula de Chico Bento doado à Conceição;

Mocinha: Irmã de Cordulina, portanto cunhada de Chico Bento

Paulo: irmão mais velho de Vicente que mora na Capital

Lourdinha: irmã mais velha de Vicente

Alice: irmã mais nova de Vicente

Dona Idalina: prima de Dona Inácia e a mãe de Vicente, Paulo, Alice e

Lourdinha

Mariinha Garcia: moradora de Quixadá, interessada em Vicente e amiga

de suas irmãs

Major: fazendeiro rico da região de Quixadá, pai de Vicente e das

meninas.

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Dona Maroca: fazendeira e dona da fazenda Aroeiras, na região de

Quixadá que resolve não ter prejuízos e abandona seu rebanho e

empregados antes que a seca se mostre mais feroz.

Zefinha: filha do vaqueiro Zé Bernardo, o braço direito de Vicente no cuido

do gado. É com quem a vizinhança comentava que Vicente teria tido um

caso.