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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA MESTRADO ACADÊMICO EM GEOGRAFIA ROSE DOS SANTOS MAIA GEOGRAFIA E LITERATURA: UM DIÁLOGO COM O SERTÃO NO ROMANCE “O QUINZE” DE RACHEL DE QUEIROZ. FORTALEZA CEARÁ 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA

MESTRADO ACADÊMICO EM GEOGRAFIA

ROSE DOS SANTOS MAIA

GEOGRAFIA E LITERATURA: UM DIÁLOGO COM O SERTÃO NO ROMANCE “O

QUINZE” DE RACHEL DE QUEIROZ.

FORTALEZA – CEARÁ

2016

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ROSE DOS SANTOS MAIA

GEOGRAFIA E LITERATURA: UM DIÁLOGO COM O SERTÃO NO ROMANCE “O

QUINZE” DE RACHEL DE QUEIROZ.

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Geografia do Programa de Pós-Graduação em Geografia do Centro de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Geografia. Área de concentração: Análise geoambiental e ordenação do território nas regiões semiáridas e litorâneas. Linha de pesquisa: Estrutura dinâmica do espaço regional, urbano e rural.

Orientador: Prof. Dr. Otávio José Lemos Costa.

FORTALEZA – CEARÁ

2016

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ROSE DOS SANTOS MAIA

“GEOGRAFIA E LITERATURA:UM DIÁLOGO COM O SERTÃO NO ROMANCE ‘O

QUINZE’ DE RACHEL DE QUEIROZ”

Dissertação apresentada ao Curso de

Mestrado Acadêmico em Geografia do

Programa de Pós-Graduação em Geografia

do Centro de Ciências e Tecnologia da

Universidade Estadual do Ceará, como

requisito parcial à obtenção do título de

Mestre em Geografia. Área de Concentração:

Análise Geoambiental e Ordenação no

Território nas Regiões Semiáridas e

Litorâneas.

Aprovada em: 31 de agosto de 2016

BANCA EXAMINADORA:

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Dedico este trabalho à Maria Matilde e Mário

(pais), Ruth e Raúl (irmãos), e ao querido

Diego (esposo). E pelo grande aprendizado à

Profª Cláudia Grangeiro (In memoriam).

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AGRADECIMENTOS

Após anos de trabalho árduo sinto-me recompensada por tudo. Quantas horas de

estudo e trabalho dedicados, quantas pedras que tiveram que ser ultrapassadas,

enfim, tudo valeu a pena. Para que alcançássemos nosso objetivo alguns se fizeram

importantes.

Agradeço primeiramente a Deus, por seu infinito amor, oferecendo o dom da vida e a

oportunidade de crescimento enquanto espírito na escola da Terra.

Aos meus pais Mário e Matilde, por me aceitarem enquanto filha, pela dedicação e

imenso amor em prol de nossa família, fortalecendo meu crescimento pessoal e

profissional. Agradeço em especial minha Mãe por nunca soltar minha mão quando

necessitei, por sempre acreditar e apoiar minhas escolhas, por estar disponível à me

ouvir, obrigada por ser minha mãe, sei que não poderia ter feito escolha melhor. Aos

meus irmãos Ruth e Raul, pela oportunidade de amar e dividir, não consigo sentir

minha existência sem vocês, amigos de sangue e coração. Ao meu esposo Diego,

pelo amor, parceria e paciência ao longo dessa caminhada.

À Professora Cláudia Grangeiro (In memoriam) por seu exemplo e apoio. Por me

mostrar que podemos ser profissionais movidos pelo coração. Nunca esquecerei sua

torcida e apoio na conquista de mais essa etapa. Eis imensamente especial.

Ao meu orientador Professor Otávio Lemos por aceitar o desafio junto comigo, por sua

orientação e aprendizado acumulado. Que sua carreira seja sempre marcada pelo

sucesso. E aos colegas do Laboratório de Estudos em Geografia Cultural pelo

aprendizado em nossas tardes do grupo de estudos.

Aos professores Drª. Cleudene Aragão (UECE) Dr. Solonildo Almeida (IFCE) por

participarem das bancas de qualificação e defesa. Todas as análises e sugestões são

de suma importância para a construção da pesquisa, na qual tentarei fazer as devidas

correções.

Ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estatual do Ceará

por todo conhecimento e infraestrutura dispensada a nós pesquisadores. Ao corpo

docente do Curso de Metrado em Geografia, que muito contribuiu na construção

desse trabalho, através das aulas, palestras e seminários. Pela paciência e simpatia

das queridas Julia, Adriana e Aparecida.

À querida Yara Castro pela amizade e apoio nessa jornada acadêmica, sei que sem

sua mão amiga seria mais difícil.

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Ao Programa de Educação Tutorial (PET) do curso de Geografia, da Universidade

Estadual do Ceará, por me aceitarem enquanto parte do grupo durante minha

graduação. Os anos que passei trabalhando e estudando com o PET me marcaram

eternamente, influenciaram no meu crescimento enquanto pessoa e futura profissional

da educação. Jamais esquecerei a longas e ricas tardes de leituras geográficas, as

horas dedicadas às mais diversas atividades, as amizades que construí que vão durar

por toda a vida.

Aos meus colegas de turma pelo aprendizado construído em nossos encontros, pelos

conselhos e indicações, aprendi muito com cada um.

À gestão da EEFM Parque Presidente Vargas, pois sem seu apoio jamais conseguiria

alcança o objetivo de me tornar mestre em Geografia. Pela paciência em ceder

horários flexíveis para que pudesse está presente em minhas aulas e encontros. Pelo

incentivo dado a nós professores que temos à formação como base de nossa

profissão.

Gostaria de agradecer as minhas amigas “De Quinta” pela amizade e torcida nessa

nova etapa da minha vida profissional, com vocês meus dias são mais alegres.

Aos meus queridos alunos por me oferecer a oportunidade diária de ser uma

professora em constante superação. Por serem a utopia de minha vida, que me faz

caminhar sempre em direção ao melhor que podemos ser.

Enfim, agradeço à todos que direta ou indiretamente me apoiaram nessa jornada de

crescimento pessoal e profissional.

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[...]

Rompeu-se o Natal

Porém barra não veio

O sol bem vermeio

Nasceu muito além

Meu Deus, meu Deus

Na copa da mata

Buzina a cigarra

Ninguém vê a barra

Pois a barra não tem

Ai, ai, ai, ai

Sem chuva na terra

Descamba Janeiro,

Depois fevereiro

E o mesmo verão

Meu Deus, meu Deus

Entonce o nortista

Pensando consigo

Diz: "isso é castigo

não chove mais não"

Ai, ai, ai, ai

Apela pra Março

Que é o mês preferido

Do santo querido

Senhor São José

Meu Deus, meu Deus

Mas nada de chuva

Tá tudo sem jeito

Lhe foge do peito

O resto da fé

Ai, ai, ai, ai

Agora pensando

Ele segue outra tria

Chamando a famia

Começa a dizer

Meu Deus, meu Deus

Eu vendo meu burro

Meu jegue e o cavalo

Nós vamos a São Paulo

Viver ou morrer

Ai, ai, ai, ai

Nós vamos a São Paulo

Que a coisa tá feia

Por terras alheia

Nós vamos vagar

Meu Deus, meu Deus

Se o nosso destino

Não for tão mesquinho

Cá e pro mesmo

cantinho

Nós torna a voltar

Ai, ai, ai, ai

[...]

(Triste Partida – Patativa

do Assaré)

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RESUMO

Trabalhos de cunho interdisciplinar vem tendo novas conotações no meio acadêmico,

se mostrado de extrema relevância, pois busca um diálogo entre áreas, antes, sem

afinidades aparentes. O diálogo entre Geografia e Literatura objetiva novas

possibilidades de investigações, dando ênfase a perspectivas humanistas com base

na filosofia fenomenológica. Alguns estudos de Geografia Cultural recorre ao texto

literário como fonte de análise, com o objetivo de encontrar nas obras literárias

informações sobre lugares e/ou épocas. Desde modo, temos como objetivo

estabelecer um diálogo entre Geografia e Literatura, com o intuito de perceber novas

espacialidades contidas na literatura. Para a experiência do diálogo entre Geografia e

Literatura, trabalhamos com o romance “O Quinze”, escrito por Rachel de Queiroz em

1930, que tem a seca de 1915 enquanto fio condutor da narrativa e como forma de

compreensão da paisagem do sertão. Nesta perspectiva, escolhemos o conceito de

paisagem para a pesquisa, o qual entendemos enquanto resultado de uma dada

cultura, que através de seus elementos, estabelece a mediação na transmissão de

conhecimento, valores e símbolos. Observamos que o sertão se apresenta sob a

paisagem da seca, seja no sertão de Quixadá ou na cidade de Fortaleza, a seca se

apresenta enquanto mediadora na estrutura do romance, culminando em uma serie

de problemáticas sociais, tais como o êxodo rural, a miséria, a fome e a morte. Ao

longo do romance a paisagem sertaneja ganha movimento e profundidade, a partir de

sua vivência e imaginação Rachel de Queiroz cria uma ligação entre o leitor e o sertão,

recriando-o a partir de seus signos e símbolos.

Palavras-chave: Geografia. Literatura. Paisagem. Romance. “O Quinze”.

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ABSTRACT

Papers on interdisciplinary nature come with new connotations in academia, if shown

of extreme relevance, because it seeks a dialog between areas, before, without

apparent affinities. The dialog between geography and literature aims to new

possibilities of investigations, with emphasis on the humanistic based on

phenomenological philosophy. Some studies of Cultural Geography refers to the

literary text as a source of analysis, with the goal of finding the literary information

about places and/or times. In this way, we aim to establish a dialog between geography

and literature, with a view to realize new spatialities contained in literature. For the

experience of dialog between geography and literature, we work with the novel "O

Quinze", written by Rachel de Queiroz in 1930 which has the drought of 1915 while

conducting wire of the narrative and as a way of understanding the landscape of the

hinterland. From this perspective, we chose the concept of landscape for research,

which we understand as a result of a given culture, which through its elements,

establishes the mediation in the transmission of knowledge, values and symbols. We

observed that the hinterland presents itself in the landscape of drought, either in the

Quixadá hinterland or in the city of Fortaleza, the drought presents itself as a mediator

in the structure of the novel, culminating in a series of social problems, such as the

rural exodus, poverty, hunger and death. Throughout the novel the country landscape

gains movement and depth, from her experience and imagination Rachel de Queiroz

creates a connection between the reader and the hinterland, recreating it from its signs

and symbols.

Keywords: Geography. Literature. Landscape. Novel. "O Quinze".

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Quadro 1 – Esboço de organização das abordagens de estudo da relação Geografia-Literatura em trabalhos de geógrafos brasileiros – Pós-1990...................................................................................

41

Quadro 2 – Histórico de secas no Nordeste................................................. 67 Figura 1 –

Depressão sertaneja, município de Quixadá, Ceará.................

60

Figura 2 – Vegetação de Caatinga, município de Quixadá, Ceará.............. 61 Figura 3 – Rede de Viação Cearense de 1924........................................... 75 Figura 4 – Capa da 1ª Edição de O Quinze, publicado em agosto de 1930. 84 Figura 5 – Contra capa da 1ª Edição de O Quinze, publicado em agosto

de 1930...................................................................................... 84

Figura 6 – Posse na Academia Brasileira de Letras.................................... 85 Figura 7 – Manuscrito escrito à mão de “O Quinze”, primeira página.......... 87 Figura 8 – Fazenda “Não me deixes”.......................................................... 89 Mapa 1 –

Localização de Quixadá – Ceará...............................................

81

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.......................................................................................... 11

2 UM DIÁLOGO ENTRE GEOGRAFIA E LITERATURA............................ 19

2.1 BASES CONCEITUAIS DA GEOGRAFIA CULTURAL E AS NOVAS

LINGUAGENS ESPACIAIS.......................................................................

19

2.2 ESPAÇO E LITERATURA......................................................................... 29

3 O TEXTO LITERÁRIO E OS ASPECTOS SUBJETIVOS DA

PAISAGEM...............................................................................................

44

3.1 A LITERATURA ENQUANTO EXPRESSÃO DA PAISAGEM................... 44

3.2 O SERTÃO NO ESPAÇO REGIONALISTA BRASILEIRO......................... 53

3.3 O CENÁRIO: A SECA ENQUANTO FIO NARRATIVO DO ROMANCE “O

QUINZE.....................................................................................................

66

4 DIALOGANDO COM O ROMANCE “O QUINZE” ................................... 80

4.1 RACHEL DE QUEIROZ E O ROMANCE DE 1930.................................... 80

4.2 O SERTÃO ENQUANTO PAISAGEM NO ROMANCE “O QUINZE” ........ 92

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................... 106

REFERÊNCIAS......................................................................................... 110

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1 INTRODUÇÃO

A ciência geográfica ao longo de seu desenvolvimento, vivenciou diferentes

fases, sempre marcadas por mudanças de paradigmas, fazendo dela uma ciência

complexa e rica em conhecimento. Embora tenha se aprofundado em seu interior,

uma intensa especialização do conhecimento, a Geografia se mostra no fim do século

XX, uma ciência capaz de dialogar com os mais diversos ramos de conhecimento

dentre elas, a literatura.

Nos dias atuais, trabalhos de cunho interdisciplinar têm ampliado espaço

no meio acadêmico, pois os mesmos têm se mostrado de extrema relevância, uma

vez que, buscam um diálogo entre áreas, antes, sem afinidades aparentes. Dentro

desta ótica, a relação entre Geografia e Literatura busca novas possibilidades de

investigações, nas quais a visão positivista perde espaço. Alguns estudos de

Geografia Cultural recorrem ao texto literário como fonte de análise, com objetivo de

encontrar nas obras informações sobre lugares ou épocas passadas, a exemplo das

narrativas de viagens.

Em um contexto internacional, a partir da década de 1970, a Geografia

Cultural ressurge rompendo com o racionalismo e propondo novos temas como a

religião, as questões de gênero, a identidade espacial e a interpretação de textos. O

uso de textos literários pela Geografia Cultural, parte do argumento de que o espaço

se apresenta como componente indispensável da narrativa, uma vez que, o romance

deve ser contextualizado no espaço-tempo, podendo o espaço ser estrutura do real,

materializado dentro de uma estrutura social concreta, pela qual se dará o desenrolar

dos acontecimentos, e como espaço simbólico, carregado de signos e significados

(MOREIRA, 2008).

Diante de um novo contexto político, econômico e social a Geografia

Humanística, juntamente com a Geografia Crítica, inicia duras críticas à Nova

Geografia, resultando em uma transformação nas bases geográficas da época. O

espaço ressurge, enquanto conceito referencial e objeto de estudo da Geografia, bem

como os conceitos de lugar e paisagem, tendo como foco a relação entre homem e

meio, a partir de seus aspectos subjetivos e experiências.

Neste contexto, a Geografia passa a dialogar com a literatura, sendo o texto

literário objeto de análise no qual podemos perceber a visão do autor expondo suas

experiências, no qual o lugar é o encontro entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo.

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Neste sentido podemos observar que o discurso literário possibilita uma construção

interpretativa do espaço, objetivada, sobretudo no lugar e na paisagem, categorias

estas mediadoras do entrecruzamento das experiências do sujeito e seu espaço

vivido.

Desta forma temos enquanto objetivo central de nosso trabalho estabelecer

um diálogo entre Geografia e Literatura, com o intento de perceber novas

espacialidades subjetivas contidas no romance “O Quinze”, de Rachel de Queiroz,

tento como foco o sertão. Para compreender a relação entre Geografia e Literatura,

faz-se necessário desenvolver um levantamento teórico-conceitual, no sentido de

estabelecer uma prospecção sobre o tema abordado. Constitui, portanto uma busca

importante para a presente pesquisa, com o objetivo de oferecer contribuições para

nossa análise. Observamos a necessidade de uma discussão em torno de alguns

conceitos considerados por nós de suma importância, a saber: o conceito de

paisagem (SAUER,1998; HOLZER, 1997; CORRÊA,1995; TUAN, 1983, 2012;

DARDEL, 2015; COSGROVE, 1998); relação entre Geografia e Literatura

(BROSSEAU, 2007; ALMEIDA, 2003; VILANOVA NETA, 2005, MARANDOLA JR e

OLIVEIRA, 2009); e a literatura regionalista (ARAGÃO, 2012; VICENTINI, 1998;

TELES, 1983, LANDIM, 2005).

Na perspectiva da Geografia Cultural, o estudo da estrutura romanesca

ganha força com o intuito de apreender relações afetivas existentes no lugar, bem

como a importância da paisagem enquanto mediador para o desenrolar da trama

literária.

Nesta perspectiva escolhemos enquanto conceito-chave para a pesquisa a

paisagem, que na tradicional concepção saueriana, é resultado da relação entre

cultura enquanto agente e a área natural enquanto meio para sua existência (SAUER,

1998). Neste sentido, nos informa Sauer (op. cit.) que a paisagem não é simplesmente

uma cena real, mas é, sobretudo, uma generalização derivada de observações. A

paisagem se caracteriza por ser, de um lado o resultado de uma dada cultura e de

outro, constitui-se de uma matriz cultural (CORRÊA, 1995), que, através de seus

elementos, estabelece a mediação na transmissão de conhecimento, valores e

símbolos. Completando, Corrêa afirma:

Trata-se da paisagem cultural, um conjunto de formas materiais dispostas e articuladas entre si no espaço como os campos, as cercas vivas, os caminhos,

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a casa, a igreja, entre outras, com seus efeitos e cores, resultante da ação transformadora do homem sobre a natureza. (1995, p. 04)

Para COSGROVE apud CORRÊA (1995) a paisagem geográfica possui

uma carga simbólica, uma vez que é produto da apropriação e transformação da

natureza por um grupo humano, imprimindo sua linguagem, símbolos e traços

culturais, tendo o geógrafo o papel de analisar a paisagem a partir da leitura de seu

significado.

Objetivando uma análise, tendo como base o conceito de paisagem,

elegemos o texto literário enquanto modo de sentir o mundo. O encontro entre a

Geografia e a Literatura não é recente nos estudos geográficos. Desde tempos

passados, o espaço é utilizado por autores como recurso essencial para instauração

da trama ficcional. A descrição de lugares tornou-se uma forma para configuração do

mundo e daqueles que o habitam. Antes da renovação da Geografia Humanista e

Cultural na década de 1970, a Literatura era utilizada por geógrafos de modo

instrumental, como complemento de análises regionais, a exemplo dos relatos de

viagens.

A partir da década de 1970, o uso do romance ganha novas abordagens a

partir da adaptação do método fenomenológico pela Geografia, neste momento a

ciência geográfica passa a se preocupar com o modo pelo qual o homem interioriza

ou representa sua experiência do espaço, assim, privilegiam o romance por oferecer

o suporte ideal de um encontro entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo

(BROSSEAU, 2007).

Na busca de sustentação dessa nova fase para a Geografia, a

fenomenologia é colocada como base para estudos dos aspectos subjetivos da

espacialidade, enquanto que o positivismo tem sua base na razão cartesiana, na qual,

atribui apenas às ciências naturais o que é racional, objetivo e científico, “para a

fenomenologia a razão objetiva se refere a existência humana independentemente de

que possa ser expressa em categorias de quantidade.” (HOLZER, 1997, p.78).

Ainda segundo Holzer (1997), fenomenologia e geografia possuem

objetivos comuns, o de estudar a constituição do mundo. Tal estudo é possível a partir

das experiências concretas do homem no mundo e sua intencionalidade para

perceber como se produz o sentido dos fenômenos, assim, incluindo o mundo na

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consciência estabelece-se uma nova relação entre sujeito e objeto, como ser-

envolvido-no-mundo. Deste modo,

A intencionalidade torna possível a redução fenomenológica, a "colocação entre parênteses" da realidade como é concebida pelo senso comum. A redução fenomenológica nos remete às experiências e ao mundo originais, sem considerar as teorias que lhe foram acrescentadas pelas ciências. Nos colocando duas questões: o da constituição do mundo, que interessa diretamente aos que estudam a geografia; e o da distinção entre ciência fenomenológica e ciência positivista. (HOLZER, 1997, p.78)

Os geógrafos humanistas encontraram na fenomenologia novas

possibilidades de renovação de seus objetos, estudos e práticas, abrindo novos

campos de possibilidades estimulando o interesse pelas percepções, representações

e atitudes perante o espaço (BESSE, 2006). Sendo “compreendida menos como um

objeto do que como uma representação, um valor, uma dimensão do discurso e da

vida humana, ou ainda, uma formação cultural” (BESSE, 2006, p. 78)

A Geografia Humanista e Cultural retoma os conceitos de lugar e

paisagem sob novas perspectivas para a ciência geográfica. Segundo TUAN apud

HOLZER (2008, p.137) o movimento humanista na Geografia surge enquanto

“tentativa de análise das ações e produtos da espécie humana a partir de uma visão

que amplia a perspectiva científica cartesiana, incorporando os estudos das

humanidades na leitura abrangente de temas geográficos”. Para consolidação desse

processo, teóricos como Tuan (1976), Lowenthal (1961), Relph (1970), Meinig (1971)

e Buttimer (1974) se remetem ao início do século XX e iniciam uma revisão teórica e

metodológica na busca de constituir uma ciência que superasse os parâmetros

cartesianos vigentes, nesse sentido

Uma geografia que fosse ao encontro desses novos valores deveria basear-se em uma “aproximação humanística”, tendo como objeto a apreciação da paisagem enquanto ambiente natural e humanizado, o que contribuiria para a preservação e valorização do ambiente terrestre. (HOLZER, 2008, p.139)

TUAN apud HOLZER (2008, p. 139) se refere à “aproximação humanística”

como sendo: as atitudes do indivíduo em relação a um aspecto do ambiente; atitudes

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do indivíduo com relação às regiões, as atitudes em relação à natureza focalizando a

atenção nas paisagens que adquirem um significado simbólico especial. Além do

grupo que passou a se preocupar com o aporte teórico, um outro grupo se destaca,

formado pelos geógrafos culturais que trabalhavam com a interface entre geografia e

humanidades.

Deste modo, para a experiência do diálogo entre Geografia e Literatura,

escolhemos o romance “O Quinze”, escrito por Rachel de Queiroz e publicado pela

primeira vez na década de 1930, como aporte de nossa pesquisa. O romance tem

como pano de fundo a seca de 1915, e dentro desta temporalidade, o sertão surge

como cenário e fio condutor das tramas; o flagelo e angústia do sertanejo é exposta,

de modo que o conflito entre o sair de sua terra e caminhar em direção à cidade são

retratados com realismo pela autora. Dentro deste contexto, procuramos compreender

a visão de sertão, bem como seu significado para o sertanejo, dentro do espaço-tempo

retratado no romance, o semiárido do Ceará no início do século XX.

Além de uma breve contextualização sobre a Geografia Humanística e

Cultural e do método fenomenológico, devemos expor também os procedimentos

metodológicos que seguimos. A metodologia utilizada nesta pesquisa foi de suma

importância para nos orientar na iniciativa de uma melhor aproximação e apreensão

de nosso estudo. Deste modo, entendemos como metodologia o conjunto de

“procedimentos utilizados pelo pesquisador, material e métodos, em uma determinada

investigação, sendo as etapas a seguir em um determinado processo.” (ALVES, p.

230, 2008)

Entre os procedimentos utilizados na presente pesquisa, se destaca a

pesquisa bibliográfica, com o objetivo de fomentar todo um aparato teórico sobre

temas como paisagem, paisagem cultural, lugar, experiências, pertencimento, análise

literária, entre outros. “A pesquisa bibliográfica é passo decisivo em qualquer pesquisa

científica, uma vez que eliminar a possibilidade de se trabalhar em vão” (MEDEIROS,

p. 50, 2007). Coloca-se também a importância de uma pesquisa documental que é

decisiva na elaboração das hipóteses e rumos da presente pesquisa. Destacando-se

buscas de documentos e dados da época fornecidos por órgãos históricos, com o

objetivo de aprofundamento de análise.

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Analisar o sertão do Ceará durante a seca de 1915 é problema inicial de

nossa pesquisa, uma vez que Rachel de Queiroz se utiliza desse fenômeno natural e

suas implicações sociais para apresentar sua percepção diante da problemática.

Desta forma, observamos em primeiro plano, que Queiroz traz à tona uma leitura de

sertão pobre e sem perspectivas, marcada por um ponto de vista realista expondo um

sertão subdesenvolvido. Na busca por respostas definimos os objetivos.

Objetivo Geral:

- Estabelecer um diálogo entre Geografia e Literatura, com o intuito de

perceber novas espacialidades subjetivas contidas no romance “O Quinze”, de Rachel

de Queiroz, tento como foco o sertão.

Objetivos Específicos:

- Estudar o diálogo entre Geografia e Literatura, como nova perspectiva de

análise na ciência geográfica;

- Destacar o texto literário a fim de revelar os aspectos subjetivos da

paisagem enquanto construção do mundo;

- Observar a construção de concepções sócioespaciais em textos literários,

com foco na escola regionalista.

Dessa forma estruturamos a presente dissertação em cinco capítulos,

sendo o primeiro de caráter introdutório, que visa uma apresentação de nossa

pesquisa. O segundo capítulo, intitulado Um diálogo entre geografia e literatura,

procuramos realizar uma breve discussão sobre o processo de renovação da

Geografia Humanista, a partir de seus principais expoentes, tendo como objetivo

específico estudar o diálogo entre Geografia e Literatura, como nova perspectiva de

análise na ciência geográfica, subdividido em dois tópicos: no primeiro realizamos

uma leitura sobre o trilhar da Geografia a partir da década de 1970, proporcionando o

surgimento de novas prospecções e métodos de analises. No segundo tópico,

buscamos analisar a retomada do conceito de espaço na Geografia, bem como sua

abordagem junto à literatura. É sabido que antes da década de 1970, os geógrafos

culturais detinham suas preocupações nos aspectos materiais da cultura, aqui

representados por: vestuários, habitat, utensílios e as técnicas, ou seja, analisava os

modos de vida dos grupos humanos, porém, com a renovação da Geografia

Humanística, a Geografia Cultural ressurge trazendo novas relações e possibilidades.

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Neste contexto a obra literária surge como uma dimensão espacial, que se objetiva

na paisagem, por exemplo, no momento em que o autor expõe suas experiências

tornando o lugar de encontro entre o mundo objetivo e o mundo subjetivo. Neste

sentido, podemos observar que o discurso literário possibilita uma construção

interpretativa do espaço, objetivada, sobretudo no lugar e na paisagem, categorias

estas mediadoras do entrecruzamento das experiências do sujeito e seu espaço

vivido.

No terceiro capitulo, O texto literário e os aspectos subjetivos da paisagem,

tentamos ampliar nosso olhar diante desse novo mundo que se abre para a ciência

geográfica, a literatura. Neste ponto objetivamos destacar o texto literário a fim de

revelar os aspectos subjetivos da paisagem para a construção do mundo. Na

perspectiva da Geografia Cultural o estudo da estrutura romanesca ganha força com

o intuito de apreender além da paisagem descrita, as relações afetivas existentes na

paisagem, partindo da relação do autor com o lugar e retratado no vivido de seus

personagens. Entendemos que a literatura se apresenta como fonte de pesquisa por

seu poder de retratar de modo conotativo aspectos da realidade social. Sendo

difundida nos bancos acadêmicos, o uso de fontes que priorizam a linguagem

conotativa mostra-se importante, enquanto possibilidade de se contrapor ao

positivismo científico.

Sob o título Dialogando com o romance “O Quinze”, temos nosso quarto

capítulo, no qual realizamos uma leitura sobre a vida de Rachel de Queiroz e sua

importância no cenário regionalista, e o diálogo com o romance a partir do sertão.

Nosso objetivo está em observar a construção de concepções sócioespaciais em

textos literários, com foco na escola regionalista. Dentro do romance o sertão é

retratado em diferentes visões, dada por cada um dos personagens. Dentro desse

contexto é enfatizado pela autora o sertanejo, seu olhar diante do sertão, os signos e

significados construídos ao longo de sua sobrevivência, seu sofrimento diante da seca

voraz, seus costumes e hábitos, e suas escolhas.

Finalizando nossa pesquisa com nossas considerações finais, a fim de

responder nossos objetivos de forma satisfatória. Estes aspectos teóricos discutidos

têm como intuito chegar ao diálogo entre geografia e literatura, sendo necessário um

retorno das teorias gerais do sujeito em análise, qual seja o romance “O Quinze”, como

mediador entre o mundo do homem e sua subjetividade. Sendo importante ressaltar

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que não se trata de uma “fórmula perfeita” e engessada de ver a realidade, pois este

processo prática-teoria-prática, que ao nível de exposição pode parecer linear,

acontece a todo o momento e é construído durante todas as etapas da pesquisa.

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2 UM DIÁLOGO ENTRE GEOGRAFIA E LITERATURA

Conhecer o desconhecido, atingir o

inacessível, a inquietude geográfica precede

e sustenta a ciência objetiva.

(DARDEL, 2015, p. 1)

O processo de renovação vivenciado pela ciência geográfica a partir da

década de 1970 proporciona o surgimento de novas ideias e perspectivas. Com a

incorporação do método fenomenológico, muitos geógrafos deixam de lado o

positivismo e se debruçam sobre um campo de estudos abrangente e fértil, ligando

seus pensamentos à subjetividade e à experiência do homem. Assim, as pesquisas

iniciam um valoroso e profícuo diálogo com as artes e as letras, resultando em um

novo olhar sobre a existência do homem na Terra.

2.1 Bases conceituais da Geografia Cultural e as novas linguagens espaciais.

Para pensarmos uma Geografia Cultural no século XXI, temos que

regressar ao desenvolvimento da ciência geográfica, para que possamos vislumbrar

um futuro. A Geografia que conhecemos hoje, é fruto de um processo que se iniciou

no Iluminismo, proporcionando sua consolidação enquanto ciência acadêmica. Os

precursores do pensamento geográfico sistematizado foram J.R. Forster e Immanuel

Kant, nos planos teórico-metodológico e epistemológico, respectivamente.

Forster estabelece como objeto da geografia o estudo da superfície terrestre, e como seu método a comparação, do qual deriva a descrição e a explicação como categorias analíticas das paisagens. [...] Para Kant interessa ao seu sistema de ideias descobrir como a geografia pode ajudar na tarefa da constituição do entendimento de natureza. (MOREIRA, 2008, p. 16)

A partir desse momento, a Geografia amplia e fortalece suas bases teórica-

metodológicas através dos estudos desenvolvidos por Carl Ritter, Alexander von

Humboldt, Friedrich Ratzel e Paul Vidal de La Blache. Quanto à cultura, o interesse

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por parte dos geógrafos nos aspectos culturais se dá no mesmo momento em que se

desenvolve o interesse pela Geografia Humana, ainda no século XIX, podendo ser

destacados três momentos de seu desenvolvimento.

Final do século dezenove até os anos cinquenta, do século XX: os geógrafos adotavam uma perspectiva positivista ou naturalista, não estudando a dimensão psicológica ou mental da cultura. O interesse voltava-se para os aspetos materiais da cultura, as técnicas, as paisagens e o gênero de vida. [...] Anos 1960 e 1970: a evolução da Geografia Cultural deu-se numa tentativa de utilizar os resultados da “Nova Geografia” para uma sistematização metodológica. Esta perspectiva não me interessa atualmente. Após os anos setenta do século XX: ocorreu uma mudança significativa, haja vista a Geografia Cultural deixar de ser tratada como um subdomínio da geografia humana, posicionando-se no mesmo patamar da Geografia Econômica ou da Geografia Política. (CLAVAL, 2002, p. 19-20)

O primeiro a falar sobre uma Geografia Cultural foi Friedrich Ratzel, a partir

de seus estudos, que resultaram no clássico Antropogeografia (1882). Mesmo com

forte influência naturalista, Ratzel tornou-se o precursor, ao enfocar a temática sobre

cultura na Geografia, além de ser considerado o fundador da Geografia Humana,

inaugurando a sistematização da geografia humana, de forte tendência cultural. Sob

influência de Alexandre von Humboldt e Karl Ritter, desenvolve e aprofunda seus

estudos na Geografia. Diante de seus estudos, afirma que a Geografia está dividida

entre três ramos: Geografia, Biogeografia, e a Antropogeografia (RATZEL apud

CLAVAL, 2007), se debruçando, mais especificamente, neste último. Tendo como

base a discussão de três questões: a primeira, sobre a influência do ambiente na

diversidade dos povos, já que os homens dependem do ambiente onde vivem para

sobrevivência, seja total ou parcialmente; a segunda, sobre a mobilidade das

sociedades como necessária à sua subsistência e sobrevivência, sendo de natureza

do homem; e por fim, a formação dos territórios, a partir da importância dada ao papel

do Estado. Percebe que o avanço das técnicas e utensílios são essenciais para o

estabelecimento da relação entre o homem e seu meio circundante, sendo a cultura

um conjunto de utensílios e técnicas que permite os homens se apropriarem do

ambiente. (RATZEL apud CLAVAL, 2007)

A extensão geográfica ampla, uniforme e pouco contrastada por razões culturais (povos sem história, ou Naturvölker) configura o primeiro objeto da antropogeografia, que pode explicar muito claramente está extensão sobre a base de relações simples (que estabelecem com o ambiente). (RATZEL apud

CLAVAL, 2007, p. 22).

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Embora seus estudos valorizem os aspectos culturais como essenciais

para o desenvolvimento dos grupos sociais, Ratzel tornou-se para a geografia o

grande iniciador do ambientalismo, ao contrário dos antropólogos, que se debruçaram

sobre suas análises de difusão da cultura. Outro aspecto elencado por Ratzel no

estudo dos povos, está na importância dada ao Estado, sendo considerado

instrumento basilar na relação com o espaço, a partir análise dos povos

essencialmente agrícolas e aqueles em processo de industrialização. Nesses últimos,

o Estado exerce um papel dominante. “A seleção dos seres vivos pelo meio que

Darwin postulava é substituída por Ratzel pela seleção das sociedades pelo espaço:

a política se impõe, assim, ao cultural.” (Grifos do autor) (RATZEL apud CLAVAL,

2007, p. 23). Assim, Ratzel passa a ver o homem e sua relação com a natureza

mediada pelo espaço do Estado, ou seja, o espaço passa a ser visto como conjunto

das relações entre natureza e a sociedade, tornando-se o introdutor de uma geografia

política. (MOREIRA, 2008). Os estudo culturais de Ratzel estão alinhados à

concepção de cultura desenvolvida ao longo do século XIX, considerado o “conjunto

daquilo que é transmitido e inventado” (CORRÊA, 1995, p. 2).

No mesmo momento, na França, são desenvolvidos estudos sobre

Geografia Humana a partir das análises já trabalhadas pelos geógrafos alemães. O

principal nome da escola francesa é Paul Vidal de La Blache. La Blache parte da

mesma concepção de Ratzel, na qual o meio influencia o desenvolvimento da

sociedade a partir do uso das técnicas e utensílios, porém adiciona os hábitos

humanos. Para que haja sentido temos que analisar a forma como o homem se utiliza

das possibilidades impostas, seus hábitos e maneiras de fazer, seu modo de vida. A

partir de seus estudos, percebe-se como a “elaboração das paisagens reflete a

organização social do trabalho”. (CLAVAL, 2007, p. 33)

Os estudos em torno dos gêneros de vida, nos permitem perceber a forma

como os grupos lidam com o que lhes é ofertado, a forma como se adaptam com o

que lhes é oferecido pelo ambiente. “Ele sublinhou o papel da ‘força do hábito’ que lhe

parecia como a causa mais importante da rigidez dos gêneros de vida” (CLAVAL,

2003, p. 149).

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A Noção de gênero de vida introduz, assim, na geografia humana francesa, uma lógica que estimula a integração, em seu campo, de aspectos comportamentais cada vez mais variados e complexos. Naturalistas pela sua origem e justificações, ela deriva rapidamente para posições mais humanas. (CLAVAL, 2007, p. 35)

Além da Europa, observamos o desenvolvimento de estudos sobre cultura

na Geografia também na América sob influência dos alemães. A geografia cultural,

até então negligenciada na América, ressurge a partir dos estudos sobre paisagem

com Carl O. Sauer, a partir de seu artigo The Morphology of Landscape, publicado

originalmente em 1925. Ao ingressar como professor na Universidade da Califórnia,

na cidade de Berkeley, Sauer se aproxima da antropologia e inicia trabalhos sobre

grupos indígenas do Sudoeste americano, tornando-se fundador da Escola de

Berkeley se opondo à de Middle West, escola até então dominante e de forte rigor

científico. Em seu artigo, Sauer apresenta sua concepção sobre a geografia, trazendo

discussões sobre ciência, fenomenologia e paisagem. Para ele, a geografia deve se

preocupar com o que é legível à superfície da Terra, ignorando, assim como os

alemães e franceses, os aspectos sociais e psicológicos. “A tarefa da geografia é

concebida como o estabelecimento de um sistema crítico que envolva a

fenomenologia da paisagem, de modo a captar em todo o seu significado e cor a

variada cena terrestre” (SAUER, 1998, p.22). Como resultado de seus estudos temos

a realização de diversos cursos sobre “geografia cultural”, a partir de trabalhos de

campo e da percepção dos não-geógrafos.

Além da abordagem dada por Sauer, outro importante geógrafo

estadunidense desenvolve suas análises sobre cultura, tendo foco na geografia

histórica. John Kirtland Wright incentiva a exploração pela “terra incógnita”, ou seja,

um território inexplorado. Suas ideias estão expostas em discurso proferido no ano de

1946 na American Geographical Society, no qual expressa a necessidade de se

valorizar a imaginação e a subjetividade enquanto qualidades indispensáveis a um

bom geógrafo (WRIGHT, 2014).

Atualmente, os geógrafos raramente ou nunca têm a oportunidade de entrar em alguma das terrae incognitae literais – um território totalmente inexplorado – e em um primeiro vislumbre pode parecer artificial comparar o encanto de tais desconhecidos com a atração que nos levam às regiões e aos problemas com os quais devemos efetivamente nos preocupar. No entanto, o canto das

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Sereias ouvido por um Colombo, um Magalhães ou um Livingstone diferem apenas em intensidade, mas não no tom e qualidade, daquele que nos chama a explorar as nossas aparentemente mais prosaicas terrae incognitae. Permita-nos, portanto, examinar mais profundamente a natureza das terrae incognitae de várias magnitudes e tipos. (WRIGHT, 2014, p.16)

Wright abre novos caminhos para a ciência geográfica, pois defende uma

geografia para além dos muros acadêmicos, sendo o conhecimento uma construção

dos saberes formal e informal. Ele destaca a importância dos artistas nessa

construção. A partir de sua sensibilidade, realiza leituras sobre a realidade de

interesse não somente dos geógrafos, mais historiadores, antropólogos, filósofos,

sociólogos etc. O papel do geógrafo está em transformar a terra incógnita da ciência

em terra cógnita da ciência, estimulado pelo desconhecido e pela imaginação.

(WRIGTH, 2014). Em sua análise sobre o discurso proferido por Wrigth, Marandola Jr

considera que

Esta incorporação possui pelo menos dois eixos principais: (1) como relato documental, apegando-se à realidade retratada e àquilo que ela traz de facticidade histórico- geográfica; e (2) como imagem-imaginário ou símbolo-representação, que traz/produz uma visão de mundo (valores e símbolos), desenhando geografias e proporcionando a reflexão sobre a própria condição humana; um conhecimento universal portanto. (MARANDOLA JR, 2010, p.9)

Wrigth desenvolve seus estudos sobre o conhecimento geográfico ou,

como ele próprio denominou, “geosofia, composto de geo que significa ‘terra’ e sofia

que significa ‘conhecimento’” (WRIGTH, 2014, p. 14) (Grifo do autor). Tal perspectiva

nos permite, enquanto geógrafos, “compreender melhor as relações da geografia

científica, com suas condições históricas e culturais das quais ela é produto” (Ibidem,

p.15), partindo de qualquer ponto de vista. Com um posicionamento divergente aos

geógrafos de sua época, marcados pelo naturalismo, sugere a necessidade de uma

maior aproximação com as ciências humanas, sendo um dos primeiros a trabalhar a

relação entre Geografia e Literatura, sem foco instrumental. Wrigth privilegia a

imaginação do homem como motor para o desenvolvimento do conhecimento

geográfico.

Deste modo, ela se estende muito além do núcleo da geografia, do conhecimento científico, ou da geografia do conhecimento como é sistematizada pelos geógrafos. Levando em consideração todo o domínio

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periférico, que cobre as ideias geográficas, tanto as verdadeiras quanto as falsas, de todo tipo de pessoa – não apenas geógrafos, mas fazendeiros, pescadores, executivos e poetas, romancistas e pintores, beduínos e hotentotes – e por esta razão ela necessariamente precisa lidar em alto grau com concepções subjetivas. De fato, mesmo partes dela que lidam com a geografia científica devem considerar os desejos humanos, motivações e preconceitos, porque a menos que eu esteja enganado, em nenhum lugar há geógrafos mais prováveis de serem influenciado pelo subjetivo do que nas discussões sobre o que deve ser a geografia científica. (WRIGTH, 2014, p. 15)

Na mesma vertente desenvolvida po Wrigth, temos o pensamento de Eric

Dardel. Embora suas análises sejam datadas da década de 1940, seus estudos são

utilizados como aporte teórico para os geógrafos somente a partir da década de 1970,

primeiro nos Estados Unidos, através dos trabalhos desenvolvidos por Tuan (1971) e

Relph (1973), e na década de 1980 por seus compatriotas franceses. Com sua obra

“O Homem e a Terra: natureza da realidade geográfica”, Dardel exerceu forte

influência na geografia cultural estadunidense, resultando no aparecimento de uma

geografia humanista. (HOLZER, 2010). Os temas centrais de sua obra foram de

grande utilidade para os geógrafos nesse momento de grande renovação. Sobre

Dardel, Holzer afirma que

[...] a relação primordial entre o homem e a Terra, as distâncias e direções na formação dos conceitos de lugar e de paisagem, todos os aspectos abordados a partir de uma perspectiva fenomenológica e interdisciplinar, onde a arte tem um papel preponderante como fonte de informação para a compreensão dos fenômenos. O centro das investigações está na intencionalidade voltada para os fenômenos espaço-temporais, sendo o “lugar” sua referência principal. (2010, p. 2-3)

Para Jean-Marc Besse, “a geografia é frequentação do mundo e paixão

pelo mundo na sua densidade e variedade fenomenal, ao mesmo tempo que é uma

ciência do espaço” (2006, p.82), tendo o geógrafo o papel de habitar e de

compreender as estruturas e os movimentos. O espaço, antes ignorado pela geografia

clássica, ganha nova perspectiva a partir de estudiosos como Dardel, deixando de ser

um espaço geométrico e neutro, passa a ser visto enquanto espaço diferenciado.

Suas diferenças tornam cada espaço geográfico único, tornando-se espaço vivido. É

importante deixar claro que o espaço, embora possua suas dimensões de sentido,

sendo assim, um espaço subjetivo a partir das experiências do homem, é antes de

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tudo um espaço “material” (BESSE, 2006). Refletindo sobre a materialidade do espaço

geográfico para Dardel, Besse conclui que esse espaço

[...] possui uma “solidez” que resiste as operações combinatórias do entendimento científico, mas também aos esforços da ação voluntarista. É um relevo, um céu, um modelo, uma cor, um horizonte, que, segundo Dardel, resistem a uma redução subjetiva, que não são construídos pelo homem, que não são queridos por ele, mas que, ao contrário, impõem-se, por assim dizer, a ela na experiência e dão a essa experiência uma tonalidade fundamental. Um relevo não é para Dardel uma simples representação produzida pelo sujeito; é uma forma, e se, na sua potência, essa forma vem animar a vida material daquele que a visualiza, ela o faz a maneira de um acontecimento ou de um movimento transpassante. (BESSE, 2006, p. 88

Como observamos, a primeira fase da geografia cultural, foi marcada pelo

naturalismo alemão, no qual foi dada ênfase às técnicas e utensílios dos homens e as

transformações ocorridas na paisagem. Nesta fase, a paisagem já é considerada um

conceito essencial para análise geográfica, porém, sua importância se restringe a sua

forma tangível. “Ela pode ser, portanto, definida como uma área composta por uma

associação distinta de formas, ao mesmo tempo físicas e culturais” (SAUER, 1998, p.

23). Mas, é a partir dos estudos de David Lowenthal, que revisa a obra de Wrigth, e

Tuan apoiando-se na obra de Bachelard, que temos assentados os primeiros passos

de uma renovação radical na geografa cultural (HOLZER, 2008).

Lowenthal e Tuan aprofundam seus estudos em uma geografia cada vez

mais preocupada com as humanidades e com o que é apreendido pessoalmente, além

da paisagem, que adquire um significado simbólico especial.

Realizando a leitura dos trabalhos de Lowenthal e Tuan, Holzer afirma:

O principal problema da geografia, dizia ele, é que só se preocupa com o primeiro tema, considerado como o “mundo real”. O “meio pessoalmente apreendido”, ligado ao comportamento humano e ao modo como a paisagem é modelada e construída, vinha sendo negligenciado. (LOWENTHAL apud HOLZER, 2008, p.139)

............................................................................................................................

Por sua vez, Tuan também falava em dois modos de se ler os conceitos geográficos: 1) a partir dos processos físicos que afetam as formas da Terra; 2) nas marcas que o homem imprime na natureza como agente. Sendo que este segundo modo se relacionaria com as humanidades. O referido autor levanta e enumera diversas “aproximações humanistas”, tais como: as atitudes

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do indivíduo em relação a um aspecto do ambiente; atitudes do indivíduo com relação às regiões; a concepção individual da sinergia homem-natureza; a atitude dos povos acerca do ambiente; e as cosmografias nativas. (TUAN apud HOLZER, 2008, p. 139)

Esse processo de renovação é construído junto a uma transformação do

mundo. A partir da segunda metade do século XX, o mundo inicia um processo de

mutação, em diferentes ramos da sociedade. A ciência pautada no positivismo

científico, como o uso intensivo dos modelos matemáticos e da lógica como base para

compreensão da realidade, não responde mais aos anseios do mundo,

principalmente, nos aspectos sociais. Neste contexto, estudiosos das ciências sociais

iniciam uma busca por novas formas de observar e entender o mundo, mundo este

movido por mudanças profundas nas relações políticas, econômicas e sociais nas

diferentes escalas.

É um esforço na direção da geograficidade, tal como trabalhada por Dardel (1952), enquanto envolvimento visceral entre homem e meio, produzindo a essência do relacionamento espacial do homem e de sua natureza geográfica. Incorporar esta geografia (conhecimento informal) à nossa Geografia (conhecimento formal) é um desejo humanista que tem sido perseguido no contexto acadêmico em especial por um grupo de geógrafos que tem se identificado com os princípios do Humanismo. (MARANDOLA JR, 2010, p. 12)

A partir do pós-guerra uma Nova Ordem Mundial se impõem, dividindo o

mundo entre duas ideologias. Sob a égide de uma ordem bipolar, o mundo sofre

profundas mudanças, principalmente, de ordem territorial e econômica. No aspecto

econômico mundial, o sistema capitalista amplia consideravelmente sua escala de

influência, atingindo uma escala global. A expansão das empesas multinacionais

passa a proporcionar uma maior fragmentação da produção, bem como uma tentativa

de homogeneização de determinados hábitos, que acaba por resultar na ampliação

de uma “cultura de massa”. Diante desse contexto os movimentos antes concentrados

pelos trabalhadores passam a ser protagonizados por novos atores: negros, jovens,

mulheres, homossexuais, ambientalistas. Deste modo, os geógrafos percebem a

impossibilidade de continuar a negligenciar os aspectos culturais para além das

técnicas; logo, novos parâmetros necessitam urgentemente de atenção.

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Os geógrafos evidenciam o papel dos sistemas institucionais de relações sociais na estruturação dos grupos e na organização do espaço, o que melhora consideravelmente a compreensão dos aspectos econômicos e políticos das distribuições humanas (Claval, 1937;1978) (CLAVAL, 2007, p. 51-52)

Do ponto de vista do conhecimento das críticas ao modelo positivista se

ampliam nos anos 1970, acentuando a necessidade de se buscar novas

possibilidades de leitura da realidade, tornando-se necessário a procura por novos

caminhos, em particular na Geografia Cultural, dando início a uma mudança radical

no desenvolvimento do pensamento geográfico. “Há uma preocupação com a crítica

dos fundamentos da geografia clássica posta ao lado da necessidade de formular-se

uma teoria nova” (MOREIRA, 2009, p. 77). Diante desse processo de renovação na

Geografia, observamos ainda a perspectiva humanista, tal como afirma Melo.

Posicionando-se contra testes hipotéticos, teorias e leis, a Geografia humanística é crítica e radical por não perfilar com aqueles que excluem de suas pesquisas os sentimentos, significados, intenções, valores, enfim as experiências dos homens que criam, atuam e vivem no espaço, o que se contrapõe aos positivistas que falam de um mundo sem homens ou contados aos montes como gado, ou meramente transformados em números. (MELO, 1990, p. 93)

Para Moreira (op. cit.) esse processo de renovação é marcado por uma

pluralidade de enfoques, na qual o espaço é uma referência a todos, consolidando-se

como objeto da Geografia, porém como linhas teórico-metodológicos diferenciadas,

como o materialismo histórico e dialético e a fenomenologia.

Como o intuito de se buscar uma nova base teórica metodológica para seus

estudos, a Geografia Cultural busca na fenomenologia, pensada e desenvolvida por

Edmund Husserl (1859-1918), o seu alicerce necessário. O primeiro passo é dado por

Buttimer (1969) que sugere o existencialismo, mas é com Relph (1970) que a

fenomenologia é vista enquanto suporte filosófico para Geografia (HOLZER, 2008).

“O método fenomenológico seria utilizado para se fazer uma descrição rigorosa do

mundo vivido da experiência humana e, com isso, através da intencionalidade,

reconhecer as “essências” da estrutura perceptiva” (Ibidem, p. 140). Os geógrafos

humanistas encontraram na fenomenologia novas possibilidades de renovação de

seus objetos, estudos e práticas. Deste modo abriram-se novos campos de

perspectivas estimulando o interesse pelas percepções, representações e atitudes

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perante o espaço (BESSE, 2006). A aproximação entre geografia e fenomenologia

se realiza, a partir do filósofo Maurice Merleau-Ponty, especialmente, com sua obra

Fenomenologia da percepção (2011). Sua discussão está centrada na relação entre

natureza e consciência, na qual a relação homem com a natureza se constrói a partir

da percepção, realizando uma revisão do conceito de sensação (LENCIONE, 2003).

O prefácio de sua obra, Merleau-Ponty (2011), inicia-se com uma grande pergunta:

“O que é fenomenologia?”, sendo o “estudo das essências, e todos os problemas,

segundo ela, resumem-se em definir essências: a essência da percepção, a essência

da consciência por exemplo”, sendo também uma filosofia “que repõe as essências

na existência”, na qual o homem e o mundo só podem ser compreendidos a partir de

sua “facticidade” (p. 1)

O conhecimento geográfico é inerente à própria realidade e está sendo constituído no cotidiano das pessoas, na efetivação de políticas no campo, em intervenções urbanas, em escritos literários, em manifestações culturais, em crenças religiosas. Toda ação humana possui uma dimensão espacial que se revela por meio de uma espacialidade que conduz o vir-a-ser do fenômeno. (MARANDOLA JR., 2010, p. 11)

A partir desse novo alicerce, a Geografia Cultural passa a desenvolver um

imenso leque de possibilidades de estudo, o espaço geográfico, antes visto somente

por seus traços objetivos, tem sua subjetividade emersa. Torna-se possível enxergar

o espaço através de suas ligações objetivas e subjetivas. A percepção, os sentidos,

os valores humanos, as imagens, as artes e a cultura se tornam novas fontes de leitura

do mundo. E essas novas leituras nos permitem descobrir belezas antes escondidas.

O ponto de vista fenomenológico, em geografia, permitir abrir novos campos de pesquisa, suscitando o interesse pelas percepções, representações, atitudes diante do espaço. Além disso, tornou possível a utilização de novos métodos, demandando recursos para interpretação, descrição, introspecção, ou análise das comunicações. Ele fez aparecer, enfim, novos corpos de informações: os “discursos”, as tradições literárias, filosóficas e religiosas, ou ainda as artes plásticas, são consideradas hoje como portadores de saberes e significações geográficas. (BESSE, 2006, p. 78)

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A partir de sua renovação, a Geografia Humanista e Cultural proporciona a

oportunidade de ligar duas vertentes de conhecimento até então, pouco exploradas,

a parceria entre ciência e a arte induz a uma forma de conhecimento mais ampla.

Uma geografia cultural renovada procura vencer algumas dessas fraquezas com uma teoria cultural mais forte. Ela ainda consideraria a paisagem como um texto cultural, mas reconhece que os textos tem muitas dimensões, oferecendo a possibilidade de leitura diferentes simultâneas e igualmente validas. (COSGROVER,1998, p. 101)

Diante desse contexto de renovação, na qual a paisagem passa a ser vista

como texto cultural, onde as relações entre sociedade e natureza são vistas e

interpretadas, novas linguagens surgem como possibilidades interpretativas. Para

Besse o conceito de paisagem se destaca por esta ser entendida menos como objeto

e mais “como uma representação, um valor, uma dimensão do discurso e da vida

humana, ou ainda, uma formação cultural” (op. cit, p. 78), sendo dessa forma uma

mediadora entre o homem e o mundo em que vive. As artes, renegadas pelo

positivismo, tornam-se um amplo leque de possibilidades de análise social, dentre elas

a literatura ganha força.

2.2 Espaço e literatura

O uso da literatura como base para análise no seio da ciência geográfica

não é recente, os relatos de viagem, já proporcionavam ao leitor uma primeira visão

da paisagem vista e explorada pelos navegantes. Embora de uso marginal durante

séculos, é somente na década de 1970, com a renovação da geografia humanista e

cultural, que as artes, em especial os textos literários, surgem como fonte para estudos

geográficos tendo o homem no seu centro, tornando-se uma nova possiblidade de

análise geográfica. (BROSSEAU, 2007).

Antes disso, geógrafos como La Blache e Humboldt, já davam os

primeiros passos no campo da literatura e das artes, embora timidamente. “Mas não

se tratava tanto de uma promoção da literatura como um novo campo de pesquisa

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para a geografia, e sim de testemunhos que conseguiram despertar esse tipo de

interesse” (BROSSEAU, 2007, p.18). Até então, os poucos trabalhos que se

debruçaram sobre a literatura, se detinham a uma utilização instrumental. Sobre esse

trajeto na relação entre Geografia e Literatura, Brosseau (2007) nos mostra o

processo de retomada da literatura enquanto objeto de estudo, a partir de uma

apanhado bibliográfico das principais correntes de pensamento na Geografia

Humanista. A princípio, a retomada da literatura por geógrafos está relacionada ao

processo de renovação da Geografia Humanista e Cultural a partir da década de 1970,

até então, são raros artigos e estudos sobre o tema, que tinha basicamente a literatura

enquanto complemento dos estudos regionais. Diante desse processo e a utilização

de novos métodos de análise, como a fenomenologia, a literatura torna-se fonte para

compreensão dos lugares e apreciação das paisagens.

É com Eric Dardel que observamos o uso concreto da literatura por um

geógrafo como forma de analise geográfica. Em seu livro “O homem e a Terra”,

publicado em 1952, está repleto de trechos literários, como forma de imprimir uma

geograficidade latente, porém pouco explorada pela Geografia. Dardel (2015) possui

um olhar holístico ao falar de Geografia, e de pensar e observar o espaço,

considerando-o não apenas seu aspecto material, mas sua ligação com o homem e

como ambos interagem, estabelecendo assim uma relação de ser-estar-no-mundo –

portanto geograficidade.

Em seu percurso de estudo, Brosseau (2007) traça os passos percorridos

pelos geógrafos diante dessa nova possibilidade que se apresenta. O primeiro trata-

se da literatura vista como complemento de uma geografia regional, na qual “recorrem

frequentemente às fontes literárias para nelas encontrar informações sobre lugares

ou épocas passadas” (p. 22). Nesse processo alguns pontos são trabalhados, como

a leitura literal das paisagens, ou seja, é de interesse saber a veracidade das

informações dada pelo autor, se “ele realmente vive nos lugares que descreve”, e seu

“sentimento de pertencimento” (p.24) que dirá o nível de conhecimento que o autor

tem sobre os lugares retratados. Outro ponto refere-se ao romance enquanto

“testemunho das pessoas ‘reais’ que ele traz para a cena sob a capa da ficção” (p.

25), na qual o romance toma o papel de porta-voz das populações descritas.

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Ele nos mergulha nas atitudes, nos valores, nos conflitos das pessoas de uma região determinada, face ao seu meio ambiente. O presumido realismo das obras estudadas seria, portanto, um realismo subjetivo coletivo que o romance conseguirá explicar e saberia descrever adequadamente. Isso, evidentemente, evoca a questão da verossimilhança, mas também de representatividade a que uma obra de ficção pode pretender. (BROSSEAU, 2007, p. 25)

O próximo passo dado pelo autor, refere-se à literatura vista enquanto

transcrição da experiência dos lugares, trabalhada de formas distintas pelas escolas.

A geografia humanista anglo-saxã aprecia a “originalidade dos lugares, a carga

subjetiva da qual eles são investidos pela experiência”, propondo uma “ciência dos

lugares para o homem” (Ibidem, p. 29). Na França, o foco se estabelece na noção de

“espaço vivido”. Diante do desafio de desenvolver teses nas quais se buscava

aspectos não quantificáveis, esses estudiosos encontraram nos romances variadas

possibilidades para análise da relação entre o homem e o mundo.

Sob o pretexto de que não cabe necessariamente à pesquisa apresentar informações positivas sobre um lugar preciso (não fazer uma leitura referencial ingênua), a assimilação da literatura como transcrição de um ato de percepção (diferenciado ou não) apenas desloca o preconceito realista. Se admitirmos que é difícil buscar na literatura uma informação positiva sobre os lugares, estaremos dizendo que o romance, ao evocar de maneira eloquente o ressonante interior de uma experiência dos lugares, pode servir para enriquecer as teses sobre identidade espacial, o enraizamento do homem, o sentido que este atribui aos lugares. (BROSSEAU, 2007, p. 31)

Por fim a literatura vista como crítica da realidade ou da ideologia

dominante, que surge como contraponto ao quantitativismo, sendo uma corrente dita

radical. “A literatura pode, assim, servir para se opor ao ‘monopólio da realidade

estabelecida’” (Ibidem, p. 47), adquirindo um papel revolucionário e de cooperação

junto aos movimentos sociais contrários à ideologia dominante.

Olhar as artes e as letras como novas formas de perceber a realidade traz

consigo o que foi renunciado pela ciência durante séculos, assim, olhar o romance

como expressão da realidade surge como uma nova forma de diálogo. Essa relação

entre geografia e literatura não é recente, o que muda é a forma como enxergamos o

texto literário, pois a descrição de lugares tornou-se um dispositivo artístico para

configuração do mundo e daqueles que o habitam. Neste sentido somos consonantes

ao pensamento de Nuñez (2010) ao afirmar que

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Tecnicamente, o texto literário se compõe da interação de categorias ficcionais (narrador, ponto de vista, tempo, espaço, personagem, recursos estilísticos, estrados imagético etc.), dentre os quais o espaço é um dos mais importantes, sem poder ser, todavia, dissociado dos demais; a abordagem geográfica se centra no espaço e nos lugares que se compreende, focalizando, essencialmente, a análise de seus elementos. (NUÑEZ, 2010, p. 74-75)

O uso de textos literários pela Geografia Cultural, parte do argumento de

que o espaço se apresenta como componente indispensável da narrativa, uma vez

que o romance deve ser contextualizado no espaço-tempo. Podendo o espaço ser

estrutura do real, materializado dentro de uma estrutura social concreta, pela qual se

dará o desenrolar dos acontecimentos, e como espaço simbólico, carregado de signos

e significados (MOREIRA, 2008).

Dardel acredita que o espaço geográfico é formado por diferentes espaços,

“tem um horizonte, uma modelagem, cor, densidade. Ele é sólido, líquido e aéreo,

largo ou estreito: ele limita e resiste” (2015, p. 2). Desta forma enxerga a Terra como

o texto repleto de signos a ser decifrados por nós, geógrafos.

Dessa interpretação feita por um geógrafo, temos acesso quase sem transição para o mundo do romancista em que a feição da Terra se anima com as vibrações coloridas do momento. [...] A escrita tornando-se mais literária, perde clareza, mais ganha em intensidade expressiva, devido ao estremecimento da existência que é dada pela dimensão temporal restaurada. [...] A geografia não implica somente no reconhecimento da realidade em sua materialidade, ela se

conquista como técnica de irrealização1, sobre a própria realidade. (DARDEL,

2015, p. 3-5)

Em “O Homem e a Terra”, Dardel nos apresenta uma Geografia

imaginativa, assim como pensada e idealizada por Wrigth, fruto de uma inquietação e

preocupação de descobrir o mundo, na qual o homem é visto como componente

indissociável do espaço, [...] “a inquietude geográfica precede e sustenta a ciência

objetiva” (DARDEL, 2015, p. 1). O espaço geográfico não é visto somente por sua

1 (Nota do tradutor) Esse termo refere-se a Sartre: “Uma das principais contribuições de Sartre a fenomenologia da imaginação refere-se à definição da consciência imaginante (imageante): para que uma consciência possa imaginar, é necessário que transcenda o mundo e o coloque à distância. A possibilidade de imaginar implica uma ‘irrealização’ (irréalisation) que permite se presentificar (présentifier) uma coisa ou uma pessoa a título de sua ausência. Na sua intenção mesma, a consciência visa o objeto ainda que ausente, ela o ‘nadifica’ (néantise). A partir de um representante analógo (l’analogon), a consciência imaginante irrealiza um objeto, que transforma em imaginário.” (FRANÇOIS NOULDELMANN apud HOLZER, p. 15, 2015)

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atribuição material, mas como o mundo da existência, no qual se agrupam o

conhecimento, a ação e a efetividade, culminando desse modo, a um mundo vivido,

“o mundo ambiente da existência cotidiana dos homens” (DARDEL apud BESSE,

2015, p. 114).

Trazendo uma reflexão em torno da leitura de espaço e literatura a partir

da imaginário, Almeida nos chama a atenção sobre os lugares vividos que

“são frutos das relações tecidas entre os homens e o meio e os sentimentos de pertencimento; sentimentos que correspondem às práticas e às aspirações, estando estas relações codificadas por signos que lhes dão sentido. Entre os espaços da vida próximos ao distante e apenas imaginado, todos os territórios vividos ou pensados o são através de categorias que refletem situações de experiência relacional de vida. Portanto, pela reconstrução das tramas do imaginário espacial compreende-se como se instalam e desenvolvem os gêneros de vida sobre os territórios e as práticas que resultam destes”. (2003, p.73)

No centro da teoria de Dardel, a geografia é vista não somente enquanto

ciência, mas como um prolongamento da existência humana, pois é a forma como o

Ser experiencia o mundo, ou seja, primeiramente, o mundo “da existência”. Dessa

forma a realidade geográfica de Dardel é experimentada de diferentes formas e em

múltiplas direções, na qual o homem imprime em cada lugar sua particularidade,

sendo o papel da Geografia esclarecer esses signos particulares. As dimensões da

realidade estão distribuídas entre o “espaço material”, o “espaço telúrico”, o “espaço

aquático”, o “espaço aéreo”, e o “espaço construído”.

O espaço geográfico é antes de tudo material, visto em sua imensidão

como um oceano navegável pelo homem a partir de seus sentidos. Realidade

percebida, atribuímos qualidades de distância como forma de impor as coisas ao

nosso alcance, resultando em uma espacialização cotidiana de afastamento e direção.

A distância geográfica não é uma medida objetiva, “é experimentada não como

quantidade, mas como uma qualidade expressa em termos de perto ou longe”

(DARDEL, 2015, p. 10). Como resultado observa-se que afastamento e direção

definem a situação, que para geografia não se situa apenas no plano material, mas

atinge a experiência do homem no mundo, construindo seu espaço vivido. “A

‘situação’ de um homem supõe um ‘espaço’ onde ele ‘se move’; um conjunto de

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relações e de trocas; direções e distâncias que fixam de algum modo o lugar de sua

existência” (Ibidem, p. 14)

O espaço telúrico é visto por Dardel por suas qualidades de solidez,

profundidade e plasticidade percebidas a partir de uma experiência primitiva. Ao longo

de sua construção histórica o homem teve no telurismo um aliado para afirmar sua

liberdade. O espaço telúrico também é visto enquanto movimentos, que “fazem brotar,

em certa medida, a espessura e a profundidade da matéria terrestre, sua substancia

telúrica” (Ibidem, p.18)

O espaço aquático é o espaço da vida, é a partir dele que o homem se

organizou ao longo de seu desenvolvimento, por isso transmite segurança. Por ser

líquido é um espaço móvel, “a água corrente, porque é movimento da vida, aplaina o

espaço” (Ibidem, p. 20). A atmosfera forma o espaço aéreo, fornecendo à existência

humana seu sentido afetivo apropriado. “Essa geografia atmosférica transmite bem

imagens expressivas da linguagem moral: ‘frieza’ de um olhar, ‘ardor’ ou ‘calor’ de um

discurso, acolhida ‘calorosa’ ou ‘glacial’ etc”. (Ibidem, p, 25).

Por fim o homem encontra o homem, o espaço construído. Fruto de um

conjunto de determinações e amarrações dadas pelo homem, a partir de sua

construção histórica. Apresenta traços distintos como o hábitat, as vias de

comunicação e transporte, as culturas, apresentando espaços diferenciados,

paisagens próprias.

Além de Dardel, daremos ênfase ao pensamento de Yi-Fu Tuan (1983), a

partir de sua obra “Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência”. Como foi ressaltado

anteriormente, Tuan foi um dos geógrafos responsáveis pelo processo de renovação

da Geografia Humanista e Cultural, a partir do resgate de autores como Wright, Dardel

e Sauer. Tuan realiza um diálogo constante entre espaço e lugar, considerando-os

termos familiares que proporcionam ao homem, experiências comuns. Para responder

a pergunta “Que é espaço?” Tuan resgata um pouco da vida do teólogo Paul Tillich, a

partir de seu olhar frente às experiências vividas em sua cidade natal, bem como suas

viagens ao litoral, permitindo uma “sensação de amplidão, de infinito, de espaço sem

limitações” (TUAN, 1983, p. 4). Assim como em Dardel, o espaço de Tuan parte da

experiência do homem frente ao mundo, uma vez que temos o privilégio de acesso ao

estado de espirito, sentimentos e pensamentos.

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Mas como o homem tem a possibilidade de atribuir significado ao espaço e

organizá-lo? Para Tuan, isso torna-se possível pela cultura, uma vez que é

desenvolvida apenas por nós, humanos. “Ela influência intensamente o

comportamento e os valores humanos” (TUAN, 1983, p. 6). Na experiência os

significados de espaço e lugar se fundem, à medida que vivenciamos o espaço e o

dotamos de valor transforma-se em lugar, não podendo ser vistos separados. “A partir

da segurança e estabilidade do lugar estamos cientes da amplidão, da liberdade e da

ameaça do espaço, e vice-versa” (TUAN, 1983, p. 6).

A experiência constitui-se enquanto termo chave para o pensamento de

Tuan, sendo o modo com o qual a pessoa conhece e constrói a realidade, assim fala-

se em espaço experiencial. “A experiência implica a capacidade de aprender a partir

da própria vivência” (TUAN, 1983, p. 10). Para Tuan apud Holzer (1999, p.69), “o

mundo é um campo de relações estruturado a partir da polaridade entre o eu e o outro,

ele é o reino onde a história ocorre, (...) e deste ponto de vista deve ser apropriado

pela Geografia.” Ainda segundo Tuan, juntos, espaço e lugar são a natureza da

geografia, espaço enquanto conjunto complexo de ideias, e lugar o constructo de

nossa experiência do mundo.

Nesta perspectiva Relph apud Holzer (1995, p. 71) faz uma análise de

diferentes tipos de espaço, nos conduzindo aos significados do lugar, dentre eles, o

de espaço existencial ou espaço vivido, sendo este, a união do espaço sagrado com

o espaço geográfico, remetendo assim ao lugar atributos de personalidade e sentido.

A essência do lugar é ser centro das ações, onde se desenvolvem as experiências e

eventos relevantes à existência. A partir disto, o lugar adquire qualidades de

identidade e de estabilidade, uma vez que, vivencio a experiência, estabeleço

relações e alimento emoções. Para atingir esta relação tem-se a necessidade de

estabelecer uma convivência temporal prolongada, ou seja, criar um sentimento de

pertencimento, uma estabilidade.

Tomando por base Bachelard, Ozires Filho (2008), realiza uma análise, ou

melhor, uma topoanálise do espaço em obras literárias, com o objetivo de analisar a

construção de espacialidade contida nos textos literários. Para o autor a topoanálise

se refere ao estudo sobre o espaço com base nas suas diferentes abordagens:

psicológica, sociológica, filosófica etc. “Ela também não se restringe à análise da vida

íntima, mas abrange também a vida social e todas as relações do espaço com a

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personagem seja no âmbito cultural ou natural” (Ibidem, p. 1). Para ele o espaço

possui funções dentro do texto literário, sendo difícil elencar todas elas, mas destaca

sete principais: 1. Caracterizar as personagens em seu contexto sócio econômico e

psicológico na qual vivem, desta forma, torna possível por exemplo antecipar ações

do personagem; 2. Influenciar as personagens além de sofrer suas ações, neste caso,

o espaço pode determinar a ação do personagem, comum nos romances naturalistas;

3. Propiciar a ação, neste caso o espaço favorece determinada ação do personagem;

4. Situar os personagens geograficamente, na qual o espaço assume uma função

denotativa, porém, importante na arquitetura da obra; 5. Representar os sentidos

vividos pelos personagens, caracterizados por ser espaços casuais, construindo uma

analogia entre o espaço da ação e o sentimento do personagem; 6. Estabelecer

contraste com os personagens, mostrando um espaço indiferente, um espaço

heterólogo; 7. Antecipar a narrativa. Sua metodologia não visa analisar as relações

existentes entre o espaço e personagens, mas de perceber de modo instrumental

como se realiza a construção do espaço nas obras literárias.

Diante da retomada do espaço como conceito primordial para ciência

geográfica a partir do processo de renovação humanista e cultural na década de 1970,

ampliaram-se os estudos que se detinham nas artes enquanto fonte, esses estudiosos

passam a se debruçar sobre a literatura, por que nela se observam aspectos

subjetivos da relação com o mundo.

Tanto a literatura quanto as artes são muito úteis para o geógrafo humanista, como fontes de informação e para melhor compreensão do desenvolvimento ou da aparição de nossa sensibilidade no que diz respeito ao meio ambiente; além disso, elas nos ajudam a colocar ou a confirmar nossas hipóteses de pesquisa (POCOCK, 1984, p. 140, apud BROSSEAU, 2007, p. 30)

Desse modo, a literatura surge como o registro de lugares a partir da

percepção dada pelo autor, como transcrição de uma realidade concreta, sendo a

literatura realista do século XIX a principal fonte de análise. Para Foucault, a

importância dada ao autor literário emerge a partir da Idade Média. “O autor é aquele

que dá à inquietante linguagem da ficção suas unidades, seus nós de coerência, sua

inserção no real” (1999, p. 28), dada a necessidade de articular suas experiências

vividas. A literatura enquanto fonte é distinta, por permitir ao geógrafo uma visão mais

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ampla da realidade, que passa a ser vista não apenas de forma objetiva, mas também

lê as entrelinhas do subjetivo, pouco valorizado pelo positivismo, como nos aponta

Cosgrover.

Consequentemente, nossa geografia deixa escapar muito do significado contido na paisagem humana, tendendo a reduzi-la a impressão impessoal de forças demográficas e econômicas. A ideia de aplicar à paisagem humana algumas das habilidades interpretativas que dispomos ao estudar um romance, um poema, um filme ou quadro, de trata-la como uma impressão humana intencional composta de muitas camadas de significados, isto é o que proponho explorar, sugerindo maneiras de tratar a geografia como uma humanidade e

como uma ciência social. (COSGROVE, 1998, p. 97)

A respeito de estudos desenvolvidos sobre o tema, Marandola Jr. e Oliveira

identificam diferentes abordagens na qual Geografia e Literatura dialogam. Segundo

os autores o interesse por parte da Geografia na Literatura se justifica pela

espacialidade, implícita ou explícita, existente nas narrativas, ressaltando aos olhos a

veracidade e a realidade contidos nos romances, “daí o texto poder ser considerado

como um entrelaçar as linhas reais e fictícias” (MARANDOLA JR. e OLIVEIRA, 2009,

p.497). Tal interesse amplia-se à medida que mudanças socioespaciais se consolidam

a partir da segunda metade do século XX.

Diante de um novo contexto mundial, observamos que o diálogo entre

Geografia e Literatura tem encontrado campo fértil desde o início do século XXI, como

um reflexo das revoluções tecnológicas e culturais. A expansão tecnológica gera

novas necessidades de produção e comunicação, as distâncias geográficas são

vencidas em tempo e velocidades maiores, os fatos tornam-se imediatos e em muitos

casos efêmeros, exigindo de nós, novas posturas e um novo olhar sobre o que está

acontecendo, além de uma preparação para o porvir.

Ao longo de seu desenvolvimento, a geografia construiu conceitos e

métodos próprios para leitura do espaço, permitindo assim uma interdisciplinaridade

com outras zonas de conhecimento, pois trabalha-se os conceitos de lugar, paisagem,

região, território e espaço a partir de um olhar próprio. Assim, o diálogo com a literatura

tornou-se inevitável, promovendo um enriquecimento das análises socioespaciais.

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Pensar a relação Geografia-Literatura não é apenas aproximar dois campos do conhecimento. Envolve aproximar duas visões de mundo que, enquanto tais, possuem suas especificidades, virtudes e limitações. Uma aproximação simplista reduziria o potencial compreensivo de uma ou de outra. Quer dizer: ler literariamente a Geografia ou ler cientificamente a Literatura, numa transposição de discursos, produziria deformações e reduções, diminuindo assim a riqueza da interação e a sua permeabilidade. (MARNDOLA JR E OLIVEIRA, 2008, p. 488)

A partir desses novos questionamentos, muitos geógrafos humanistas e

culturais se debruçam sobre novos métodos de análises nas ciências humanas

objetivando respostas. Buscando colocar o sujeito no cerne das análises

socioespaciais, a geografia humanista e cultural buscou apoio nos preceitos teóricos

da fenomenologia, promovendo o uso da literatura como fonte de análise do real.

Eles procuram uma concepção de mundo que seja diversa da cartesiana e positivista que tem dominado a ciência nos últimos séculos. Sua pretensão é de relacionar de uma maneira holística o homem e seu ambiente ou, mais genericamente o sujeito e o objeto, fazendo uma ciência fenomenológica que extraia das essências a sua matéria prima. (HOLZER, 1997, p.77)

No Brasil observamos uma maior intensidade de trabalhos na Geografia

que recorrem à dimensão da literatura a partir da análise de romances realistas.

Muitas pesquisas se centram no confronto entre a “experiência dos lugares” dos

escritores com aqueles observados pelos geógrafos. São vários os autores que se

debruçam sobre a história e a geografia para dar forma aos seus romances. Citado

por Marandola Jr. e Oliveira, Araújo nos mostra a importância da literatura brasileira.

A literatura brasileira incorpora em várias de suas obras mais relevantes elementos de interpretação histórica e geográfica do país em formação. Apropriada pela crítica literária, a ideia de “formação” ganha eficácia explicativa em duas direções aparentemente opostas, mas na realidade complementares: a literatura, ao mesmo tempo, é formada e transforma o chão social, cultural, histórico e geográfico sobre o qual nasceu, e que lhe conforma organicidade e sentido. É formada, pois incorpora problemas de seu tempo e de seu espaço; transforma, pois, cria e cimenta identidades locais, regionais e nacionais, impondo-se como representação coletiva que funda práticas e vínculos culturais e sociais. (ARAÚJO, 2002-2003, p. 46, apud MARANDOLA JR. e OLIVEIRA, 2009, p. 492)

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As escolas literárias no Brasil tem um forte papel na formação da identidade

brasileira. Depois se superar a ligação em relação à literatura portuguesa, a discussão

em relação ao desenvolvimento de uma literatura capaz de expor uma identidade

nacional, emerge no fim do século XIX. “O problema da ‘brasilidade’ já não se definia

em termos de Colônia e Metrópole, mas em Regional e Nacional, Particular e Geral”

(ARAGÃO, 2012, p.37). José de Alencar é um dos primeiros a ambicionar uma

literatura nacional, com sua vasta obra de romances coloniais e indígenas. Mas para

Pereira apud Aragão (2012), não podíamos idealizar um único espirito brasileiro, pois

temos que levar em conta as diferentes “realidades brasileiras”, que em seu conjunto

revelam o Brasil.

Outro momento importante se dá pelo movimento modernista da década

de 1920, sendo considerado um marco para as artes nacionais, principalmente, na

literatura, mesmo sendo um movimento autenticamente paulista. O modernismo tinha

como objetivo a busca de uma “identidade nacional” que deveria romper com a

influência europeia. Neste processo, na década seguinte, um grupo de autores inicia

um novo movimento na produção literária brasileira, o regionalismo. Segundo Antonio

Candido (1989) apud Vallerius (2010) o regionalismo está dividido em três fases:

antes de 1930, marcado pelo pitoresco e exótico sem consciência do

subdesenvolvimento; período de 1930 a 1940, regionalismo problemático, no qual

constrói-se uma consciência de subdesenvolvimento, também marcado por forte

influência do romantismo; pós-1940, regionalismo que mostra um consciência

destroçada do subdesenvolvimento.

Em sua dissertação de mestrado intitulada “O regionalismo na literatura

brasileira: o diagnóstico de Antonio Candido”, Marcelo Guadagnin (2007) traça um

panorama da construção e desenvolvimento do regionalismo no Brasil a partir da obra

do crítico literário Antonio Candido. A partir de um leitura cronológica das obras de

Candido, aliadas ao momento histórico brasileiro, Guadagnin analisa a evolução do

posicionamento do crítico frente ao modo com que o regionalismo vem se

desenvolvendo no Brasil, como forma de expressar a formação de uma identidade

nacional. Dentre os estudos desenvolvidos por Candido, está a análise das “variações

sobre a função humanizadora da literatura” (CANDIDO, 2002, p.77 apud

GUADAGNIN, 2007, p.96). O mesmo afirma que todo homem necessita de um pouco

de fantasia, pois através dela o homem se humaniza. Portanto, a literatura possui uma

“função humanizadora”, ou seja, contribui para formação da personalidade do

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indivíduo, adquirindo uma função educativa, resultando em um conhecimento do

mundo e do ser. “O crítico registra que muitas correntes estéticas identificam três elementos

básicos do que é literatura: 1) a literatura é uma forma de conhecimento; 2) uma forma de

expressão; e 3) uma construção de objetos semiologicamente autônomos.” (Ibidem, p. 96)

Torna-se importante ressaltar a importância dos romances de cunho

regional, enquanto obras densamente geográficas, com destaque aos “romances de

1930, que incorporam em suas tramas um realismos a partir das denúncias sociais

expostas. Autores como Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Érico Veríssimo, Graciliano

Ramos utilizam fortemente em seus romances aspectos históricos e geográficos.

Na virada do século XX para o XXI, concretiza-se um maior número de

estudos sobre a aproximação entre a Geografia e Literatura, que passaram a produzir

novas orientações sobre o sentido do lugar, significado da paisagem, além do uso de

uma linguagem mais literária por parte dos geógrafos em seus trabalhos

(MARANDOLA JR e OLIVEIRA, 2009)

Este tipo de leitura prenuncia dois aspectos que caracterizam a aproximação Geografia-Literatura no final do século XX e início do XXI. O primeiro é o recurso ao metafórico, a uma linguagem que busca os símbolos e os significados nas formas e signos presentes na obra (discurso) e no próprio espaço (telúrico). O segundo é um esforço, por parte dos geógrafos, de exercitar uma escrita mais solta, mais fluida, incorporando elementos pessoais e “literários” a seus textos. (MARANDOLA JR e OLIVEIRA, 2009, p. 494)

No contexto brasileiro pode-se identificar algumas abordagens e

tendências, referentes à análise literária na Geografia, seja em uma leitura realista

que se aproxima dos romances regionalistas, ou uma leitura mais humanista a partir

de diferentes elementos estéticos e interpretativos. Marandola Jr e Oliveira (2009)

nos apresentam um esboço dos estudos desenvolvidos sobre a relação geografia e

literatura por geógrafos brasileiros pós-1990 (Quadro 1).

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Quadro 1 – Esboço de organização das abordagens de estudo da relação

Geografia-Literatura em trabalhos de geógrafos brasileiros – Pós-1990

Fonte: MARANDOLA JR e OLIVEIRA, 2009, p. 496.

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A partir desse quadro síntese observamos uma evolução nos trabalhos

geográficos sobre o tema, que nos ajudam a pensar nos diversos caminhos que

podemos trilhar na busca por uma análise geográfica direcionada na relação entre o

homem e seu mundo, focando não somente em sua carga realista, mas em seu mar

de signos e símbolos.

A partir do quadro apresentado, observamos que a literatura brasileira, por

sua riqueza de obras e autores, apresenta-nos uma série de possibilidades,

permitindo uma pluralidade de estudos, emergindo dois focos principais de análises:

um primeiro, dedicado a estudos sobre espacialidade (materialidade); e um segundo,

direcionado a uma geograficidade (imaterialidade) (MARANDOLA JR e OLIVEIRA,

2009). Devemos salientar que não existe ainda um método ou metodologia

consolidada no que tange ao tema em questão, prevalecendo construções teóricas

que se adequem a cada pesquisa.

Desse modo, afirmamos que o interesse da geografia pela literatura parte

da espacialidade contida nas tramas, pois todo texto literário situa-se em um espaço-

tempo, seja explícito ou implícito em sus linhas. A geografia debruça-se sobre uma

realidade pensada e imaginada pelo autor para assim trabalhar suas análises.

Levando em consideração o regionalismo brasileiro, considerados romances

densamente espaciais, notamos que o foco não está somente na materialidade dos

objetos espaciais, podendo ser observado um sentido de geograficidade próprio.

Estes podem ser identificados em alguns romances e lidos em algumas análises feitas por literatas que têm se ocupado em investigar o espaço e a Geografia nas obras literárias. Segundo Dimas (1987), há três formas de o espaço aparecer na literatura: (1) de forma tão importante a ponto de alcançar estatuto igual ao dos outros componentes da narrativa; (2) de forma diluída, tendo uma importância secundária; e (3) de forma a se descobrir a funcionalidade e a organicidade gradativamente, haja vista que o escritor conseguiu dissimulá-lo a ponto dele estar harmonizado com os demais elementos narrativos. (MARANDOLA JR e OLIVEIRA, 2009, p. 499)

Podemos enumerar alguns estudos que tem como objeto de análise o

diálogo existente entre Geografia e Literatura, são eles: estudos sobre as obras de

Machado de Assis desenvolvido por Barcelos (2009); análises dos romances de

Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, por Monteiro (1988); estudo de Carvalhal sobre

a obra de Érico Veríssimo (1993) dentre outros. Deste modo, a literatura não está

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alheia à realidade do homem, embora tendo como linguagem a subjetividade do signo,

é sim, mais um modo de representação e interpretação do real.

Na perspectiva da Geografia Cultural, o estudo da estrutura romanesca

ganha força com o intuito de apreender além da paisagem descrita, as relações

afetivas existentes na paisagem, partindo da relação do autor com o lugar e pautado

no vivido de seus personagens. Assim, buscamos desenvolver um trabalho sobre a

interligação entre Geografia e Literatura a partir da ótica da Geografia Cultural

renovada que elege o significado como mote principal de sua temática.

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3 O TEXTO LITERÁRIO E OS ASPECTOS SUBJETIVOS DA PAISAGEM

O texto de uma interpretação geográfica da

paisagem é o meio através do qual

transmitimos seu significado simbólico,

através dos quais re-interpretamos esses

significados.

(COSGROVE, 1998, p. 110)

Elegemos o conceito de paisagem como balizador de nossa pesquisa, por

que acreditamos na sua importância perante à ciência geográfica, principalmente pós-

1970, bem como um conceito que melhor pode explicar e dar respostas para nosso

anseio, ou seja, dialogar com a literatura para entender o sertão de Rachel de Queiroz

em seu romance “O Quinze”.

3.1 A literatura como expressão da paisagem

A paisagem pode ser vista como um conceito polissêmico, muito

incorporado ao senso comum, considerado ser tudo aquilo que a vista alcança, o olhar

pela janela, o contemplar de uma colina, sentir a brisa no rosto, “ela possui formas,

cores, volumes, odores, sons e funções” (PANIZZA, 2014, p. 14). A paisagem também

está incorporada a diferentes áreas do saber, seja na geografia, na história, na

filosofia, na ecologia, na arquitetura, nas artes etc.

A paisagem é um conceito transversal e sua conotação geográfica é inevitável. [...] Paisagem é um conceito polissêmico e de uso popular. Nos meios acadêmicos e científicos sua polissemia, isto é, sua multiplicidade se sentidos, foi entendida durante muito tempo como um problema: um termo impreciso e por isso cômodo, pois cada um o utiliza como quer. A paisagem também era entendida como uma “importante seção da realidade ingenuamente perceptível e não uma ideia sofisticada”. Hoje, novos olhares e novas leituras a reabilitaram. (PANIZZA, 2014, p. 14-15)

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O desenvolvimento do conceito de paisagem, caminha com a construção

da Geografia enquanto ciência, Claval (1999) apud Corrêa (2012) aponta uma

periodização sobre os estudos geográficos sobre a paisagem. O primeiro período se

estende do final do século XIX à década de 1940, caracterizado por uma visão

materialista da paisagem, na qual se analisa suas formas (morfologia) e sua gênese.

No decorrer de seu desenvolvimento enquanto conceito basilar para geografia, a

paisagem, à princípio, estava fortemente influenciada pelo naturalismo. Ainda no

século XIX, Humboldt estabelece as bases para uma sistematização da paisagem.

Era considerado um holista, pois possuía uma visão integradora, que analisava o

mundo a partir da perspectiva de unidade (MOREIRA, 2006). Humboldt enxerga a

paisagem a partir de suas características fitogeográficas, assim, “causaria uma

impressão do observador, que, somada à observação sistemática dos elementos e do

raciocínio lógico, levaria a explicações, baseadas na causalidade das conexões

existentes” (PANIZZA, 2014, p. 24). Seguindo a lógica naturalista, de base cultural,

Ratzel afirma que paisagem e sociedade estão ligadas ao meio pelos recursos

naturais que existem em seu entorno enquanto possibilidade de desenvolvimento do

homem. Desse modo a paisagem pode ser vista e concebida

[...] como um conjunto de formas materiais como campos, caminhos e habitat rural, distribuídas espacialmente e dotadas de funções que as articulam, gerando um quadro integrado e funcional para a vida do grupo que ali vive e que criou, nas sociedades longamente enraizadas, um gênero de vida. (CORRÊA, 2012, p. 29-30)

Com La Blache a ideia de gênero de vida surge partir do pressuposto de

que a natureza determina as ações humanas, a partir das condições que lhe são

oferecidas, aliadas às possibilidades criadas pelo homem. Assim, a paisagem é vista

como resultado da transformação do meio natural pelo homem, ou seja, analisá-la

implica na busca por sua gênese, os processos, agentes e condições bem como suas

formas, seu resultado.

Na década de 1990, na América, uma nova linha de estudos desenvolvida

pela Escola de Berkeley a partir das ideias de Sauer retoma a paisagem enquanto

conceito basilar para a Geografia, na qual afirma ser o resultado da relação entre

cultura como agente e a área natural como meio para sua existência, a partir de uma

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visão supraorgânica de cultura (SAUER, 1998). “Para os teóricos da Escola de

Berkeley, o conceito de paisagem é, ele próprio, um modo especial de compor

estruturas e dar significado a um mundo externo, cuja história tem que ser entendida

em relação à apropriação material da natureza” (COSTA, 2009, p. 50). Quanto a

cultura, é entendida de modo supraorgânico nas ciências humanas principalmente na

primeira metade do século XX, sendo vista enquanto meio no qual a sociedade

transforma aspectos cotidianos da vida material em símbolos, atribuindo-lhes valor.

Ou seja, uma categoria ontológica necessitando ser compreendida, desse modo, “a

cultura ‘em si’, sutilmente teorizada e compreendida como estando ligada a outras ‘esferas’

da atividade humana, é cada vez mais adotada na geografia contemporânea como

explicação para as diferenças materiais que marcam o mundo” (MITCHELL, 2008, p. 83).

Para Mitchell (o. cit.) cultura adquire entre as ciências sociais diferentes

conceituações, contudo, em todos os casos, “é simbólica, ativa, constantemente

sujeita a mudanças e marcada por relações de poder” (Ibidem, p. 81).

Diante do desenvolvimento de seus estudos, Sauer afirma que o papel da

geografia está em estabelecer um sistema crítico que abarque uma fenomenologia da

paisagem de forma a “captar em todo o seu significado e cor a variada cena terrestre”

(1998, p. 22), sendo a paisagem o conceito unidade da geografia. Neste sentido, nos

informa Sauer, que a paisagem não é simplesmente uma cena real, mas é, sobretudo,

uma generalização derivada de observações.

Ela pode ser, portanto, definida como uma área composta por uma associação distinta de formas, ao mesmo tempo físicas e culturais. Os fatos da geografia são fatos de lugar; sua associação origina o conceito de paisagem. [...] Por definição, a paisagem tem uma identidade que é baseada na constituição reconhecível, limites e relações genéricas com outras paisagens, que constituem um sistema geral. Sua estrutura e função são determinadas por formas integrantes e dependentes. A paisagem é considerada, portanto, em um certo sentido, como tendo uma qualidade orgânica. (SAUER, 1998, p. 23)

O segundo período, compreendido entre 1940 e meados da década 1970,

marcado pelo quantitativísmo, a paisagem perde expressão, emergindo o conceito de

região, com as análises regionais, o que no Brasil marca a criação do Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse período baliza à expansão

econômica das grandes empresas, a ideia de desenvolvimento é difundida e na

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Geografia, é seguida por uma “revolução teorética-quantitativa”, também nomeada de

Nova Geografia, “com o uso de modelos matemáticos e questões associadas à

racionalidade capitalista do espaço” (CORRÊA, 1995, p. 30).

Por fim, o terceiro período corresponde ao pós-1970 que se estende até o

presente. Norteado pelo ressurgimento dos conceitos de espaço, paisagem e lugar,

bem como uma forte crítica à Nova Geografia. A crítica ao positivismo faz com que

muitos geógrafos recorram a novos métodos, emergindo uma Geografia Crítica a

partir do materialismo histórico e dialético, que busca analisar a sociedade através de

suas contradições. No caso da Geografia Cultural, recorre-se ao existencialismo e à

fenomenologia como novas possibilidades de análises, passando a enxergar o

homem por meio de sua subjetividade. Para Corrêa (1995), a visão de paisagem do

primeiro período passa a ser alvo de críticas. “A visão simples e, aparentemente, não

problemática foi questionada no que diz respeito a se considerar a cultura, da qual a

paisagem é uma expressão, como homogênea, estática e sem contradições e

conflitos” (Ibidem, p.31), resultando em uma ruptura com o pensamento saueriano.

Diante desse contexto um novo consenso surge, a paisagem não pode ser vista

apenas por suas formas, mas na sua relação com o homem e subjetividade.

Pensar a paisagem enquanto resultado da relação sociedade e natureza,

faz emergir novas propostas de estudos, dentre elas a incorporação do método

fenomenológico nos estudos de Geografia Cultural. Para consolidação desse

processo, autores como Tuan (1961; 1967; 1976), Lowenthal (1961; 1967), Buttimer

(1969), Relph (1970, 1973), Meinig (1971) entre outros, remetem ao início do século

XX e iniciam uma revisão teórica e metodológica na busca de constituir uma ciência

que superasse os parâmetros cartesianos vigentes (HOLZER, 2008). Nesse contexto,

pensar o conceito de paisagem incorpora ideias subjetivas em relação ao homem

diante de seu contexto natural e social.

Uma geografia que fosse ao encontro desses novos valores deveria basear-se em uma “aproximação humanística”, tendo como objeto a apreciação da paisagem enquanto ambiente natural e humanizado, o que contribuiria para a preservação e valorização do ambiente terrestre. (HOLZER, 2008, p.139)

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É importante mencionar que nesse momento os estudos em torno do

conceito da paisagem são retomados por diferentes concepções teóricas, sendo elas:

uma corrente marxista, que propõe sua análise enquanto espetáculo; uma linha

comportamental, que surge na América do Norte e que visa uma Geografia das

representações; e por fim uma Geografia Cultural francesa, que busca na paisagem

sua base, a partir de aspectos do mundo vivido. (HOLZER, 2004)

Cosgrove (1998) traz o contraponto em relação a Sauer, enquanto que este

concentrou-se nas formas visíveis da paisagem, aquele evidencia a necessidade de

rever a paisagem e a cultura enquanto conceitos na geografia. Segundo Cosgrove, a

paisagem está diretamente ligada à geografia humana, a partir da cultura e da ideia

de formas visíveis da superfície terrestre, sendo “uma ‘maneira de ver’, uma maneira

de compor e harmonizar o mundo externo em uma ‘cena’, em uma unidade visual’ (p.

98), enquanto texto cultural, a paisagem possui diferentes dimensões, possibilitando

diferentes leituras. Cosgrove teve forte influência no processo de renovação da

Geografia Cultural, bem como o resgate do conceito de paisagem. A paisagem

geográfica possui uma carga simbólica, imprimindo sua linguagem, símbolos e traços

culturais, tendo o geógrafo o papel de analisar a paisagem a partir da leitura de seu

significado (COSGROVE, 1998).

Em Prospect, Perspectives and the Evolution of Landscape Idea, publicado em 1985, Cosgrove aponta para o fato de que a ideia de paisagem (landscape) no mundo ocidental tem suas origens no Renascimento. A paisagem, segundo Cosgrove, deve ser considerada como “um modo de ver”, associado às transformações econômicas, sociais, políticas, técnicas e artísticas do século XVI e do início do século XVII. A ideia de paisagem que emerge vincula-se à ação prática em um período de transformações na sociedade, envolvendo a apropriação e o controle do espaço, incluindo-se as medições, as representações cartográficas e a pintura, esta última baseada, então, nos avanços da geometria, especialmente da perspectiva linear, que permite representar uma cena, a paisagem, em três dimensões em um plano de duas dimensões. A forma (shape/scape) da terra (land) pode assim ser pictoricamente representada. (CORRÊA, 2011, p. 12)

A leitura da paisagem humana pelos geógrafos, na busca por seu

simbolismo, pode ser realizada em diferentes fontes documentais e, frequentemente,

nos produtos culturais, como pinturas, romances, filmes, poemas, músicas. Segundo

Cosgrove, tais fontes, “podem fornecer uma firme base a respeito dos significados que

lugares e paisagens possuem, expressam e evocam, como fazem fontes

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convencionais ‘factuais’” (1998, p. 110). Corrêa também aponta a importância política

em torno da paisagem, “constituindo-se em uma ideologia visual” (CORRÊA,2011, p.

12), assim em suas observações identifica dois tipos gerais de paisagens “a primeira é

a 'paisagem da cultura dominante', um dos meios através dos quais o grupo dominante tem seu

poder […], o segundo tipo é constituído pelas 'paisagens alternativas' criadas por grupos não-

dominantes e que por isso apresentam melhor visibilidade'” (CORRÊA, 1995, p. 5-6).

Dardel (2015) aponta uma concepção mais subjetiva sobre paisagem, em

um primeiro momento entende a paisagem como meio natural que está no entorno do

homem, sendo “um conjunto, uma convergência, um momento vivido, uma ligação

interna, uma ‘impressão’, que une todos os elementos” (Ibidem, p. 30). A paisagem é

vista para além de suas formas, se constitui em uma totalidade afetiva, expondo ao

homem suas ligações existenciais com a Terra, “como lugar, base e meio de sua

realização” (Ibidem, p.31), ou se optarmos sua geograficidade.

A paisagem não é círculo fechado, mas um desdobramento. Ela não é verdadeiramente geográfica a não ser pelo fundo, real ou imaginário, que o espaço abre além do olhar. [...] A paisagem é um escape para toda a Terra, uma janela sobre as possibilidades ilimitadas: um horizonte. Não uma linha fixa, mas um movimento, um impulso. (DARDEL, 2015, p.31)

Para Berque (1998) a paisagem é vista erroneamente apenas por seu viés

analítico, sendo negligenciada sua instância primeira, ou seja, “sua existência

enquanto uma relação coletiva (eu diria intersubjetiva) operada pela sociedade que a

produz, reproduz e transforma.” (HOLZER, 2004, p. 57), sua visão permite a

elaboração dos conceitos de paisagem-marca e de paisagem-matriz. Que são

definidas por Berque.

A paisagem é uma marca, pois expressa uma civilização, mas é também uma matriz, por que participa de esquemas de percepção, de concepção e de ação – ou seja, da cultura – que canalizam, em um certo sentido, a relação de uma sociedade com o espaço e com a natureza e, portanto, a paisagem do seu ecúmeno. E assim, sucessivamente, por infinitos laços de co-determinação. (BERQUE, 1998, p. 84-85)

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Berque afirma que geografia cultural deve ser entendida enquanto estudo

do sentido que uma sociedade adquire a partir de sua relação com o espaço e com a

natureza, sendo a paisagem sua expressão concreta. Devemos compreendê-la de

dois modos, o primeiro “ela é vista por um olhar, apreendida por uma consciência,

valorizada por uma experiência”, e o segundo, como matriz, pois, em contrapartida,

determina “esse olhar, essa consciência, essa experiência” (1998, p. 86)

Ao realizar uma leitura sobre a paisagem a partir de Humboldt e La Blache,

Besse (2006) afirma que na modernidade a noção de paisagem faz dela uma

representação estética tendo sua origem na arte pictórica. Em linhas gerais é uma

“construção cultural”, não podendo ser confundida com o “ambiente natural, nem com

o território ou o país”, sendo desse modo da “ordem de imagem, seja está imagem

mental, verbal, inscrita sobre uma tela, ou realizada sobre o território ( in visu ou in

situ)” (p. 61). Porém, segundo ele, a paisagem deve ser vista para além da estética,

não se pode desconsiderar outros olhares que são investidas no espaço, existem

“outros universos de significação, a outros conceitos e a outras práticas [...]. Em cada

caso, o território é afetado por qualidades paisagísticas particulares, próprias ao

interesse daquele que o considera” (p. 62). Assim, a paisagem visível conta algo,

sendo manifestação de uma realidade da superfície terrestre, construindo signos, “que

se trata então de aprender a decifrar, a decriptar, num esforço de interpretação que é

um esforço de conhecimento, e que vai, portanto, além da fruição e da emoção. A

ideia é então que há de se ler a paisagem” (p. 64). Assim “a paisagem faz parte da

realização humana, eivada de um significado pleno no seu sentido fenomenológico,

marcada pelas ações e interelações coletivas dos grupos humanos que através da

mediação simbólica irão modificar continuamente o seu entorno” (COSTA, 2009, p.

49).

Denis Cosgrove também está entre os autores que trouxeram uma nova

visão de paisagem no contexto da Geografia Humanista. Para o autor “a geografia

está em todo parte” (1998, p.93), desta forma cabe ao geógrafo o papel de ler essa

paisagem que se apresenta. A geografia durante muito tempo deixou de perceber a

paisagem humana em sua profundidade, acabando por reduzi-las a impressões

demográficas e econômicas, mas com a emergência do processo de renovação da

geografia humana o significado emerge acrescentando a humanidade que faltava na

ciência geográfica. Cosgrove apresenta a paisagem como “uma ‘maneira de ver’, uma

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maneira de compor e harmonizar o mundo externo em uma ‘cena’, em uma unidade

visual” (Ibidem, p. 98), ou seja, está ligada a um novo modo de vermos o mundo, que

nos é apresentado através de outras formas como em pinturas, poemas, romances e

teatro.

Assim, paisagem é um conceito unicamente valioso para uma geografia efetivamente humana. Ao contrário do conceito de lugar, lembra-nos sobre a nossa posição no esquema da natureza. Ao contrário do meio ambiente ou espaço, lembra-nos que apenas através da consciência e razão humana este esquema é conhecido por nós, e apenas através da técnica podemos participar dela como seres humanos. Ao mesmo tempo, paisagem lembra-nos que a geografia está em toda a parte, que é uma fonte constante de beleza e feiura, de acertos e erros, de alegria e sofrimento, tanto quando é de ganho e perda. (COSGROVE, 1998, p. 100)

O autor nos apresenta uma paisagem cultural, construída a partir da

relação do homem com o seu meio, intermediada pela cultura e os símbolos erguidos,

na qual a paisagem deve ser vista enquanto texto cultural. Vale ressaltar que os textos

oferecem diferentes possibilidades de leitura. Assim, “revelar os significados na

paisagem cultural exige a habilidade imaginativa de entrar no mundo dos outros de

maneira auto-consciente e então, re-presentar essa paisagem num nível no qual seus

significados possam ser expostos e refletidos” (COSGROVE, 1998, p. 103). Esse

processo de compreensão dos significados embutidos na paisagem cultural pode ser

realizado através da leitura dos símbolos, ou seja, pela linguagem empregada, uma

vez que “todas as paisagens possuem significados simbólicos” (Ibidem, p.108), pois

são produtos da assimilação e alteração do meio pelo homem.

Diante do contexto de renovação e retomada do conceito de paisagem,

assim como o trato subjetivo da existência humana, novas fontes de análises ganham

espaço na academia. A busca pelas artes e letras, até então negligenciadas pelo

pensamento cientifico para análise da relação entre sociedade e meio, ganha novo

fôlego. Pensar e enxergar a paisagem a partir de obras literárias ganha novas formas

de se relacionar; o olhar geográfico diante de uma trama romanesca demonstra novas

possibilidades, permitindo um diálogo interdisciplinar. Marc Brosseau (2007), um dos

principais estudiosos do tema, afirma que o romance não deve ser visto enquanto

objeto, mais o enxergar como sujeito, que proporcionar a oportunidade de um diálogo,

entre sujeitos (pesquisador-romance).

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Procurando colocar o sujeito (um pouco abandonado, em favor dos bancos de dados) no centro de seus trabalhos, numerosos geógrafos, evocando mais ou menos direta a fenomenologia, promoveriam a utilização da literatura. Esta podia servir de fonte preciosa, capaz de avaliar a originalidade e a personalidade dos lugares (sense of please) e fornecer exemplos eloquentes

de apreciação pessoal de paisagens. (BROSSEAU, 2007, p. 19-20)

O romance permite realizar diferentes análises pois, a partir do olhar do

escritor, as paisagens podem ser lidas em sua profundidade. Consoante ao que afirma

Brosseau (2007), a literatura é um modo do autor expressar sua visão sobre os

espaços e a paisagem. “O escritor consome experiências, emoções, linguagem,

memória e produz o texto, fruto de um complexo sistema de escolhas determinado

por valores que pressupõem uma ideologia que orienta a produção do discurso em

dado momento” (BASTOS, 1998, p. 57).

É importante citar que dentro do espaço textual, o sujeito pode ocupar

diferentes posições resultando em diferentes representações assim, “indicam as suas

diferentes funções enunciativo-discursivas” (ORLANDI, 1988, p. 76). Orlandi (1988)

considera as seguintes funções enunciativas do sujeito: de locutor, representando o

eu no discurso, a de enunciador, sendo a perspectiva que esse eu constrói, e por fim,

a de autor, “em que o sujeito falante está mais afetado pelo contato com o social e

suas coerções” (Ibidem, p. 77). A função de autor atribuída por Orlandi se baseia no

“princípio de autoria” de Foucault, no qual “o autor é o princípio de agrupamento do

discurso, unidade e origem de suas significações” (apud ORLANDI, 1988, p. 77).

O autor do romance é peça fundamental para a arte literária bem como o

espaço geográfico pois, a partir da leitura que realiza da paisagem, consegue

transmitir significado e assim, estimular e alimentar a imaginação do leitor, além de

expressar mediante o texto posturas e sua visão de mundo. Ele é visto como sujeito

que se constrói historicamente, a partir de sua relação com a linguagem, que acabar

por sofrer transformações ao longo do tempo. Assim, podemos afirmar que ao se

pensar em discurso falamos também em forma-sujeito (PÊCHEUX, 1975 apud

ORLANDI, 1988).

A relação com a linguagem, da forma-sujeito características das nossas formações sociais, é construída da ilusão (ideológica) de que o sujeito é a fonte do que diz quando, na verdade, ele retoma sentidos preexistentes e inscritos em formações discursivas determinadas. (ORLANDI, 1988, p.77)

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Foucault (1999) entende o autor como um princípio de limitação do

discurso. Na ordem do discurso literário o papel do autor é essencial, sendo lhe exigido

contas do texto escrito, o sentido oculto do que é escrito, que articule seus textos a

sua vida e experiências vividas, tal qual um agrupamento, “como unidade e origem de

suas significações como foco de sua coerência” (1999, p. 26).

Dialogar com áreas até pouco tempo consideradas sem afinidades

demonstra uma necessidade de enxergar o mundo para além de suas formas, bem

como o modo como o homem interage com ele, ou seja, em sua geograficidade. No

conjunto da ciência geográfica estudar o homem em toda sua subjetividade representa

um desafio, uma vez que somos marcados por percepções e representações

individuais, e para vencermos o desafio incorporamos a fenomenologia como guia na

procura por respostas e o conceitos de paisagem enquanto base para análise

espacial.

3.2 O sertão no espaço regionalista brasileiro

Ao longo do processo de organização da literatura nacional, diferentes

correntes de pensamento surgem no Brasil fortemente influenciados pela cultura

europeia. O século XIX marca o fim da relação de dependência da literatura feita no

Brasil em relação a literatura portuguesa com José de Alencar, pioneiro na produção

de uma literatura moderna e na tentativa de criação de uma literatura brasileira, com

suas obras que perpassam temas diversos, – como O Guarani (1857), Iracema(1865)

e Ubirajara (1874) de cunho indianista, romances urbanos como Senhora (1875), e

regionalistas como O Gaúcho (1870) e O Sertanejo (1875) – tenta realizar, através de

sua vasta obra, um retrato do Brasil.

Com a chegada do século XX, emerge uma forte ideia de construção de

uma identidade nacional, reflexo de um novo panorama, pautado em uma

modernidade latente que tem como base o movimento modernista. Diante de um

profundo processo de transformação da imagem brasileira, as artes vão exercer papel

relevante na consolidação de uma identidade genuinamente brasileira, e com a

literatura não será diferente. Para Albuquerque Junior (2011, p. 38) “a identidade

nacional ou regional é uma construção mental, são conceitos sintéticos e abstratos

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que procuram dar conta de uma generalização intelectual, de uma enorme variedade

de experiências efetivas”

Sobre essa questão, Aragão (2012) defende que antes de buscarmos uma

identidade nacional para literatura, devemos levar em conta as diversas “realidades

brasileiras”, que “somente pelo reconhecimento e valorização das diversas

manifestações culturais do país podemos chegar a uma consciência nacional”

(ARAGÃO, 2012, p. 37). Desse modo, emerge nos vários pontos desse imenso

território, diferentes formas de fazer literário, que para Aragão “os vários retratos

literários de cada ‘Brasil particular’ e as características peculiares da literatura de cada

núcleo cultural formam, quando unidos, um imenso painel, ou seja, a imagem maior

da literatura brasileira”. (2012, p. 42)

Realmente desde a eclosão do romance Brasileiro, na primeira metade do século XIX, surge a certeza de sua importância não só estética, como documentária. Cenários, acontecimentos, problemas, figuras humanas e tipos sociais são arrolados como testemunhas de uma evolução social, política e econômica que marcaria uma marcha definida para afirmação cada vez mais radical do instinto da nacionalidade há uma século preconizada por Machado de Assis. (MONTENGRO, 1983, p. 13-14)

Nesse processo de busca identitária, cresce no bojo do modernismo uma

corrente literária marcada por uma representação regional, sendo denominada de

regionalismo, que, segundo críticos literários, nasce nas últimas décadas do século

XIX, na qual “o homem aparece em conflito ou tragado pela terra” (CAMARGO, 2001,

p. 30). Pautada no sertanismo romântico e adentra até a segunda metade do século

XX, sob influência dos modelos naturalista e realista (VALLERIUS, 2010). Fortemente

criticada pelos modernistas, uma vez que reacende as diferenças regionais do Brasil

entre Norte versus Sul, ou seja, antinacional. Tal divergência surge devido ao

enfraquecimento do modernismo diante das alterações vivenciadas pelo país. No

plano político-social a estrutura da velha república entra em ruina, nas cidades a

produção industrial impulsionada pelo novo capitalismo estimula mudanças no

comportamento do homem, no campo a velha aristocracia agrária assiste a ascensão

da classe burguesa.

Diante desse movimento que nasce no seio da modernização nacional,

novos temas ganham corpo e expressão. Como exemplo podemos destacar o

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chamado “Romance de 30 no Nordeste” (MONTENEGRO, 1983, p. 13) que traz

consigo uma serie de temas até então pouco trabalhados pela literatura, bem como

apresentando o Norte do país e seus aspectos particulares, como: a seca, o cangaço,

a religiosidade, a exploração do homem pelo homem e o sertão. Diante do contexto,

Montenegro (1983) enfatiza a importância do movimento de renovação literária no

Brasil.

O regionalismo contrariava as pretensões a uma “brasilidade programática” e homogeneizadora por parte dos modernistas. A uma literatura “localista”, “rural”, “limitada”, centrada no “pitoresco” e na “artificialidade da linguagem”, opunha-se, então, o vanguardismo dos anos vinte. [...] Desse modo, o regional torna-se incompatível com o universal; o rural, incompatível com o urbano. (VALLERIUS, 2010, p. 64)

Sobre à crítica a escola regionalista, Vicentini (1998) realiza uma análise

sobre a relação existente entre o sertão e nossa literatura em artigo publicado no ano

de 1998, intitulado “O sertão e a literatura”. O sertão, enquanto paisagem natural e

social emerge como personagem dessa nova forma de literatura. Segundo Vicentini a

temática sobre o sertão se insere em uma corrente literária intitulada literatura

sertanista ou literatura sertaneja que se incorpora a corrente regionalista.

A discussão sobre o sertão se inscreve como tema polêmico, com

dificuldades de aceitação por parte da crítica, principalmente por aqueles defensores

de uma identidade brasileira pautada por uma cultura sulista, influenciada

principalmente por São Paulo. Albuquerque Junior (2011), observando como se

efetivou a construção da imagem de sertão e, consequentemente de Nordeste ao

longo da história brasileira, afirma que tal visão contrária ao norte resultou em uma

invenção do Nordeste. Pautada no exótico e pitoresco, o Nordeste é visto enquanto

região marcada pela pobreza, ignorância, misticismo, modo de falar peculiar,

construindo uma imagem estereotipada a partir de um discurso regionalista. Ainda

com Albuquerque Junior, esse processo se deu a partir de condições favoráveis, ou

seja.

A invenção do Nordeste, a partir da reelaboração das imagens e enunciados que construíram o antigo Norte, feita por um novo discurso regionalista, e como resultado de uma série de práticas regionalistas, só foi possível com a crise do paradigma naturalista e dos padrões tradicionais de sociabilidade que possibilitaram a emergência de um novo olhar em relação ao espaço, um nova

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sensibilidade social em relação a nação, trazendo a necessidade de se pensar em questões como a identidade nacional, trazendo, ainda, a necessidade de se pensar uma cultura nacional, capaz de incorporar os diferentes espaços do país. (2011, p, 52)

Retomando a relação sertão e literatura, Vicentini (1998) aponta algumas

polêmicas para o estudo. O estereótipo construído em torno do sertão, neste caso na

literatura, se refere a um determinado espaço geográfico, a uma paisagem especifica

e socialmente delimitada, “ao sertão, ao Centro-Norte e Nordeste, e aos pampas do

Sul”. (VICENTINI, 1998, p. 41-42). Ampliando a escala, Almeida (2003) se refere aos

“sertões nordestinos”, que abrange o norte de Minas Gerais e a área central dos

estados nordestinos, bem como Piauí, e o “sertão brasileiro”, sendo parte dos estados

de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso.

Outro ponto está na diferença existente entre escritor e o mundo sertanejo,

ou seja, o sertão é exposto pelo escritor citadino se fingindo de sertanejo, como dito

também por Almeida (2003), o sertão visto pelos “de fora”, em que viajantes e

cronistas dedicavam sua escrita com o objetivo de “saciar a curiosidade de outros e

ensinar o que havia no Brasil” (p.72), sendo alguns deles responsáveis pelo primeiro

olhar em relação ao sertão, estabelecendo modos de apreender a paisagem, até

então desconhecida.

Esse comportamento é fruto da forma como o sertão foi construído no

imaginário social, reflexo do processo de colonização, a começar pelo origem da

palavra sertão. “De fonte etimológica duvidosa, a crença geral é de que essa palavra

foi uma invenção dos portugueses para definir ‘desertão’ africano, por onde se

aventuravam antes das navegações. O termo seria então uma corruptela de grande

deserto” (ALMEIDA, 2003, p. 74). Fazendo referência à Amado (1995) em seu

trabalho de mestrado, Leitão Junior (2012)2 argumenta que desde os século XII sertão

é utilizado para designar regiões distantes da capital portuguesa, e a partir do século

XV passou a se referir a espaços vazios, interiores, das novas terres conquistadas.

Durante o período marcado pela expansão ao interior do Brasil o termo foi

absorvido, sendo usado para designar as terras a serem descobertas, sendo assim,

2 LEITÃO JUNIOR, Artur Monteiro. As imagens do sertão na literatura nacional: o projeto da

modernização na formação territorial brasileira a partir dos romances regionalistas da geração de 30. Dissertação defendida em 2012.

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“uma forma de nomear o desconhecido, expressando o pensamento do europeu sobre

o novo continente” (Ibidem, p. 75), reforçando um significado hierarquizado,

representando o ponto de vista do europeu, associando a deserto, lugar pouco

povoado, terra inóspita, passível de ser conquistada. Com o olha “de fora” a

exterioridade é o ponto que melhor ressalta um simbolismo com que vemos o mundo

sertanejo, também representação da colonização, “o nosso imaginário quase nunca

pergunta pelo que vai na cabeça do sertanejo; mas o distingue prontamente nos seus

traços característicos” (VICENTINI, 1998, p. 48). Sobre a visão a respeito do sertão,

Leitão Junior (2012) assevera.

Destarte, para além das áreas despovoadas da hinterlândia, duas outras conotações mostraram-se possíveis, desde o século XIX, para a compreensão reduzida e simplificada de “sertão”, no Brasil: na primeira concepção, próxima ao uso atual, os espaços sertanejos são associados ao semiárido do atual Nordeste brasileiro; na outra, também usual nos autores contemporâneos, associa-se o “sertão” a um padrão específico de atividades econômicas e modos de organização social, aproximando-o à “civilização do couro” (LEITÃO JUNIOR, 2012, p. 85)

Trazendo o contra-ponto, Almeida fala do sertão dos “de dentro”,

representando o lugar, “espaço de experiência e vivência do sertanejo” (2003, p.72),

ou seja, o espaço vivido, no qual estão representados os diversos sertões construídos

pelos sertanejos através de suas relações sociais que se realizam a partir do vivido e

dos processos de percepção. Com base em Almeida, consideramos Rachel de

Queiroz uma “de dentro”, que escreve e falar sobre o seu lugar, o sertão no qual se

criou e nunca esqueceu, sempre ressaltando sua identidade sertaneja. Outro ponto

que deve ser ressaltado quando se trata de sertão é a oposição existente em relação

ao litoral, no qual, o litoral transformado em cidade e capital do Império, da República,

ou do Estado, “e que de fato sempre recebe o que vem de fora, acaba por ser tornar

impuro, artificial, inautêntico [...]. Só o sertão restou puro. Ser nacional está no ser tão

nacional [...]” (VICENTINI, 1998, p.51). Diante dos vários olhares sobre o sertão

Oliveira (1998) afirma que as definições de sertão

fazem referência a traços geográficos, demográficos e culturais: região agreste, semi-árida, longe do litoral, distante de povoações ou de terras cultivadas, pouco povoada e onde predominam tradições e costumes antigos. Lugar

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inóspito, desconhecido, que proporciona uma vida difícil, mas habitado por pessoas fortes. A força de seu habitante aparece relacionada à capacidade de interagir com a natureza múltipla. O cabra – o cangaceiro – aparece como a encarnação do herói sertanejo. Para além destes atributos, aparece no imaginário social a idéia de que não há um sertão mas muitos sertões e que o sertão pode e deve ser tomado como metáfora do Brasil. (OLIVEIRA, 1998, p.196-7 apud LEITÃO JUNIOR, 2012, p.89).

Vale salientar que falar de sertão é um ponto específico de alguns autores

regionalistas, desse modo, tem-se que ter em mente a exposição do conceito de

região, sendo apreendido enquanto mundo elaborado, que enfatiza “espaços físicos,

história, usos, costumes, imaginários específicos e regimes interpessoais (exótico ou não),

coberto pela experiência no sentido benjaminiano do termo, cujo conteúdo só se resolve

num poema ou narrativa, ambos fictícios” (VICENTINI, 2007, p. 187).

Ou seja, de fato, a literatura regionalista trabalha sempre a um passo da estereotipia da paisagem, da personagem e da ação, da reprodução da linguagem, seguindo de perto um imaginário que se encontra pronto – matéria feita, elaborada pela realidade na sua concretude física e pela história e pelo apelo social nos seus valores. Caso contrário, não consegue se identificar como região, ou como sertão. (VICENTINI, 1998, p, 42)

Iná de Castro em seu livro “O mito da necessidade” (1992), discorre a

respeito do discurso apreendido em torno do regionalismo nordestino, tendo como

ponto de partida a análise do conceito de região. O espaço geográfico é constructo

das relações entre sociedade e natureza, resultando em uma heterogeneidade. Nesse

contexto surge a necessidade de se ler suas subdivisões, que se impõem mediante a

categoria de escala, “a noção de fração do espaço dentro do espaço total” (CASTRO,

1992, p. 30). Desde modo, a região se concentra no nível de análise do território,

representando o fator social a partir do local onde ele ocorre. “A região, portanto, é

escala sócioespacial, que possui uma especificidade funcional, definida nos

processos sociais, que condiciona e são condicionados por espaços diferenciados”

(Ibidem, p. 30). De forma mais abrangente, fruto de sua herança positivista e da leitura

empírica da terra, tem-se a noção de “diferenciação de áreas”.

Outro dado importante ao conceito de região é a construção de uma

identidade territorial, pois o espaço é antes de tudo morada do homem, na qual acaba

por estabelecer laços necessários a sua reprodução. “Como o espaço é produzido

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pela sociedade, a região é o espaço da sociedade local, em interação com a

sociedade global, porém configurando-se de forma diferenciada” (Ibidem, p. 32).

Desse modo a identidade se forma em duas perspectivas, uma primeira individual, a

partir do imediato e individual, que podemos chamar de topofilia3 (TUAN,2012), e um

segundo, estruturado a partir do coletivo, que se caracteriza por um espaço mais

amplo, acedendo a uma identidade em escala maior. Sobre a região, Castro (1992)

complementa.

A região é, portanto concreta, observável e delimitável. Como qualquer segmento de espaço, a região é dinâmica, historicamente construída, e interage com o todo social e territorial. Portanto, suas características internas são determinadas e determinantes desta interação.

.............................................................................................................................

[...], possui uma dimensão territorial e uma dimensão social que interagem e configuram uma escala particular do espaço. Em outras palavras, a região é o espaço vivido, ou seja, espaço das relações sociais mais imediatas e da identidade cultural. (p. 33)

Desse modo, o sertão, trabalhado por nós e tão bem quisto por Rachel de

Queiroz, como paisagem se caracteriza por uma formação geoambiental típica do

Nordeste, sendo percebida por um conjunto de características próprias (relevo – clima

– vegetação). Denominada de depressão sertaneja semiárida, os grandes sertões,

chamado por Ab’Saber de Nordeste seco, possuem cerca de 700km², habitados por

uma população que mantém “uma relação telúrica com a rusticidade física e ecologia

dos sertões sob uma estruturação agraria particularmente perversa” (1999, p.7),

sendo a região semiárida mais povoada do globo.

Destaca-se por uma formação de relevo marcado por depressões

interplánaticas, situadas entre planaltos sedimentares ou cristalinos, com terras

situadas abaixo do nível de 400m de altura, com grande diversidade de solos, sendo

comum a existência de solos rasos, afloramentos rochosos e pedregosos (Figura 1).

O clima predominante é o semiárido, caracterizado por inverno seco e quase sem

chuva, com duração de cinco a oito meses, e verão chuvoso, com quatro a sete meses

de precipitações pluviais, ficando sujeitos a períodos de secas, convertendo-se em

3 “Topofilia é o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico. Difuso como conceito, vivido e

concreto como experiência pessoal.” (TUAN, 2012, p. 19)

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problemas socioeconômicos. Devido à predominância de rochas cristalinas, existe

grande quantidade de rios e riachos com escoamento intermitente e sazonal. Quanto

à formação dos solos, essencial pra produção agrícola, nas regiões sertanejas os

solos possuem pouca espessura, como frequentes afloramentos rochosos e chãos

pedregosos, caracterizando o ambiente típico do semiárido das caatingas (Figura 2).

(LIMA; SOUZA; MORAIS, 2007) E para finalizar, Ab’Saber descreve sua formação

vegetal.

Completa o quadro um revestimento baixo de vegetação – arbustivo arbórea, ou arbóreo-arbustiva, e, muito raramente, arbórea, comportando folhas miúdas e hastes espinhentas, adaptadas para conter os efeitos de uma evapotranspiração muito intensa. Vegetação quase totalmente caducifólia – cinza-calcinada nos meses secos, exuberantemente verde nos chuvosos – com algumas intrusões de pleno xerofitismo, representado por diversas espécies ou comunidades de cactáceas: mandacarus, coroas-de-frade, facheiros, xique-xiques e outros cardos alastrantes. Uma flora constituída por espécies dotadas de longa história de adaptação ao calor e à secura incapaz de restaurar-se, sob o mesmo padrão de agrupamento, após escarificações mecânicas de seu suporte edáfico. As capoeiras de caatingas – os marmeleiros, mofumbos e juremais – atestam as dificuldades de retorno da vegetação original, enquanto as áreas de empréstimo de terra usadas para a construção de estradas comprovam a rapidez de alastramento do xerofitismo e a irreversibilidade das condições dominantes, a partir desse tipo de degradação. (1999, p. 11)

Figura 1 – Depressão sertaneja, município de Quixadá, Ceará

Fonte: Elaborado pelo autor, 2009.

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Figura 2 – Vegetação de Caatinga, município de Quixadá, Ceará

Fonte: Elaborado pelo autor, 2009.

Os sertões se concentram na maior parte do território da região Nordeste.

Vale lembrar que a divisão regional do Brasil, como conhecemos hoje (Norte, Sul,

Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste) se concretiza somente na segunda metade do

século XX, pois até então os estados eram denominados genericamente entre Norte

e Sul. Em relação a elaboração de escritos e estudos, a Região Nordeste tem recebido

maior atenção ao longo do século XX, embora sua situação em relação ao seu

desenvolvimento não tenha recebido igual atenção. Os estudos em torno da região

nordestina estão relacionados a uma “questão do Nordeste” enquanto problemática a

ser discutida. Historicamente o Nordeste é visto enquanto região problema, por sua

condição de dependência em relação ao Sul do país, por sua pobreza populacional,

por sua produção agrícola insuficiente, baixo nível industrial e pelo domínio de uma

oligarquia agrária. Segundo Castro (1992) podemos analisar três abordagens em

relação à questão do Nordeste, a primeira refere-se à seca e às reinvindicações de

obras ou recursos para combate-la. Neste sentido, “tratava-se de um pedaço do país

pouco aquinhoado pela natureza. A culpa da miséria era dos céus e não dos homens”

(Ibidem, p. 59). A política é vista como outra abordagem, onde o Nordeste é o espaço

dos “coronéis”, da oligarquia latifundiária, marcada por eleições fraudulentas, além de

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forte disputa pelo poder político. E por fim o Nordeste do açúcar, marco inicial da

colonização brasileira, o qual projeta uma imagem de berço da cultura brasileira na

qual reivindica seu papel.

Diante do exposto, percebemos que toda narrativa é primeiramente

temporalidade que se espacializa, lugar no qual se realiza acontecimentos que

intermediam a relação entre personagens. Analisando o romance “O Quinze”,

observamos que o espaço é o sertão do Ceará. Aliado ao espaço-tempo se corporifica

um discurso narrativo que cria uma representação possível de mundo, ou seja, acaba

por criar uma representação que expressa um imaginário e uma mentalidade, visão

de mundo ou ideologia.

Por expor um imaginário4 intrínseco, os romances e autores regionalistas

foram duramente criticados em sua primeira fase, devido, sobretudo, à forte influência

do romantismo, marcado pelas particularidades de determinada região brasileira, em

grande medida pelo sertão do Nordeste. “Portanto, região, em literatura, tem sido

região nos seus aspectos físico, geográfico, antropológico, psicológico etc.,

subsumidos na história relatada (a temporalidade), seja ela dominantemente política,

econômica, social e cultural” (VICENTINI, 2007, p. 188). Novamente assevera Castro

(1992).

O discurso regional foi identificado como instrumento ideológico do regionalismo e utilizado como recurso de dominação das elites regionais.

.............................................................................................................................

Portanto, uma região pensada apenas política ou economicamente torna-se fluída e conceitualmente pode desaparecer, porém a sua realidade espacial permanece, apesar de o instrumento teórico indicar o contrário. (p. 67 e 68)

Com o início do século XX, mais especificamente a década de 1930, um

novo regionalismo surge, resultado das mudanças ocorridas no Estado, no qual as

pequenas espacialidades perdem espaço em detrimento de uma visão de Brasil

4 “Pelinser e Arendt (2009) evidenciam que a literatura é um processo de identificação de determinada

sociedade por meio de representações simbólicas presentes na história, que moldam cultura e passam a ser por elas moldadas. De posse desses elementos, ela vai construindo seu imaginário numa relação inter e transdisciplinar, dialogando com outras áreas do conhecimento humano e extrapolando o simples deleite, pois leva o leitor a transcender da ficção para a reflexão”. (SICSÚ, 2014, p. 129)

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integrado. O “Romance de 30” surge a partir de um referente especifico, a realidade

da região nordestina, marcando a transformação da literatura regionalista em

“literatura nacional” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2011).

A emergência da análise sociológica do homem brasileiro, como uma necessidade urgente, colocada pela formação discursiva nacional-popular, dá ao romance nordestino o estatuto de uma literatura preocupada com a nação e com o seu povo, mestiço, pobre, inculto e primitivo em suas manifestações sociais. A literatura passa a ser vista como destinada a oferecer sentido às várias realidades do país; a desvendar a essência do Brasil real.

(ALBUQUERQUE JUNIOR, 2011, p. 123)

O “Romance de 30” é fruto de uma sociedade moderna e mais complexa,

dessa forma os escritores passam a incorporar em seus romances uma necessidade

de entender a nação e seu povo, “emerge preocupado em conhecer e definir vários

tipos humanos e as características sociais que compunham a nação”

(ALBUQUERQUE JUNIOR, 2011, p. 126) entrelaçando os pontos de vista sociológico

e psicológico. Tem por objetivo expor as várias realidades do Nordeste, e mostrar um

outro olhar do homem do sertão, que “deixa de ser visto como um ser exótico e pitoresco,

[...], e passa a ser abordado na sua construção sociológica e psicológica, denotando seu

pertencimento a um todo social e não mais um ser estranho, apartado da realidade as

civilização”. (Ibidem, p. 127)

Nesse processo de transformações, inquietações surgem no meio literário

alimentados pelo senso crítico dos autores “os escritores de 1930 já não precisavam

mais brigar pela imposição da linguagem coloquial, instrumento de que se valeram

para valorizar tematicamente o conflito entre os velhos padrões de vida e o

aparecimento de novas ideias liberais” (TELES, 1983, p. 46). Diante desses aspectos

é importante citar a existência de uma geração de escritores ideologicamente críticos

e com discursos direcionados para os problemas políticos e sociais de seus Estados

de origem: José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Jorge de Lima, Graciliano

Ramos, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, não deixando de mencionar Gilberto

Freyre, que mesmo não sendo ficcionista foi importante na consolidação de um

regionalismo, a partir de seu “Manifesto regionalista”, publicado em 1926.

Na visão de Albuquerque Junior (2011), o espaço (meio natural) se

“desnaturaliza”, devido ao avanço tecnológico dos meios de transporte e

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comunicação, a cidade ascende em seu papel, ganha cada vez mais expressão e

tamanho. Porém, outro ponto convergente nesse processo é a necessidade de

mudança dos saberes, a emergência de uma nova forma discursiva, um novo modo

de olhar e um novo objeto a ser visto.

A emergência da forma discursiva nacional-popular, a partir dos anos vinte, provoca o surgimento de uma consciência regional generalizada, difusa no espaço, que consegue ir se ligando às várias existências individuais, mas principalmente à própria vida coletiva. No entanto, essa forma discursiva reservava para o recorte regional uma posição subordinada, quando não desarmônica. (Ibidem, p. 61)

Assim, vêm à tona os conflitos em torno da construção de um discurso

nacional, uma vez que se pensava em uma conceituação homogênia de nação, uma

identidade para o Brasil, que eliminasse as diferenças. Porém, o que se observa são

realidades diferenciadas cada vez mais visíveis, “determinadas práticas

diferenciadoras dos diversos espaços são trazidas á luz, para dar materialidade a

cada região “. (Idem.). Para o autor a imagem da região precisa ser reconstruída, se

opondo a visão moderna, sendo o discurso regionalista não somente um discurso

ideológico, mas que tem por objetivo instituir uma imagem regional. “Nesse discurso, o

espaço surge como uma dimensão subjetiva, como uma dobra do sujeito, como produto

da subjetivação de sensações, de imagens e textos por inúmeros sujeitos dispersos no

social”. (Ibidem, p. 62). Diante desse contexto a década de 1930 se torna marco de

transformações culturais, políticas e sociais. No âmbito da literatura regionalista Teles

estabelecer uma cronologia.

Para não ficar exagerando a denominação e usá-la até para romances da atualidade, cremos que ela deva abranger os romances que se situam, no Nordeste, entre os anos que vão da publicação de A Bagaceira, em 1928, à publicação de Seara Vermelha, em 1946. Nesses anos se verificam alguns acontecimentos capitais para a compressão da ideologia e da literatura que se produziu. (TELES, 1983, p. 46)

Para Almeida (1980) a produção literária da década de 1930 marca uma

nova fase, particularmente rica no âmbito de uma produção ficcional no Brasil, tendo

como destaque escritos do Nordeste, que para muitos associa-se o “Romance de 30”

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ao romance nordestino. “Em linhas gerais, essa nova ficção representa, tanto na

técnica como na temática, uma nítida retomada da tradição realista, herdada do século

XIX” (ALMEIDA, 1980, p. 176). Segundo Teles (1983), os romances que se situam na

geração de 1930 transcorrem entre as temáticas: “literatura das secas, ciclo da cana-

de-açúcar, do cacau, romance de testemunho” (p. 45). Essa nova fase marca também

uma nova postura dos escritores diante da realidade, produções voltadas para as

denuncias políticas e sociais, tornando-se a forma narrativa predominante, sem

“ignorar uma importante tendência de natureza psicológica e existencial”, além de uma

“descentralização da produção literária” (Idem).

A literatura recupera aqui a sua sociabilidade e o mundo do homem nordestino, carente e desvinculado, mas obstinadamente incrustado em sua moldura ecológica, procura vencer imperativos técnicos, econômicos e sociais, institucionalizados a sua revelia. Sua linguagem desce ao fundamento do real para, no exercício de uma realismo aberto, enfrentar as exigências e as limitações do circuito comercial que o tenta dominar (MONTEIRO, 1983, p. 14)

Com o objetivo de analisar o modo com o qual a imagem de sertão e de

Nordeste vem se construindo na literatura brasileira, escolhemos o romance “O

Quinze”, publicado originalmente em 1930. Por sua postura realista diante da temática

por ela abordada – vivência social diante da problemática da seca de 1915, que dá

título à obra – Rachel de Queiroz se destaca no âmbito da literatura nacional, e logo

se incorpora à escola regionalista, compondo o grupo de autores da geração de 1930,

mais especificamente a vertente intitulada “Romance de 30”. Em “O Quinze” o sertão

se faz central, deixando de ser apenas o cenário para o desenrolar da trama, para se

destacar enquanto personagem que dialoga com os demais, determinando o

enquadramento de Queiroz na corrente sertaneja.

Observamos que o sertão é visto de modo diferenciado no escopo da literatura

regionalista, em um primeiro momento, visto meramente por suas características

diferenciadas na visão daqueles que vivem no litoral, mas que ganha força e voz através

das linhas de escritores que o enxergam por dentro, assim como fez Rachel de Queiroz.

Em seu romance de estreia, Queiroz, mesmo residindo na cidade, nos apresenta sua

relação íntima com o sertão, reflexo de suas origens e raízes fincadas no município de

Quixadá, do interior do Ceará. Filha da terra, a autora nos proporciona um sertão marcado

pela estiagem prolongada, com uma paisagem aparentemente seca e pobre, porém, no

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seu íntimo é regida por uma força mítica, um modo de pensar e agir do homem religado ao

seu meio, sua terra, que constrói em seu cotidiano uma geograficidade.

3.3 O cenário: a seca de 1915 como fio narrativo do romance “O Quinze”

O tema sobre a seca é recorrente nos romances considerados

regionalistas, seja na fase realista-naturalista, seja na modernista, pós-1920. Nesse

contexto a seca é retratada como fenômeno natural que acaba por resultar em

problemas humanos e sociais, sendo acrescentado outras temáticas coadjuvantes

como o banditismo e a religiosidade. Conforme nos aponta Landim (2005) a temática

da seca se inicia com José de Alencar em “O Sertanejo” de 1875, mas o ciclo

regionalista rico em material sociológico se inicia com José do Patrocínio com seu

romance “Os Retirantes” de 1879, tornando-se relevante para o estudo dos aspectos

sociais do Nordeste, de grande valor documental. Embora muitos críticos afirmem que

somente com o modernismo as questões socais emergem no regionalismo, Landim

defende o romance de Patrocínio por já apresentar a realidade do cenário político e

social da região, além de associar a seca ao cangaço e o misticismo, bem como o

drama dos flagelados da seca de 1877.

A seca não é um fenômeno recente na história do Brasil. No ínicio do século

XX, Rodolfo Teófilo já realizava um panorama sobre a seca, afirmando que “o Ceará

é uma terra condenada mais pela tirania dos governos do que pela inclemência da

natureza” (1980, p. 31), confirmando o que há muito tempo sabemos, que a

problemática da seca no nordeste está ligada à falta de políticas públicas voltadas à

adaptação do povo as vicissitudes da região, marcada por seu clima semiárido.

Em seu livro “Vida e morte no sertão” (2000) Marco Antonio Villa resgata

os registros das secas vividas ao norte da colônia portuguesa, demonstrando a partir

de registros históricos a problemática vivenciada pelos sertanejos e a omissão do

Estado diante de tamanho flagelo. A partir do quadro 2, observamos que o fenômeno

da seca se caracteriza em um processo recorrente na região nordestina, fazendo parte

da cultura e imaginário do povo sertanejo. Os primeiros registros sobre as secas são

encontrados em documentos de Portugal do início do período colonial, tendo como

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primeiro registo uma menção feita pelo padre Antonio Pires, datada de 15525. A partir

desse fato podemos compreender os deslocamentos realizados pelos indígenas antes

da colonização, justificadas por períodos de estiagem e disputa por terras ricas em

recursos hídricos.

Quadro 2 – Histórico de secas no Nordeste

Anos de estiagem

Duração das secas (em anos)

Anos de estiagem

Duração das secas (em anos)

Anos de estiagem

Duração das secas (em anos)

Século XIX 1888-1889 2 1966 1

1803-1804 2 1898 1 1970 1

1808-1810 3 Século XX 1976 1

1814 1 1900 1 1979-1983 5

1817 1 1903-1904 2 1990 1

1824-1825 2 1915 1 1992-1993 2

1833 1 1919 1 1997-1998 1

1844-1846 3 1931-1932 2 Século XXI

1860 1 1942 1 2002-2003 2

1869 1 1951-1953 2 2012-2016* 5

1877-1879 3 1958 1

* Acrescentamos os anos de 2014, 2015 e 2016. O estudo original faz registro somente até 2013. Fonte: Jornal O Povo. (Disponível em, http://especiais.opovo.com.br/app/osquinzes/capitulo2/2015/08/25/osquinzesnoticia,262/multiplicador-de-rebanho.shtml, acesso em novembro de 2015. (Adaptado)

No início da colonização o domínio de Portugal restringia-se à faixa

litorânea, somente no século XVII, devido às várias incursões holandesas bem como

a produção de gado extensivo que dará início de forma mais efetiva a ocupação do

interior, do sertão. A sobrevivência no primeiro momento da ocupação é dura e difícil,

e foi realizada em grande parte por escravos ou prepostos.

Carne e leite havia em abundância, mas isso apenas. A farinha, único alimento em que o povo tem confiança, faltou-lhes a princípio por julgarem impropria a terra à plantação da mandioca, não por defeito do solo, mas pela falta de chuva na maior porte do ano. O milho, a não ser verde, afugentava pelo penoso do preparo naqueles distritos estranhos ao uso do monjolo. As frutas mais silvestres, as qualidades de mel menos saborosa eram devoradas com avidez. (ABREU, 1976, p. 126-127 apud VILLA, 2000, p. 18)

5 “Em Pernambuco havia quatro ou cinco anos que não chovia” (PIRES apud VILLA, 2000, p. 17)

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Desde o princípio da ocupação no território brasileiro a problemática da

seca é tratada com descaso pelo poder central. Os diversos períodos de estiagem

vividos na parte norte do Brasil demostra uma constância do fenômeno natural.

Durante o século XVII a região vivenciou seis grandes secas, que atingiram

principalmente os estados hoje, da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, sendo

marcadas por conflitos de terras entre colonizador e indígenas (VILLA, 2000). Durante

o século XVIII, foram registradas sete grandes secas como consequências mais

drásticas devido ao aumento da população na região motivada pela pecuária.

As sucessivas secas enfraqueceram o processo de ocupação do sertão. Os anos de bons invernos acabaram permitindo um renascimento agropastoril, o crescimento das cidades, o aumento do comércio e certa prosperidade econômica. Diversas vezes, nos períodos mais intensos de uma seca, comunidades indígenas foram obrigadas a se vender para os conquistadores em troca simplesmente de comida. [...] Assim, a chegada de uma seca encontrava o sertão absolutamente despreparado para resistir aos seus efeitos: a história acabava se repetindo, somente aumentando as proporções da tragédia devido ao crescimento populacional. (VILLA, 2000, p. 21)

É somente no período regencial que pela primeira vez se aprova verba

oriunda do poder central para o enfrentamento da seca. Segundo Villa (2000), essa

mudança no trato em relação a seca se deve ao novo bloco político que ascende ao

poder, após a abdicação de D. Pedro I, tendo forte apoio de políticos nordestinos.

Com isso a população cria condições para o enfrentamento das secas, resultando na

construção de açudes, cacimbas e perfuração de poços. Com as constantes

estiagens, passam a surgir estudos, livros e ensaios com o objetivo de explicar e

pensar em formas de melhor lidar com o flagelo, a exemplo de Thomaz Pompeu de

Sousa Brasil, cearense que em 1859 escreve “Memória sobre a conservação das

matas, e arboricultura como meio de melhorar o clima na província do Ceará”, que

defende formas de acabar com o “sistema de devastação de nossas matas”

(POMPEU, 1997 apud VILLA, 2000, p 23).

Com o fato, inicia de forma tímida o histórico de projetos que tem como

objetivo a tentativa de amenizar os impactos resultante das secas, assim, podemos

destacar o importante projeto pensado durante o Império de D. Pedro II, que consiste

na obra do canal que liga o rio São Francisco ao Jaguaribe, pelo Riacho dos Porcos,

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tendo seu levantamento técnico feito pelo engenheiro alemão Henrique Halfed, entre

as décadas de 1840 e 1850, e entregue após oito anos de intensos trabalhos. Em

suas palavras o “projeto é gigantesco”, que em caso de execução “terá o benefício

resultado de incalculável transcendência para as províncias do Ceará, Pernambuco,

Piauí e Goiás e particularmente para a província do Ceará”, na qual teria

aproveitamento de suas águas para irrigação, enquanto meio “certo e eficaz de

providenciar contra terrível flagelo das grandes secas que lá, quase anualmente,

põem em consternação grande parte dos habitantes daquela província” (HALFED

apud VILLA, 2000, p. 37). Mesmo sendo de interesse pessoal de D. Pedro II, o projeto

não chegou a sair do papel.

Com a chegada da segunda metade do século XIX, o assunto sobre as

secas é posto de lado pelo poder central, se ocupando de assuntos relacionados a

produção de café e ao fantasma da emancipação do trabalho escravo.

Mas antes de findar o século XIX, uma nova seca, agora de grande

proporção, atinge o sertão. Logo no início de 1877 a falta de chuva já sinalizava um

longo sofrimento, que só irá ultimar no fim de 1879. Tal flagelo foi retratada por Rodolfo

Teófilo em seu romance “A Fome”. Durante esse período o sertão e seu povo passará

por inúmeras dores. Segundo Villa as primeiras notícias sobre a seca chega ao sul

em abril a partir de publicação no Jornal do Comércio, porém é somente em agosto

de 1877 que o Parlamento descobre a seca.

Em 20 de março, sem nenhum sinal de chuva, estava selada a sorte de centenas de milhares de sertanejos. Da cidade do Crato, no Ceará, chegavam notícias alarmantes: “Estamos em uma terrível seca em perspectiva e só Deus sabe quando nos será doloroso este flagelo”. Em Icó, segundo O Cearense, alguns salteadores querem aproveitar o pretexto para dar largas à rapinagem e já dizem de público que hão de brevemente saquear as casas que têm dinheiro”. Logo apareceram solicitações para que o governo agisse, “porque a fome pode produzir a explosão de instintos ferozes de nossa raça e os desatinos da miséria” (VILLA, 2000, p. 45)

Logo a população começou a se retirar em direção às cidades maiores do

sertão, buscavam fugir dos efeitos devastadores que a seca poderia ainda mais

causar. Todos, sem exceção, foram atingidos, desde o sertanejo ao pequeno e médio

proprietários, saíram de suas terras, que naquele momento não possuía mais tanto

valor comercial. “Pelas estradas perambulavam milhares de retirantes, famintos e com

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sede” (Ibidem, p.47). No Ceará, a partir do segundo semestre de 1877, os primeiros

retirantes começam a chegar em Fortaleza, vindos tanto do interior do Ceará como do

Rio Grande do Norte e Paraíba, em poucos dias já se contavam mais de 50 mil

retirantes, sem dizer outros tantos espalhados por outras províncias. Chegando as

cidades, os flagelados se concentravam em campos denominados de

abarracamentos, caracterizados pela ausência das mínimas condições de

sobrevivência, sem higiene, falta de água potável, alimentação insuficiente e de má

qualidade, que transformaram os abarracamentos em “campos da morte” (Ibidem, p.

69), pois muitos morreram de fome e doenças que atingiram os retirantes. Muitos

foram os mortos durante a seca, entre setembro e dezembro de 1878 Fortaleza se viu

diante de uma epidemia de varíola, a maior de sua história, que deixou “no seu rastro

30 mil mortos, milhares de órfãos, centenas de cegos e defeituosos. E ainda restavam

80 mil sobrevivendo nos abarracamentos.” (VILLA, 2000, p.72)

A fome ampliou diversas doenças, como a hemeralopia, ou cegueira noturna, causada pelo enfraquecimento prolongado do organismo. [...] Cólera, febre amarela, varíola começam a atacar os grupos de retirantes. A utilização de água contaminada agravou ainda mais a proliferação de doenças. O desequilíbrio ecológico trazido pela seca provocou uma praga de cobra cascavel no sertão. (VILLA, 2000, p. 49)

Durante este período a imagem de D. Pedro II entra em desgaste, muito

devido a sua ausência durante a maior parte da seca, em virtude de viagem realizada

pelo exterior desde 1876, perpassando pelos Estados Unidos, Ásia, África e Europa,

retornando ao Brasil somente em setembro de 1877. Mesmo após seu retorno, quase

nenhuma ajuda foi encaminhada aos flagelados, o imperador se vez omisso diante

dos sofrimentos do povo no sertão. Tal atitude se deve ao momento político vivido à

época, pois o assunto que mais importava aos parlamentares era a reforma política,

que passa a vigorar em 1881.

Diante de tantas dificuldades muitos nordestinos se veem obrigados a

emigrar de suas províncias, em direção a Amazônia. Levados por uma profunda

esperança de melhorar suas vidas, milhares de homens, mulheres e crianças

enfrentam uma longa e precária viagem em direção ao Amazonas. O próprio estado

incentivava a ida de emigrantes, a partir de medidas das quais: a redução da ração

dada aos retirantes nos campos, bem como pagando sua passagem. A busca pela

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Amazônia se dá por conta de sua economia, que se encontrava “na primeira fase de

expansão da borracha, favorecida pelo aproveitamento industrial do látex extraído da

seringueira, especialmente após a descoberta do processo de vulcanização da

borracha” (VILLA, 2000, p. 64)

Passados tantos sofrimentos, o século XX inicia sob as bases de uma nova

estrutura política, a República militar proclamada em 1889. Apesar da pouca influência

política dos republicanos, o federalismo se estabelece, suprindo uma demanda antiga

das oligarquias. O poder político se centraliza no Sul, com destaque para os estados

de São Paulo e Minas Gerais, desta forma as demandas dos estados do Norte ficam

em segundo plano. Nesse período consolida-se o poder das oligarquias, no qual, os

coronéis estabelecem constituições estaduais visando seus privilégios, transformando

“a máquina estadual em um apêndice dos seus interesses familiares” (VILLA, 2000,

p. 90). Em relação às obrigações entre os poderes, fica estabelecido na Constituição

de 1891 que os Estados tem a “tarefa de prover, as expensas próprias, as

necessidades do seu governo e administração; a União, porém, prestará socorros ao

estado que, em caso de calamidade pública, o solicitar” (Ibidem, p. 89).

Ao final do século XIX, ainda por ordem de D.Pedro II, inicia-se as primeiras

obras que visavam amenizar as consequências resultantes das secas no Nordeste,

com destaque a construção do açude do Cedro, localizado no município de Quixadá,

no Ceará, motiva após a grande seca 1877. Com a ascensão de Campos Sales ao

governo federal, estabelece-se o serviço de transporte gratuito, para quem tivesse o

interesse de emigrar do Nordeste, significando um grande deslocamento forçado por

parte da população em direção a Amazônia. Segundo Villa tal postura do Estado.

Reforçava também a estratégia do governo central de enviar para o Nordeste o menor número possível em recursos orçamentários e de paulatinamente deslocar a população sertaneja para outras regiões carentes de força de trabalho. Em outras palavras, desejava-se o despovoamento do sertão. (2000, p.93)

No ano de 1915 mais uma seca assola o semiárido brasileiro, considerada

uma das mais emblemáticas do século XX, aquela que “matou mais em Fortaleza do

que as precederam, à exceção de 1878 e 1879” (TEÓFILO, 1980, p. 126). Por seu

contexto histórico, passou a ser contada em diferentes formas, seja em romances,

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livros, cordel, música etc, recriando os horrores vividos pelos sertanejos. Como já dito,

o Brasil se encontra em plena República Velha6, período marcado pela implantação

do federalismo no Brasil, na qual as demandas dos Estados passam a ser tratados na

esfera local, tento forte repercussão nas políticas de combate às secas. Neste

período, a primeira mensagem enviada ao poder central em referência as secas no

Nordeste será realizada em 1897, oito anos após o estabelecimento da República no

Brasil (VILLA, 2000).

O dia 19 de março, dia de São José, carrega em si um significado especial

para os nordestinos, pois caso chova nesse dia é sinal de “bom inverno”, garantindo

uma boa safra. Mas o mês de março de 1915 chega sem aviso e acompanhada da

falta de chuva. Não tinha melhor hora para se impor uma grande calamidade, pois foi

antecedida de diversos problemas de ordem social, política e econômica. O mundo

estava em meio à Primeira Guerra Mundial, a qual detinha todas as atenções da

imprensa e governo brasileiro. A intelectualidade nacional travava fervorosos debates

em torno da disputa, enquanto a elite se mostrava solidária ás famílias europeias. A

guerra trouxe consigo inúmeros prejuízos ao Nordeste, pois o que se importava teve

seus valores aumentados, enquanto que a exportação ficou por tempos em saída.

Diante desse contexto, a falta de chuva se mostrava uma problema eminente, mesmo

as notícias tento chegado no Sul somente em março de 1915. Antes disso, a economia

dos estados nordestinos já se encontravam em crise, gado perecendo e lavoura

perdida; como resultado, aumento no valor dos alimentos, a fome se alastrar-se e a

emigração, em direção a núcleos mais desenvolvidos, torna-se solução e rotina. Esse

contexto se justifica pelo desmantelamento das relações sociais à época.

Em seu livro “A seca de 1915”, Rodolfo Teófilo (1980) expõe de forma

jornalística os acontecimentos da grande seca, em especial, no Estado do Ceará. No

decorrer de sua obra vai tecendo os fatos que antecederam e sucederam a estiagem.

No Ceará, a calamidade se impõem anos antes da seca, reflexo de alguns

acontecimentos como o período marcado pela oligarquia de Acioly e, posteriormente,

a deflagração da sedição de Juazeiro, “por onde hordas de bárbaros protegidos pelo

6 O período denominado de República Velha no Brasil foi de 1889 à 1930, também considerada de

Primeira República. Estabelecida a partir de uma golpe militar liderados pelo Marechal Deodoro da Fonseca, foi marcada pelo controle políticos dos estados de São Paulo e Minas Gerais, estabelecendo a política do “café com leite”.

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governo do Marechal Hermes passou, tudo ficou devastado!”, além do

estabelecimento das “sociedades mutuárias7” (TEÓFILO, 1980, p. 43).

A sedição de Juazeiro corresponde a um dos capítulos mais tristes da

guerra travada contra a oligarquia Acioly no Ceará. O controle de Ceará ficou nas

mãos de Nogueira Acioly em dois momentos, o primeiro entre os anos de 1896 a 1900,

eleito em eleição direta, a primeira do estado do Ceará, que não resultou em

mudanças sociais consideráveis. Foi sucedido por Pedro Borges, após um acordo, no

qual, permanecia a forte influência de Nogueira Acioly no governo, deixando aberta a

porta para seu segundo mandado, iniciado em 1904 até 1912, após uma revolta

popular que resultou na sua deposição8. “Seu governo foi marcado por práticas de

corrupção, estelionato, nepotismo, fraudes, deportações, espancamentos e

assassinatos (FERREIRA, 2009, p. 26). Sobre a sedição de Juazeiro Teófilo assevera.

A onda exterminadora atemorizou de tal modo a população dos lugares em que passou, que está abandonou as casas e fugiu aterrada, deixando à discrição dos bandidos os seus haveres. [...] Quando está desgraça passou pelo Ceará era precisamente no tempo de se plantarem os roçados, de se fazer as sementeiras. [...] Em um percurso de mais de cem léguas tudo ficou arrasado, destruído, como se um incêndio lavrado naquelas paragens, excetuando as casas dos animais sediciosos. (1980, p. 43-44)

Somando-se tais acontecimentos o regime de chuvas se mostrava irregular

desde o ano anterior, 1914. As chuvas típicas do fim e início não ocorrerão como o

esperado, com exceção de fevereiro, que “logo no primeiro dia trouxe-nos uma forte

trovoada e chuvas copiosas, que elevaram o pluviômetro à altura de 75mm na Capital”

(TEÓFILO, 1980, p.47), contudo março inicia-se seco.

7 Segundo Rodolfo Teófilo (1980) essas associações foram fundadas em Fortaleza e posteriormente

se espalhou pelo estado, tornando-se uma armadilha, iludindo tolos e homens de má fé. “Os estelionatários que as criaram recebiam uma quantia e, no fim de trinta dias, pagavam a quantia recebida, porém decuplada. Quem recolhia quatro mil réis recebia quarenta mil réis” (p. 44) 8 “Em 1912, a oposição apontou como candidato o tenente-coronel Franco Rabelo representante da “política das salvações” do presidente Hermes da Fonseca. O candidato opositor de Accioly teve grande apoio e aceitação da população da Capital. Iniciou-se, assim, uma campanha eleitoral conturbada. Os acciolystas combateram as campanhas ferozmente, sufocando três passeatas “pró-Rabelo”, inclusive uma liderada por mulheres cearenses, reunindo 600 menores. Então, gerada pelo descontentamento em relação ao governo de Accioly, começou uma revolta popular que foi marcada por tiroteios, barricadas, trincheiras, depredações e mortes pelas ruas da Capital Fortaleza, o que provocou a deposição do governo Accioly22. As eleições aconteceram logo após a revolta, sendo eleito para presidente do Estado o tenente-coronel Franco Rabelo. No entanto, o candidato da oposição não ficaria mais de dois anos no poder estadual, por causa da sedição de Juazeiro” (FERREIRA, 2009, p.26).

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Um forte característica da seca de 1915 foi o intenso fluxo de emigrantes,

reflexo da política de incentivo por parte do Governo Central, a partir da entrega de

passagens gratuitas. Tal política visava o despovoamento do sertão nordestino em

direção aos estados que pudessem proporcionar melhores condições de trabalho,

como a Amazônia e o Mato Grosso (VILLA, 2000). No Ceará o processo migratórios

se direcionava, principalmente, em direção à Capital Fortaleza através da estrada de

Ferro de Baturité (Ver figura 3). As primeira levas começaram a chegar ainda em

março de 1915, e neste primeiro momento se abrigaram na para do Passeio Público,

e diferentemente das secas anteriores, estavam em condições física melhores e tão

logo formam transferidos para o Alagadiço, esses locais receberam o nome de “campo

de concentração”9 e o povo batizou de “curral”. (VILLA, 2000; TEÓFILO, 1980).

A situação dos campos é caracterizada por uma calamidade, sem a mínima

condição de higiene; crianças, mulheres, enfermos e animais conviviam justos no

mesmo espaço. Logo as doenças que acompanham a seca fizeram padecer os

retirantes, principalmente, as crianças “pela paratífica, pela enterite, pelo sarampo,

pela disenteria, e morriam aos centos” (VILLA, 2000, p.109). Assim descrevia Rodolfo

Teófilo.

Em um quadrilátero de quinhentos metros de face estavam encurralados cerca de sete mil retirantes. Percorri todos os departamentos daquele depósito de seres humanos. Abrigavam-se à sombra de velhos cajueiros. Via-se aqui e ali, uma ou outra barraquinha coberta de esteira ou de estopa, mas tão miserável era a coberta que não impedia que a atravessassem os raios de sol. A cozinha era também ao tempo. Em algumas dúzias de latas, que haviam sido de querosene, ferviam em trempes de pedra grandes nacos de carne de boi, misturados a maxixes, quiabos e tomates. Achei esquisitas as verduras e mais ainda os tomates. Pendia de um galho de cajueiro um quarto de boi. Pude então avaliar a péssima qualidade da carne, só digna de urubus. Informaram-me que aquela era boa, comparada a outras que mandara o fornecedor. Disse-me pessoa idônea que as reses que morriam de magras ou do mal, eram mandadas para o “campo de concentração”. (1980, p.57)

A problemática que envolve as secas é de ordem política e social. Realidade que se

torna viva em todos os estados do Nordeste, de tal forma que, muitos escritores passaram a

expor tais problemas através de em sua arte, ou seja, encontraram na literatura uma forma de

denunciar das calamidades imposta pela falta de políticas sociais mais justas para o sertanejo.

9 Os campos de concentração surgem com a seca de 1915 como forma de substituir os abarracamentos. Tal mudança se justifica pelo projeto de embelezamento da cidade, inspirada em Paris, na qual o retirante é visto como aspecto de feiura e de contaminação dos ares da Capital (NEVES, 1995; TEÓFILO, 1980)

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Figura 3 – Rede de Viação Cearense de 1924

Fonte: http://vfco.brazilia.jor.br/ferrovias/Transnordestina/1924redeViacaoCearense.shtml, acesso em 16 de agosto de 2015.

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É através dos textos literários que os horrores vividos pelos sertanejos

durante períodos de seca chega ao conhecimento de um número maior de pessoas.

Em sua análise sobre a abordagem da seca nos romances regionalistas Landim

(2005) divide tecnicamente o fenômeno da seca em quatro enfoques. O tradicionalista,

a partir da concepção da população menos esclarecida, no qual a religiosidade está

presente enquanto explicação para estiagem, quanto para sua solução. “A solução

para o problema da seca se encontra nas rezas individuais e coletivas, no apelo dos

santos protetores” (Ibidem, p. 11). O enfoque tecnicista, “o problema da seca se

resume na irregularidade das precipitações pluviométricas” (Idem). É uma visão

unilateral, pois possibilitando o acúmulo de água em açudes ou poços o problema

será resolvido. São encontradas em muitos romances ações protagonizadas pelo

Governo, a exemplo das frentes de trabalho citada por Queiroz em “O Quinze”. O

enfoque ecológico que justifica a seca pelo processo de devastação ocorrido devido

séculos de produção agropecuária predatória, o homem procura retirar tudo de que

necessita da terra semiárida, sem realizar a contrapartida necessária. E por fim, o

enfoque sociopolítico, que atribui a seca um fator social e político de grande

significado, podendo ser resumido

“[...] em primeiro lugar, a desarticulação do processo de acumulação em termos regionais e de classe social; em segundo lugar, a desagregação das famílias e aglomerados humanos, sobretudo entre camponeses e trabalhadores sem-terra; finalmente a pressão social e política que as classes subalternas e a classe dominante da região exercem sobre o poder público municipal, estadual e federal para que ponha em execução uma política de amparo às populações flageladas pela seca (dela decorrem o coronelismo e o cangaço muitas vezes)”. (LANDIM, 2005, p.12).

Na “Geração de 1930” se estabelece uma variedade de imagens em torno

da seca, resultando em um alcance considerável da região. “O Nordeste do fogo, da

brasa, da cinza e do cinza, da galharia negra e morta, do céu transparente, da

vegetação agressiva, espinhosa, onde só o mandacaru, o juazeiro e o papagaio são

verdes” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2011, p.137). Embora de conteúdo social forte,

os romances expõem um panorama de inferno da região, marcada por uma paisagem

desértica, desnuda, ressequida, como se o sertão tivesse como destino único a

desolação, o sofrimento, a dor e a fome. As personagens são dirigidas por “destinos

marcados, por esse encontro, com a desgraça irreconhecível, com um mundo de

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fatalidades, mas também com um mundo de injustiças sociais cometidas pelos novos

grupos sociais dominantes”. (Ibidem, p.139)

Com a ênfase dada à problemática da seca, a partir de 1877, a elite do

Nordeste se vê diante da possibilidade em captar recursos, para obras e cargos de

Estado, “o discurso da seca e sua ‘indústria’ passam a ser a ‘atividade’ mais constante

e lucrativa nas províncias e depois nos Estados no Norte, diante da decadência de

suas atividades econômicas principais: a produção de açúcar e algodão”

(ALBUQUERQUE JUNIOR, 2011, p. 72). Desta forma a seca se transforma em

estandarte de dimensões nacionais, como estratégia de chamar atenção para

interesses da elite do Nordeste. Tal discurso auxilia na formação de uma imagem de

região deficiente, na qual o meio é determinante para seu atraso econômico e social.

Com a chegada dos recursos para amenizar os problemas resultantes da seca, muitos

se apropriam desses recursos, manipulando os parcos socorros em benefício próprio

e/ou de sua clientela.

Mesmo diante de um retrato de mazelas, para muitos o sertão ainda é visto

como o melhor lugar para se viver. É nele que encontramos homens e mulheres que

lutam por sua terra e pelo direito de permanecerem mantendo suas relações e

experiências culturais. Para Tuan (1983) a experiência é fator essencial na construção

do lugar. O povo nordestino tem como marca o apego pela terra, pelas relações

sociais vigentes, fruto de uma construção social baseada no patriarcalismo. Nesse

processo a experiência “implica a capacidade de aprender a partir da própria vivência”

(p. 10), também constituída de sentimentos e pensamento.

Esse posicionamento é compartilhado por autores como Rachel de Queiroz

e José Américo, reafirmando o sertão num lugar de sociabilidade e respeito familiar,

no qual se diferenciam dos modos e valores da civilização capitalista moderna,

pautada no individualismo, no conflito e na mercantilização das relações. Valoriza uma

sociedade patriarcal e hierarquizada, na qual as relações de poder se estabelecem

pelo sentimento, deixando de lado um olhar racionalista, “é o ‘democrata racial’ e

social, aquele que se solidariza e ajuda os hierarquicamente inferiores, desde que

estes ‘o respeitem’ e conheçam seu lugar” (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2011, p. 41).

O romance “O Quinze” tem sua primeira publicação datada de 1930, seu

título faz referência à seca que ocorreu em 1915, uma das mais devastadora do século

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XX e vivida indiretamente pela autora, uma vez que sua família se viu obrigada a sair

de sua fazenda no município de Quixadá, no Ceará no ano de 1917 em direção ao

Rio de Janeiro. Para Adonias Filho apud Teles (1983) “O Quinze” renova as bases do

romance nordestino, enquadrando-se enquanto documentário enxuto e realista do

Nordeste. “A ficção se põe a serviço da brasiliana no sentido de, refletindo uma região

típica em todo sua fermentação social, valorizá-la no cerne mesmo dos problemas

humanos” (Ibidem, p. 67).

A obra se passa em três planos, o primeiro explora a relação de amor,

subtendida, entre os primos Conceição, moça culta e educada na cidade e Vicente

filho do Major, com alguma educação, mas escolhe o trabalho como modo de vida.

Em segundo plano Queiroz retrata o trabalho exaustivo de Vicente na lida da fazenda

durante a seca,

Em terceiro plano está Chico Bento e sua família, homem pobre e vaqueiro

da fazenda Aroeiras, também na região de Quixadá. Devido às mazelas da seca, o

sertanejo se vê obrigado a sair do sertão com destino ao Norte, para trabalhar na

extração de borracha. A partir de Chico Bento, verifica-se o foco de Queiroz, a

denúncia social vivida pelo pequeno agricultor e família durante a seca, sem a

assistência necessária para sobrevivência, se vê obrigado a se desligar de sua terra

e se retirar. A seca é utilizada enquanto fio narrativo para expor o trama social,

referenciando o romance enquanto testemunho das problemáticas existentes

historicamente na região do Nordeste.

A partir de suas vivências no sertão, Rachel de Queiroz expõe o modo de

vida e as dificuldades enfrentadas pelo povo sertanejo durante a seca, realizando sua

leitura de paisagem, rica em simbolismos. Sobre a importância do poder simbólico que

existe no espaço, Bonnemaison afirma que o “espaço cultural é uma espaço

geossimbólico, carregado de afetividade e significado” (2002, p.11), sendo a dimensão

simbólica assumida pelo homem a partir da identidade construída.

Chico Bento parou. Alongou os olhos pelo horizonte cinzento. O pasto, as várzeas, a caatinga, o marmeleiral esquelético, era tudo de um cinzento de borralho. O próprio leito das lagoas vidrara-se em torrões de lama ressequida, cortada aqui e além por alguma pacavira defunta que retorcia as folhas empapeladas. (QUEIROZ, 2006 p. 24)

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Neste ponto é importante salientar que o sertão é caracterizado por um

clima semiárido, com precipitações concentradas ao longo do ano, entre os meses de

janeiro e maio. Tem como vegetação predominante a caatinga, adaptada a pouca

umidade, formada, principalmente, por arbustos de galhos retorcidos e com raízes

profundas. Durante a seca, costuma perder sua folhagem, pequena, como uma forma

de evitar a perda de água. Algumas espécies de plantas adaptadas á baixa umidade,

tem a capacidade de acumular água, como o mandacaru e o xique-xique, sendo

utilizada como alimento durante a seca.

Com o avanço da estiagem, proprietário de terras e seus trabalhadores se

veem diante de circunstâncias duras e penosas, dessa forma, a lida do sertanejo é

retrata pela autora no momento em que o trabalhador se vê forçado pelas

circunstâncias a soltar o gado a mando dos patrões, pois devido à seca prolongada

deixa de existir trabalho, evidenciando uma relação hierarquizada entre os patrões e

o trabalhador rural, que torna-se, durante a seca, um expropriado de seu trabalho.

Mesmo de cunho fortemente social, Queiroz explora um dos aspectos mais

tradicionais do homem sertanejo, sua religiosidade. Diante da estiagem a forma de

melhor lidar com tamanha desolação é se apegando à fé; é diante de sua fé e infinita

esperança que o sertanejo tenta superar seus dias de batalha e fome, é através da fé

que a seca vai embora, de que um dia Deus e São José irá rogar por todos e trará a

chuva de volta, e assim, no momento que a primeira gota d´agua cai, a esperança é

renovada, como o verde da caatinga que floresce nas primeiras chuvas.

A partir da paisagem semiárida da caatinga e do momento de seca no ano

de 1915, Rachel de Queiroz consegue expressar seu olhar diante da instabilidade

social do interior nordestino. Seu posicionamento na obra reflete um tom de

expressividade do sertão, bem como uma denúncia em relação à omissão do Estado

frente a pobreza e miséria da população. Sua obra se enquadra na vertente

regionalista, intitulada “Romance de 30”, pautada na procura de desvendar o sertão e

seu povo, a partir de seus aspectos sociais e políticos, na qual proporciona aqueles

que estão “de fora” do sertão, a oportunidade para que conheçam sua realidade e seu

povo. A autora demonstra a preocupação de mostrar o homem, sertanejo, pouco

conhecido, em suas qualidades e fragilidades, aspecto pouco explorado por outras

escolas.

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4 DIALOGANDO COM O ROMANCE “O QUINZE”

O sol poente, clamejante, rubro, desaparecia

rapidamente como um afogado, no horizonte

próximo.

Sombras cambaleantes se alongavam na tira

ruiva da estrada, que se vinha estirando sobre

o alto pedregoso e ia sumir no casario

dormente dum arruado.

Sombras vencidas pela miséria e pelo

desespero que arrastavam passos

inconscientes, na derradeira embriaguez da

fome.

(QUEIROZ, 2006, p. 75)

Neste capítulo, pretendemos realizar a leitura do interior da vida e obra de

Rachel de Queiroz, assim como, concretizar nossos objetivos. Dividimos em dois

tópicos com o objetivo de observar a construção de concepções sócioespaciais em

textos literários, com foco na escola regionalista, com destaque para o “Romance de

30”. Realizar uma leitura de sertão como paisagem central no romance “O Quinze” e

sua influência na formação social do Nordeste brasileiro. A partir do olhar da sertaneja

Raquel de Queiroz, buscaremos realizar o diálogo entre geografia e literatura, usando

a paisagem para compreendermos a forma como o sertão do Nordeste é percebido e

apreendido.

4.1 Rachel de Queiroz e o Romance de 1930

Rachel de Queiroz desde muito pequena já era ávida escritora, embora

sempre tenha deixado claro que sua profissão era o jornalismo, tinha grande talento

no trato com as letras e textos. Nascida em 17 de novembro de 1910 na cidade de

Fortaleza, era filha de Daniel de Queiroz, juiz de Direito em Quixadá, e de Clotilde

Franklin de Queiroz. Descendia dos Alencar por parte materna, pois sua bisavó, Dona

Miliquinha, era prima do escritor José de Alencar, e por parte paterna, os Queiroz,

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tradicional família de Quixadá. Dias após seu nascimento retorna com a família para

a fazendo o Junco em Quixadá, lugar onde finca suas raízes.

Mapa 1 – Localização de Quixadá – Ceará

Fonte: HAIASHIDA, 2014 (Adaptado)

Por conta da nomeação de seu pai para o cargo de Promotor, em 1913

mudam-se para Fortaleza, e passam a residir no Alagadiço, próximo ao futuro “campo

de concentração” (QUEIROZ, 2014), citado em seu romance de estreia. Diante da

seca prolongada e dos sofrimentos vividos nesse período a família se transfere em

1917 para o Rio de Janeiro, passando curto período, pois no mesmo ano se mudam

novamente, agora para Belém, estabelecendo residência por dois anos. É no Pará

que a família passa a seca de 1919, “já maior e mais atenta ao mundo, tive notícia

dela através de meu pai que era uma dos ‘comissários’ da colônia cearense em Belém,

organizada para a acolhida e ajuda aos retirantes recém-chegados” (QUEIROZ, 2014,

p. 408).

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Sua formação educacional inicia-se no lar, sob os cuidados de seu pai –

que lecionou Geografia temporariamente no Liceu do Ceará – e de sua mãe Clotilde

e sua avó materna, que desde muito cedo iniciou a menina Rachel na leitura de

autores como Eça de Queiroz, Machado de Assis, Júlio Verne, Herman Melville (Moby

Dick), Jonathan Swift (Viagens de Gulliver) e Daniel Defoe (Robinson Crusoé). Desde

muito pequena via nas páginas dos livros um mundo para além da imaginação, tendo

como resultado uma grande admiração pelas paisagens geográficas, que acabou por

influenciar em suas narrativas (CAVALCANTE, 2013). Rachel era ávida leitora,

aprendeu a ler muito cedo, aos 5 anos de idade, iniciando com o livro Ubirajara de

José de Alencar, mesmo sem compreender uma única palavra (QUEIROZ apud

ARAGÃO, 2012). Com muita insistência sua e de sua avó materna, aos 8 anos

ingressa no ensino regular no Colégio Imaculada Conceição, após o retorno da família

para o Ceará, formando-se no ano de 1925 aos 15 anos como professora primária,

passando a lecionar história no mesmo colégio. Aos 16 anos inicia sua carreira de

jornalista em O Ceará, de Júlio Ibiapina, sob o pseudônimo Rita de Queluz (LEITÃO

JUNIOR, 2012), tornando-se colaboradora regular, na qual escreve poemas e

crônicas de cunho modernista e publica um romance em formato de folhetim intitulado

História de um nome, sobre o desejo de escreve já “pensava num romance, mas não

queria fazer a simples história de amor que os meus dezoito anos pediam, queria nele

também a terra, a gente do Ceará” (QUEIROZ, 2014, p. 409). Por ser grande leitora

estava saturada de boa literatura, queria agora escrever.

De volta a Fortaleza, em meados de 1929, passa a residir com a família no

Sítio do Pici, sob os cuidados de sua mãe, pois fica doente devido uma congestão

pulmonar. Nesta fase inicia a escrita de seu primeiro romance, que se tornará o marco

inicial de sua carreira como escritora. Segundo a própria Rachel (apud ARAGÃO,

2012), a escrita não foi uma opção, foi fluindo de forma natural, sem uma ideia inicial

fechada, sem um projeto de escrita. O tema sobre a seca já estava no seu âmago à

tempos, queria escrever sobre sua terra e via que seu caminho tinha que ser a

literatura da seca, mesmo já escrita por outros autores (QUEIROZ, 2014).

Isso conto para explicar que, ao escrever o livrinho, eu nunca vira uma seca com os meus próprios olhos. Mas a tradição local era tão forte a lembrança em todos são presentes, os relatos repetidos com tanta frequência, as referências locais tão cotidianas: (“...aqui no meio do açude, onde agora dá duas braças d’água, foi que o povo cavou a cacimba, no Quinze, este rebolado de mandacaru não sei como escapou, foi cortado até à raiz, no dezenove” ... “esse

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menino véio é assim movido porque nasceu na seca, coitado...”) (QUEIROZ, 2014, p. 408-409)

O processo de escrita foi realizado à mão e as escondidas de sua mãe,

“tinha medo de me ver doente, perseguia minhas noitadas em claro” (Ibidem, p. 410),

sob à luz do lampião de querosene. Esperava a casa adormecer, se direcionava a

sala e deitada sob o assoalho, diante da luz, escrevia, “parecia-me que a criação

literária só poderia ser feita assim, no mistério noturno, longe do testemunho e dos

comentários da casa ruidosa cheia de irmãos” (Idem). Finalizado a escrita do livrinho,

entregou-lhe aos pais para que lessem, sendo aprovado por eles. Então decidem

“emprestar” o dinheiro para a primeira publicação.

Em agosto de 1930 O Quinze é publicado (Figuras 4 e 5), com tiragem

inicial de mil exemplares. Sua obra teve pouca receptividade da crítica local, surgindo

até o rumor de quem teria escrito não seria Rachel, mas seu pai, Daniel de Queiroz.

Mesmo diante da pouca expressividade de sua obra no Ceará, Rachel decide envia-

la a autores conhecidos nacionalmente, como Augusto Frederico Schimidt, no Rio de

Janeiro, sendo o primeiro a tecer elogios ao romance, e Graça Aranha em São Paulo.

Ao contrário de sua terra natal, o romance foi muito elogiado pela crítica do Sul. Com

sua escrita objetiva e de tom ácido, foi bem aceito pelo uso do tom realista e de fundo

social, que mostra a lida e o sofrimento do sertanejo diante das mazelas causadas

pela seca de 1915.

Em 1931 O Quinze é condecorado pela Fundação Graça Aranha com o

prêmio de melhor romance. Por conta da premiação Rachel de Queiroz viaja ao Rio

de Janeiro, o que acaba resultando na sua aproximação com integrantes do Partido

Comunista Brasileiro (PCB), consequência de sua inclinação socialista. Em seu

retorno para o Ceará se compromete na fundação do Partido Comunista Cearense.

Pouco depois escreve seu segundo romance João Miguel10.

10 Romance publicado em 1932, se diferencia dos outros romances de Rachel de Queiroz, por sua abordagem psicológica do personagem título, Joao Miguel. A trama se passa em uma prisão no interior, na qual narra o drama de uma homem simples que, sob efeito do álcool, mata um desafeto e vai para prisão. Transpondo ao romance sua postura esquerdista e militante.

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Figuras 4 e 5 – Capa e contra capa da 1ª Edição de O Quinze, publicado em

agosto de 1930

Fonte: BEZERRA, José Augusto. SCHWAMBORN, Ingrid. SOARES, Maria Elias. Um novo olha sobre O Quinze de Rachel de Queiroz. Fortaleza : Ed. UFC, 2014.

Devido sua ligação com o PCB, é informada de que teria que submeter a

obra para avaliação de um comitê do Partido, que acaba por indeferir o romance por

considerá-lo inapropriado, sob a justificativa de tratar-se da história de um operário

que no meio de uma bebedeira assassina um colega. Está atitude culmina na ruptura

prematura da escritora com o Partido, pois considera que o partido não tem autoridade

e competência legítima para censurar sua obra. (LEITÃO JUNIOR, 2012). Este fato

não impede a publicação do romance no ano de 1932 pela editora Schmidt. Com sua

consolidação enquanto jornalista e escritora fixa residência em São Paulo, e sem se

desligar de sua postura socialista se aproximando do grupo trotskista.

Diante da repercussão de seu romance inicial, Rachel de Queiroz passa a

figurar no grupo de autores nordestinos da geração de 1930, que tem como pontos

em comum romance de cunho social sobre as problemáticas do Nordeste, mesmo

sendo avessa a classificações e rótulos.

Olhe, eu não acredito muito em classificações literárias, fulano é regionalista, fulano é naturalista... eu acho que são rótulos que tem que apertar muito você pra caber dentro deles, não é? Por exemplo, eu sou regional, mas eu não sou só regional... eu falo da terra que eu vivi mas, por exemplo, se as cidades de vez em quando entram nos meus livros, eu creio que é, deles, no Dôra Doralina tem uma enorme participação no Rio. (QUEIROZ apud ARAGÃO, 2012, p. 69)

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A partir de então Rachel de Queiroz torna-se escritora e jornalista de

renome e sucesso, construindo carreira em diversos jornais como Correios da Manhã,

O Jornal e Diário da Tarde, que posteriormente, passa a dedicar-se exclusivamente

ao O Cruzeiro até 1975, com a publicação periódica de crônicas. Contudo sua carreira

de escritora permanece paralelamente, aventurando-se em outros gêneros além do

romance como: peças de teatro, livros infanto-juvenis e obras memorialistas,

resultando em sucesso e prêmios (LEITÃO JUNIOR, 2012)

O ano de 1977 torna-se uma marco em sua carreira de escritora. No mês

de agosto, por 23 votos a 15 é condecorada com uma cadeira na Academia Brasileira

de Letras, tornando-se a primeira mulher a compor a Academia (Figura 6). Passou a

ocupar a cadeira de número 5, causando grande alvoroço, principalmente entre a

femininas da época, mas reage de modo sóbrio diante da situação, declarando em

entrevista: “Eu não entrei na Academia por ser mulher. Entrei, porque, independente

disso, tenho uma obra. Tenho amigos queridos aqui dentro. Quase todos os meus

amigos são homens, eu não confio muito nas mulheres” (QUEIROZ, apud LEITÃO

JUNIOR, 2012, p. 226), causando polêmica. Devemos lembrar que polêmica faz parte

de sua personalidade, não como forma de se autopromover, mas por ser muito firme

em suas opiniões e ações.

Figura 6 – Posse na Academia Brasileira de Letras

Fonte: BEZERRA, José Augusto. SCHWAMBORN, Ingrid. SOARES, Maria Elias. Um novo olhar sobre O Quinze de Rachel de Queiroz. Fortaleza : Ed. UFC, 2014.

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Rachel de Queiroz tem como marcar uma personalidade forte e de grande

intelectualidade, talvez fruto de seu processo educacional. De grande talento literário

e jornalístico, sempre foi muito crítica a sua própria obra literária, ao ponto de expor

um desamor por seus romances. Em entrevista à Folha de São Paulo11 afirma que

detesta seus livros. “Nunca releio um livro meu, tenho um pouco de vergonha de todos

os meus livros, de O Quinze tenho antipatia mortal, esse livro me persegue a 60 anos.

Detesto eles todos” (QUEIROZ, 1998, p.6), e sempre afirmava, desde de muito nova,

que sua profissão era o jornalismo.

Mesmo negando, o romance “O Quinze”, escrito de forma despretensiosa

aos 19 anos, torna-se sua primeira obra-prima (Figura 7). Quando lançado em 1930

causa alvoroço, pois inaugura uma nova fase para os romances regionalistas da

época, que traz como tema chave a seca de 1915, e o sertão. A partir de sua

publicação outros romances se seguem, resultando em notoriedade para Romance

de 30, trazendo consigo além da seca, outras temáticas de cunho mais político e

social.

Com ponto de partida dessa nova fase da literatura moderna brasileira,

estão os romances: “A Bagaceira” (1928), de José Américo de Almeida; “O Quinze”

(1930), de Rachel de Queiroz; “O país de carnaval (1931), de Jorge Amado; e “Menino

de engenho” (1932) de José Lins do Rego. Segundo Montenegro (1983) esse novo

movimento literário instaura um questionamento social que busca romper com o

sistema oligárquico vigente e reformular a estética literária. O narrador deixa de ser

mero observador e se insere como participante no ritmo da trama, tendo a linguagem

como mudança significativa, antes retórica, agora mais despojada, “capaz de traduzir

paisagens e ambiente, e, sobretudo, de captar os seres aí localizados”

(MONTENEGRO, 1983, p. 14), observa-se uma aproximação da linguagem literária à

fala brasileira.

Mas o Romance de 30 não foi só isso. Não só no Nordeste, mas em todo o Brasil, os romancistas da época trouxeram inovações da ordem estrutural, na arte de contar e descrever, no estilo, nos artifícios retóricos e estilísticos que seus antecessores não adotaram, porque outros princípios estéticos e de filosofia de vida os norteavam. (MONTENEGRO, 1983, p. 14)

11 Entrevista à Folha de São Paulo em 26 de setembro de 1998, disponível em

http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1998/09/26/136, acesso em janeiro de 2016.

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Figura 7 – Manuscrito escrito à mão de “O Quinze”, primeira página

Fonte: BEZERRA, José Augusto. SCHWAMBORN, Ingrid. SOARES, Maria Elias. Um novo olha sobre O Quinze de Rachel de Queiroz. Fortaleza : Ed. UFC, 2014.

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Desse modo, a literatura recupera o mundo do homem nordestino,

desprovido de conhecimento, mas que busca superar as vicissitudes técnicas,

econômicas e sociais institucionalizadas. Essa nova proposta literária consegue

colocar a sociedade em contato como essa múltipla realidade sociocultural do

Nordeste brasileiro, aparentemente distante. Seus principais nomes (já citados)

conseguem a partir de seus romances, se aproximar do gosto do leitor, que sem

perder seu caráter de ficção, exerce também o papel de documento ao revelar os

problemas vivenciados pelo sertanejo, sendo considerados romances testemunho.

Para Portella (1983) esse nova estrutura do romance regionalista permite

um ampliação da forma de ler o Nordeste, antes restrito a estruturas de dominação ou

relações de violência, agora permite-se enxergar que tal realidade é fruto de uma

divisão do trabalho desigual e excludente. Assim, “a sabedoria comunicativa do

romance nordestino, empenha-se precisamente na construção de um discurso vazado

de subjetividade, despreconceituoso, pronto para reconhecer e recorrer à impureza

das formas simbólicas” (PORTELLA, 1983, p. 23).

Vale ressaltar que o “Romance de 30” traz consigo um discurso literário

próprio marcado pela abordagem de diferentes temas tendo como foco principal o

contexto social da região nordestina. Segundo Gilberto Teles (1983) o Romance de

30 pode ser classificado a partir do seu referencial, que podem ser divididas em:

geográfico (Norte/Nordeste), cronológico (romance de 30), literário (regionalismo,

modernismo, realismo, neorrealismo, naturalismo) e temático (literatura das secas,

ciclo da cana-de-açúcar, do cacau, romance testemunho).

Os temas trabalhados pelos romancistas de 1930, estão presentes na obra

de Rachel de Queiroz, pois sua “nordestinidade” está expressa em seus romances,

contos, crônicas, seja em maior ou menor intensidade. Mesmo tendo saído do Ceará,

sempre que podia retornava ao seu refúgio, a fazenda “Não me deixes” (Figura 8)

situada o município de Quixadá, e hoje transformada em Reserva Particular do

Patrimônio Natural – RPPN, a partir de um ato voluntário da própria escritora, em carta

ao presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais

Renováveis – IBAMA da época, Eduardo de Souza Martins (CAVALCANTE, 2014).

Para Queiroz, a fazenda representa sua ligação com o sertão e sua família. Tal ligação

se constrói logo ao nascer, quando com poucos dias de vida vai morar com a família

na fazenda Junco, em Quixadá, cercada pelo semiárido nordestino e palco de suas

primeiras descobertas. “O sertão tornou-se essencial para ela. Misturou-se aos sons

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e às formas, às cores e aos gostos da sua infância de extrema densidade. Nunca mais

o sertão a abandonou. Nunca mais ela esqueceu-se do sertão” (VILLAÇA apud

GURGEL, 2014, p. 40).

Figura 8 – Fazenda “Não me deixes”

Fonte: BEZERRA, José Augusto. SCHWAMBORN, Ingrid. SOARES, Maria Elias. Um novo olhar sobre O Quinze de Rachel de Queiroz. Fortaleza : Ed. UFC, 2014.

Sua ligação com a terra é fortemente notada por suas palavras dedicadas

ao sertão, estando sempre em seus pensamentos. De forma recorrente o Nordeste

aparece em suas obras, seja rural ou urbano. “Nas páginas de Rachel de Queiroz, o

Nordeste é palco onde desfilam seus temas universais, suas preocupações sociais e

suas figuras femininas tão bem delineadas, tão nordestinamente fortes – e, por isso

mesmo, tão parecidas com a própria Rachel” (GURGEL, 2014, p. 41)

Rachel de Queiroz tinha uma amor imenso por sua terra, era dela que tirava

grande parte de sua inspiração para escrever. É notório observar ao longo de sua obra

traços de seu sertão, de seu respeito pela cultura nordestina e de sua eterna saudade,

acalentada sempre que ia passar uns dias na querida Não me deixes. Essa forte

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relação com o sertão, fez de Queiroz uma admiradora da paisagem sertaneja, fruto

de sua intensa leitura de obras que lhe permitiam um profundo conhecimento

geográfico (CAVALCANTE e OLIVEIRA, 2013). Quando se insere no núcleo de

escritores da década de 1930, Rachel traz em sua bagagem uma aguçada percepção

de mundo, permitindo-lhe destaque. Sobre o Romance de 30, Albuquerque Junior

afirma que

À medida que a formação discursiva nacional-popular tinha como uma das problemáticas centrais pensar a nação na sua essência, e a medida que a diversidade das condições sociais se acentuava, o “romance de trinta” emerge preocupado em conhecer e definir os vários tipos humanos e as características sociais que compunham a nação. Ele cruzará o ponto de vista psicológico com

o sociológico. (p. 126, 2011)

Diante do papel de se criar uma identidade nacional, o Romance de 30

emerge pelas palavras de seus filhos, que através de suas lembranças, imagens,

enunciados e expressões recriam sua realidade com o objetivo de dar voz aqueles

historicamente esquecidos. O sertanejo deixa de ser visto enquanto ser exótico, que

não se enquadra nos padrões da cidade, destacando seus aspectos sociais e

psicológicos. Nesse contexto de exposição de um Nordeste, Rachel de Queiroz se

destaca por expor o sertão como um espaço tradicional, que dá originalidade ao

Nordeste. “O espaço nordestino vai sendo dotado de uma visibilidade e de uma

dizibilidade; desenhado por uma agrupamento de imagens rurais ou urbanas, do litoral ou

do sertão, domadas de sua diversidade pelo trabalho interativo de poetas e escritores”

(ALBUQUERQUE JR, 2011, p. 134). Neste sentido para Albuquerque Jr.

O romance, na década de trinta, participa de grande esforço de reterritorialização de uma sociedade em crise, em transição entre novas e velhas sociabilidades e sensibilidades. Esta identidade estará ligada diretamente aos objetivos estratégicos e políticos que dirigem a produção literária. (2011, p. 235)

Através da geração de 1930, observa-se a retomada na abordagem dos

temas regionais (as economias açucareira e cacau; o cangaço; o coronelismo;

religiosidade; a seca e a retirada), que ressurgem como forma de denuncia das

condições da sociedade. É importante salientar que tais temas também são discutidos

por outras correntes artísticas, como música, cordel, pinturas e o teatro. E foi a partir

da junção de alguns desses temas que Rachel de Queiroz inicia sua carreira literária.

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Em seu romance, “O Quinze”, embora o tema central seja a seca, observamos a clara

discursão de outras temáticas, como a religiosidade, a retirada para a cidade, as

diferenças entre classes. A seca é abordada de forma tradicional, visto como agente

transformador da vida das pessoas, na qual desorganiza as famílias em seus aspectos

sociais e morais. Porém, em seu romance, Queiroz destaca a responsabilidade do

Estado diante de tal calamidade e sua falta de auxilio em relação ao sertanejo, na qual

acaba resultando no processo de retirada.

Embora muito menina durante a seca de 1915, Rachel de Queiroz ouviu ao

longo de sua infância e juventude as histórias que atormentaram o povo sertanejo,

nesse período, assim como sua família, que diante da situação de dificuldade, se

retiram para o Rio de Janeiro. É a partir desses aspectos que as palavras tomam vida,

resultando na criação de um romance ficcional, que tem como base a paisagem da

caatinga nordestina. “O Quinze” se constrói com base nas recordações, ao ouvir suas

histórias e um pouco do que passou em família recria o flagelo através de suas

páginas. “Tornaram-se assim, costumeiras e indeléveis para ela as impressões da

devastação da natureza e suas consequências sobre as histórias de vida humanas”

(COUTINHO, 2014, p. 56).

É notório se observar a presença da poética do sertão nas obras de Rachel

de Queiroz, reflexo dos aspectos culturais de seu núcleo familiar. Segundo Alexandre

Martins (2014) o romance “O Quinze” possui um lirismo próprio, que apresenta uma

realidade denunciada. Embora o romance traga em si um forte teor realista, podemos

sentir uma poética intrínseca entre suas palavras, a forma suave e quase musicada

com que a autora recria suas paisagens e personagens. Essa forma de escrita reflete

a veia poética de Queiroz, que iniciou sua trajetória como escritora ainda adolescente,

sob o pseudônimo “Rita de Queluz”, na qual publicou vários poemas. Alguns de seus

poemas foram reunidos por Ana Miranda em 2010 sob o título “Serenata”, composta

por 35 poemas publicados originalmente entre os anos 1927 e 1930. Seus poemas

provam o alcance da criatividade da autora, mesmo tão jovem, mas que desponta uma

poética refinada (MARTINS, 2014). Para alguns críticos “O Quinze” se destaca por

diferentes fatores, dentre eles a linguagem simples, mesmo tento expressões

puramente regionais.

A linguagem de O Quinze é natural, direta, coloquial, simples, sóbria, condicionada ao assunto e à região, própria da linguagem moderna brasileira. Embora seja feita por um narrador onisciente, que usa uma linguagem

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econômica de regionalismos, a narrativa revela a variação regional nos diálogos, especialmente, das pessoas do interior, sem instrução formal, ou mesmo na linguagem coloquial dos personagens escolarizados. (SOARES, 2014, p. 359)

Apesar de sua escrita simples, “O Quinze” se destacou no meio literário

nacional e internacional, apesar da falta de pretensão por parte de sua autora. Como

admitido por Rachel de Queiroz, o romance nasce sem grandes pretensões nem

planejamento, mas a partir do desejo de uma jovem, que tem grande talento com as

letras e as palavras, sendo comprovado por sua vasta obra literária e jornalística.

Diante desses aspectos, o romance se mantem atual ao longo dos anos. O

ano de 2015 marcou os 100 anos dessa seca histórica, contudo, pouco mudou, pois

atualmente vivemos uma grande estiagem desde o ano de 2013. Sendo considerada

a pior seca dos últimos 50 anos, devido ao tempo e abrangência, atinge o Nordeste e

outras regiões brasileiras, como o Sudeste. Apesar de estamos no século XXI,

verificamos semelhanças e diferença entre os dois momentos – vale ressaltar que

nosso objetivo não é traçar uma paralelo entre os dois momentos, mas citar que

apesar do desenvolvimento continuamos vivenciando problemas históricos. Dentre as

semelhanças estão o esvaziamento dos reservatórios e da falta de projetos que

permitam ao sertanejo e pequeno produtor lidar com as adversidades de sua terra;

quanto a diferença percebe-se uma queda na intensidade em relação ao êxodo rural,

justificado por políticas públicas implantadas pelo Estado que visa oferecer uma renda

mínima a população mais pobre. Sendo assim, “O Quinze” é um romance que

ultrapassa o tempo e as fronteiras.

4.2 O Sertão como paisagem no romance “O Quinze”

No presente tópico faremos uma discussão sobre a espacialidade sertaneja

presente no romance “O Quinze” que se apresenta através da paisagem, objetivando

analisar a forma como o sertão do Ceará é trabalhado por Rachel de Queiroz. Como

já citado, a obra se enquadra no contexto de renovação do movimento artístico

brasileiro, iniciado no ano de 1922, marcado pela Semana de Arte Moderna. Tal

movimento teve como principal objetivo a construção de uma arte genuinamente

brasileira. Embora seu teor fosse a consolidação de uma arte nacional, acabou

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colaborando para o aprofundamento de processos criativos regionais, sob a influência

do realismo e naturalismo.

Nosso foco consiste em trabalhar com a arte literária, mais especificamente

o romance, o qual se caracteriza em prosa narrativa que surge em meados do século

XVIII com o Romantismo, expondo as transformações sociais da época, tornando-se

porta voz dos desejos e ambições de uma nova sociedade que surge com a Revolução

Industrial (MOISÉS, 2006). Segundo Massaud Moisés (2006) o romance chega ao

Brasil tardiamente no século XIX, tendo como principal expoente José de Alencar que

propunha a trabalhar temas nacionais, adquirindo grande relevância a partir do

Modernismo, principalmente com a Geração de 1930, na qual se encaixa nosso

romance.

“O Quinze” busca discutir algumas das questões sobre o Nordeste

brasileiro, tornando-se um clássico do regionalismo nordestino, compondo o grupo

denominado Romance de 30 e sendo lembrado até os dias atuais. Nossa escolha por

esse romance se justifica por sua importância diante do processo de consolidação de

um movimento literário marcado pela denúncia diante das vicissitudes às quais o

Nordeste vem se submetendo ao longo de sua história, bem como pela importância

da figura de Rachel de Queiroz, mulher e nordestina, passou a exercer no meio

literário, até então majoritariamente masculino.

Diante do contexto de estiagem Queiroz percorre sua trama, marcada pela

linguagem coloquial, – tendo em muitos momentos o uso de termos próprios da região

– clara e objetiva. Com seu estilo enxuto, que revela uma dura realidade de forma

poética, a autora consegue gravar em papel as angústias e esperanças do sertanejo

em época de sofrimento. No momento de seu lançamento o romance gerou surpresa

por ser escrita por uma jovem escritora desconhecida do meio literário, e por sua forma

particular de abordar um tema já trabalho por tantos escritos de renome, como Rodolfo

Teófilo e seu romance “A fome”.

Grande leitora dos clássicos, a jovem Rachel de Queiroz estava ávida em

escrever suas próprias histórias, e logo em sua estreia se destaca, muito por seu olhar

diferenciado sobre o tema da seca, talvez pelo fato de ser uma “de dentro” (ALMEIDA,

2003), ter nascida do sertão, ou devido a sua leitura de paisagem, construída desde

a infância. Independe desses aspectos, fica claro o tom realista apresentado ao longo

da trama, como exposto por Moisés, o aspecto realista trazido nos romances é uma

faculdade, que “reconstrói o fluxo da existência com meios próprios, de acordo com

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uma concepção peculiar, única e original” (2006, p.165), no caso de Queiroz, um

importante traço de sua escrita, marcada pela linguagem local que transborda o

cotidiano dos personagens.

Rachel de Queiroz tem uma relação íntima com a geografia, seu pai, Daniel

de Queiroz lecionou a disciplina por uma tempo e quando criança produziu uma

pequeno diário geográfico, sob o título de “Cadernos de Geografia”, onde registrava o

que aprendera e resumos de seus estudos (CAVALCANTE e OLIVEIRA, 2013). Sua

preocupação em produzir um material sobre geografia nós faz entender sua estreita

relação com o geográfico, sendo percebido em suas obras futuras, seu cuidado em

revelar as paisagens através da escrita, a começar pelo “O Quinze”.

Mesmo a seca sendo seu tema central, o sertão se apresenta enquanto

paisagem central exposta sob as características da sofrida estiagem. Os enredos vão

se desenvolvendo a partir da paisagem ressequida e dura, encaminhando às ações,

muitas vezes irreversíveis. O romance é composto de três histórias centrais que se

enlaçam ao longo da trama, que ultrapassa o poder do tempo. Mesmo sendo histórias

fictícias, fica difícil não ler através de suas páginas histórias vividas por muitos

nordestinos. Os núcleos se intercalam ao longo do livro, a partir do sertão até a

chegada ao litoral, dando origem a uma jogo temporal e espacial, sem interferir na

cronologia do romance. O narrador consegue interligar a diferentes situações através

dos capítulos, demostrando a relação entre causa e efeito, “constituindo uma

verdadeiro organismo” (BARBOSA, 1999, p. 34)

A escolha pela temática da seca traz consigo a discussão de outras

questões, como o papel da mulher na sociedade, a religiosidade do povo nordestino,

a mudança na feição da caatinga, a necessidade de se retirar da terra na busca por

sobrevivência, a falta de auxílio do Estado diante da estiagem. Queiroz resgata

através de seus personagens, uma identidade socioterritorial, se fazendo perceber a

forte presença do sertão. Segundo Hasesbaert, “trata-se de uma identidade em que

um dos aspectos fundamentais para sua estruturação está na alusão ou referência a

um território, tanto no sentido simbólico quanto concreto” (2013, p.238)

Na primeira história temos a relação entre os primos Conceição e Vicente.

Conceição, jovem professora normalista residente na capital Fortaleza, que vinha a

fazenda Logradouro, perto do Quixadá, sempre durante as férias escolares saciar a

saudade de Mãe Inácia, que a criou desde criança e recompor as energias, “chegava

sempre cansada emagrecida pelos dez meses de professorado; e voltava mais gorda

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com o leite ingerido à força, resposta de corpo e espírito graças ao carinho cuidadoso

da avó” (QUEIROZ, 2006, p.13). Já Vicente, filho do Major, nunca foi dado aos

estudos, escolheu a lida do sertão, trabalhando na labuta da fazenda da família, “todo

dia a cavalo, trabalhando, alegre e dedicado, Vicente sempre fora assim, amigo do

mato, do sertão, de tudo o que era inculto e rude” (Ibidem, p 21).

Só pouco a pouco foi verificando que a prima o fitava com grandes olhos de admiração e carinho; considerava-o, decerto, um ente novo e à parte; mas à parte como um animal mal superior e forte, ciente dessa sua força, desdenhosamente ignorante das sutilezas em que se engalfinham os outros, amesquinhados de intrigar, amarelecidos de tresler... (QUEIROZ, p. 48-49, 2006)

Conceição era moça de personalidade forte, “tinha vinte e dois anos e não

falava em casar”, tinha ideias incomuns para uma jovem, fator enfatizado por Queiroz,

contrariando o desejo de sua avó. Sempre tinha um livro à mão, sobre os mais

diferentes temas, “chegará até a se arriscar em leituras socialistas”, que para Dona

Inácia era influência negativa, mas não para Ceição, que estava “acostumada a

pensar por si, a viver isolada, criara para seu uso ideias e preconceitos próprios, às

vezes largos, às vezes ousados, e que pecavam principalmente pela excessiva marca

de casa” (QUEIROZ, 2006, p.14). Entendemos que a marca da casa é a educação

liberal dado por seu avô, livre-pensador, maçom e herói da Guerra do Paraguai, de

quem herdará os velhos livros e a sede por leitura, na qual se debruçará a até altas

horas da noite. “Aqueles livros – uns cem, no máximo – eram velhos companheiros

que ela escolhia ao acaso, para lhes saborear um pedaço aqui, outro além, no

decorrer da noite”. (Ibidem, p. 12). Segundo Barbosa “Conceição talvez seja, das

protagonistas de Rachel de Queiroz, a que mais demonstra preocupação intelectual,

pois além da leitura variada, escrevia poemas e um livro sobre pedagogia e, ainda,

citava Nordau e Renan” (1999, p. 35).

Conceição juntamente com a seca é a personagem que liga os núcleos da

trama partir de sua relação com a avó, com Vicente e com a família de retirantes

quando estes chegam a Fortaleza. Com exceção de seu romance João Miguel (1932),

todos os romances de Rachel de Queiroz trazem mulheres como protagonistas,

Caminho de pedras (1937), As três Marias (1939), Dorâ, Doralina (1975) e Memorial

de Maria Moura (1992), dando a “entrever sua predileção pelos temas que tratam da

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questão feminina” (BARBOSA, 1999, p. 15), além de seu testemunho sobre as

condições sociais.

Rachel de Queiroz, como mulher consciente e sensível, comoveu-se com a condição feminina, sua natureza e conflitos, revelando em sua ficção vivências múltiplas; porém o fez através da ação, dos diálogos, da sondagem psicológica, sem a afetação e o ranço de ultrapassadas teses que insistem na dicotomia: opressão masculina versus submissão feminina. Suas personagens vivenciam diferentes situações, em diversas épocas e lugares, ainda que haja o predomínio da região nordestina, o que possibilita ao leitor descortinar um largo panorama da situação da mulher. (BARBOSA, 1999, p. 17)

Já Vicente sempre amou a terra e o trabalho no sertão, ao contrário de seu

irmão Paulo que se formou bacharel, “sempre o conhecera querendo ser vaqueiro

como um caboclo desambicioso, apesar do desgosto que com isso sentia a gente

dele” (Ibidem, p. 21) principalmente sua mãe Idalina. Nas páginas do livro Vicente é

retratado enquanto homem viril e trabalhador, de uma grande generosidade, que não

se deixa abater diante dos infortúnios que a lida da seca proporciona. Sua ligação com

o sertão é vista no seu dia-a-dia no trabalho e no trato com os animais. “Encostado

em uma jurema seca, defronte ao juazeiro que a foice dos cabras ia pouco a pouco

mutilando, Vicente dirigia a distribuição de rama verde ao gado. Reses magras, com

grandes ossos agudos furando o couro das ancas [...]” (QUEIROZ, 2006, p. 14)

A relação entre os primos era marcada por um sentimento não revelado de

carinho e admiração, sentida por ambos, mas que as diferenças de interesses e no

modo de enxergar a vida os fez distanciar. Após uma visita de Vicente à Fortaleza,

Conceição percebe o fosso existente entre eles.

Ele dizia sempre que, de livros, só o da nota do gado... Num relevo mais forte, tão forte quanto nunca o sentira, foi-lhe aparecendo a diferença que havia entre ambos, de gosto, de tendências, de vida. O seu pensamento, que há pouco se dirigia ao primo como a um fim natural e feliz, esbarrou nessa encruzilhada difícil e não soube ir adiante. .............................................................................. Pensou no esquisito casal que seria o deles, quando à noite, nos serões da fazenda, ela sublinhasse num livro querido um pensamento feliz que quisesse repartir com alguém impressão recebida. Talvez Vicente levantasse a vista e lhe murmurasse um “é” distraído por detrás do jornal... Mas naturalmente a que distância e com quanta indiferença... (QUEIROZ, 2006, p. 84-85)

Conceição tem o espírito livre e não via no casamento um modo de vida, “–

Nunca achei que valesse a pena...” (Ibidem, p. 131), encontrando outros formas de

realização, como sua dedicação aos livros e aos menos favorecidos, “senão a vida

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fica vazia demais... (Idem). Conceição não aceita a dupla moral do casamento,

pautada em uma cultura patriarcal, com base na legitimação da liberdade do homem,

que possui “necessidades” a serem saciadas, mesmo depois de se casar; e da mulher,

a quem é exigido um comportamento reto até o casamento. Contrariando a formação

social da época, Conceição acredita que o casamento deva ser pautado no

companheirismo mútuo, assim reavaliando seus desejos, percebe a grande diferença

entre ela e Vicente. Desta forma, tem sua vida dedicada aos estudos, ao trabalho e a

auxiliar os mais pobres, abrindo mão de uma vida em família, tendo como forma de

preencher a vazio de ser mãe com a adoção de seu afilhado Manuel, filho de Chico

Bento.

Dona Inácia, avó de Conceição, viúva que toma conta da fazenda

Logradouro desde a morte de seu esposo, se destaca por sua religiosidade e apego

ao sertão. Sua fé transborda as páginas em orações e súplicas à São José por chuva.

“Dignai-vos ouvir nossas súplicas, ó castíssimo esposo de Virgem Maria, e alcançai o

que rogamos. Amém” (QUEIROZ, 2006, p. 11), abre o romance. A fé é um traço

marcante no comportamento do sertanejo, fruto do processo de ocupação da capitania

cearense, a partir do “encontro entre o catolicismo ibérico e a cosmologia nas aldeias

missionárias fundadas por jesuítas nos séculos XVII e XVIII, tendo prosseguimento

com as missões representadas por ordens religiosas até o século XIX” (COSTA, 2011,

p. 63), tendo o catolicismo forte papel na legitimação do Estado na ocupação do

território.

Sendo o sertão cearense marcado pela periodicidade do fenômeno das secas, fenômeno que enseja um elenco de motivações, entre as quais se destacam os rituais de solicitar um bom inverno, associados às ideias de milagres e providências, pelo qual o homem irá se valer da religião para melhorar sua vida. (COSTA, 2011, p. 67)

O aspecto religioso enraizado na cultura nordestina reflete práticas

simbólicas construídas a partir da identidade de um povo “em um espaço simbólico,

social/ historicamente produzido” (HAESBAERT, 2013, p. 238), na qual os indivíduos

se reconhecem. Percebemos que a fé do sertanejo se notabiliza enquanto parte da

identidade desse povo.

A partir de suas vivências no sertão, Rachel de Queiroz expõe o modo de vida

e as dificuldades enfrentadas pelo povo sertanejo durante a seca, realizando sua

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leitura de paisagem, rica em simbolismos. O misticismo religioso incorporado à cultura

do Nordeste traz em si parte da essência da paisagem sertaneja. Além de sua

religiosidade, Mãe Inácia possui grande apego ao sertão, tanto que durante a seca,

mesmo com as dificuldades não queria ir para Fortaleza, aguardar as chuvas próximo

à sua neta Conceição.

- Que é isso, Mãe Inácia, ainda chorando? Pois achou pouco toda a noite, a despedida, a visita à tia Idalina, a viagem na cadeirinha? Os olhos ainda não cansaram? [...] - Deixar tudo assim, morrendo de fome e de seca! Fazia vinte cinco anos que não saía do Logradouro, a não ser para o Quixadá!... (QUEIROZ, 2006, p. 38)

Paralelamente aos primos, Queiroz desenvolve a história de Chico Bento e

sua família. Vaqueiro da fazenda Aroeiras, também localizada no munícipio de

Quixadá, tem que tomar a difícil decisão de se retirar do sertão devido à falta de

trabalho durante a seca, assim como muitos. É através de sua jornada em direção à

Fortaleza, que Queiroz vai expondo a face mais dramática da seca. “Chegou a

desolação da primeira fome. Vinha seca e trágica, surgindo no fundo sujo dos sacos

vazios, na descarnada nudez das latas raspadas” (Ibidem, p. 51). Ao longo de sua

trajetória de fuga da miséria e da fome, a família vive as mais diferentes dores que a

falta de auxilio pode proporcionar. A saída do sertão não é uma escolha, mas uma

imposição diante das condições de sobrevivência, principalmente em período de seca,

aliada ao incentivo na emigração para o Amazonas, “sem legume, sem serviço, sem

meios de nenhuma espécie, não havia de ficar morrendo de fome, enquanto a seca

durasse. Depois, o mundo é grande e no Amazonas sempre há borracha...” (Ibidem,

p. 31). Diante das circunstâncias a família sai do Quixadá na busca por melhores

condições de sobrevivência.

Junto a Chico Bento está Cordulina, que através de sua saga ao lado do

marido, nos mostra um outro olhar diante dos percalços vividos, o olhar de mulher e

mãe. Mulher que apoia a decisão do marido de se retirar diante da esperança de uma

vida melhor, e mãe pela dor sofrida pela perda de seus filhos. “Cordulina não chorava

mais. Na véspera, quando fora se despedir de Duquinha, parece que esgotara as

lágrimas; e com os olhos secos olhava fixamente as ondas que iam e vinham, batendo

nos pilares de ferro” (QUEIROZ, 2006, p. 118).

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Com o avanço da estiagem, proprietário de terras e seus trabalhadores se

veem diante de circunstancias duras e penosas, dessa forma, a lida do sertanejo é

retrata pela autora no momento em que o trabalhador se vê forçado pelas

circunstâncias a soltar o gado a mando dos patrões, pois devido à seca prolongada

deixa de existir trabalho.

Encostado ao mourão da porteira de paus corridos, o vaqueiro das Aroeiras aboiava dolorosamente, vendo o gado sair, um a um, do curral. […] Da janela da cozinha, as mulheres assistiam à cena. Choravam silenciosamente, enxugando os olhos vermelhos na beira dos casacos ou no rebordo das mangas. Saída a última rês, Chico Bento bateu os paus e foi caminhando devagar, atrás do lento caminhar do gado, que marchava à toa, parado as vez, e pondo no pasto seco os olhos triste, como numa agudeza de desesperança. (QUEIROZ, 2006, p.23-24)

Através da jornada realizada pela família de retirantes Rachel vai nos

apresentando os aspectos naturais e sociais do sertão, até chegar ao primeiro destino

que é Fortaleza. A trajetória da família é marcada por muitos obstáculos, a começar

pela falta de passagens dadas pelo governo, obrigando a família se retirar por terra,

“- Mas meu senhor, veja que por terra, com esse magote de meninos, é uma morte!”

(Ibidem, p. 34), mas por essa altura a situação já era grave no Ceará.

No início de março, o Ceará já estava com a economia em frangalhos: a pecuária perdera 50% do rebanho, a agricultura, quase 100% da produção, o os operários do açude Agarape não recebiam havia mais de seis meses. Começou a migração de milhares de sertanejos para os núcleos urbanos mais desenvolvidos. Em Crateús, o vigário e as autoridades municipais telegrafaram para o governador pedindo ajuda, pois a “situação é desesperadora, morrendo muita gente de fome” (VILLA, 2000, p. 100-101)

Até a chegada em Fortaleza a família se depara com as mais diferentes

situações, mas a fome é a mais dura delas, por conta dela o homem acostumado a

lida do trabalho se vê diante da necessidade de mendigar o mínimo que fosse.

Chico Bento estendeu o olhar faminto para a lata onde o leite subia, branco e fofo como um capucho... E a mão servil, acostumado a sujeição do trabalho, estendeu-se maquinalmente num pedido... mas a língua ainda orgulhosa endureceu na boca e não articulou a palavra humilhante. A vergonha da atitude nova o cobriu todo; o gesto esboçado se retraiu, assadas nervosas o afastaram. Sentiu a cara ardendo e um engasgo angustioso na garganta.

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Mas dentro de sua turbação lhe zunia ainda aos ouvidos: “Mãe, dá tumê...” (QUEIROZ, 2006, p. 54)

O leitor não tem como se mostrar indiferente diante da caminhada da

família, na qual compartilham com outros retirantes a sorte dos infortúnios

encontrados pela estrada ressequida. A partilha do pouco que se tem torna-se atos

de generosidade e incerteza do dia seguinte. A busca por alimento pode trazer consigo

a dor da morte, quando a criança por fome e curiosidade abocanha a raiz de mandioca

crua, levando a despedida de um filho. “Em O Quinze a relação com a comida é evidenciada

com a descrição de sofrimento e dor. De inicio, já a fome aparece, pois a quantidade parca dos

alimentos maltrata as crianças pelo estômago a roncar de fome, ou pelas gargantas com sede,

naquele mundo sem água” (COUTINHO, 2015, p. 60).

Durante a caminhada o narrador exibe a transformação da mãe e dos filhos

pela fome e a impotência do pai, marcando o processo de desumanização da família.

O aspectos físicos vão aos poucos definhando sob um céu sem nuvens. O ambiente

marcado pelo sofrimento embrutecem os pais, marcados pela morte de Josias e o

desaparecimento de Pedro, que sonegam de seus filhos um pouco de carinho

necessário, além da resignação em entregar o caçula, Manoel, para que a madrinha

possa criar em melhores condições. Mesmo diante de todas as provações, o casal

mantém suas virtudes sertanejas, na busca pela sobrevivência.

Ao longo do romance a autora vai cruzando os personagens com a

paisagem sertaneja a partir do drama da seca, nos apresentando a relação que cada

um mantém com o sertão. É interessante notar a forma com que o sertão se apresenta

ao longo da trama, mostrando suas diferentes paisagens e as relações afetivas

construídas no seu interior. Como dito por Dardel, a paisagem é “muito mais que uma

justaposição de detalhes pitorescos, a paisagem é um conjunto, uma convergência,

um momento vivido, uma ligação interna, uma ‘impressão, que une todos os

elementos” (2015, p. 30), sendo justamente essa impressão sobre o sertão que

podemos enxergar através de cada personagem, é percebido e sentido o pulsar da

paisagem tão viva, mesmo aparentemente seca.

Novamente a cavalo no pedrês, Vicente marchava através da estrada vermelha e pedregosa, orlada pela galharia negra da caatinga morta. Os cascos dos animal pareciam tirar fogo nos seixos do caminho. Lagartixas davam carreirinhas intermitentes por cima das folhas secas no chão que estalavam como papel queimado. O céu, transparente que doía, vibrava, tremendo feito uma gaze repuxada.

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Vicente sentia por toda a parte uma impressão ressequida de calor e aspereza. Verde na monotonia cinzenta da paisagem, só algum juazeiro ainda escapo à devastação da rama; mas em geral as pobres árvores apareciam lamentáveis, mostrando os cotos dos galhos como membros amputados e a casa toda raspada em grandes zonas brancas. E o chão que em outro tempo a sombra cobria, era uma confusão desolada de galhos secos, cuja agressividade ainda mais se acentuava pelos espinhos. (QUEIROZ, 2006, p. 17-18)

O sertão é visto como espaço da inclusão do homem no mundo, o lugar

onde se trava a luta pela vida, onde se manifesta o seu ser e sua relação com o outro,

sendo a base do seu ser social.

A paisagem verde típica da caatinga perde suas feições diante da seca,

sendo a paisagem vivida ao longo de todo o romance de Queiroz. Durante a trama a

autora entrelaça a descrição da paisagem, fazendo uso de linguagem poética e

metafórica, para mostrar ao leitor as faces que o sertão pode adquirir. “Chico Bento

parou, Alongou os olhos pelo horizonte cinzento. O pasto as várzeas, a caatinga, o

marmeleiral esquelético, era tudo de um cinzento de borralho” (QUEIROZ, 2006, p.

24). A caatinga é a vegetação típica do semiárido nordestino, tipo único no mundo,

composta, principalmente, por plantas xerófilas de grande biodiversidade, com

destaque para o juazeiro, aroeira, palma, xiquexique, adaptas à pouca umidade,

sendo muitas vezes as mais fortes em tempo de seca. “Debaixo de um juazeiro

grande, todo um bando de retirantes se arranchara” (Ibidem, p.43). Segundo

Ab’Saber, o sertão é comumente apresentada como “terra das chapadas, dotada de

solos pobres e extensivamente gretados, habitada por agrupamentos humanos

improdutivos, populações seminômades corridas pelas secas, permanentemente

maltratadas pelas forças de uma natureza perversa” (1999, p. 08).

O geográfico em Rachel reside em seu mundo vivido, no sertão onde

nasceu e o lugar onde guarda suas origens, o qual expõe e explora as relações do

homem com a natureza e a transborda através de sua escrita, “relação existencial que

é ao mesmo tempo teórica, prática, afetiva, simbólica, e que delimitar justamente o

mundo” (BESSE, 2015, p. 114), o seu mundo. E é através dos páginas de “O Quinze”

vislumbramos o mundo de sua infância, e ao mesmo tempo resgata um pouco das

dores desse mesmo mundo, através de uma história sobre a seca.

A infância com os tempos passados na fazenda, portanto, faz parte da gênese de O Quinze, antes mesmo que a jovem autora Rachel de Queiroz, começasse a dar vida ficcional às narrativas de êxodo familiar tão comuns na época, em

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função da peculiaridade das nuvens, que retinham todas as gotas de água, sem permitir que se transformassem em chuva. (COUTINHO, 2015, p. 56)

A seca é um fenômeno natural que atinge o Nordeste de temos em tempos,

caracterizada pela falta de chuva na região semiárida da caatinga. Embora seja um

fenômeno conhecido do povo local, sempre que ela chega traz consigo a dor e a

miséria, “o próprio leito das lagoas virara-se em torrões de lama ressequida, cortada

aqui e além por alguma pacavira defunta que retorcia as folhas empapeladas”

(QUEIROZ, 2006, p. 24). O romance de Rachel se insere enquanto documento de

denúncia da situação em que se encontrar a população mais frágil em tempo de

estiagem, através de Conceição a autora nos apresenta uma série de situações

desencadeadas pela falta de auxílio do governo, como a criação do “Campo de

Concentração”.

Como já dito, Rachel não conhecerá a seca com os próprios olhos, durante

a seca de 1915, tinha apenas quatro anos, passou esse período em Fortaleza, no

Alagadiço, em imensa chácara adquirida por seu pai (QUEIROZ, 2015), mas as

memórias daqueles que sofreram em tempo de seca permanece forte no imaginário.

Em 1915 “a seca seguia seu curso, deslocando a população sertaneja. Cada trem que

chegava de Iguatu despejava em Fortaleza centenas de retirantes” (TEÓFILO, 1980,

p. 67) Assim as impressões daqueles tempos de devastação tornaram constantes em

sua vida à cada visita que fazia ao sertão. Foi no Alagadiço que a menina conheceu

o abarracamento, que na seca de 1915 recebera o nome de “campo de concentração”.

Segundo Teófilo “os retirantes estiveram no Passeio Público até se preparar no

Alagadiço o futuro ‘abarracamento’, o qual tomou, não sei por quê, nome de ‘campo

de concentração’ e o povo batizou de ‘curral’” (1980, p.54). Mesmo ido ao campo

quando pequena, Rachel se recorda pouco do lugar, mas a partir das memórias vivas

de quem viu e vivenciou o momento deram base para a jovem o descrevê-lo em seu

romance.

Conceição atravessava muito depressa o Campo de Concentração. Às vezes uma voz atalhava: Dona, uma esmolinha... Ela tirava um níquel da bolsa e passava adiante, em passo ligeiro, fugindo da promiscuidade e do mau cheiro do acampamento. Que custo, atravessar aquele atravancamento de gente imunda, de latas velhas, e trapos sujos! (QUEIROZ, 2006, p. 61) ........................................................................ Quando transpôs o portão do Campo, e se encostou a um poste, respirou mais aliviada. Mas, mesmo de fora, que mau cheiro se sentia!

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Através da cerca de arame, a apareciam-lhe os ranchos disseminados ao acaso. Até a miséria tem fantasia e criara ali os gêneros de habitação mais bizarros. Uns debaixo dum cajueiro, estirados no chão, quase nus, conversavam. Outros absolutamente ao tempo, apenas com a vaga proteção de uma parede de latas velhas, rodeavam um tocador de viola, um cego, que cantava numa melopeia cansada e triste. (Ibidem, p. 63)

Segundo Villa (2000), a formação dos “abarracamentos” ocorrem nas cidades

mais centrais e está associada à chegada de levas de retirantes, muitas vezes sendo

abrigados nas praças, como o Passeio Público. Muitos chegavam, por trem pela

estrada de ferro de Baturité12, que acabou facilitando a migração para a cidade, mas

aqueles que não conseguiam passagem, não tinham outra forma a não ser vir por

terra. As condições nos campos eram das piores, em visita durante a seca de 1915,

Teófilo (1980) afirma a permanência de, aproximadamente, sete mil retirantes,

abrigados sob a sombras de cajueiros, sem as mínimas condições de sobrevivência,

jogados a sorte e às doenças, principalmente, a varíola, companheira inseparável da

seca. Homens, mulheres, crianças, doentes e animais, conviviam em um pequeno

espaço, sob o lixo e fezes. As doenças se alastram com mais facilmente diante das

condições, sendo as crianças as mais afetadas, saído “diariamente carro cheios de

crianças mortas por infecções diversas” (VILLA, 2000, p. 110).

Sobre a organização política e econômica no ano de 1915, o Brasil está

sob a presidência de Venceslau Brás (1914-1918), que tinha como lema a restauração

da “política do café com leite”. Considerado um governante ausente e apático, que

chegam ao poder a partir de estratégia política dos grandes estados. Assume a

presidência durante a Primeira Grande Guerra e com o país sobre crise política após

o governo de Hermes da Fonseca – que sai do poder sob estado de sítio (VILLA,

2000). Durante os primeiros meses de seca o governo fica em absoluto silêncio diante

dos pedidos de auxílio. Mesmo com a existência da Inspetoria de Obras Contra as

Secas (1909), quase nada foi feito para amenizar a situação, uma das poucas ações

foi a criação das “frentes de trabalho” com a construção de açudes e barragens, dando

trabalho a uma parte da população sertaneja. Esse fato é citado por Rachel de

Queiroz.

Armado com um cartãozinho do bispo e um bilhete particular de Conceição à senhora que administrava o serviço, Chico Bento conseguiu obter o ambicionado lugar no açude do Tauape.

12 Ver mapa no capitulo 03.

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No bilhete, a moça fazia o possível para comover a destinatária; e a senhora apesar de já se ter habituado e esses pedidos que falavam sempre numa pobreza extrema e em criancinhas famintas, achou jeito de desentulhar um pá, e ela mesma guiou o vaqueiro aturdido, com seu ferro na mão, e o entregou ao feitor. Duramente Chico Bento trabalhou todo o dia no serviço da barragem. (QUEIROZ, 2006, p. 106)

O flagelo da seca era sentido em todos os estados do Nordeste, mas no

Ceará a calamidade se apresentava mais agravante. Diante do silencio do governo

Federal, após várias mensagens solicitando auxílio, a seca começa a ocupar o espaço

da imprensa. “Artigos e mais artigos são escritos apresentando soluções, comentando

ou acusando os supostos responsáveis pela seca” (VILLA, 2000, p. 105). Diante do

contexto de miséria e fome os jornais iniciam campanhas em defesa da emigração

dos sertanejos para em direção à outras regiões, principalmente São Paulo.

A população de Fortaleza assistia revoltada à indiferença do governo, que não se doía de ver aqui um agente do governo de outro Estado socorrendo os retirantes, promovendo-os de tudo, imunizando-os contra a varíola e depois embarcando-os para o Pará! De alguns Estados do sul havia agentes aqui aliciando soldados para suas milícias ou trabalhadores para suas lavouras! (TEÓFILO, 1980, p. 39)

Fato também apresentado por Queiroz. Quando a família de retirantes saiu

do Quixadá seu destino era o Amazonas, que desde o fim do século XIX vivenciava

grande crescimento econômico por conta da borracha. Muitos nordestinos escolheram

o Norte como destino, formando o “exército da borracha” e consolidando uma dos

maiores fluxos de migração interna da história brasileira. Porém seu destino final foi o

Sul, especificamente, São Paulo, que com a alta na produção do café, vai se

consolidando como importante espaço de atração de imigrantes, principalmente

nordestinos.

Subitamente, Conceição teve uma ideia: – Por que vocês não vão para São Paulo? Diz que lá é muito bom... Trabalho por toda parte, clima sadio... Podem até enriquecer... O vaqueiro levantou os olhos, e concordou, pausadamente: – É... Pode ser... Boto tudo nas suas mãos, minha comadre. O que eu quero é arribar. Pro Norte ou pro Sul... (QUEIROZ, 2006, p. 114)

Após a decadência da economia da cana-de-açúcar – muito bem

trabalhada na literatura por Lins do Rego –, bem como a chegada da família Real

portuguesa em 1808 o Nordeste brasileiro deixou de ser o centro do Brasil. Aliado a

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esses fatores temos a descoberta de metais preciosos em Minas Gerais e a

cafeicultura, concentrada em São Paulo. A partir isso o Nordeste se torna a principal

região de “repulsão” populacional no Brasil, resultado de um contexto po lítico e

econômico centralizado no Sul brasileiro. É claro, para nós, que os vários fluxos

migratórios que tem o Nordeste como origem, desde o século XIX ocorrem de modo

forçado, uma vez que a população sertaneja diante das baixas condições de

sobrevivência, não encontra outra escolha senão arribar. “Iam para o destino, que o

chamara de tão longe, das terra seca e fulvas de Quixadá, e os trouxeram entre a fome e

mortes, e angústias infinitas, para os conduzir agora, por cima da água do mar, às terra

longínquas onde sempre há farinha e sempre há inverno” (QUEIROZ, 2006, p. 120).

A partir da paisagem semiárida da caatinga Rachel de Queiroz consegue

expressar seu olhar diante da instabilidade social do interior nordestino. Seu

posicionamento na obra reflete um tom de expressividade do sertão, bem como uma

denúncia em relação à omissão do Estado frente à pobreza e miséria da população.

Sua obra se enquadra na vertente regionalista pautada na procura de desvendar o

sertão e seu povo, dando a oportunidade para que os leitores que estão de fora

possam conhecer essa realidade. A autora demonstra a preocupação de mostrar o

homem, sertanejo, pouco conhecido, em suas qualidades e fragilidades, aspecto

pouco explorado por outras escolas.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa pesquisa se centrou no diálogo entre Geografia e Literatura, a fim

de perceber novas espacialidades, para tanto, recorremos ao romance “O Quinze”, de

Rachel de Queiroz, enquanto mediador dessa análise, tento como foco a paisagem

do sertão.

Estudar o possível diálogo entre ciência e arte se tornou o objetivo de

muitos estudiosos das ciências humanas. Olhar para as artes e as letras como forma

de análise do real é uma desafio para a Geografia, História, Sociologia, Linguística,

entre outras. Neste contexto amplia-se o interesse pelo estudo da Literatura sob as

mais diferentes óticas cientificas, no caso a Geografia. A estrutura romanesca se

mostra frutífera no que tange à observação do sentir humano diante do meio. A forma

poética com a qual a realidade nos é apresentada através dos romances nos permite

percorrer os mais diferentes lugares e paisagens, nos oferecendo enquanto

pesquisadores uma nova perspectiva de analise para a ciência geográfica.

Essa rica possibilidade de análise demostra a crescente preocupação por

parte do meio científico de se recorrer ao sentir do homem como possibilidade de

estudo. Segundo Merleau-Ponty “o pensamento científico ignora o sujeito da

percepção” (2011, p.279), e é justamente no intuito de resgatar esse sujeito que

muitos estudiosos estão recorrendo à arte como forma de compreender sensações

que não são perceptíveis pela forma positiva de se fazer ciência. Diante desse

contexto se vivencia uma mudança no paradigma cientifico. Esse revolução “gera

grandes desdobramentos que levam a ligar, contextualizar, e globalizar os saberes

até então fragmentos e compartimentados, e que, daí em diante, permitem articular

disciplinas, umas às outras, de modo mais fecundo” (MORIN, 2010, p. 26). Para Morin

um novo espirito científico está em ascensão como forma de reagrupar as diferentes

formas de conhecimento, dentre elas a Geografia, considerada por ele

“multidimensional” pois “vai da Geologia aos fenômenos econômicos e sociais”

(Ibidem, p. 27).

Consoante ao pensamento de Morin, Dardel (Op. cit) nos apresenta essa

Geografia múltipla, que tem como preocupação compreender o mundo

“geograficamente”, a partir de suas mais diferentes extensões, na qual o homem se

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sinta ligado à Terra. Entendendo como realidade geográfica aquela na qual o homem

vivencia suas experiências cotidianas (TUAN, op. cit).

Diante desse contexto nos interessamos em estudar esse profícuo diálogo

entre a ciência geográfica e a arte literária como forma de realizar uma leitura

diferenciada da realidade. “Este interesse original se dá pelo que os romances tinham

de realidade, de conhecimento sobre os lugares e regiões. Tanto na descrição da

paisagem e dos costumes dos lugares quanto de processos físicos. (MARANDOLA

JR. e OLIVEIRA, 2009, p. 490).

Ao longo de seu romance Rachel de Queiroz estabelece uma profunda

ligação como a paisagem do sertão, destacando através do romance os aspectos

subjetivos da paisagem enquanto construção do mundo. Em sua escrita no “O Quinze”

lemos o mundo do sertanejo que migra; o mundo do sertanejo que trabalha

diariamente para manter sua raiz; o mundo da fome, da miséria e da morte, todos sob

a sombra do sertão.

É sabido que a autora possui profundas raízes na ciência geografia, uma

vez que a mesma, ainda na infância, produziu um pequeno manuscrito intitulado

“Caderno de Geografia”. Cunha apud Cavalcante e Oliveira (2013, p.63) afirma que

“em cada paisagem e rabisco, uma espécie de ensaio de uma vida literária, expressão

de um sonho, de um desejo de autoria”, assim, percebemos que desde sua infância

já demostrava interesse pela literatura e pela ciência geografia, expondo seu olhar e

sentimentos logo de seu primeiro romance.

Sobre “O Quinze” podemos observar a presença de três mundos retratadas

pelo narrador, dois tipos de sertanejos, embora em condições diferentes, mas que são

impactados pela seca implacável. O primeiro simbolizado pelo vaqueiro Chico Bento e sua

família, um mundo sem perspectivas que culmina em pegar a estrada como forma de

garantir um futuro, trabalhada de forma determinista pelo narrador sob a conservação do

trágico. No segundo temos Vicente, um vaqueiro dono do próprio rebanho, que luta contra

a seca pra salvar seu gado e garantir seu lucro. Enquanto elo entre os mundo temos

Conceição, que ao encontrar a família de retirantes, ajuda-os no que pode e garantindo

sua ida para o Sul, que segundo Landim, “os retirantes vão de uma escravidão para outra”

(2005, p.92), situação mantida e incentivada pelo Estado.

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O romance “O Quinze” se destaca por seus aspectos sociológicos, tendo

como foco as diferentes relações sociais estabelecidas entre os personagens

mediadas pelas diferentes paisagens na qual se passa a trama. “A literatura das secas

muito frequentemente enfatiza a mobilidade, a retirada, a transferência de seus

personagens principais de um lugar para outro, levando com eles a própria seca, que

de outra forma pouco influiria no lugar de destino” (SCOVILLE, 2011, p.107). Em “O

Quinze” a retirada está representada por Chico Bento e sua família. Quando Dona

Maroca das Aroeiras, ordena “tomar seu rumo ou, se quiser, fique nas Aroeiras, mas

sem serviço na fazenda” (QUEIROZ, 2006 p. 25), o vaqueiro não vê outra saída. Com

isso percebemos que as intemperes da seca atingem de formas diferentes o povo,

seja no sertão ou no litoral.

No desenvolvimento do núcleo de Chico Bento, percebemos a

desumanização do homem. O vaqueiro antes forte e trabalhador se transforma, agora

anda corcunda e triste, “como uma interrogação lastimosa” (Ibidem, p. 29), sendo

forçado a sair de sua terra agarrado na “imaginação esperançosa” que “esquecia

saudades, fome e angústias, penetrava na sombra verde do Amazonas, vencia a

natureza bruta, dominava as feras e as visagens, fazia deles rico e vencedor” (Ibidem,

p.31)

Observamos que o sertão se apresenta sob a paisagem da seca, seja no

sertão de Quixadá ou na cidade de Fortaleza, a seca se apresenta como mediadora

na estrutura do romance, culminando no processo de emigração populacional, seja

temporária – caso de Dona Inácia – ou permanente – Chico Bento e sua família.

“Repetidas experiências das secas, não somente por parte do analfabeto, mas até daquele

que detêm certo saber, deram origem há uma visão fatalista – a seca é uma lei da natureza,

e portanto, está nordestino inexoravelmente subjugado a seus caprichos” (LANDIM, 2005,

p. 29). O sertanejo passa a vida na tentativa de prever se o inverno será bom ou não,

através de suas experiências construídas a partir da observação empírica, e quando o sinal

não é bom, recorre a crença religiosa (o dia de São José), como forma de fortalecer a

esperança. Sendo esses aspectos passados através das gerações alimentando seus

aspectos culturais, que em um primeiro momento foi retratada como pitoresco e exótico

pela literatura regionalista.

Rachel de Queiroz se destaca no ramo literário por suas características

próprias, embora seu romance tenha qualidades identitárias da cultura regional do

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Nordeste, seu romance foge do aspecto maniqueísta narrado por “pobres bons e sofridos”

e “ricos maus”. Percebemos que seu objetivo é mostrar uma realidade pulsante do sertão,

que ocorre de forma recorrente, na qual todos acabam por se tornarem vítimas, em graus

diferenciados, de uma realidade que se mantem até os dias atuais. Sua escrita se destaque

pelo neorealismo, justificado por sua postura de denúncia da realidade. Através de seu

romance Queiroz buscou mostrar sua leitura sobre a seca e a população sertaneja, além

da permanência do Nordeste como região subdesenvolvida. Mesmo que seus

personagens e histórias sejam fictícias, vemos a história de um povo sendo contada.

Em “O Quinze” o sertão deixa de ser apenas um cenário do desenrolar da

trama para torna-se também uma das personagens. Ao longo do romance a paisagem

sertaneja ganha movimento e profundidade, a partir de sua vivência e imaginação,

Rachel de Queiroz cria uma ligação entre o leitor e o sertão, recriando-o a partir de

seus signos e símbolos. A fé, a religiosidade, os costumes e hábitos, as normas

sociais, os conflitos, a miséria, o sofrimento e a esperança são transplantadas em

suas páginas como forma de mostrar o entrecruzamento de uma sociedade e seu

espaço geográfico.

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