A Mãe Máximo Gorki

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Literatura Russa

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A MEMximo GorkiGRANDES GNIOS DA LITERATURA UNIVERSALMximo GorkiEdiclubeEdio e Promoo do Livro, LdaA MeTraduo:Ana Macedo e SousaEdita:(c) S.A.E.P.A.Avda. de Manoteras, 50-52Madrid (Espanha)Edio exclusiva paraEDICLUBEEdio e Promoo do Livro, Lda.Rua da Indstria, 42720 ALFRAGIDE (Portugal)Impresso em Espanha por Unigraf, S.L. MadridISBN 84-408-0038-XDep. Legal n M-44427-1996***PRIMEIRA PARTETodas as manhs, por entre o fumo e o cheiro a leo do bairro operrio, apitava, trmula, a sirene da fbrica.Dos casebres escuros saiam apressadas, como baratas assustadas, pessoas de semblante carrancudo, com os msculos ainda cansados. No ar frio do amanhecer, seguiam pelas ruelas de terra batida em direco enorme jaula de pedra que, serena e indiferente, os esperava com os seus inmeros olhos, quadrados e viscosos. Ouvia-se o chapinhar dos passos na lama. Entrecruzavam-se exclamaes roucas de vozes ensonadas e elevavam-se no ar injrias soezas. Tambm havia outros sons: o rudo surdo das mquinas, o silvo do vapor. Sombrias e austeras, perfilavam-se as altas chamins negras, grossas colunas dominando o bairro.A tardinha, quando o Sol se punha e os vidros das janelas das casas reflectiam os seus raios avermelhados, a fbrica vomitava das suas entranhas de pedra a escria humana. Os operrios, de rostos enegrecidos pelo fumo onde sobressaiam os dentes brancos de esfomeados, espalhavam-se novamente pelas ruas, deixando no ar exalaes hmidas do leo das mquinas. Agora, as vozes eram animadas e at mesmo alegres. O trabalho de forados tinha terminado por aquele dia e em casa esperava-os o jantar e o descanso.A fbrica tinha devorado o trabalho dos homens. As mquinas tinham sugado aos seus msculos toda a fora de que necessitavam. O dia tinha passado sem deixar vestgios, cada homem tinha dado mais um passo em direco ao tmulo, mas a doura do repouso aproximava-se, bem como o prazer da taberna cheia de fumo, e os homens sentiam-se contentes.Nos dias de festa dormia-se at s dez horas. Depois, as pessoas srias e casadas vestiam as suas melhores roupas e iam missa, reprovando nos jovens a sua indiferena pela religio. No regresso da igreja, comiam e deitavam-se novamente at ao anoitecer.A fadiga, acumulada durante anos, tira o apetite e, para comer, bebiam, excitando o estmago com a queimadura aguda do lcool. tarde, passeavam preguiosamente pelas ruas. Os que tinham botas de borracha, calavam-nas mesmo que no chovesse, e os que possuiam um guarda-chuva levavam-no ainda que o Sol brilhasse.Quando se encontravam, falavam da fbrica, das mquinas, ou desfaziam-se em invectivas contra os capatazes. As palavras e pensamentos no iam alm dos assuntos referentes ao trabalho. Raramente uma ideia, pobre e mal formulada, chispava solitria na monotonia cinzenta dos dias. De volta a casa, os homens altercavam com as mulheres e frequentemente lhes batiam, sem poupar as pancadas. Os jovens deixavam-se ficar no caf ou organizavam pequenas reunies em casa de algum deles, tocavam acordeo, cantavam canes ignbeis, danavam, diziam obscenidades e bebiam. Extenuados pelo trabalho, os homens embriagavam-se facilmente. A bebida provocava uma irritao infundada, mrbida, que precisava de um escape. Ento, para se libertarem, arranjavam um qualquer pretexto ftil, e atiravam-se uns contra os outros num acesso de fria bestial. Produziamse rixas sangrentas, das quais alguns saiam feridos. Chegava por vezes a haver mortos...No relacionamento entre eles predominava um sentimento de animosidade sempre latente, que a todos dominava que parecia to normal como a fadiga nos msculos. Tinham nascido com esta enfermidade na alma, herdada dos pais, que, como uma sombra negra, os acompanhava at ao tmulo e os levava a cometer actos odiosos, de uma crueldade intil.Nos dias de festa, os jovens voltavam de noite, muito tarde, com os fatos rotos, cobertos de lama e de poeira, os rostos feridos. Gabavam-se, com voz maldosa, das pancadas infligidas aos seus companheiros, ou, ento, regressavam furiosos ou chorando devido aos insultos recebidos, brios, lamentveis, infelizes e repugnantes. s vezes eram os pais que traziam o filho para casa. Tinham-no encontrado embriagado, perdido beira do caminho, ou na taberna. As injrias e as pancadas choviam sobre o corpo inerte do rapaz; depois deitavam-no com mais ou menos precaues, para o acordarem bem cedo, na manh seguinte, e o enviarem para o trabalho quando a sirene, qual sombria torrente, soltasse o seu grito irritado.Os insultos e as pancadas abatiam-se duramente sobre os rapazes, mas as suas bebedeiras e lutas pareciam perfeitamente legtimas aos velhos; tambm eles, na sua juventude, se tinham embriagado e lutado; tambm eles tinham sido espancados pelos pais. Era a vida. Tal como uma gua turva, que desliza lenta e sempre igual, assim um ano se seguia ao outro. Cada dia era igual ao precedente, feito dos mesmos hbitos de pensar e de agir, antigos e tenazes. E ningum sentia o desejo de mudar coisa alguma.Por vezes apareciam estranhos no bairro, vindos no se sabia de onde. De incio atraam as atenes, apenas porque eram desconhecidos. Suscitavam logo a curiosidade, quando falavam dos lugares onde tinham trabalhado. Depois, o interesse pela novidade desaparecia, as pessoas acostumavam-se presena deles e voltavam a passar despercebidos. As suas histrias confirmavam uma evidncia: a vida do operrio igual em todos os lugares. Assim sendo, para qu falar dela?Mas, por vezes, acontecia que contavam coisas inditas no bairro. Ningum discutia com eles, mas escutavam, sem acreditar, as suas estranhas frases que provocavam, nalguns uma irritao surda, noutros inquietao. No faltava quem se sentisse assaltado por uma vaga esperana e ento bebia, ainda mais, para apagar aquele sentimento intil e incmodo.Se um estranho apresentasse algo fora do comum, os habitantes do bairro olhavam-no de soslaio e tratavam-no com instintiva repulsa, como se temessem v-lo trazer para as suas vidas algo que pudesse perturbar o seu quotidiano sombrio e penoso, mas tranquilo. Habituados a serem esmagados por uma fora constante, no esperavam que algo pudesse melhorar e consideravam que qualquer mudana iria apenas servir para lhes tornar o jugo mais pesado ainda.As gentes do bairro ouviam em silncio os que falavam de coisas novas. Depois desapareciam, retomavam a estrada, ou, se ficavam na fbrica, viviam margem, sem conseguirem fundir-se com a massa uniforme dos operrios...O homem vivia assim durante cerca de cinquenta anos e depois morria...IITal era a vida do serralheiro Mikhail Vlassov, um ser sombrio, peludo, de olhinhos desconfiados sob espessas sobrancelhas e sorriso maldoso. O melhor serralheiro da fbrica e o hrcules do bairro. Ganhava pouco porque era grosseiro com os chefes. Todos os domingos deixava algum sem sentidos; toda a gente o detestava e o temia. Tinham tentado dar-lhe uma tareia, mas no tinham conseguido. Quando Vlassov via que ia ser atacado, apanhava uma pedra, uma tbua, um pedao de ferro, fincando-se sobre as pernas afastadas, e em silncio esperava o inimigo. O rosto, coberto por espessa barba negra desde os olhos at garganta, e as mos peludas suscitavam o pnico geral. Assustavam, acima de tudo, os seus olhos, pequenos e agudos, que pareciam trespassar as pessoas como se fossem uma ponta de ao; quando se cruzava aquele olhar sentia-se como se se estivesse em presena de uma fora selvagem, inacessvel ao medo, pronta a ferir sem piedade.- Fora daqui, bandalhos! - dizia surdamente. Os dentes amarelos reluziam no meio da espessa barba do seu rosto. Os adversrios enchiam-no de insultos, mas retrocediam intimidados.- Bandalhos! - continuava a gritar-lhes, e o seu olhar brilhava, maldoso, agudo como uma sovela. Depois, erguia a cabea em ar de desafio e perseguia-os, provocando-os:- Ento, quem que quer morrer? Ningum queria...Falava pouco e a sua expresso favorita era -bandalhos". Chamava assim os capatazes da fbrica e a polcia; empregava o mesmo epteto quando se dirigia mulher:- No vs, bandalha, que tenho as calas rotas?Quando o filho, Pavel, j tinha catorze anos, Vlassov tentou un dia arrast-lo pelos cabelos. Mas Pavel apoderou-se de um pesado martelo e disse-lhe secamente:- No me toque.- O qu? - perguntou o pai, avanando sobre o rapaz alto e esbelto, como uma nuvem sobre uma btula jovem.- Basta - disse Pavel -, no deixarei que me volte a bater... - E brandiu o martelo. - O pai olhou para ele, Com as mos peludas cruzadas atrs das costas e disse zombando:- Ah, sim?E acrescentou, com um suspiro profundo:- Raio de bandalho... Pouco depois disse mulher:- No me peas mais dinheiro. De hoje em diante ser Pavel que ir sustentar-te. Ela ousou perguntar:- Vais gastar o dinheiro todo na bebida?- No assunto da tua conta, bandalha. Arranjarei umaamiguinha...No arranjou nenhuma amante, mas desde aquele momento e at sua morte, durante quase dois anos, no voltou a olhar para o filho, nem lhe dirigiu a palavra.Tinha um co to grande e peludo como ele. Todos os dias o animal o acompanhava fbrica e, tarde, esperava por ele, sada. Ao domingo, Vlassov percorria os cafs. Caminhava sem dizer palavra, parecia procurar algum, olhando insolentemente as pessoas, enquanto passava. O co seguia-o o dia inteiro, a cauda cada, grossa e peluda. Quando Vlassov, embriagado, regressava a casa, sentava-se mesa e do seu prprio prato dava de comer ao co. Nunca lhe batia, nem lhe ralhava, mas tambm no o acariciava. Depois de comer, se a mulher no levantava depressa a mesa, atirava os pratos ao cho, colocava sua frente uma garrafa de aguardente e, de costas apoiadas parede, berrava uma cano numa voz surda que causava arrepios, com a boca aberta e os olhos fechados. As palavras da cano, melanclicas e vulgares, pareciam enrolar-se-lhe no bigode, de onde caiam migalhas de po; o serralheiro cofiava a barba com os dedos e cantava. As palavras eram incompreensveis, arrastadas; a melodia lembrava o uivo dos lobos no Inverno. Cantava enquanto houvesse aguardente na garrafa; depois, deitava-se de lado sobre o banco, ou pousava a cabea sobre a mesa, e dormia assim at se ouvir o silvo da sirene. O co deitava-se ao seu lado.Morreu de uma hrnia. Agitou-se na cama durante cinco dias, a tez sombria, as plpebras cerradas, rangendo os dentes.10s vezes dizia mulher:- D-me veneno para os ratos, envenena-me...O mdico receitou cataplasmas, mas acrescentou que era indispensvel oper-lo e que era necessrio levar o doente imediatamente para o hospital.- V para o diabo... morrerei sozinho! Bandalho! - gritouVlassov.Quando o mdico se foi embora, a mulher, chorando, quis convenc-lo a submeter-se operao; ele disse-lhe, ameaando-a com o punho:- Se me curar vai ser pior para ti!Morreu numa manh, no momento em que a sirene chamava para o trabalho.No caixo, tinha a boca aberta e as sobrancelhas franzidas e irritadas. Acompanharam o enterro a mulher, o filho, o co, e Danilo Vessovchikov, velho ladro bbado expulso da fbrica, para alm de alguns miserveis do bairro. A mulher choramingava. Pavel no verteu uma lgrima. Os transeuntes que se cruzavam com o enterro paravam e persignavam-se, comentando com os vizinhos:- A Pelgia deve estar contente que ele tenha morrido!E rectificavam:- Que tenha rebentado!Depois de ter sido sepultado, todos abandonaram o local, menos o co, que ficou estendido na terra remexida e, sem ladrar, farejou o tmulo durante muito tempo. Mataram-no uns dias mais tarde; ningum soube quem...IIIUm domingo, quinze dias aps a morte do pai, Pavel Vlassov regressou a casa embriagado. Cambaleante, entrou na sala batendo com o punho na mesa e gritando como fazia o pai:11- O jantar!A me aproximou-se, sentou-se ao seu lado e abraando-o aproximou a cabea do filho do seu peito. Ele, apoiando a mo no ombro dela, empurrou-a, gritando:- V, me, despache-se!- Coitadinho! - disse ela numa voz triste e acariciante, ignorando a resistncia de Pavel.- E vou fumar! D-me o cachimbo do pai - grunhiu o rapaz; a lngua rebelde articulava com dificuldade.Era a primeira vez que se embriagava. O lcool tinha-lhe debilitado o corpo, mas no lhe tinha apagado a conscincia e na sua cabea formulava insistentemente uma pergunta:- Estou bbado...? Estou bbado...?Os afagos da me confundiam-no e a tristeza que via nos seus olhos deixava-o comovido. Apetecia-lhe chorar e, para vencer este desejo, fingiu estar mais embriagado do que narealidade estava.A me acariciava-lhe os cabelos, desgrenhados e empapados em suor, falando-lhe docemente:- No devias...As nuseas invadiram-no. Depois de uma srie de vmitos violentos, a me meteu-o na cama e cobriu-lhe a fronte lvida com uma toalha humedecida. Recomps-se um pouco, mas via tudo a girar sua volta, as plpebras pesavam-lhe, tinha na boca um gosto desagradvel e amargo. Olhava o rosto da me atravs das pestanas e pensava:"Ainda muito cedo para mim. Os outros bebem e no lhes acontece nada, mas a mim faz-me vomitar..."Ouvia a voz doce da me como se viesse de muito longe:- Como que me vais sustentar, se comeares a beber... Ele fechou os olhos e disse:- Todos bebem...Pelgia suspirou. Tinha razo. Ela bem sabia que no havia outro local, alm da taberna, onde ir buscar um pouco de alegria. Apesar disso, respondeu:- Mas tu no bebas! O teu pai j bebeu o bastante por12vocs os dois. E muito me fez sofrer... Podias ter pena da tua me.Pavel escutava estas palavras tristes e ternas. Recordava a existncia silenciosa e apagada da me, vivendo na expectativa angustiada das pancadas do marido. Nos ltimos tempos, Pavel raramente tinha estado em casa, a fim de evitar encontrar-se com o pai. Tinha abandonado um pouco a me. E agora, recuperando devagar os sentidos, olhava-a fixamente.Era alta e ligeiramente encurvada. O corpo, desgastado por um trabalho incessante e pelos maus tratos do marido, movia-se em silncio, de esguelha, como se receasse tropear nalguma coisa. O rosto largo, sulcado de rugas, um pouco inchado, era iluminado por dois olhos escuros, tristes e inquietos, como os da maioria das mulheres do bairro. Uma cicatriz profunda elevava levemente a sobrancelha direita e tambm parecia que a orelha desse lado estava colocada mais acima do que a outra; dava o ar de estar sempre de ouvido escuta. As cs contrastavam com o farto cabelo negro. Toda ela era doura, tristeza, resignao...As lgrimas corriam-lhe lentamente pela face.- No chores mais! - disse docemente o filho. - D-me de beber.- Vou buscar-te gua com gelo.Mas quando Pelgia regressou, ele tinha adormecido. Ela cleixou-se ficar um instante imvel junto dele. O jarro tremia na sua mo e o gelo tilintava suavemente no bordo. Pousou a vasilha sobre uma mesa e ajoelhou-se em silncio diante dos cones. As vidraas das janelas vibravam com os gritos dos bbados. Na obscuridade e na nvoa daquela noite de Outono, gemia um acordeo. Algum cantava em voz alta. Algum praguejava, gritando palavres. Ouviam-se vozes de mulheres inquietas, irritadas, cansadas...Na pequena casa dos Vlassov a vida continuou, mais tranquila, com mais paz do que outrora e de um modo um pouco diferente do das outras casas. O prdio ficava ao fundo da rua principal, junto de uma ladeira ngreme que terminava13num pntano. Um tero da casa era ocupado pela cozinha, que um tabique separava de um quarto pequeno onde a me dormia. O resto era um quarto quadrado com duas janelas. Num canto estava a cama de Pavel, no outro uma mesa e dois bancos. Algumas cadeiras, uma cmoda para a roupa encimada por um pequeno espelho, um ba, um relgio de parede e dois cones noutro canto. Era tudo.Pavel fez tudo o que era habitual num rapaz. Comprou um acordeo, uma camisa com peitilho engomado, uma gravata berrante, botas de borracha, uma bengala, tornando-se assim mais um, no meio dos jovens da sua idade. Foi a festas, aprendeu a danar a quadrilha e a polca, ao domingo regressava a casa depois de ter bebido muito e continuava a suportar mal o vodka. No dia seguinte tinha dores de cabea, ardia-lhe o estmago, estava lvido e abatido.Um dia, a me perguntou-lhe:- Ento, divertiste-te muito ontem?Ele respondeu, carrancudo e irritado:- Aborrec-me de morte! Ser melhor passar a ir pescar; ou ento compro uma espingarda.Trabalhava com zelo, sem ausncias nem reprimendas. Era taciturno, e os seus olhos azuis, grandes como os da me, expressavam um permanente descontentamento. No comprou a espingarda, nem foi pesca, mas afastou-se cada vez mais do modo de vida que levavam os outros jovens. Passou a frequentar as festas cada vez menos e, onde quer que fosse aos domingos, regressava a casa sem ter bebido. A me, que o observava atentamente, via vincarem-se as feies no rosto moreno do filho. A sua expresso tinha-se tornado mais grave, e os lbios tinham adquirido um vinco de estranha severidade.Parecia cheio de uma clera surda, ou minado por alguma enfermidade. Outrora, os companheiros vinham visit-lo, mas agora, como nunca o encontravam em casa, tinham deixado de aparecer. A me via com prazer que Pavel j no imitava os rapazes da fbrica, mas quando se apercebeu da14sua obstinao em escapar corrente sombria da vida comum, o seu corao pressentiu um perigo obscuro.- No te sentes bem, Pavel? - perguntava-lhe s vezes.- Sim, estou bem - respondia.- Ests to magro! - suspirava ela.Comeou a trazer livros e a l-los s escondidas. A seguir fechava-os em qualquer stio. s vezes, copiava uma passagem num pedao de papel, que tambm escondia.Falavam pouco um com o outro. De manh ele tomava o ch sem falar e saa para o trabalho. Mal se viam. Ao meio-dia ia almoar a casa. Trocavam algumas palavras insignificantes e desaparecia novamente at noite. Terminado o dia de trabalho lavava-se cuidadosamente, comia a sopa e depois ficava durante muito tempo a ler os seus livros. Ao domingo, saa de manh e s regressava cada a noite. Pelgia sabia que ele ia cidade, que frequentava o teatro, mas no vinha ningum da cidade visit-lo. Parecia-lhe que quanto mais o tempo passava, menos comunicativo o filho ia ficando, notando ao mesmo tempo que, em certas ocasies, ele usava palavras novas que ela no compreendia, enquanto as expresses brutais e grosseiras tinham desaparecido da sua linguagem. No seu comportamento havia muitos pormenores que chamavam a ateno de Pelgia. Deixou de aperltar-se, mas passou a ser mais cuidadoso com a limpeza do corpo e das roupas. A sua forma de andar tornou-se mais livre e solta e a sua aparncia mais simples e doce. A me preocupava-se. Na sua atitude em relao a ela havia tambm algo de novo. s vezes varria o quarto, aos domingos ele mesmo fazia a sua cama, e esforava-se por alivi-la do trabalho. Mais ningum procedia assim no bairro...Um dia pendurou na parede um quadro que representava trs pessoas que caminhavam com ligeireza e conversavam.- Cristo ressuscitado a caminho de Emas - explicou Pavel.Pelgia gostou do quadro, mas pensou: "Veneras Cristo mas no vais igreja..."15A quantidade de livros aumentava de dia para dia sobre a bela prateleira que um carpinteiro, amigo de Pavel, tinha fabricado. A casa comeava a tomar um aspecto agradvel.Ele tratava-a por "senhora" e chamava-lhe "me", dirigindo-lhe s vezes palavras afectuosas:- Eu hoje volto tarde, me, no fique preocupada.Sob estas palavras, ela pressentia que existia alguma coisa forte e sria que lhe agradava.Mas a sua inquietao aumentava, e o tempo no passava de maneira a deix-la mais tranquila. O pressentimento de alguma coisa extraordinria rondava o seu corao. Por vezes, ficava aborrecida com o filho e pensava:"Os homens devem viver como homens, mas este porta-se como se fosse um monge... demasiado srio... No parece um rapaz da idade dele..."E questionava-se:"Ter, talvez, uma namorada..."Mas para ter uma amiguinha era necessrio dinheiro, e ele entregava-lhe o seu salrio quase por completo.Assim se passaram semanas, meses, dois anos de uma vida estranha, silenciosa, cheia de pensamentos obscuros e de medos cada vez mais terrveis.IVUma noite, depois do jantar, Pavel, fechando as cortinas das janelas, sentou-se num canto e ps-se a ler sob o candeeiro de petrleo pendurado na parede acima da sua cabea. A me, tendo acabado de lavar a loia, saiu da cozinha e aproximou-se no seu passo hesitante. Ele levantou a cabea e olhou-a com ar interrogativo:- No... no nada, Pavel, sou eu - disse ela, e afastou-se rapidamente, a testa enrugada e um ar confuso. Por um momento deixou-se ficar imvel, no meio da cozinha, pensativa,16preocupada. Lavou as mos vagarosamente e voltou para junto do filho.- Queria perguntar-te - disse em voz muito baixa - o que que ests sempre a ler.Ele largou o livro.- Sente-se, me.Sentou-se pesadamente ao lado dele, e endireitou-se, esperando que algo de grave acontecesse. Sem a olhar, a meia-voz e, sem saber porqu, num tom brusco, Pavel comeou a falar.- Leio livros proibidos. proibido l-los porque dizem a verdade sobre a nossa vida de operrios... So impressos em segredo e se os encontrarem aqui, metem-me na cadeia... na priso, porque quero saber a verdade. Compreende?Ela sentiu subitamente dificuldade em respirar e fixou no filho os olhos espantados. Ele pareceu-lhe diferente, estranho. Tinha uma voz diferente, mais baixa, mais cheia, mais sonora. Com os dedos afilados, retorcia o bigode ainda ralo de adolescente e o olhar vago, sob as sobrancelhas, perdia-se no vazio. Sentiu-se invadida por um sentimento de medo e de piedade pelo filho.- Porque fazes isso, Pavel? - perguntou.Ele levantou a cabea, olhou-a de relance e, sem levantar a voz, respondeu tranquilamente:- Quero saber a verdade.A voz de Pavel era baixa mas firme e os olhos dele brilhavam de obstinao. No seu corao, ela compreendeu que o filho se tinha dedicado para sempre a qualquer coisa terrvel e misteriosa. Ao longo da vida sempre tudo lhe tinha parecido inevitvel. Estava acostumada a submeter-se sem reflectir e apenas foi capaz de chorar, de mansinho, sem encontrar palavras, o corao apertado de angstia.- No chore! - disse Pavel. Mas me parecia que a sua voz suave encerrava uma despedida.- Raciocine. Que vida a nossa? A me tem quarenta anos. Pode, por acaso, dizer que viveu verdadeiramente? O17pai batia-lhe... agora compreendo que ele se vingava em si da sua prpria misria, da misria da vida que o sufocava sem que ele compreendesse porqu. Trabalhou trinta anos. Comeou quando a fbrica era apenas dois edifcios e agora j so sete!Ela escutava num misto de terror e avidez. Os olhos do filho brilhavam, belos e claros. Apoiando o peito sobre a mesa, tinha-se aproximado da me e, quase tocando o seu rosto banhado em lgrimas, contava-lhe pela primeira vez tudo o que tinha aprendido. Com toda a f da juventude e o ardor do discpulo, orgulhoso dos seus conhecimentos em cuja verdade acreditava religiosamente, ele falava de tudo o que para ele era evidente. Falava no entanto menos para a me do que para se certificar das suas prprias convices. Detinha-se, aqui e acol, quando lhe faltavam as palavras e, ento, via o rosto aflito onde brilhavam uns olhos bondosos, cheios de lgrimas, de terror e de perplexidade. Teve pena da me, mas continuou a falar, s que agora era dela e da sua vida que ele falava.- Que alegrias teve a me? Diga-me, que houve de bom em toda a sua vida?Ela escutava e abanava tristemente a cabea. Experimentava uma sensao nova que no conhecia, de alegria e de dor, que afagava deliciosamente o seu corao sofrido. Era a primeira vez que ouvia falar dela mesma e cia sua vida naqueles termos, e aquelas palavras despertavam nela pensamentos vagos, adormecidos havia muito tempo. Reavivavam devagarinho o sentimento extinto de uma insatisfao obscura em relao existncia, reanimavam as ideias e impresses de uma longnqua juventude. Falou da sua infncia, das suas amigas, falou longamente de tudo, mas, tal como elas, apenas sabia lamentar-se. Jamais ningum lhe explicara porque que a vida era to penosa e difcil. E agora o seu filho aii estava, sentado junto dela, e tudo o que os seus olhos diziam, o seu rosto, as suas palavras, tudo chegava ao seu corao enchendo-a de orgulho perante o filho que com-preendia to bem a vida da sua me, que lhe falava dos seus sofrimentos e a lamentava.As mes, ningum as lamenta.Ela sabia-o. Tudo o que Pavel dizia sobre a vida das mulheres era verdade, a amarga verdade. No seu peito palpitava uma infinidade de doces sensaes, cuja ternura desconhecida confortava o seu corao.- E ento, que pensas fazer?- Aprender, e em seguida ensinar os outros. Ns, os operrios, devemos estudar. Devemos saber, devemos compreender onde est a origem da dureza das nossas vidas.Era agradvel para a me ver os olhos azuis do filho, sempre srios e severos, brilharem agora com tanta ternura e afecto. Nos lbios de Pelgia surgiu um leve sorriso de alegria, enquanto algumas lgrimas tremiam ainda nas rugas da sua face. Sentia-se interiormente dividida. Estava orgulhosa do filho, que to bem compreendia as razes da misria da vida, mas no podia esquecer a juventude dele, que ele no falava como os seus companheiros e que tinha tomado a deciso de lutar sozinho contra a vida rotineira que os outros levavam, e ela tambm. Quis dizer-lhe: "Mas, meu filho... que podes tu fazer?"Pavel viu o sorriso nos lbios da me, a ateno no seu rosto, o amor nos seus olhos; acreditou ter-lhe feito compreender a sua verdade, e o orgulho juvenil na fora de persuaso da sua palavra exaltou a sua f em si mesmo. Falava, excitado, ora sarcstico ora franzindo as sobrancelhas. Por vezes o dio ressoava na sua voz, e quando a me ouvia aquele tom de voz cruel, abanava a cabea, espantada, e perguntava em voz baixa:- Isso verdade, Pavel?- , sim! - respondia ele com voz firme.Falava-lhe, ento, dos que queriam a felicidade do povo, que semeavam a verdade, e por causa disso eram perseguidos pelos inimigos da vida como se fossem animais selvagens, encarcerados, condenados a trabalhos forados.1819- Conheo essas pessoas - exclamou com ardor. - So as melhores do mundo!Mas a me continuava assustada, e perguntou ao filho:- Pacha, isso verdade?Sentia-se insegura. Sem foras, escutava o que Pavel contava sobre aquelas pessoas, para ela difceis de compreender, que tinham ensinado ao seu filho um modo de falar e de pensar to perigoso para ele.- quase manh, devias ir deitar-te - disse ela.- Vou j - e inclinando-se para ela, perguntou:- Compreendeu o que lhe disse?- Compreendi! - murmurou a me. Estava de novo a chorar, e acrescentou num soluo:- Tu vais perder-te!Ele levantou-se e deu alguns passos na sala.- Bem, agora j sabe o que fao e para onde vou. Contei-lhe tudo... Suplico-lhe, me, se me tem amor, que no tente impedir-me...- Meu filho! - exclamou ela. - Talvez tivesse sido melhor que no me tivesses dito nada...Ele pegou-lhe numa mo e apertou-a com fora entre as suas.Ela comoveu-se com a palavra "me", que ele tinha pronunciado com tanto calor, e com aquele apertar de mos, novo e estranho.- Nada farei para te contrariar - disse com a voz trmula. - Apenas quero que tenhas cuidado, que tenhas muito cuidado!Sem saber com que que ele devia ter cuidado, acrescentou tristemente:- Ests cada vez mais magro...E, envolvendo o corpo robusto e bem proporcionado do filho num olhar quente e terno, disse-lhe rapidamente e em voz baixa:- Que Deus te proteja! Faz o que entenderes, que eu no te impedirei. S te peo uma coisa: que sejas prudente quan-20do falares com os outros. preciso desconfiar. Eles odeiam-se uns aos outros. So vidos e invejosos... Gostam de fazer mal. Se comeas a dizer-lhes as tuas verdades, a julg-los, vo detestar-te e tudo faro para causar a tua perda.De p, junto da porta, Pavel escutava, sorrindo, estas palavras amargas.- As pessoas so ms, verdade. Mas quando aprendi que havia uma verdade sobre a Terra, elas tornaram-se um pouco melhores.Sorriu de novo.- Eu mesmo no compreendo como que isto aconteceu. Desde criana que sempre tive medo de toda a gente. Quando cresci, dei por mim a odiar uns pela sua cobardia, outros no sei por qu, por nada... e agora vejo-os com outros olhos, tenho pena deles, acho eu... no sei como foi, mas o meu corao enterneceu-se quando compreendi que nem todos so responsveis pela sua baixeza...Calou-se por um instante, parecendo escutar algo dentro de si mesmo e depois continuou, pensativo:- Foi assim que se me revelou a verdade! Ela levantou os olhos at ele e murmurou:- Como ests mudado, e como eu receio essa tua mudana, oh, meu Deus!Quando o filho se deitou e adormeceu, a me levantou-se sem fazer barulho e aproximou-se devagarinho da cama dele. Pavel dormia deitado de costas, e o seu rosto moreno, obstinado e severo, desenhava-se na brancura da almofada. De mos cruzadas sobre o peito, descala e em camisa, a me ficou junto da cama do seu filho. Ia movendo os lbios em silncio e dos seus olhos, uma aps outra, lentamente, corriam grossas lgrimas de angstia.21E a vida deles prosseguia, silenciosa. De novo se sentiam simultaneamente afastados e prximos um do outro.Num dia de festa, a meio da semana, Pavel, prestes a sair, disse me:- No prximo sbado viro convidados da cidade.- Da cidade? - repetiu a me, e repentinamente comeou a soluar.- Ento, me, porque que est a chorar? - perguntou Pavel aborrecido.Ela suspirou, enxugando o rosto com o avental.- No sei... por nada.- Tem medo?- Tenho - confessou.Inclinando-se para ela, ele disse-lhe em voz irritada como a de uma criana:- Todos rebentamos de medo! E os que mandam em ns aproveitam-se desse medo para nos assustarem ainda mais.A me gemeu:- No te zangues! Como podia eu no ter medo? Toda a minha vida tive medo!Ele respondeu a meia-voz, mais calmo:- Desculpe. No sei reagir de outra maneira. Depois saiu.Ela tremeu durante trs dias. O corao parava de bater sempre que se lembrava que "aquelas pessoas" viriam a sua casa. Estranhos que deviam ser temveis... Tinham sido eles que tinham mostrado ao seu filho o caminho que ele agora seguia...No sbado tarde, Pavel voltou da fbrica, lavou-se, mudou de roupa e saiu de novo, dizendo sem olhar para a me:- Se eles chegarem, diga-lhes que no demoro. E, por favor, no tenha medo...Ela deixou-se cair sem foras sobre o banco. Pavel franziu as sobrancelhas e sugeriu-lhe:22- Talvez... a me prefira sair?Ela sentiu-se vexada. Abanou negativamente a cabea.- No! Porque havia de sair?Estava-se em fins de Novembro. Durante o dia tinha cado, sobre o solo gelado, uma neve fina como poeira, que ela ouvia agora ranger sob os passos de Pavel, que se afastava. Nas vidraas das janelas acumulavam-se as trevas espessas, inamovveis, hostis, vigilantes. A me, com as mos apoiadas sobre o banco, permanecia sentada e esperava, com os olhos postos na porta.Parecia-lhe que, no escuro, seres malvados envergando estranhas vestimentas convergiam de todos os lados em direco casa. Avanavam a passo de lobo, encurvados e olhando em redor. Havia mesmo algum que rondava a casa, tacteando a parede com as mos...Ouviu-se um assobio. No silncio, soou como um silvo breve, triste e melodioso, como se vagueasse meditando no vazio das trevas. Ia-se aproximando como se procurasse qualquer coisa. Subitamente, desapareceu sob a janela, como se tivesse penetrado na madeira do tabique.Ouviram-se passos arrastados na entrada. A me estremeceu e, com os olhos dilatados, ps-se em p.A porta abriu-se. Primeiro apareceu uma cabea coberta por um enorme gorro de peles, depois um corpo alto, encurvado, deslizou lentamente, endireitou-se, ergueu sem pressa o brao direito e, suspirando ruidosamente, com uma voz vinda do mais fundo do peito, disse:- Boa noite!A me inclinou-se sem pronunciar uma palavra.- O Pavel no est?O homem despiu lentamente o casaco forrado, levantou um p, sacudiu com o gorro a neve da bota. Repetiu o mesmo gesto com a outra bota, atirou o gorro para um canto e, balanando-se sobre as pernas altas, entrou na sala. Aproximou-se de uma cadeira, examinou-a como para se certificar da sua solidez, finalmente sentou-se e, levando a mo boca,23bocejou. Tinha a cabea redonda e o cabelo rapado, as faces barbeadas e compridos bigodes de pontas pendentes. Inspeccionou o aposento com os seus grandes olhos cinzentos, salientes, cruzou as pernas e perguntou, baloiando-se na cadeira:- A cabana vossa, ou alugada?Pelgia, sentada sua frente, respondeu:- Alugada.- No grande coisa - observou ele.- O Pavel deve estar a chegar. Por favor, aguarde - disse ela num fio de voz.- isso mesmo que estou a fazer - respondeu tranquilamente o homenzarro.A sua calma, a voz doce e a simplicidade daquele rosto encorajaram a me. O homem olhava-a de frente, com um ar bondoso. Uma luzinha de alegria bailava no fundo daqueles olhos transparentes e em toda a sua angulosa pessoa, encurvada, de pernas altas, havia algo de divertido que predispunha a seu favor. Vestia uma camisa azul e calas pretas metidas nas botas. A me teve vontade de lhe perguntar quem era, donde vinha, se j conhecia o seu filho h muito tempo, mas subitamente o desconhecido balanou o corpo e perguntou-lhe:- Quem que lhe fez essa cicatriz na testa, mezinha?O tom era familiar e nos olhos brilhava um sorriso. Mas a pergunta irritou Pelgia. Apertou os lbios e, depois de um momento de silncio, respondeu com fria cortesia:- Que que isso lhe interessa, meu caro senhor? Ele voltou para ela o corpo alto.- V l, no se aborrea! Fiz-lhe essa pergunta porque a minha me adoptiva tambm tinha um buraco na testa, como o seu. Foi o marido dela, um sapateiro, que lho fez com uma sovela. Ela era lavadeira e ele sapateiro. Depois de me ter adoptado encontrou aquele bbado no sei onde, e foi a desgraa dela. Ele espancava-a e no vale a pena dizer mais nada. Eu tinha um medo dele...24A me ficou desarmada com a franqueza dele, e pensou que por certo Pavel ficaria irritado por ela ter manifestado mau humor em relao quele ser original. Sorriu, pouco vontade:- No estou aborrecida, mas voc fez-me a pergunta assim... to de repente... Foi o meu marido quem me ofereceu esta prenda. Deus tenha piedade da sua alma! Voc trtaro, no ?As pernas altas sobressaltaram-se, e o rosto iluminou-se num largo sorriso em que at as orelhas se alongaram para a nuca. Depois, disse muito srio:- No, ainda no sou.- Mas fala de uma maneira que no parece a de um russo!- explicou ela, sorrindo e compreendendo o gracejo.- melhor que a de um russo - gritou alegremente o visitante, abanando a cabea. - Sou Ucraniano, mais propriamente Pequeno Russo, da cidade de Kaniev.- H muito tempo que veio para c?- Vivo na cidade h quase um ano, e h um ms que estou na fbrica. Encontrei l gente boa, o seu filho e outros... Quero ficar por c! - disse retorcendo o bigode.Ele agradava-lhe e, grata pela boa opinio que tinha do seu filho, deu livre curso vontade de lho demonstrar:- Quer tomar um pouco de ch?- Quero, mas no vou tom-lo sozinho! - respondeu, encolhendo os ombros. - Dar-nos- essa honra quando todos tiverem chegado...O medo regressou."Se todos forem como ele...", desejou esperanada.Novamente se ouviram passos no vestbulo, a porta abriu-se rapidamente e a me levantou-se. Mas, para seu grande espanto, entrou uma jovem, pequena, com um rosto simples de camponesa e uma espessa trana de cabelos louros.- Estou atrasada?- De modo algum! - respondeu o Ucraniano, que no tinha sado da sala. - Vieste a p?25- Claro! A senhora a me de Pavel? Boa noite, chamo-me Natacha.- E qual o seu patronmico?- Vassilievna. E o da senhora?- Pelgia Nilovna.- Bom, agora j nos conhecemos.- Sim - disse a me com um leve suspiro. Sorrindo, examinou a jovem.O Ucraniano ajudou-a a tirar o sobretudo.- Est frio?- Sim, l fora est muito frio. O vento sopra...Tinha uma voz sonora e clara, a boca era pequena e carnuda, toda ela era rolia e fresca. Depois de tirar o sobretudo, esfregou vigorosamente as faces rosadas com as pequenas mos, roxas do frio, e entrou rapidamente no quarto fazendo soar os taces das botinas sobre o soalho."No tem galochas" -, pensou a me.- Estou completamente gelada... - disse a rapariga, arrastando as palavras e tremendo.- Vou preparar-lhe um ch! - disse a me, com vivacidade, dirigindo-se para a cozinha. - Ele ir aquec-la.Parecia-lhe conhecer a jovem havia j muito tempo, e que j gostava dela com o afecto de uma me bondosa e compreensiva. Sorrindo, ia prestando ateno conversa que se desenrolava na sala.- No ests com um ar alegre, Nakhodka.- Assim, assim... - respondeu o Ucraniano a meia-voz. Esta viva tem olhos doces, e estava a pensar que os da minha me talvez sejam parecidos. Penso muitas vezes na minha me, e acredito que esteja viva.- No disseste que ela tinha morrido?- No, essa era a minha me adoptiva. Refiro-me minha verdadeira me. Imagino que pede esmola em qualquer lugar, em Kiev. E que bebe vodka... E que, quando est bbada, os "chuis" a desancam."Pobre homem!" -, pensou a me, suspirando.Natacha ps-se a falar depressa, acaloradamente, mas em voz baixa. Depois, ressoou novamente a voz sonora do Ucraniano:- s muito jovem, camarada, e ainda no viveste bastante. Pr um filho no mundo difcil, mas educ-lo convenientemente ainda mais duro."Ora vejam!", pensou a me. Tinha vontade de dizer uma palavra amvel ao Ucraniano. Mas a porta abriu-se devagar e entrou o filho do velho ladro Danilo Vessovchikov. Todo o bairro considerava Nikolai Vessovchikov um urso, conservava-se afastado dos demais, era insocivel, e toda a gente troava dessa sua maneira de ser.Admirada, Pelgia perguntou-lhe:- Que queres, Nikolai?Ele enxugou o rosto gelado, de mas salientes, com a grande palma da mo, e sem dar as boas-noites, perguntou numa voz surda:- O Pavel no est? -No.Deitou uma olhadela sala e entrou.- Boa noite, camaradas. "Tambm ele?", pensou a me com hostilidade, e ficou muito surpreendida por ver Natacha estender-lhe a mo com um ar alegre e afectuoso.Depois, chegaram dois rapazes muito jovens, quase crianas. Pelgia conhecia um deles, Theo, sobrinho de um velho operrio na fbrica chamado Sizov. Tinha feies angulosas, a testa alta e os cabelos ondulados. No conhecia o outro, de cabelo liso e aspecto modesto, mas tambm este no tinha um aspecto de meter medo. Finalmente, chegou Pavel, acompanhado de dois amigos que ela conhecia, operrios na fbrica. O filho disse-lhe com amabilidade:- Fizeste ch? Obrigado.- preciso ir comprar vodka? - perguntou ela, sem saber como lhe manifestar o sentimento de gratido que experimentava insconscientemente.27- No, no preciso - respondeu Pavel, sorrindo-lhe com doura.Subitamente, ocorreu-lhe que o filho tivesse propositadamente exagerado o perigo daquela reunio, para troar dela.- So estas as pessoas perigosas? - perguntou em voz baixa.- Pode ter a certeza! - disse Pavel, entrando na saleta.- Se assim! - respondeu ela divertida, mas pensando com os seus botes:"Continua a ser uma criana!"VIA gua fervia no samovar, e ela trouxe-o para o quarto. Os convidados apertaram-se volta da mesa, e Natacha, com um livro na mo, tinha-se sentado a um canto, sob o candeeiro.- Para compreender por que razo as pessoas vivem to mal... - disse Natacha.- E porque que essas mesmas pessoas so to maldosas... - interveio o Ucraniano.- necessrio ver como comearam a viver...- Olhem, meus filhos, olhem! - murmurou a me, enquanto preparava o ch.Calaram-se todos.- Que diz, mezinha? - perguntou Pavel, de sobrancelhas franzidas.- Eu? - vendo todos os olhos fixos nela, a me justificou-se atabalhoadamente. - No estava a dizer nada... bem... no era nada.Natacha desatou a rir, e Pavel sorriu, enquanto o Ucraniano dizia:- Obrigado pelo ch, mezinha.- Ainda no o beberam e j esto a agradecer! - replicou28ela. Em seguida, olhando para o filho, acrescentou: - Estou a incomod-los?Foi Natacha quem respondeu:- Como poderia a dona da casa incomodar as visitas? E pediu num tom infantil e queixoso:- D-me j o ch, minha boa Pelgia! Estou a tiritar... Tenho os ps gelados.- para j, para j - disse a me com vivacidade.Natacha bebeu o seu ch, suspirou profundamente, afastou a trana por cima do ombro e comeou a ler um livro ilustrado, de capa amarela. A me esforava-se por no fazer rudo com as chvenas, servia o ch e escutava atentamente a voz harmoniosa e clara da rapariga, acompanhada pela doce cano do samovar. Numa sequncia magnfica, desenrolava-se a histria dos homens primitivos e selvagens, que viviam em cavernas e derrubavam os animais ferozes pedrada. Era como um conto maravilhoso, e Pelgia dirigiu vrias vezes um olhar ao filho, desejosa de lhe perguntar o que que havia naquela histria que fosse proibido.Mas em breve se cansou de seguir o fio narrativa e ps-se a observar os convidados.Pavel estava sentado ao lado de Natacha e era o mais belo de todos. A jovem, inclinada sobre o livro, puxava continuamente para trs os cabelos que lhe caam sobre a testa. Sacudia a cabea e, baixando a voz, abandonava o livro para fazer alguns comentrios da sua lavra, enquanto o olhar deslizava com doura sobre os rostos dos seus ouvintes. O Ucraniano apoiava o peito largo no canto da mesa, entortanto os olhos num esforo para ver as pontas rebeldes dos bigodes. Vessovchikov estava sentado numa cadeira, rgido como um manequim, as mos pousadas sobre os joelhos, o rosto impvido, desprovido de sobrancelhas, os lbios delgados, imvel como uma mscara. Os olhos semicerrados, olhavam obstinadamente a cintilao do brilho do cobre do samovar, parecendo no respirar. O pequeno Theo escutava a leitura, movendo silenciosamente os lbios, como se repe-29tisse as palavras do livro, enquanto o seu camarada, inclinado, apoiando os cotovelos nos joelhos, as faces encostadas s palmas das mos, sorria pensativo. Um dos rapazes que chegaram com Pavel era ruivo, de cabelo encaracolado, e estava ansioso por falar, agitando-se com impacincia. O outro, de cabelo louro muito curto, passava a mo pela cabea, inclinava a testa quase at ao cho, no se lhe via a cara. Estava-se bem na sala. A me sentia um bem-estar especial, desconhecido at ento, e enquanto Natacha prosseguia a leitura, ela recordava as festas ruidosas da sua juventude, as palavras grosseiras dos jovens, que exalavam um hlito a lcool, e as suas brincadeiras estpidas.Estas recordaes provocavam-lhe um sentimento de piedade por si mesma que lhe roa surdamente o corao.A sua imaginao reconstituiu o pedido de casamento feito pelo seu defunto marido. Durante uma reunio tinha-a abraado na obscuridade da entrada, apertando-a com todo o seu corpo contra a parede, e com voz surda e irritada tinha-lhe perguntado:- Queres casar comigo?Ela sentiu-se ofendida. Ele magoava-a oprimindo-lhe o peito. A respirao ofegante dele lanava-lhe no rosto um bafo quente e hmido. Tentou libertar-se, fugir.- Onde vais? - rugiu ele. - Aceitas ou no? Sufocando com a vergonha e profundamente ferida, ela calou-se. Algum abriu a porta do vestbulo, ele soltou-a sem pressa, e disse:- No domingo mando-te a casamenteira... Tinha cumprido.Pelgia fechou os olhos e soltou um profundo suspiro...- Subitamente, ouviu-se a voz irritada de Vessovchikov.- No preciso de saber como que os homens viviam antigamente. O que me interessa saber como devem viver agora!- isso mesmo! - disse o ruivo, levantando-se.- No concordo! - gritou Theo.30Estalou a discusso. As exclamaes brotavam como lnguas de fogo numa fogueira. A me no compreendia porque que gritavam. Todos os rostos estavam vermelhos com a excitao, mas ningum se injuriava nem pronunciava as palavras grosseiras a que ela estava habituada."Esto embaraados com a presena da jovem", pensou.Agradava-lhe observar o rosto srio de Natacha, que os olhava com ateno, como uma me olha os seus filhos.- Esperem, camaradas - disse subitamente a jovem. Calaram-se todos, olhando para ela.- Os que dizem que devemos saber tudo, dizem a verdade. A luz da razo deve iluminar-nos. Se queremos esclarecer os que esto nas trevas, devemos estar preparados para sermos capazes de responder a todas as perguntas, de uma forma honesta e verdadeira. Devemos conhecer toda a verdade e toda a mentira...O Ucraniano escutava, inclinando a cabea ao ritmo das frases. Vessovchikov, o ruivo e o operrio que tinha chegado com Pavel formavam um grupo parte, e a atitude deles desagradava me sem que ela soubesse porqu.Quando Natacha terminou, Pavel levantou-se e perguntou tranquilamente:- Ser que tudo o que esperamos da vida comer e beber at nos fartarmos? No! - respondeu ele sua prpria pergunta, olhando os trs homens com firmeza. - Devemos mostrar aos que nos tm amarrados pelos colarinhos e nos tapam os olhos que vemos tudo, que no somos nem idiotas nem brutos, e que o que queremos no apenas comer mas viver uma vida digna de ser vivida. Devemos mostrar aos nossos inimigos que a vida de forados que nos impem no nos impede de nos medirmos com eles em inteligncia, e mesmo de nos elevarmos muito mais alto do que eles!A me escutava e estremecia de orgulho de o ouvir falar to bem.- H muitos velhacos, mas pouca gente honrada - disse o Ucraniano. - Atravs do pntano que a nossa vida podre,31devemos constuir uma ponte que nos conduza a um mundo novo onde reine a fraternidade. esta a nossa tarefa, camaradas.- Quando chega o momento de lutar no h tempo para limpar as armas - respondeu Vessovchikov.Passava da meia-noite quando se separaram. Os primeiros a sair foram Vessovchikov e o ruivo, o que desagradou me."Esto cheios de pressa!", pensou, hostil, respondendo -boa noite- deles.- Acompanha-me, Nakhodka? - perguntou Natacha.- Decerto - respondeu o Ucraniano.Enquanto Natacha vestia o sobretudo na cozinha, a me disse-lhe:- Essas meias so muito finas para o frio que faz. Se quiser posso fazer-lhe umas de l.- Obrigada, Pelgia, mas as meias de l picam! - respondeu Natacha rindo.- Far-lhe-ei umas que no piquem.Natacha olhou para ela piscando um pouco os olhos e aquele olhar fixo perturbou a me, que acrescentou em voz baixa:- Desculpe a minha tolice... era com todo o corao...- Que boa que ! - respondeu docemente Natacha, apertando-lhe a mo.- Boa noite, mezinha! - disse o Ucraniano olhando-a de frente. Em seguida inclinou-se e saiu atrs de Natacha.A me olhou o filho que sorria, de p na ombreira.- De que ests a rir? - perguntou desconcertada.- De nada... estou contente!- Claro que estou velha e sou ignorante, mas sei compreender o que bom - observou ela, um tanto ofendida.- Tem razo - respondeu ele. - Vamos deitar-nos, j tarde.- Vou agora mesmo.Apressou-se a levantar a mesa, satisfeita, transpirando um32pouco, grata pela emoo que sentia. Estava feliz por tudo se ter passado to bem e sem incidentes.- Tiveste uma boa ideia, Pavel. O Ucraniano muito simptico. E a menina... Ela, sim, uma rapariga inteligente! Quem ela?- Uma professora primria - respondeu Pavel, enquanto dava largas passadas pela sala.- muito pobre! E estava to mal vestida... Com to pouca roupa... Deve ter muito frio. Onde esto os pais dela?- Em Moscovo. - Detendo-se em frente dela, Pavel acrescentou num tom grave:- Escute, me. O pai dela rico, vende ferro, tem muitas casas. Expulsou-a por ela ter escolhido esta forma de vida. Teve uma boa educao, foi mimada por toda a gente, e, como v, agora tem de caminhar mais de sete versts, de noite, sozinha...Estes pormenores comoveram Pelgia. De p, no meio do quarto, olhava para o filho sem dizer uma palavra, com as sobrancelhas arqueadas de espanto. Perguntou-lhe:- Ela vai para a cidade?- Sim.- Ah!... Ela no tem medo?- No, no tem medo - disse Pavel sorrindo.- Mas, porqu? Ela podia ter passado a noite aqui, dormia na minha cama...- Isso no assim to fcil. Podiam v-la sair amanh de manh, e isso no seria nada convete.A me olhou para a janela com ar pensativo, e disse com doura:- No compreendo, Pavel, o que que possa haver de perigoso, de proibido... No h nada de mal em tudo isto, pois no?No estava segura, e esperava que o filho a tranquilizasse. Ele olhou-a nos olhos, serenamente.- No, no fizemos nada de mal. Mas mesmo assim, a priso que nos espera a todos, preciso que a me o saiba.33As mos da me tremiam. Com voz insegura, disse:- Mas, talvez... Se Deus quiser, isso no ir acontecer.- No! - disse ternamente o rapaz. - No quero enganada. Ns no escaparemos.Sorriu.- V para a cama, que deve estar cansada. Boa noite. Quando ficou s, aproximou-se da janela e ps-se a olhara rua. L fora estava frio e escuro. O vento varria a neve sobre os telhados das casitas adormecidas, batia nas paredes, sibilante, abatia-se sobre a terra e espalhava ao longo das ruas nuvens brancas de flocos de neve fina como poeira...- Jesus, tem piedade de ns - murmurou docemente a me.Sentia uma enorme vontade de chorar, e esta desgraa inevitvel, de que o seu filho tinha falado com tanta serenidade, tanta certeza, agitava-se dentro dela como uma borboleta nocturna, cega e desamparada. Diante dos seus olhos apareceu uma plancie nua, coberta de neve, onde, sibilante, o vento frio sopra e rodopia em turbilho, branco, inflexvel. No meio da plancie caminha, solitria e vacilante, uma pequena silhueta escura. O vento enrosca-se-lhe nas pernas, levanta-lhe as saias, fustiga-lhe a cara com pequenos e cortantes cristais de neve. Tem dificuldade em avanar, os ps afundam-se na camada espessa. Tem frio e medo. A rapariga, curvada, como um filamento de erva na imensa planura, amedrontada, apanhada no meio do louco revoltear do vento de Outono. direita, ergue-se sobre o pntano o muro sombrio formado pelo bosque de pinheiros e btulas geladas e despidas. Algures, longnquo, diante dela, o claro dbil das luzes da cidade.- Senhor, tende piedade de ns! - murmurou a me, tremendo de pavor.34VIIOs dias sucediam-se, um aps outro, como as contas de um baco, formando as semanas e os meses. Os camaradas de Pavel todos os sbados se reuniam em casa deste. Cada reunio era como um degrau numa escadaria de suave lanado que conduzia algures, longe, e que lentamente ia elevando aqueles que a iam subindo.Iam aparecendo caras novas. A pequena sala dos Vlassov ia-se tornando demasiado apertada, asfixiante. Natacha chegava enregelada, cansada, mas nunca deixando de trazer consigo inesgotveis reservas de alegria e entusiasmo.A me tinha-lhe feito umas meias, e ela mesma lhas calou. Natacha riu-se, mas logo o seu rosto se tornou pensativo, e murmurou:- A ama que tive tambm era assim, cheia de bondade. espantoso que o povo que leva uma vida to dura, to cheia de humilhaes, tem um corao maior, melhor que o dos outros.E fez um gesto com a mo, como se indicasse um lugar desconhecido, longe, muito longe...- A menina tambm muito boa - disse a me. - Deixou os seus pais, deixou tudo...No chegou a terminar o seu pensamento. Suspirou e ficou em silncio a olhar para Natacha; estava-lhe grata e no sabia porqu. Deixou-se ficar acocorada no cho, na frente dela, e a rapariga, inclinando a cabea, sorria, sonhadora.- Deixei os meus pais? - repetiu ela. - Isso no foi nada. O meu pai to grosseiro, o meu irmo tambm... e bebe. A minha irm mais velha uma infeliz. Casou com um homem muito mais velho do que ela, muito rico, maador, avarento. Da minha me que eu tenho pena. uma pessoa simples, como a senhora. pequena, como um ratinho, sempre a correr de um lado para outro, sempre com medo de toda a gente. s vezes desejaria tanto voltar a v-la!- Pobrezinha! - disse a me, movendo tristemente a cabea.35A jovem ergueu-se rapidamente e estendeu a mo, como para rejeitar alguma coisa.- Oh, no! Tambm tenho vivido momentos de tanta alegria, tanta felicidade!O seu rosto empalideceu, e os seus olhos brilharam. Pousou a mo no ombro da me e disse com uma voz profunda e intensa:- Se a senhora soubesse... se pudesse compreender a grandeza daquilo que ns estamos a fazer!Um sentimento prximo da inveja tocou o corao de Pelgia. Levantou-se e disse tristemente.-J sou muito velha para isso... e muito ignorante.Pavel tomava a palavra cada vez com mais frequncia, as suas discusses eram cada vez mais calorosas, e emagrecia. A me julgava notar que quando Pavel falava com Natacha, ou olhava para ela, o seu olhar geralmente severo se tornava mais doce, a sua voz se enternecia, todo ele parecia mais natural.-Queira Deus!", pensava ela. E sorria.Quando, no decorrer das reunies, as discusses ganhavam um tom mais caloroso, ou mesmo violento, o Ucraniano levantava-se e, balanando como o badalo de um sino, falava com a sua voz sonora e cadenciada. A simplicidade e a bondade das suas palavras conseguiam acalmar os nimos. Vessovchikov, sempre descontente, provocava uma atmosfera de tenso geral. Era ele e o ruivo Samoilov que iniciavam todas as disputas. Ivan Bukhine, o rapaz da cabea redonda e sobrancelhas louras que parecia ter sido lavado com lixvia, apoiava-os. lakov Somov, sempre lavado e bem penteado, falava pouco, com voz serena e grave. Ele e Theo Mazine, o jovem de testa alta, eram sempre da mesma opinio que Pavel e o Ucraniano.Por vezes, no lugar de Natacha, era Nicolai Ivanovitch quem vinha da cidade. Usava culos e uma barbinha clara. Era natural de uma qualquer provncia longnqua, e conservava a pronncia da sua terra. Tinha um ar distante. Falava36de coisas simples; da vida familiar, das crianas, do comrcio, da polcia, do preo do po e da carne, de tudo o que dizia respeito vida quotidiana. Em tudo descobria a hipocrisia, a desordem, qualquer coisa de estpido, por vezes ridculo, mas sempre nocivo para o povo. Parecia a Pelgia que ele vinha de muito longe, de outro reino, onde todos levavam uma vida honesta e fcil, enquanto a vida que viviam era para ele uma vida muito estranha que no conseguia aceitar. Era uma vida que lhe desagradava e suscitava nele um desejo calmo, mas obstinado, de reconstruir completamente a sociedade de acordo com as suas ideias. Era macilento, tinha finas rugas em torno dos olhos, a sua voz era suave e as mos eram clidas. Quando cumprimentava a me, envolvia-lhe toda a mo com os seus dedos vigorosos. Com esse gesto acalmava e tranquilizava o corao de Pelgia.Entre as pessoas que tambm vinham da cidade, uma das mais assduas era uma rapariga alta e bem feita, com uns olhos imensos que contrastavam no seu rosto magro e plido. Chamava-se Sachenka. No seu andar e nos seus gestos havia algo de masculino. Franzia as negras sobrancelhas com ar irritado, o seu nariz era direito e quando falava as suas delicadas narinas tremiam.Foi Sachenka a primeira a dizer, na sua voz brusca e sonora:- Ns somos socialistas...Quando a me ouviu esta palavra olhou para a rapariga, silenciosa e assustada. Ela tinha ouvido contar que os socialistas tinham morto o Czar. Tinha sido nos tempos da sua juventude. Dizia-se ento que os latifundirios, quando o Czar libertara os servos da terra, para se vingarem, tinham jurado no cortar o cabelo enquanto o no matassem. Por isso lhes chamavam socialistas. A me agora no conseguia compreender por que motivo o filho e os seus camaradas eram socialistas.Quando todos saram, dirigiu-se a Pavel:- verdade que s socialista, Pavlucha?- Sim - respondeu ele, franco e firme como sempre. Porqu?Ela suspirou profundamente, e continuou, baixando os olhos.- Como que pode ser, Facha? Eles esto contra o Czar, at j mataram um!Pavel deu alguns passos pelo quarto, passando a mo pelo rosto, sorriu e respondeu:- Talvez ns no precisemos de fazer isso.Por um longo momento Pavel falou com a me, com uma voz macia e tranquila. Ela olhava-o nos olhos, e pensava:"Ele no far mal a ningum. No seria capaz."Depois desse dia a terrvel palavra passou a repetir-se com frequncia, aos poucos foi perdendo a sua virulncia, e acabou por se tornar to familiar para os seus ouvidos como tantas outras palavras que no compreendia. Mas continuava a no gostar de Sachenka, e quando esta aparecia a me sentia-se inquieta, pouco tranquila.Uma noite disse ao Ucraniano, com um trejeito de desaprovao:- muito autoritria, esta Sachenka! Est sempre a dar ordens: "voc deve fazer isto, voc deve fazer aquilo..."O Ucraniano riu com gosto.- Bem observado! A mezinha tem razo. Ouviste, Pavel? E piscando o olho me, disse com um ar maroto:- assim, a nobreza! Pavel respondeu secamente:- uma boa rapariga.- Pois sim, confirmou o Ucraniano. S parece no compreender que enquanto ela deve, ns queremos e podemos.Puseram-se ento a discutir sobre outras coisas incompreensveis para a me.A me observou tambm que Sachenka era particularmente dura com Pavel, por vezes at violenta. Pavel sorria, calava-se e olhava para a rapariga com o mesmo doce olhar que antes havia tido para Natacha. Nada disto agradava a Pelgia.38s vezes a me surpreendia-se perante o jbilo ruidoso e comunicativo a que os mais jovens subitamente davam largas. Isto acontecia geralmente nas noites em que liam nos jornais alguma notcia sobre os movimentos operrios no estrangeiro. Ento, todos os olhos brilhavam de alegria, todos ficavam, estranha coisa, felizes como crianas, voltavam a ler a notcia com risos claros e satisfeitos, e davam palmadas amigveis nas costas uns dos outros.- Bravos camaradas alemes! - gritava um deles, embriagado de alegria.- Vivam os operrios de Itlia! - gritavam de outra vez. Enviavam estas aclamaes para longe, para amigos queos no conheciam nem compreendiam a sua lngua, e pareciam seguros de que esses desconhecidos os ouviriam e entenderiam o seu entusiasmo.O Ucraniano, de olhos brilhantes, cheio de um amor que abraava todos os seres, declarava:- Seria bom se lhes escrevssemos, hem? Para eles saberem que tm na Rssia amigos que professam a mesma f que eles, que vivem com os mesmos objectivos e se alegram com as suas vitrias!E todos, com um olhar sonhador e um sorriso nos lbios, falavam longamente dos franceses, dos ingleses, dos suecos, como se fossem amigos chegados, to prximos, to estimados que com eles partilhavam alegrias e tristezas.Nascia naquela pequena sala um sentimento de parentesco espiritual que unia os trabalhadores do mundo inteiro. Este sentimento, que a todos fazia vibrar num mesmo corao, era partilhado pela me, e embora o no compreendesse muito claramente bebia a alegria e a juventude deles e deixava-se embriagar com a sua fora e a sua esperana.- Como vocs so... todos iguais - disse um dia ao Ucraniano. - Para vocs todos so camaradas... os armnios, os judeus, os austracos... Vocs alegram-se e entristecem-se por todos eles.- Por todos, sim, mezinha, por todos! - exclamou ele. -39Para ns no existem naes nem raas, existem apenas camaradas e inimigos. Todos os proletrios so nossos camaradas, todos os ricos, todos os que governam, nossos inimigos. Quando olhamos o mundo com o corao e vemos como somos numerosos, ns, os operrios, e a fora que temos, sentimos uma alegria to grande que uma festa para as nossas almas. E o mesmo se passa, mezinha, com um francs ou um alemo que compreenda a vida, e um italiano alegra-se da mesma maneira. Somos todos filhos de uma s me, de um mesmo pensamento invencvel: o da fraternidade entre os trabalhadores de todos os pases. Este sentimento de fraternidade para ns um conforto, um sol a brilhar no cu da justia, e este cu est no corao do operrio; que lhe chame cada um como quiser, o socialista nosso irmo em esprito, agora e sempre, por todos os sculos dos sculos.Esta f infantil, mas inquebrantvel, manifestava-se dentro do pequeno grupo cada vez com mais frequncia, como uma fora crescente. E a me, medida que via este transbordar de esperana, sentia instintivamente que, na verdade, alguma coisa grande e resplandecente havia nascido no mundo, como um um sol, parecido com aquele que via no firmamento.Muitas vezes cantavam. Cantavam canes familiares com alegria e entusiasmo. Outras vezes entoavam canes novas, de uma singular beleza, mas com algo de estranhamente triste na melodia. Ento, baixavam a voz, gravemente, como se estivessem cantando um hino religioso. Uns rostos empalideciam, outros inflamavam-se, e daquelas estranhas palavras emanava uma fora imensa.Uma destas novas canes, sobretudo, inquietava e torturava Pelgia. No exprimia as tristes meditaes de uma alma ferida, errando solitria pelos caminhos sombrios de dolorosas incertezas, nem exprimia o desalento de uma alma abatida pela misria, aterrorizada, informe e sem cor. Tambm no ressoavam nela os suspiros angustiados de um coraoforte, obscuramente vido de espao, nem os gritos de desafio do audaz provocador, pronto a esmagar indistintamente o mal e o bem. Tambm no era o ressentimento cego do ofendido, capaz, por uma vingana, de arrasar tudo, mas impotente para criar o que quer que fosse. No havia nessa cano nenhum eco do velho mundo, do mundo dos escravos.As palavras duras e a melodia austera da cano no agradavam me, mas havia neste cntico uma fora maior do que as palavras e os sons, que ia para alm deles, e fazia despertar no corao o pressentimento de alguma coisa maior que o prprio pensamento. Isto era o que ela conseguia ler nos rostos, nos olhos dos jovens, o que sentia no peito deles e, vencida por uma misteriosa fora de atraco, escutava sempre aquela cano com uma ateno especial, com uma inquietao maior do que a habitual.Cantavam-na to suavemente como cantavam as outras, mas soava com mais fora e era como o ar de um dia de Maro, do primeiro dia de Primavera.- tempo de comearmos a cant-la pelas ruas - dizia, carrancudo, Vessovchikov.Quando o pai dele, mais uma vez, foi preso por roubo, declarou tranquilamente:- Agora j nos podemos reunir em minha casa.Quase todas as tardes, depois do trabalho, algum deles vinha a casa de Pavel. Liam juntos, copiavam passagens dos livros, andavam preocupados e no tinham tempo nem para se lavar. Jantavam e bebiam ch sem largar os panfletos, e as suas palavras eram cada vez mais incompreensveis para a me.- Precisamos de um jornal! - dizia Pavel muitas vezes.A vida tornava-se cada vez mais agitada e febril. Passavam cada vez mais rapidamente de um livro a outro, como abelhas de uma flor para outra flor.- Comeam a falar de ns - disse um dia Vessovchikov. Certamente no tardaro muito em prender-nos.4041- O destino da codorniz cair no lao - disse o Ucraniano.Este agradava cada vez mais a Pelgia. Quando a tratava por "mezinha", parecia-lhe que a suavidade de uma mo de criana lhe acariciava o rosto. Ao domingo, se Pavel estava ocupado, era ele quem rachava a lenha. Um dia chegou com uma tbua de madeira ao ombro, pegou no machado, e habilmente substituiu uma tbua que estava podre junto soleira da porta. De outra vez reparou a cerca, que estava a cair aos pedaos. Enquanto trabalhava, assobiava belas canes melanclicas.Um dia, Pelgia disse ao filho:- E se tomssemos o Ucraniano como pensionista? Para vocs seria melhor do que passarem a vida a correr de uma casa para a outra.- Porque h-de a me sobrecarregar-se de mais trabalho?- perguntou Pavel, encolhendo os ombros.- Que ideia! Trabalho tenho eu tido toda a vida sem saber porqu, bem posso t-lo por um bom rapaz.- A me faa como quiser - replicou Pavel -, se ele aceitar, eu ficarei contente.E o Ucraniano foi viver com eles.VIIIA pequena casa, no extremo do bairro, despertava as atenes. As suas paredes exteriores eram observadas por muitos olhares desconfiados. Sobre ela pairavam suspeitas, sobre ela se murmurava isto e aquilo. As pessoas tentavam descobrir o mistrio que encerrava. De noite, espreitavam pela janela. Outras vezes algum batia no vidro e em seguida fugia cobardemente, sem se mostrar.Um dia o estalajadeiro Beguntsov abordou Pelgia na rua. Era um velhinho de boa presena, que usava sempre umleno de seda preta volta do pescoo vermelho e flcido e um colete lils. Usava uns culos de aros de tartaruga encavalitados sobre o nariz pontiagudo e luzidio, o que lhe valera a alcunha de "olhos de osso." Dirigiu-se-lhe com uma avalancha de palavras secas e crepitantes como lenha a arder, de um s flego e sem esperar resposta.- Como vai, Pelgia Nilovna? E o seu rapaz? No pensa cas-lo to cedo? Olhe que ele j est em muito boa idade. O casamento dos filhos a tranquilidade dos pais. no seio da famlia que um homem se conserva melhor, de corpo e de esprito. como o cogumelo em vinagre. Eu, no seu lugar, casava-o. Hoje em dia o comportamento das pessoas deve ser vigiado. Cada um vive como muito bem lhe parece, andam por a ideias esquisitas, e fazem-se coisas abominveis. Os jovens deixaram de frequentar a casa de Deus, evitam os lugares pblicos, renem-se pelos cantos, s escondidas, a cochichar. Que andaro eles a cochichar, no me dir? Porque fogem da sociedade? Aquilo que um homem tem para dizer di-lo na taberna, diante de todos. Quando no o faz porque esconde qualquer mistrio. Mas o lugar dos mistrios a nossa Santa Igreja Apostlica. Outros mistrios que existam por a pelos cantos s podem ser o resultado de espritos perturbados. Desejo-lhe boa sade.Dobrando o brao com afectao levantou o bon, agitou-o no ar e foi-se embora perante a perplexidade da me.De outra vez foi Maria Korsunova, uma vizinha dos Vlassov, que era viva de um ferreiro e vendia comida porta da fbrica. Encontrou a me no mercado e disse-lhe:- Vigia o teu filho, Pelgia.- Porqu?- Correm por a uns boatos... - disse-lhe Maria com um ar misterioso. - E no so nada bons, minha amiga. Dizem que est a organizar uma espcie de associao religiosa. Chamam-lhes seitas. Aoitam-se uns aos outros com vergastas, como os flagelantes.4243- No digas tolices, Maria!- H que censurar a quem as faz, e no a quem as diz respondeu a vendedeiraA me repetiu todas estas palavras ao filho, que encolheu os ombros e no respondeu. O Ucraniano por seu lado riu s gargalhadas.- Tambm as raparigas andam aborrecidas convosco - disse ela. - Vocs so noivos que qualquer uma delas desejaria ter, so bons trabalhadores, no bebem, mas nem olham para elas. Diz-se que h mulheres de m vida que vm da cidade visitar-vos...- Claro! - disse Pavel com uma careta de desaprovao.- Num pntano no h nada que no cheire a podrido- disse o Ucraniano suspirando. - E a senhora, mezinha, devia ter explicado a essas tontas o que o casamento, para que no tenham tanta pressa em comear a levar pancada.- Meu filho, elas sabem e compreendem tudo isso muito bem, mas no sabem o que ho-de fazer das suas vidas.- No compreendem nada. Se compreendessem encontrariam outro caminho - observou Pavel. A me olhou o seu rosto srio.- Podiam ensinar-lhes vocs. Comeavam por convidar as menos tontas...- No pode ser - replicou secamente Pavel.- E se experimentssemos? - perguntou o Ucraniano. Pavel permaneceu silencioso por um instante.- Comeariam por se juntar aos pares, dariam passeios, alguns acabariam por casar, e pronto.A me voltou a mergulhar nos seus pensamentos. A austeridade monstica de Pavel perturbava-a. Via que os seus conselhos eram seguidos at pelos camaradas mais velhos, como o Ucraniano, mas parecia-lhe que todos o receavam um pouco, que no o amavam bastante, por causa desta sua severidade.Uma noite, estava j deitada enquanto Pavel e o Ucraniano liam ainda. Atravs do delgado tabique, conseguiu ouvir a conversa deles, em voz baixa.- Gosto da Natacha, sabes? - disse subitamente o Ucraniano.-Sei.Pavel havia demorado um pouco a resposta.Em seguida, a me ouviu o Ucraniano levantar-se e comear a andar pelo quarto. Arrastava os ps nus pelo cho, e assobiava uma melodia triste. Depois disse:- Ela j ter percebido?Pavel continuava sem dizer nada.- E tu, o que que achas? - perguntou o Ucraniano baixando a voz.- Percebeu, e foi por isso que abandonou o nosso grupo de trabalho.De novo se ouviram os passos arrastados do Ucraniano, de novo se ouviu o seu triste assobiar. Depois perguntou:- E se eu lhe dissesse?- Se lhe dissesses o qu?- Se lhe dissesse... isso. Que eu... - tentou explicar timidamente.- Dizer-lhe para qu?O Ucraniano parou, e a me compreendeu que sorria.- Bom, parece-me que quando gostamos de uma rapariga... bem, temos de lho dizer, seno de que que adianta?Pavel fechou o livro bruscamente.- E que esperas tu obter da?Por um momento calaram-se ambos.- No percebo - disse o Ucraniano.- Uma pessoa tem de saber claramente aquilo que quer, Andrei - explicou calmamente Pavel. - Suponhamos que ela tambm te ama. No o creio, mas vamos supor que sim. Vocs casam-se. Um casamento interessante: uma intelectual e um operrio. Vm os filhos, e vais ter de ser tu sozinho a trabalhar... e muito. A vossa vida est condenada a ser uma luta4445contnua contra a fome. Os filhos, a casa... acabariam, um e outro, por se perder para a nossa causa.Fez-se um silncio. Em seguida, Pavel continuou com uma voz mais suave:- melhor esqueceres tudo isso, Andrei. E no a desencaminhes.De novo se fez silncio. O relgio cadenciava o tiquetaque dos segundos.O Ucraniano disse:- Metade do corao ama, a outra odeia. Ser isto um corao?Ouvia-se o rudo do voltar das pginas. Pavel havia retomado a sua leitura. A me deixou-se ficar deitada, de olhos fechados, sem ousar fazer um movimento sequer. Sentia-se comovida at s lgrimas pelo Ucraniano. Sentia-se mais comovida ainda pelo seu filho. E pensava: "Meu querido!"Subitamente, Andrei perguntou:- Devo ento calar-me?- melhor - disse Pavel docemente.- Bem, farei como dizes - disse o Ucraniano. Um instante depois acrescentou tristemente.- Tambm para ti ser duro, Pacha, quando chegar a tua vez.- Para mim j duro.Uma rajada de vento varreu as paredes da casa. O relgio continuava a marcar a passagem do tempo.- Estas coisas no so brincadeiras - disse lentamente o Ucraniano.A me afundou a cabea na almofada e chorou em silncio.Na manh seguinte Andrei pareceu-lhe mais frgil e mais amvel. O seu filho estava igual a sempre. Magro, direito e taciturno. At a ela havia sempre tratado o Ucraniano por Andrei Onissimovitch, mas nesse dia, sem mesmo dar por isso, disse-lhe:- Tem de mandar arranjar as suas botas, Andriucha. Assim vai andar com os ps enregelados.46- Quando receber o salrio, compro umas novas! - respondeu ele rindo. Em seguida, colocando a sua larga mo sobre o ombro dela, perguntou:- Quem sabe se a senhora a minha verdadeira me? S no quer reconhec-lo diante de toda a gente, talvez no me ache bonito o bastante...Ela deu-lhe uma palmadinha na mo. Teria querido dizer-lhe muitas palavras afectuosas, mas o seu corao sentia-se afogado em piedade, e a lngua recusava-se a obedecer-lhe.IXO bairro inteiro murmurava dos socialistas, que por todo o lado espalhavam folhetos impressos a azul. Esses folhetos denunciavam energicamente aquilo que se passava na fbrica, relatavam as greves dos operrios em Petersburgo, e apelavam para que os operrios se unissem em defesa dos seus interesses.Os mais velhos, que ganhavam um salrio melhor na fbrica, exclamavam:- Agitadores! Esto a pedir poucas!...E iam entregar os panfletos direco. Os jovens, esses, liam-nos com entusiasmo.- a verdade!A maioria, esgotados pelo trabalho, e indiferentes a tudo, diziam sem esperana:- Isto no serve para nada! O que que ns podemos fazer?Mas os folhetos suscitavam interesse, e se por acaso alguma semana eles no surgiam, diziam uns para os outros:- Devem ter desistido.Mas na segunda-feira reapareciam as folhas, e as pessoas voltavam a coment-las em surdina.47Pela fbrica e pela taberna comearam a circular pessoas que ningum conhecia. Faziam perguntas, observavam, farejavam, e chamavam a ateno de todos, nuns casos por uma prudncia suspeita noutros por uma amabilidade excessiva.A me compreendia que toda esta agitao era obra do seu filho. Via que as pessoas o rodeavam, e o seu receio pelo futuro misturava-se com um grande orgulho. Era o seu filho!Certa tarde, Maria Korsunova chamou-a janela, e quando a me lha abriu disse-lhe baixo e precipitadamente:- Tem cuidado, Pelgia. A brincadeira dos teus cordeirinhos acabou. Esta noite ho-de vir passar uma busca na tua casa, na de Mazine, na de Vessovchikov...Os grossos lbios de Maria fecharam-se num esgar, o seu nariz carnudo fungou ruidosamente, os olhos piscaram e olharam de soslaio para um lado e para o outro, a ver se haveria algum na rua.- Mas olha que eu no sei de nada, no te disse nada, e nem sequer te vi hoje, percebes?Desapareceu.A me fechou a janela, e deixou-se cair numa cadeira. Mas a conscincia do perigo que ameaava o filho f-la levantar-se rapidamente. A seguir vestiu-se, cobriu a cabea com um xaile, e correu a casa de Theo Mazine, que estava doente e no tinha ido trabalhar. Quando ela chegou, Theo estava sentado junto janela, lendo um livro, segurando a mo direita com a esquerda, para manter o polegar afastado. Quando ouviu a notcia levantou-se de um salto e o seu rosto empalideceu.- Agora que vai ser... - murmurou.- O que que preciso fazer? - perguntou Pelgia, enxugando o suor da testa com a mo trmula- Esperar, e no ter medo! - respondeu Theo, e passou a mo vlida pelos cabelos ondulados.- Mas voc tambm tem medo! - exclamou ela.- EU?As suas faces coraram bruscamente, e sorriu embaraado.- Sim, que diabo! preciso avisar Pavel. Vou mandar-lhe um recado imediatamente. A senhora v para casa. No vai acontecer nada. A si ningum lhe ir fazer mal.Mal chegou a casa, a me comeou a empilhar os livros, estreitou-os contra o peito, e assim percorreu toda a casa espreitando dentro do forno, debaixo da estufa, e at dentro da barrica da gua. Pensava que Pavel largaria o trabalho e viria a correr para casa, mas tal no aconteceu. Por fim, fatigada, sentou-se num banco da cozinha, arrumou os livros no colo, sobre a saia, e assim, nesta posio, sem ousar mover-se, permaneceu at chegada de Pavel e do Ucraniano.- Vocs j sabem? - perguntou sem se levantar.- Sim - disse Pavel sorrindo. - A me est com medo?- Oh, sim, tenho medo! Tenho medo!- No vale a pena - disse Andrei - no resolve nada.- Nem sequer preparou o samovar! - observou Pavel- A me levantou-se, mostrou os livros e disse perturbada:- Foi por causa disto...O seu filho e o Ucraniano comearam a rir, o que lhe restituiu um pouco a coragem. Pavel pegou nalguns volumes, e foi escond-los l fora, enquanto Andrei acendia o samovar.- No precisa de estar assustada, mezinha. A nica coisa vergonhosa que haja pessoas que se ocupam de coisas como estas. Vo aparecer a uns pobres diabos, de sabre cintura e esporas nas botas, e vo pr-se a remexer por toda a parte. Vo espreitar debaixo da cama, debaixo da estufa. Quando h uma cave descem at l, quando h um sto tambm las teias de aranha caem-lhes no focinho, e grunhem. No lhes agrada nada fazer o trabalho que fazem, sentem-se humilhados, por isso fazem aquelas caras de maus e de zangados. um trabalho sujo, e eles bem o sabem. Uma vez vieram a minha casa, remexeram em tudo e depois foram-se embora. De outra vez levaram-me com eles, mete-4849ram-me na priso, e l estive quatro meses. Foi s uma temporadazita! Levam-nos com eles, escoltados, pela rua, e fazem-nos uma quantidade de perguntas. No so maus, so s estpidos. Levam-nos para a priso, tratam assim as pessoas, mas para justificar o ordenado que ganham. Depois acabam por nos libertar, e pronto.- Voc fala sempre de uma maneira, Andrei!... - gemeu Pelgia.Ajoelhado em frente ao samovar, o Ucraniano soprava com fora para atear as brasas. Levantou a cara, vermelho do esforo, e perguntou alisando o bigode:- E como que eu falo?- Como se nunca ningum o tivesse ofendido...Ele levantou-se e disse, sorrindo e movendo a cabea:- Existe neste mundo algum que nunca tenha sido ofendido? Ofenderam-me tanto que j no me irrito com isso. O que que se h-de fazer? As humilhaes impedem o homem de trabalhar, e ficarmos a pensar nelas uma perda de tempo. a vida! Dantes costumava zangar-me com as pessoas, mas depois de reflectir melhor no assunto achei que no valia a pena. As pessoas vivem receosas de serem agredidas pelo seu vizinho, e por isso se apressam em ser as primeiras a agredir. assim a vida, mezinha.As suas palavras fluam tranquila e suavemente, e apaziguavam a ansiedade provocada pela espera dos que viriam fazer a busca. Os seus olhos salientes sorriam, claros, e todo o seu corpo se balanava e parecia estranhamente flexvel.A me suspirou e disse ternamente:- Meu querido Andriucha, que Deus o faa feliz!O Ucraniano deu uma larga passada, voltou a pr-se de ccoras na frente do samovar, e disse:- Se a felicidade me for oferecida, certamente no a recusarei, mas pedi-la... tambm no. algo que no farei nunca.Pavel regressou do ptio.- No vo encontrar coisa alguma - disse ele num tom seguro, e comeou a lavar-se.50Depois, enquanto secava as mos cuidadosamente:- A me no pode mostrar-se amedrontada. Se o fizer, dir-se-o: "Se ela treme de medo porque alguma coisa h nesta casa." Me, compreenda que no queremos o mal, a verdade est do nosso lado, e por ela vamos trabalhar a nossa vida toda. No estamos a cometer nenhum crime. Porque havemos ns de tremer?- Eu vou ter coragem, Pacha - prometeu a me. Em seguida, cheia de angstia, deixou escapar:- Se ao menos viessem depressa!Mas no veio ningum naquela noite. De manh, prevendo que iriam rir-se dos seus receios, foi ela a primeira a troar de si prpria:- Tinha medo... de ter medo!XApareceram cerca de um ms depois daquela noite de susto. Nikolai Vessovchikov estava com eles, e os trs estavam conversando sobre o jornal. Era tarde, quase meia-noite. A me j se tinha deitado, estava quase a adormecer, e ouvia o rumor indistinto das vozes, baixas e preocupadas. Andrei levantou-se subitamente e atravessou a cozinha nos bicos dos ps, fechando silenciosamente a porta atrs de si. Ouviu-se no ptio um rudo metlico, de repente a porta abriu-se de par em par, o Ucraniano avanou pela cozinha e disse, em voz baixa mas clara:- Ouve-se um rudo de esporas!A me saltou da cama, e pegou na roupa com as mos a tremer, mas Pavel apareceu porta e disse-lhe serenamente:- A me deixe-se estar deitada... Est doente.Do ptio vinha um sussurro de vozes. Pavel aproximou-se da porta, empurrou-a com a mo e perguntou:- Quem est a?51Com a rapidez de um relmpago, uma silhueta alta e cinzenta surgiu no umbral, seguida de uma outra. Os dois polcias ladearam Pavel. Ento, ouviu-se uma voz aguda,e trocista.- No somos quem vocs esperavam, hem?Quem falava, era um oficial alto e magro, com um bigode negro e ralo. Junto ao leito da me surgiu Fediakine, o polcia do bairro. Levou a mo pala do bon, e enquanto com a outra apontava para Pelgia disse com um olhar ameaador:- Esta a me dele, Excelncia.Depois, agitando os braos na direco de Pavel, acrescentou:- E este ele!- Pavel Vlassov? - perguntou o oficial, semicerrando os olhos. Pavel disse que sim com a cabea. O oficial continuou, cofiando o bigode:- Tenho de fazer uma busca tua casa. Levanta-te, velha! Quem que est a?Lanou um olhar ao quarto, e em grandes passadas dirigiu-se para l.- Os vossos nomes?Entraram ento dois homens, chamados para servir de testemunhas. Eram o fundidor Tvariakov e o seu inquilino, o fogueiro Rybine, de cabelo e barba escura, um homem srio que disse com uma voz cheia e sonora:- Boa noite, Nilovna!Pelgia vestia-se, e enquanto isso, para ganhar coragem, ia murmurando:- Que maneiras! Virem assim de noite... est uma pessoa deitada, e eles entram por a...Estavam todos apertados dentro do quarto, e havia no ar um forte cheiro a graxa. Dois polcias e Ryskine, o comissrio de polcia do bairro, batiam ruidosamente com as botas no cho, tiravam os livros da estante e amontoavam-nos sobre a mesa, na frente do oficial. Outros dois batiam nas paredes com os punhos fechados, olhavam debaixo dascadeiras, um deles, no sem dificuldade, subiu para cima do fogo. O Ucraniano e Vessovchikov estavam num canto apertados um contra o outro. O rosto bexigoso de Nikolai tinha-se coberto de manchas vermelhas, e os seus pequenos olhos no conseguiam deixar de fitar a cara do oficial. Andrei retorcia o bigode e quando a me entrou no quarto sorriu-lhe e dirigiu-lhe com a cabea um aceno tranquilizador.Esforando-se por dominar o medo que a invadia, a me entrou, no de lado, como era seu costume, mas avanando com o peito, o que lhe dava um ar de importncia cmico e afectado. Caminhava com passos ruidosos e as suas pestanas tremiam.O oficial ia pegando rapidamente nos livros entre os dedos afilados das suas mos brancas. Folheava-os, sacudia-os e, num gesto hbil, ia-os pondo de lado. Por vezes algum volume caa pesadamente no cho. Estavam todos em silncio. Ouvia-se o resfolegar dos guardas, o tilintar das esporas, e de quando em quando uma pergunta:- J viram aqui?Pelgia colocou-se ao lado de Pavel, junto do tabique, cruzou os braos como ele, e ps-se tambm a olhar para o oficial. Sentia os joelhos a tremer, e uma nvoa que lhe velava os olhos.De repente, a voz de Vessovchikov ressoou, cortante:- preciso atirar com os livros para o cho?A me estremeceu. Tvariakov fez um movimento com a cabea, como se lhe tivessem dado uma pancada na nuca. Rybine tossiu e olhou atentamente para Nikolai.O oficial franziu as sobrancelhas, e por um momento cravou o olhar no rosto frgil e imvel. Os seus dedos continuaram a voltar as pginas ainda mais depressa. Abria por vezes de tal maneira os seus olhos cinzentos que parecia que se estava a sentir terrivelmente mal, e que ia lanar um grito de fria, incapaz de lutar contra a sua dor.- Soldado! - voltou a dizer Vessovchikov. - Apanha esses livros.5253Os polcias foram at junto dele, depois olharam para o oficial, que levantou a cabea, envolveu a silhueta macia de Nikolai num olhar perscrutador e disse numa voz arrastada e nasal:- Bem... apanhem-nos.Um dos polcias baixou-se e, olhando Vessovchikov pelo canto do olho, comeou a recolher os livros de folhas amarrotadas.- Nikolai devia ficar calado! - sussurrou Pelgia ao filho. Pavel encolheu os ombros. O Ucraniano baixou a cabea.- Quem que a l a Bblia?- Eu - disse Pavel.- A quem pertencem estes livros todos?- A mim - respondeu de novo.- Bem! - disse o oficial reclinando-se sobre as costas da cadeira. Entrelaou os dedos das suas finas mos, estendeu as pernas por cima da mesa, comps o bigode e interpelou Vessovchikov.- O Andrei Nakhodka s tu?- Sim - respondeu Nikolai, avanando. O Ucraniano estendeu a mo, segurou-o pelo ombro e f-lo retroceder.- Ele est enganado. O Andrei sou eu.O oficial ergueu a mo, e disse a Vessovchikov, ameaando-o com o dedo indicador:- Tem cuidado, tu!Comeou a remexer nos seus papis. L fora, os olhos indiferentes da clara noite de luar olhavam pela janela. Algum passava diante da casa. A neve caa.- Tu, Nakhodka, j foste investigado por delitos polticos?- perguntou o oficial.- Sim, em Rostov e em Saratov... Mas os polcias de l no me tratavam por tu.- O oficial piscou o olho direito, esfregou-o, e disse, mostrando os dentes pequenos:- E no conhecer o senhor, Nakhodka, precisamente o senhor, os canalhas que andam na fbrica a distribuir folhetos criminosos?54O Ucraniano balanou-se sobre as pernas e, com um largo sorriso nos lbios, ia para dizer qualquer coisa quando de novo soou a voz irritada de Nikolai.- esta a primeira vez que vemos canalhas.Fez-se silncio, e por um momento ningum se moveu.A cicatriz da me tornou-se mais clara, e a sua sobrancelha direita ergueu-se bruscamente. A barba negra de Rybine comeou a tremer de uma forma estranha. Penteou-a com os dedos, lentamente, de cabea baixa.- Ponham l fora este animal! - disse o oficial.Dois polcias agarraram-no por baixo dos braos, e arrastaram-no sem cerimnias at cozinha. A, fincando os ps com fora no cho, deteve-se e gritou:- Parem! Tenho de vestir-me! Entrou o Comissrio da Polcia.- No h nada. Procurmos por todo o lado.- Claro! - exclamou o oficial com um sorriso. - No estamos em presena de um novato.A me escutava aquela voz fluida e cortante, olhava aterrorizada aquele rosto amarelado, e sentia neste homem um inimigo sem piedade, um corao cheio do mesmo desprezo que o aristocrata sente pelo povo. Tinha visto na sua vida muito poucos destes indivduos, e quase tinha esquecido que existiam."So estes os que se sentem ameaados por ns", pensou.- Senhor Andrei Onissimovitch Nakhodka, filho de pai desconhecido, est detido.- Por que motivo? - perguntou tranquilamente o Ucraniano.- Isso dir-lho-ei mais tarde - respondeu o oficial com cinismo. Voltou-se para Pelgia:- Sabes ler?- No - respondeu Pavel.- No a ti que estou a perguntar - disse severamente, e insistiu:- Responde, velha!A me, tomada por um sentimento de dio instintivo con-55tra este homem, ergueu-se bruscamente, tremendo como se tivesse cado dentro de gua gelada. A sua cicatriz tornou-se prpura e a sua sobrancelha voltou a descer.- No grite! - disse ela esticando um brao na direco do oficial. - Voc ainda muito novo, no sabe o que a desgraa...- Acalme-se, me! - deteve-a Pavel.- Espera, Pavel! - gritou ela debruando-se sobre a mesa. - Porque que eles vm aqui prender-nos?- Isso no da tua conta. Cala-te! - exclamou o oficial levantando-se. - Tragam-me o Vessovchikov.Pegou num papel, levantou-o at altura da cara, e ps-se a ler.Trouxeram Nikolai.- Tira o gorro! - gritou o oficial interrompendo a leitura. Rybine aproximou-se de Pelgia, tocou-lhe com o ombroe disse-lhe em voz baixa:- No te exaltes, mezinha!- Como posso tirar o gorro se tenho as mos presas? - perguntou Nikolai interrompendo a leitura do processo verbal.- O oficial atirou com o papel para cima da mesa.- Assinem!A me observou-os enquanto assinavam o processo verbal. A sua exaltao tinha desaparecido, e o seu corao sentia-se desfalecer. Tinha nos olhos lgrimas de humilhao e de raiva. Havia chorado lgrimas semelhantes durante os vinte anos que durara o seu casamento, mas nos ltimos tempos quase esquecera o seu sabor amargo.- muito cedo para a senhora chorar. Guarde as suas lgrimas para mais tarde, que vai precisar delas.Ela respondeu-lhe, de novo encolerizada:- As mes tm lgrimas que chegam para tudo... para tudo. Se voc tem me, ela tambm deve saber isso.O oficial guardou rapidamente os seus papis numa carteira nova com o fecho a brilhar, e ordenou:- Em frente, marchem!56- At vista, Andrei. At vista, Nikolai - disse Pavel em voz baixa mas calorosa, apertando a mo dos seus camaradas.- Sim, claro, at vista! - repetiu, irnico, o oficial. Vessovchikov fungava ruidosamente. O seu largo pescooestava congestionado, e os seus olhos cintilavam de raiva. O Ucraniano todo ele sorria, inclinou a cabea e segredou algumas palavras me, que o abenoou com o sinal da cruz, e disse:- Deus olha pelos justos...Por fim o peloto de homens de capote cinzento aproximou-se da porta, tilintou as esporas e desapareceu. O ltimo a sair foi Rybine. Envolveu Pavel com um olhar perscrutador dos seus olhos negros, e disse com um ar pensativo:- Bem... adeus.E saiu sem pressa, tossindo por detrs da barba.Com as mos atrs das costas, Pavel percorreu lentamente o quarto de um lado ao outro, caminhando por entre os livros e a roupa que estava espalhada pelo cho. O seu rosto estava sombrio.- A me est a ver como ?Olhando indecisa o quarto em desordem, a me murmurou angustiada:- Para que que Nikolai foi grosseiro com ele?- Com certeza estava com medo - disse Pavel docemente. -Vieram, prenderam-nos, levaram-nos... murmurou Pelgiacom impacincia.Restava-lhe o filho. O seu corao acalmou-se um pouco, enquanto o seu pensamento tentava compreender aquilo que acabava de se passar.- Ele riu-se de ns, ameaou-nos...- Basta, me! - disse Pavel sbita e resolutamente. - Ajuda-me a arrumar isto tudo.Chamava-lhe me e tratava-a por tu, como s fazia quando se sentia muito prximo dela. A me fez um gesto na sua direco, olhou-o nos olhos e perguntou muito baixo:57~: - Para ti, foi uma humilhao?- Sim! duro... preferia que me tivessem levado tambm. Pareceu me ver lgrimas nos olhos de Pavel, e para oconsolar, sentindo confusamente o sofrimento dele, disse com um suspiro:- Deixa estar. Ho-de vir prender-te tambm.- Sim.Depois de uma pequena pausa, disse ainda com tristeza:- Como s rude, meu Pavlucha. Podias ao menos consolar-me, mas no. Eu digo coisas horrveis, e tu respondes coisas mais horrveis ainda.Ele olhou-a, aproximou-se dela, e disse com doura:- No sou capaz, me. Tens de te acostumar a isso.Ela suspirou e ficou em silncio. Em seguida, contendo um estremecimento de terror, disse:- Ser que eles torturam as pessoas? Que lhes rasgam a carne, que lhes quebram os ossos? Quando penso nisso, Pacha, meu querido, horrvel!- Eles torturam a alma, e isso ainda pior, com as suas mos sujas...XINo dia seguinte souberam que tinham sido detidos Bukhine, Samoilov, Somov e mais cinco. tardinha chegou Theo Mazine a correr. Tinham feito uma busca tambm em sua casa. Estava contente, sentia-se um heri.- Tiveste medo, Thep? - perguntou a me.- Tive medo que o oficial me batesse. Era gordo, de barba preta e patilhas, e sobre o nariz trazia, uns culos de lentes escuras, parecia que no tinha olhos. Gritava, batia com os ps no cho, "hs-de apodrecer na priso", dizia-me. A mim nunca me bateram, nem o meu pai nem a minha me, sou filho nico, eles gostavam de mim.58Por um momento fechou os olhos, apertou os lbios, puxou o cabelo com um gesto rpido das mos e, olhando para Pavel com os olhos vermelhos, disse:- Se alguma vez me baterem, cravo-me neles como uma faca, e desfao-os com os dentes. Ser melhor que me matem logo.- s to fraco, to frgil! - exclamou Pelgia. - Como poderias lutar contra eles?- Luto, sim! - respondeu Theo entre dentes. Quando saiu, a me disse a Pavel:- Este vai ser o primeiro a fraquejar. Pavel ficou em silncio.Momentos depois a porta da cozinha abriu-se devagar, e entrou Rybine.- Boa noite - disse ele sorrindo. - Bom, aqui estou eu outra vez. Ontem fui forado a vir, mas hoje venho de minha livre vontade. - Apertou vigorosamente a mo de Pavel, e pousou uma mo no ombro da me. - No me ofereces um pouco de ch?Pavel examinou em silncio o seu rosto largo e bronzeado, de barba espessa e olhos sombrios. Os seus olhos tranquilos pareciam querer dizer alguma coisa importante.Pelgia foi at cozinha preparar o samovar. Rybine sentou-se, pousou os cotovelos sobre a mesa, e envolveu Pavel com o seu olhar negro.- Pois isso mesmo... - disse ele como se estivesse retomando uma conversa interrompida. - Tenho de falar-te com franqueza. H muito tempo que tenho vindo a observar-te. Somos quase vizinhos. Tenho reparado que recebes muita gente, mas ningum se embebeda, nem fazem escndalos. Isto a primeira coisa. Quando as pessoas no fazem barulho, os vizinhos estranham, no verdade? Bom, as pessoas tambm falam de mim, porque vivo sozinho.Falava gravemente, mas com desenvoltura. Com a sua mo morena ia cofiando a barba, e os seus olhos olhavam fixamente os de Pavel.59- Falam muito de ti. Os meus patres chamam-te herege, porque no frequentas a igreja. Eu tambm no vou l. Alm disso h essa histria dos panfletos que apareceram por a. sque ests por detrs disso?- Sim.- Mas tu... - exclamou a me alarmada, vinda da cozinha. - No s tu sozinho!Pavel sorriu, e Rybine tambm.- Bom - disse este ltimo.A me, um pouco aborrecida por no darem importncia s suas p