«À Mesa com o Universo» A Proposta Macrobiótica de...

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Universidade de Lisboa Instituto de Ciências Sociais «À Mesa com o Universo» A Proposta Macrobiótica de Experiência do Mundo Virgínia Maria dos Santos Henriques Calado Orientação: Professora Doutora Cristiana Bastos Doutoramento em Ciências Sociais Especialidade: Antropologia Social e Cultural 2012 Bolsa de Doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia SFRH/BD/2926 /2006, financiada no âmbito do III Quadro Comunitário de Apoio, comparticipado pelo Fundo Social Europeu e por Fundos Nacionais do MCTES

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Universidade de Lisboa

Instituto de Ciências Sociais

«À Mesa com o Universo»

A Proposta Macrobiótica de Experiência do

Mundo

Virgínia Maria dos Santos Henriques Calado

Orientação: Professora Doutora Cristiana Bastos

Doutoramento em Ciências Sociais

Especialidade: Antropologia Social e Cultural

2012

Bolsa de Doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia

SFRH/BD/2926 /2006, financiada no âmbito do III Quadro Comunitário de Apoio,

comparticipado pelo Fundo Social Europeu e por Fundos Nacionais do MCTES

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III

Agradecimentos

A conclusão de um projecto tão envolvente, denso e absorvente, como o é uma

dissertação de doutoramento, não apaga, antes torna mais evidente, a certeza de que

tal percurso envolveu e implicou muitas pessoas. Se o seu autor é um só, o caminho que

fez, fê-lo acompanhado, e a nota de agradecimento que aqui se deixa é apenas uma

forma menor de expressar a gratidão por uma companhia e amparo sem os quais não

teria sido possível chegar ao final do caminho.

Um agradecimento especial é devido a Cristiana Bastos, que aceitou orientar

este trabalho e que, com a sabedoria de quem já acompanhou muitos processos

semelhantes, sempre teve uma palavra de estímulo para que ele se realizasse.

Agradeço-lhe a liberdade com que me deixou escolher e traçar rumos, um bem precioso

nos tempos que correm. Ainda que fosse sinalizando caminhos possíveis e sempre se

dispusesse a debater aspectos desta investigação, sempre me permitiu autonomia na

pesquisa. Agradeço-lhe a leitura atenta dos meus textos, a orientação, o encorajamento

e a rapidez com que, nos momentos finais, analisou aspectos deste trabalho.

Agradeço a Goretti Matias as palavras de estímulo e alento, o apoio

institucional e os conselhos sábios de quem já assistiu ao processo de conclusão de

muitas teses de doutoramento. Estou grata, também, a João Guerra, que no âmbito do

seminário de estudos pós-graduados do ICS fez uma leitura crítica de parte deste

trabalho, contributo de que esta dissertação veio a beneficiar

Para a realização deste trabalho, contribuiu, sem dúvida, o apoio da Fundação

para a Ciência e Tecnologia, através da atribuição de uma bolsa de doutoramento. Sem

este apoio dificilmente teria sido possível uma dedicação exclusiva à realização desta

pesquisa. Agradeço também ao Instituto Piaget a libertação de tarefas lectivas para

que pudesse dedicar-me à investigação. Agradeço, igualmente, ao Instituto de Ciências

Sociais o acolhimento deste projecto, a supervisão, subsídio atribuído, e demais apoio

institucional para que ele se realizasse, quer através dos Serviços de documentação,

quer através da Comissão de Estudos Pós-Graduados.

Agradeço a Francisco Varatojo e Eugénia Varatojo que, enquanto responsáveis

pelo Instituto Macrobiótico de Portugal (IMP), nunca colocaram quaisquer obstáculos

à realização deste trabalho, facilitando o acesso aos arquivos relativos a registos de

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IV

alunos dos diferentes cursos do IMP. Agradeço-lhes os ensinamentos e a abertura para

a realização desta ou de qualquer outra investigação. Agradeço a toda a equipa que

trabalha no IMP, guardando deles a memória de todo o apoio e da simpatia e boa

disposição com que trabalham todos os dias. Agradeço ainda a todos os professores e

formadores que aí trabalham, trabalharam e que tive oportunidade de conhecer, Bill

Tara, Carlos Campos Ventura, Denny Waxman, Bill Spears e muitos outros.

Uma palavra de agradecimento a José Oliveira, que foi, e continua sendo, um

dos principais impulsionadores da macrobiótica em Braga. Fá-lo de forma discreta

mas eficaz, pois através das suas aulas de yoga tem levado muitos dos seus alunos a

reequacionar opções alimentares. Estou-lhe grata pelo estímulo e pelos ensinamentos.

À Alda Pereira, que me abriu as portas para o universo da cozinha macrobiótica, e que

foi pioneira no ensino da macrobiótica em Braga, devo também um agradecimento

especial.

Estou igualmente grata aos muitos colegas e amigos que conheci no âmbito

desta longa aprendizagem sobre a macrobiótica. Também eles foram companheiros de

percurso, comigo partilhando preocupações e angústias, mas sobretudo bons

momentos.

Aos meus amigos mais próximos, eles sabem quem são, por todo o apoio,

paciência, e encorajamento na realização deste projecto. Espero poder agora dedicar-

lhes mais do meu tempo.

A Luís Cunha, pelo muito que partilhamos, pela leitura atenta deste trabalho,

pelas sugestões, pelo encorajamento e todo o apoio. Este trabalho beneficiou imenso da

sua ajuda. À Lúcia e ao Jaime, que também se dispuseram para essa leitura, e que

contribuíram para que este trabalho se concretizasse. Ao Miguel, pelo apoio técnico, e

por me estar sempre a lembrar que a tese tem ponto final.

Para a minha família dirijo as últimas palavras de agradecimento. Por aceitar a

minha indisponibilidade, por ficar sobrecarregada com tarefas em que eu também

deveria participar, por ser o meu porto seguro.

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V

Resumo

Este trabalho procura contribuir para a identificação dos processos através dos

quais um produto social, a macrobiótica, se transformou numa proposta significativa de

orientação no mundo. Centrando-se na génese e no desenvolvimento deste produto

social, esta investigação presta atenção aos principais agentes envolvidos nesse

processo social e às circunstâncias pessoais, sociais e históricas que levaram à sua

difusão. Assim, centrando-se no fundador da macrobiótica moderna, Georges Ohsawa, e

seguindo a sua trajectória de vida, esta dissertação procurará evidenciar de que forma

uma visão do mundo germinada no Japão e com forte inspiração na tradição filosófica e

religiosa oriental, circula pela Europa e pela América, sendo acolhida e apropriada

como prática e discurso de orientação no mundo. Para evidenciar este processo, far-se-á

referência a circunstâncias históricas e sociais específicas, designadamente as do pós-II

Grande Guerra, procurando-se perceber o ambiente social que permitiu a expansão da

macrobiótica.

Aspectos significativos desse ambiente social são aqueles que se prendem com a

crítica da modernidade, onde se inclui a crítica à ciência e às muitas realizações que

dela decorrem: industrialismo, tecnocracia, materialismo, mas também o florescer de

uma consciência ecológica, a que se juntou a atracção por novas formas de

espiritualidade. Face ao desencantamento do mundo, a macrobiótica surgiu, para muitos

dos que a seguiram, como proposta de reencantamento em torno da qual se

desenvolveram sentimentos de pertença e de afinidade, suportados por redes de

conhecimentos. Dado o espaço de identificação que a macrobiótica proporciona, é usada

a noção de comunidade para pensar os indivíduos que a ela aderem. Comunidade

desterritorializada, transnacional, instável e aberta, mas, ainda assim, espaço de

identificação.

Tendo sempre em conta a especificidade do espaço português, a macrobiótica

será aqui perspectivada como cosmovisão que incorpora um sistema alimentar e um

sistema terapêutico. Sistemas que se entrecruzam, e que nessa articulação são pensados

como alternativa a sistemas alimentares e terapêuticos convencionais.

Palavras-chave: Macrobiótica, Alimentação, Saúde, Doença, Sistemas Terapêuticos

não Convencionais

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VII

Abstract

This study intends to identify the processes through which a social product,

macrobiotics, was transformed into a significant leadership proposal in the world.

Starting from the genesis and the development of this social product, this work

describes the main agents involved in this social process, as well as the personal, social

and history circumstances that lead to its spread. Therefore, focusing on the founder of

modern macrobiotics, Georges Ohsawa, and following his trajectory of life, this thesis

intend to explain how a vision of the world seeded in Japan, and with a strong oriental

tradition, in philosophical and religious terms, now circulates through Europe and

America, where it is used and regarded as a practice and an orientation discourse in the

world. To highlight this process, we will refer to specific historical and social

circumstances, particularly those following the II World War, trying to perceive the

social environment that enabled the expansion of macrobiotics.

The significant aspects of this social environment are those related with the

critique of modernity, where the critique of science and of its multiple achievements

takes place: industrialism, technocracy, materialism, but also the growing of an

ecological conscience, joined by an attraction for new forms of spiritualism. Facing the

disenchantment of the world, macrobiotics was regarded, for many following it, as a

scheme of re-enchantment within which feelings of belonging and affinity were

developed, mostly supported by knowledge networks. Given the sphere of identification

that macrobiotics provides, it is used a notion of community to think the individuals that

adhere to it. It is a deterritorialized, transnacional, unstable and open community, but,

nevertheless, a space for identification.

Keeping in mind the specificity of the Portuguese society, macrobiotics will be

advocated here as a cosmological vision, incorporating a food system and a healing

system. These two systems interact, and from such interaction they are thought of as an

alternative to orthodox food and healing systems.

Keywords: Macrobiotics, Food, Health, Illness, Complementary Alternative Medicine

(CAM)

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IX

I N D I C E

Agradecimentos

Resumo

Abstract

Introdução 1

1. A Escrita que Desenha as Margens 19

1.1 Escrever sobre as margens 19

1.2 Ideologia, Ideologias Alimentares 21

1.3 Macrobiótica e Nutricionismo 25

1.4 Singularidades da Macrobiótica 29

1.5 O Tempo, esse Grande Escultor:

Dinamismo, Contaminação, Plasticidade, Recomposição 31

1.6 Saberes Quotidianos, Transformações, Manipulações, Articulações 35

1.7 A Macrobiótica, Sistema Terapêutico 39

1.8 Cruzamentos Disciplinares: a Escrita que Transcende as Margens 44

2 Perspectivas sobre Alimentação 47

2.1 Antropologia da Alimentação:

Estradas, Caminhos e Encruzilhadas Para Uma Investigação 47

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X

2.2 Perspectivar a Alimentação Macrobiótica a Partir dos

Estudos sobre Alimentação 57

2.3 Estudos Sociais Sobre Alimentação em Portugal:

Interpelações a uma Pesquisa Sobre a Macrobiótica 63

2.4 A Macrobiótica Olhada pelas Ciências Sociais 75

2.5 A Macrobiótica Olhada Pelas Ciências da Saúde 79

3 A Macrobiótica: Trajectos e Trânsitos de um sistema

de conhecimento 101

3.1 Em busca das Origens: Percursos e Sentidos da Macrobiótica 101

3.2 Ohsawa, Fundador da Moderna Macrobiótica 106

3.3 Da Macrobiótica ao Movimento Shoku-yō: Percursos e Precursores 108

3.4 Do Movimento Shoku-yō à Macrobiótica: Aspirações Universalistas 121

3.5 Trânsitos da Macrobiótica pelo Mundo 126

3.6 A Macrobiótica: Princípios e Categorias para Ler o Mundo 142

4 A Macrobiótica em Portugal 163

4.1 A Macrobiótica em Portugal: Condições de Emergência e Divulgação 163

4.2 Retrato em números: para uma Sociografia da Macrobiótica 193

4.3 Ensino e Aprendizagem da Macrobiótica:

Modos de Transmissão de Conhecimentos 213

5 Sistemas Terapêuticos em Confronto: Práticas

Marginais e Sistemas Dominantes 249

5.1 A Macrobiótica: um Sistema Terapêutico 249

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XI

5.1.1 Nas Margens do Poder Biomédico 249

5.1.2 Macrobiótica, Corpo, Saúde e Doença 256

5.1.3 Traçar Fronteiras, Persuadir, Consciencializar 275

5.1.4 O Corpo como Território de Decisões Individuais

5.2 Macrobiótica e Biomedicina: Intersecção e Confronto 290

5.2.1 Da Biomedicina à Macrobiótica: Experiências e Narrativas 290

5.2.2 No consultório: Cruzamentos entre Sistemas Terapêuticos 303

Considerações Finais 323

Apêndices

Apêndice 1 – Carta de agradecimento do Museu Nacional da História Americana

à família Kushi 335

Apêndice 2 – Tabela de classificação dos alimentos Yin e Yang 337

Apêndice 3 – Glossário 339

Bibliografia 345

Fontes documentais 345

Livros e Artigos 345

Textos referenciados de divulgação da macrobiótica 361

Endereços electrónicos referenciados 363

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XII

Índice dos Quadros

Quadro 1 – Níveis de Discernimento e de Consciência 154

Quadro 2 – Exemplos de Yin e de Yang 158

Quadro 3 – As Cinco Transformações 159

Quadro 4 – Distribuição dos Participantes pelos Cursos 197

Quadro 5 – Distribuição Segundo o Sexo dos Participantes 198

Quadro 6 - Distribuição Segundo a Idade dos Participantes 198

Quadro 7 - Distribuição Segundo o Estado Civil dos Participantes 199

Quadro 8 - Distribuição Segundo a Naturalidade dos Participantes 200

Quadro 9 - Distribuição Segundo o Local de Residência dos Participantes 201

Quadro 10 - Distribuição Segundo a Escolaridade dos Participantes 202

Quadro 11 - Distribuição Segundo a Profissão dos Participantes 204

Quadro 12 – Distribuição Etária 306

Quadro 13 – Distribuição de Acordo com a Residência 307

Quadro 14 – Distribuição Segundo a Profissão 309

Quadro 15 – Problemas de Saúde 311

Índice das Figuras

Figura 1 – Pirâmide Original da USDA 91

Figura 2 – Pirâmide de Willett e Skerrett 91

Figura 3 – The Healthy Eating Pyramid 94

Figura 4 – Pirâmide Macrobiótica de Michio Kushi 94

Figura 5 – Ba Gua do I Ching 146

Figura 6 – A Espiral da Evolução 147

Figura 7 – Desenvolvimento Humano em Espiral: de embrião a adulto 148

Figura 8 – O Ciclo Vega/Estrela Polar 149

Figura 9 – Espiral da História 150

Figura 10 – A Espiral dos Elementos 151

Figura 11 – A Ordem do Universo 152

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XIII

Figura 12 – A Espiral da Criação 153

Figura 13 – Os Cinco Elementos 158

Figura 14 – Alimentação Macrobiótica Padrão 234

Figura 15 – Sopa de Miso 243

Figura 16 – Empadão de Millet com Lentilhas 244

Figura 17 – Tarte de Maçã 244

Figura 18 – Exemplo de um Pequeno-almoço Típico 245

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Introdução

1

INTRODUÇÃO

Francisco e Rita dobraram já os 30 anos, faltando-lhes pouco para chegar aos 40.

Eram bem mais jovens quando se conheceram, nos anos 90, ambos estudantes

universitários, ele frequentando o curso de Medicina Veterinária e ela o de Engenharia

Florestal. Se ele exerce hoje a profissão para que se formou, ela, embora reconheça

importância ao curso que concluiu, nunca retirou dele grande proveito em termos

profissionais. Esta é uma história banal, de dois jovens que se conheceram, se

apaixonaram e se juntaram, apenas interessa neste contexto pelo facto de a macrobiótica

se ter atravessado na vida de ambos com força e impacto suficiente para influenciar a

vida que têm hoje e querem ter no futuro. Rita chegou primeiro. Na verdade, desde

muito cedo, criança ainda, por influência dos pais, eles próprios praticantes durante

algum tempo da alimentação macrobiótica. Em comum com Francisco tinha o interesse

por questões ambientais e o desejo de uma vida em maior contacto com a natureza.

No caso de Rita, o seu interesse pela macrobiótica teve uma expressão prioritária

na alimentação. Foi esse interesse que a levou a frequentar o Curso Curricular de

Macrobiótica no Instituto Macrobiótico de Portugal, e foi a chegada a este lugar que lhe

permitiu aprofundar conhecimentos que lhe permitiram exercer com mais competência a

profissão que entretanto escolhera: cozinheira na área da macrobiótica. Tratou-se de

uma escolha consciente, que se deveu mais à paixão que à formação académica, e que,

por isso mesmo, a disponibilizou a começar por onde pudesse. Fê-lo trabalhando num

restaurante, sempre confeccionando pratos macrobióticos, chegando, mais tarde, à

participação num negócio nesta mesma área. O mesmo espírito de paixão que a levou a

este ramo impeliu-a a abandoná-lo, por entender que dessa forma poderia dar uma

assistência mais adequada aos filhos que entretanto nasceram

Foram dois, esses filhos, um tem neste momento três anos, o outro apenas um.

Nasceram ambos em casa, uma vez mais numa escolha decidida, que visava evitar o que

Francisco e Rita entendiam ser o espaço desumanizado do hospital, a obrigação de

vacinação e outras intervenções abusivas sobre o corpo da mãe e do filho. A ideia de

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«À Mesa com o Universo»

2

que agindo dessa forma correria riscos imprevistos esteve sempre acautelada: Rita foi

acompanhada, durante a gravidez, por uma doula, um enfermeiro obstetra, fez análises

ao sangue e duas ecografias. As crianças seguem uma alimentação macrobiótica, mas o

empenhamento dos pais leva-os a fazer algo mais, dispondo-se a educar os filhos em

casa. Argumentam que as instituições de acompanhamento de crianças não se

encontram em conformidade com o que pretendem para os seus filhos, quer do ponto de

vista da sua organização, quer no que diz respeito aos modelos educativos – além das

dificuldades que decorreriam da prática de uma alimentação macrobiótica em tais

instituições. Adeptos da pedagogia Waldorf, criada por Rudolf Steiner (1919), ou seja,

de uma proposta que incide na ideia de um desenvolvimento integrado da criança,

interligando dimensão física, anímica e espiritual, foi Rita quem se disponibilizou para

um acompanhamento a tempo inteiro, abdicando da sua actividade profissional.

Esta família vive hoje num pequeno apartamento, mas em breve ocupará uma

casa que faz parte integrante do desejo de construírem uma vida alternativa às escolhas

mais comuns. Foi, desde logo, um desafio para o arquitecto que a concebeu e para os

trabalhadores que ainda a estão a edificar. Desafio, porque se tratou de explorar novos

materiais e houve, desde o começo, vontade de inovar. Situada em meio rural, ainda que

próxima de uma área urbana, a casa é quase totalmente construída com materiais

naturais (cerca de 95%), procurando ser expressão de respeito pelo ambiente. É com

entusiasmo que falam desta casa quase pronta a estrear, e fazem-no não por vaidade,

mas por acreditarem que precisam daquele espaço para adicionar algo mais a um

projecto de vida alternativa em que acreditam.

A escolha deste caso para abrir um trabalho com a natureza que este tem é uma

opção pouco ortodoxa. A intenção, no entanto, é clara: convocar um exemplo capaz de

ilustrar algumas das questões que serão inevitavelmente abordadas ao estudar a

macrobiótica. Não que as escolhas que Francisco e Rita fizeram e ainda estão fazendo

sejam exclusivas da macrobiótica, mas sem dúvida que encontram nesta prática lugar (e

discurso) de inspiração. Pode dizer-se que este casal foi aqui tomado como um tipo

social – não um tipo ideal, mas uma expressão da realidade, o que significa dizer que

operam apenas com uma parte das possibilidades que a adopção da macrobiótica

comporta. O modo de vida que se subentende a partir da descrição que foi feita é um

modo de vida alternativo, no sentido em que assenta numa procura particular de

harmonia entre o mundo natural e social. Dela faz parte integrante uma alimentação

que dê preferência a alimentos biológicos, que sejam tão pouco refinados e processados

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Introdução

3

quanto possível. Faz também parte a escolha de cuidados de saúde pouco

“medicalizados”, contestando práticas massificadas como a vacinação e desejando que

as mulheres se centrem na maternidade. Importa notar, desde já, que estas são

orientações e condições dificilmente observáveis em classes sociais desfavorecidas.

Convém também dizer que algumas destas escolhas não podem ser generalizadas a

todos aqueles que têm a macrobiótica como referencial de orientação para as suas

acções, muito embora constituam um conjunto expressivo de aspectos que são

valorizados nessa proposta de orientação no mundo e que são entendidos como

promovendo um maior equilíbrio individual, familiar, social e ambiental.

Os temas que procurarei explorar neste trabalho inspiram-se neste e noutros casos.

Mais especificamente, têm a ver com o modo como a macrobiótica se foi constituindo

como proposta significativa de orientação no mundo e com o sistema de concepções,

valores, ideias, representações e práticas que a caracterizam. Dito de outro modo,

analisarei o processo social através do qual um produto social, a macrobiótica, foi

sendo divulgado e apropriado nas sociedades euro-americanas, incidindo a minha

atenção na sociedade portuguesa em particular. Tratar-se-á, aqui, de procurar identificar

de que forma a macrobiótica, um produto de inspiração japonesa, é difundido e

apropriado na Europa e na América.

Seguindo os múltiplos trânsitos da macrobiótica, procurarei evidenciar o quanto

ela é um produto cosmopolita. Viaja pelo mundo com os seus promotores/divulgadores,

e coloca em circulação ideias, saberes, significados, cosmovisões. Promove a

comercialização de utensílios e alimentos, sabores e aromas, alguns com origem em

contextos orientais como o Japão, mas que à medida que vão sendo transaccionados e

apropriados tomam inevitavelmente novas formas, adquirindo algo dos lugares e das

culturas que os integram. Encontramos a macrobiótica em Nova Iorque, Tóquio, Paris,

Londres ou Lisboa. Sabemos que, do ponto de vista alimentar, pode apresentar algumas

variações, de acordo com o lugar onde a comida é confeccionada e o envolvimento de

quem a prepara, mas ainda assim a nossa imaginação não escapa a uma mistura de

ingredientes e um estilo de confecção concordante com a matriz que foi desenhando

essa prática alimentar. Uma matriz que une indivíduos de muitos lugares do mundo, que

os coloca em conexão através de novas redes de comunicação e que nos faz pensar

numa comunidade desterritorializada e transnacional (Dietz, 2007). A macrobiótica

tem esse estatuto, o de ser um sistema de conhecimento e de representações

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«À Mesa com o Universo»

4

transnacional, em torno do qual se desenvolvem processos de identificação, processos

fluídos, instáveis e difusos.

Tal como foi definida por Michio Kushi, um dos seus principais divulgadores, a

macrobiótica deriva, em termos de designação, dos termos gregos macro, que significa

longo ou grande e bios que significa vida. Para este autor, a macrobiótica significa:

(…) o modo de viver de acordo com a mais ampla das perspectivas, a ordem

infinita do universo, e tem vindo a significar a via da longevidade e

rejuvenescimento (…). A prática da macrobiótica é o entendimento e a aplicação

prática desta ordem ao nosso estilo de vida, incluindo a selecção, preparação e

modo de comer o nosso alimento diário, bem como a orientação da consciência.

(Kushi, 1978: 30-31).

Nesta citação encontramos os eixos fundamentais a partir dos quais a

macrobiótica deve ser perspectivada, como cosmovisão, com um conjunto de princípios

de entendimento do universo e como aplicação prática desses mesmos princípios. Neste

âmbito, a questão alimentar é apenas um aspecto, ainda que de relevo, da aplicação

prática de uma visão do mundo. Neste sentido, procurarei dar conta ao longo do trabalho

de um processo que conduz à divulgação e adopção dessa visão, perspectivando-o como

um processo de reencantamento do mundo face a uma sociedade desencantada.

Este processo mobilizou diversos agentes e encontrou contextos históricos de

desenvolvimento que não serão por mim esquecidos. Procurarei, assim, prestar atenção

ao trajecto de Georges Ohsawa (fundador da macrobiótica moderna) e às circunstâncias

histórico-sociais que o conduziram à defesa e criação de um conjunto de princípios

fundados na filosofia e religião orientais e na “alimentação tradicional” japonesa. Por

outro lado, prestarei também atenção às condições de acolhimento na Europa e nos

EUA para propostas como a macrobiótica. Procurarei demonstrar que a rejeição do

materialismo, industrialismo e tecnocracia, configuraram movimentos sociais que foram

favoráveis à ideia de uma “alimentação saudável” e à expansão da macrobiótica.

Veremos ainda que a macrobiótica intercepta outros movimentos, designadamente

o movimento da agricultura biológica, do vegetarianismo e outros movimentos

ambientalistas, dialoga com eles e expande-se a partir deles. Em Portugal, a

macrobiótica começou por ser acolhida sobretudo por vegetarianos, ou seja, por

indivíduos que já faziam escolhas alimentares distantes das convencionais, e que,

provavelmente por este motivo, demonstraram receptividade relativamente a esta

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Introdução

5

prática. Veremos também que existem grandes afinidades do ponto de vista sociográfico

entre os consumidores de produtos biológicos e os seguidores da macrobiótica (cf. cap.

4).

Procurarei ainda demonstrar que a macrobiótica contribuiu para transformar o

espaço alimentar (Poulain, 2003), diversificando-o, introduzindo novas concepções

sobre os alimentos e modos de os confeccionar e apresentar. Proporcionou ainda a

familiarização com novos produtos e promoveu o seu consumo. Esta transformação terá

repercussões ao nível da comercialização e distribuição de produtos, conduzindo à

criação de empresas de produção e distribuição de alimentos, como a «Erewhon»,

«Lima» e «Próvida», entre outras, que serão inovadoras, pelo menos relativamente aos

produtos que disponibilizam. Procurarei ainda evidenciar que as modificações que têm

sido introduzidas na construção de pirâmides alimentares revelam uma maior

proximidade em relação à pirâmide alimentar proposta pela macrobiótica do que no

passado. O que, com tal facto, se procurará defender é que houve transformações nas

orientações alimentares que aproximaram o mainstream da macrobiótica, uma prática

marginal, em termos de números de seguidores. A possibilidade de existirem relações

dinâmicas entre diferentes sistemas de conhecimento será assim por mim explorada (cf.

cap. 2)

Uma atenção particular recairá sobre a prática da macrobiótica em Portugal.

Numa primeira fase (cf. cap. 4) procurarei traçar uma história da macrobiótica no nosso

país, focalizando-me no contexto de emergência e nos agentes que iniciaram a

divulgação desta proposta de orientação no mundo, procurando, depois, analisar formas

de expressão da macrobiótica em Portugal, através da Unimave, restaurantes, empresas

de distribuição, experiência nas cantinas universitárias portuguesas, etc. Ainda no

capítulo 4, dedicarei a minha atenção à transmissão de conhecimentos na área da

macrobiótica, centrando-me particularmente na minha própria experiência num curso

nessa área. Esta dimensão será tomada como fundamental, dado ser responsável, em

larga medida, pela circulação de conhecimentos.

No capítulo 5, centrar-me-ei na macrobiótica enquanto sistema terapêutico,

trabalhando sobre as concepções do corpo e da saúde, procurando identificar

argumentos que sustentem diferentes formas de intervenção sobre o corpo. A temática

central desse capítulo será o pluralismo terapêutico e as políticas do corpo. Recolherei

testemunhos de indivíduos que entenderam não seguir inteiramente as orientações

médicas e procuraram soluções alternativas noutros universos terapêuticos. Essa será

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uma oportunidade para confrontar diferentes sistemas terapêuticos e observar que tipo

de relações é estabelecido com a biomedicina a partir da macrobiótica. Explorarei, a

partir deste confronto, a noção de articulação e de relação dinâmica entre diferentes

sistemas. Essa será também uma ocasião para me centrar no debate estrutura-agência e

na forma como o corpo é transformado em campo de experimentação. Tornado

regularmente num território de decisões individuais, esse corpo revela agentes que nem

sempre agem de acordo com estruturas hegemónicas, como as relacionadas à

biomedicina, e buscam vias alternativas. Uma busca que nem sempre é bem-sucedida, e

disso será exemplo um processo judicial que analisarei, em que um casal ligado à

macrobiótica é acusado de incompetência parental por não vacinar os filhos e os retirar

da escola, vindo a efectivar-se a retirada dos filhos à tutela dos pais e institucionalização

dos mesmos. Nem sempre o final é feliz, como no caso com que se iniciou esta

introdução. Quando os técnicos do Estado decidem ficar vigilantes sobre modos de vida

alternativos os resultados podem ser desastrosos.

Atravessa este trabalho a consciência da importância de estudar as margens. Delas

vem, frequentemente, a inovação e a experimentação de novas vias sobre o corpo, os

alimentos ou outras materialidades. Permitem o questionamento de formas mais

convencionais e institucionalizadas de acção, sendo um desafio à contraposição entre

modos diferentes de pensar e agir. Percorre ainda este trabalho a clara noção de que a

macrobiótica, como produto social que é, se tem modificado ao longo dos tempos em

função de lugares, intervenientes, processos em jogo e «caminhos multi-direccionais de

circulação do saber» (Bastos, 2011: 31). Desta forma, a macrobiótica deve ser

perspectivada como entidade dinâmica, que influencia outras actividades mas que é

também influenciada por formas de conhecimento específicas, como as que resultam do

conhecimento científico. É, portanto, em estreita articulação com outros fenómenos

sociais que procurarei analisar práticas e representações em torno da macrobiótica.

*

A recolha de elementos para esta pesquisa estendeu-se no tempo muito mais do

que aquilo que é comum neste tipo de investigações. O meu interesse pela macrobiótica

remonta a 2001, quando, a partir das aulas de yoga que na altura frequentava, tive

conhecimento de um curso de cozinha macrobiótica que iria decorrer em Braga. Dada a

atracção que sentia pela alimentação enquanto domínio de investigação, este facto

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Introdução

7

acabou por funcionar como estímulo para que encarasse a macrobiótica como campo

possível de pesquisa. No sentido de confirmar esta possibilidade, e também porque me

interessava saber mais sobre a macrobiótica, acolhi a oportunidade de frequentar esse

curso. Pode dizer-se que esta decisão procurava responder tanto a um interesse, ainda

incipiente, por uma possível área de pesquisa, quanto à satisfação de uma curiosidade

algo diletante sobre um entendimento dos alimentos que me parecia algo exótico. Nessa

altura, quando pensava em macrobiótica pensava sobretudo em comida e, confesso, não

pensava em comida saborosa. Intrigava-me o facto de se seguir aquela alimentação e

julgava que deviam existir, seguramente, razões de saúde, ou outras, muito fortes, para

justificar tal opção. Para ser rigorosa, devo dizer que meu contacto inicial com a

macrobiótica havia sido anterior a essa situação; datava, na verdade, dos finais dos anos

1980, da Cantina da Universidade de Lisboa. No entanto, muito embora existisse esse

contacto prévio, o meu conhecimento sobre a macrobiótica era escasso, e essa minha

experiência anterior com a “comida macrobiótica” não havia despertado, na época, um

interesse que motivasse maior aprofundamento. Vários anos seriam volvidos para que a

macrobiótica de novo me interpelasse, agora como potencial objecto de investigação

académica.

Os primeiros passos para o desenvolvimento desta pesquisa começaram assim a

ser dados com o curso de cozinha que efectuei em 2001-02 (108h). A frequência desse

curso proporcionar-me-ia um contacto mais próximo com a visão do mundo proposta

pela macrobiótica e com um conjunto de pessoas que se interessavam sobre esta forma

de entendimento do mundo. Alguns desses contactos vinham já das aulas de yoga - o

que sugeria afinidades entre as duas práticas – noutros casos, os participantes tinham-se

interessado pela macrobiótica ao ponto de terem feito ou procurarem fazer dela

actividade profissional e meio de sobrevivência. O desenvolvimento desta investigação

iniciou-se assim com um processo que viria a ser marcante no decurso de toda a

pesquisa e que foi um processo de aprendizagem e formação na área da macrobiótica. A

opção pela realização desse curso foi por mim pensada como podendo permitir-me

aceder a uma visão distinta e algo distanciada sobre os alimentos, o corpo, a saúde, a

doença, o mundo, e, também, como forma de estabelecer contactos com pessoas que

tinham encontrado na macrobiótica significações expressivas.

Nessa primeira abordagem, não procurei nenhum direccionamento específico, em

termos de investigação, procurando mais estar atenta às questões que podiam ser

suscitadas a partir das minhas observações do que procurar respostas ou processos a

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«À Mesa com o Universo»

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partir de teorias ou questões previamente estabelecidas. Levando em consideração o

posicionamento de Barth (2000) a propósito da investigação social, com a ênfase que

este autor colocava na observação das situações de interacção e no facto de a teoria

dever ser erigida a partir das observações, parti para o terreno com abertura para, através

da observação de discursos e práticas sociais, identificar processos a partir dos quais

podia analisar o que observava. Procurava, dessa forma, evitar a armadilha das pré-

noções, ou seja, ir à procura de elementos que legitimassem formulações teóricas, ou

apenas confirmar o que sabia ou julgava saber. Neste sentido, o meu posicionamento

inicial foi muito mais o de «observar» e «ouvir o terreno», do que «fazê-lo falar» a

partir de questões ou olhares previamente estabelecidos (Weber, 2009). Acreditando que

na pesquisa social, mais importante do que adoptar uma orientação clássica, e usar a

teoria como «função de comando» (Almeida e Pinto, 1986) era desenvolver uma

investigação que, através da observação das práticas sociais e das situações de

interacção, me permitisse a interpelação de quadros teóricos existentes ou, caso

necessário, a construção de outros, procedi a uma recolha de informação mais intensiva

e extensiva do que orientada por perguntas específicas e problemáticas claras e bem

delimitadas. Existia, evidentemente, uma preocupação em conhecer melhor aquele

universo e as razões que levavam a que as pessoas se interessassem pela macrobiótica,

mas tal estava equacionado de forma vaga. Com este tipo de atitude face à pesquisa,

procurei encontrar contextos de observação diversos, a partir dos quais pudesse observar

recorrências, processos, elementos sinalizadores, que pudessem reconduzir-me à teoria

social. Julgando que a «realidade» (dimensão socialmente construída) não deveria ser

tomada como uma adequação à teoria, optei pois por «deixar o terreno falar». Esta

decisão não implicava, de forma alguma, desdém pela teoria, tratava-se sobretudo de

procurar que ela fosse consequência da observação empírica e não uma força de

comando.

Este modo de proceder, a ressoar algo da grounded theory, ainda que nunca

tivesse sido meu propósito aplicá-la, esteve longe de ser uma opção que tivesse intenção

de manter no decurso de toda a pesquisa. Logo me dei conta de que sem a convocação

de questões teóricas o terreno podia ficar mudo, num silêncio perturbador. Pode dizer-se

que isto conduziu à reformulação da minha postura inicial: mais do que evitar a teoria, a

atitude que se me afigurava como mais prudente era assim a de a convocar, mas com

inteira disponibilidade para alterar perspectivas e rever, quando necessário, eventuais

enquadramentos. Acabei por considerar que a questão da «função de comando» da

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Introdução

9

teoria não devia ser vista como orientação clássica a desprezar, nem vista como

impedindo novas perspectivas sobre a realidade, dado ser encarada como estando

sobretudo orientada para apenas encontrar aquilo que se procura. Partir da teoria pode

ser frutuoso quando esta é perspectivada como ponto de partida e de retorno, é esse

exercício que permite validá-la, reelaborá-la ou abandoná-la caso deixe de surgir como

instrumento significativo de interpretação da realidade. Mesmo que a teoria possa ter

uma função de comando numa fase inicial, no final o que deve prevalecer é a relação

dinâmica entre teoria e elementos recolhidos. É esse dinamismo entre aspectos de

natureza empírica e aspectos de natureza teórica que permitirá uma visão mais

esclarecedora sobre aquilo que se pesquisa.

Ainda que procurasse orientar-me no terreno com relativa abertura, evitando

tornar-me refém de alguma teoria em particular, percebi, na prática da investigação, a

impossibilidade de fazer tabula rasa de toda a informação que fui adquirindo, e me

servia, de forma nem sempre consciente, como ferramenta de leitura do terreno. Apesar

de reconhecer no processo de investigação o exercício de uma subjectividade particular,

não é possível ignorar que nessa subjectividade contam aspectos que decorrem da

formação científica. Ainda que estes se combinem com mecanismos de percepção e

intuição que lhe escapam, nada disto significa, porém, uma obliteração da preocupação

com o rigor e com o carácter científico, nem justificam que no resultado do processo de

investigação se fique a saber mais sobre o investigador do que sobre o que foi

pesquisado. No caso concreto deste trabalho e nos elementos que convoco para

desenvolver esta pesquisa, sejam eles a informação obtida a partir de diversos contextos

de observação, da pesquisa documental ou de relatos de diferentes intervenientes nesse

processo, há uma procura de diversificação que visa um conhecimento rigoroso e

aprofundado sobre as práticas em torno da macrobiótica. Se é pela preocupação com o

rigor, sustentação e demonstração que se torna possível distinguir o conhecimento

científico de outros modos de conhecimento, devo dizer que tais critérios foram

seguidos. As inevitáveis lacunas são o terreno fértil para quem quiser acrescentar algo

mais a esta investigação.

“Observar”, “escutar”, “estar com”, tal como proposto por Florence Weber

(2009), foram procedimentos a que procurei recorrer para saber mais sobre as práticas e

representações associadas à macrobiótica. Aquilo de que nos apercebemos quando

observamos e escutamos é quase sempre muito mais do que quando colocamos

questões. Não pretendo com isto dizer que contactos mais orientados, como situações de

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«À Mesa com o Universo»

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entrevista ou conversas estabelecidas a partir de um guião, não sejam úteis, também a

eles recorri, mas há efectivamente uma riqueza narrativa particular numa situação

menos encenada e em que nos podemos colocar como meros observadores ou

intervenientes em processos em que não somos considerados elementos externos. A

abordagem etnográfica, pelo seu olhar mais continuado e mais próximo, permite, na

verdade, encontrar relações e desvendar mecanismos que outras metodologias de

recolha de informação nem sempre permitem encontrar. Um trabalho de terreno

intensivo e menos orientado tem sobre outras técnicas a vantagem de poder mais

facilmente aceder a dimensões e relações de que nunca se poderia suspeitar com o uso

de instrumentos como o inquérito por questionário. O facto de nem todos os fenómenos

terem a mesma visibilidade social e de alguns não se revelarem de forma clara e oficial,

torna este tipo de abordagem particularmente eficaz no conhecimento de certas

dinâmicas sociais. Efectivamente, e usando esta pesquisa como ponto de referência,

apenas a participação nestes cursos de formação permitiu apreender estratégias

discursivas de divulgação que, frequentemente, convocavam a biomedicina e as

Ciências da Nutrição, e em que estas não surgem apenas como referente de alteridade.

Algumas das questões centrais deste trabalho acabaram por advir, efectivamente,

da realização do trabalho de terreno. Por exemplo, apenas com o decorrer do tempo, a

importância da formação e a questão da relação dinâmica entre discursos associados à

macrobiótica e discursos ligados às ciências da nutrição e biomedicina, se tornariam

dimensões prementes na investigação. Seria também pelo contacto com indivíduos

ligados à macrobiótica, e com a formação específica nesta área, que me aperceberia da

existência de diferentes modos de praticar a macrobiótica: alguns, mais conservadores, e

também mais afastados da formação, sustentando-se numa leitura restrita dos

ensinamentos de Ohsawa, e outra, mais actualizada, onde a alimentação não era seguida

de forma tão rígida e onde as modificações alimentares iam sendo feitas de forma

gradual. Seria também através do contacto com os meus colegas que me pude aperceber

que a prática da macrobiótica pode ser muito diferenciada de acordo com os indivíduos

implicados e com a situação em que se encontram – por exemplo, indivíduos com

problemas de saúde específicos podem estar mais dispostos a fazer grandes

transformações alimentares e a seguir regimes mais estritos.

A diversidade de contextos de recolha de dados para esta pesquisa foi fazendo

com que múltiplas vozes se cruzassem, do formando ao formador; do vendedor ao

praticante; do indivíduo que adopta a macrobiótica por razões de saúde ao outro que a

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Introdução

11

vê como meio para “ganhar a vida”; do indivíduo que procura seguir com rigor todas as

recomendações ao outro que está sobretudo interessado na dimensão filosófica da

macrobiótica.

Na recolha de elementos para esta pesquisa não foram necessárias grandes

negociações sobre a minha posição no terreno. O contexto de formação ou a minha

presença no Campo de Verão não eram, na verdade, contextos em que pudesse ser vista

como intrusa; era apenas mais alguém que estava interessado pela macrobiótica. Desde

o início deixei claro que me encontrava a desenvolver uma investigação académica

sobre a macrobiótica e fui falando sobre este trabalho com muitos dos meus colegas de

curso, mas não julgo que tenha sido vista como alguém exterior ao grupo. Encontrava-

me ali por razões tão aceitáveis como tantos outros. Por outro lado, também me pareceu

que o trabalho que me encontrava a desenvolver chegava a ser visto como algo que

necessitasse da formação que ali era proporcionada. Beneficiei, portanto, de um estatuto

de paridade no seio do grupo em que me encontrava inserida.

Em qualquer trabalho de investigação é necessário gerir proximidades e

distanciamentos. Por um lado pretende-se a confiança dos interlocutores e a

possibilidade de uma observação mais próxima, e, por outro, procura-se evitar um

envolvimento excessivo, impeditivo do necessário distanciamento para uma observação

mais imparcial. No caso desta investigação, a gestão desta dimensão acabou por ocorrer

mais na fase de reflexão e escrita do que no contexto de interacção. O modo como me

envolvi com muitos dos indivíduos que contactei não foi meramente casual e pontual,

nem intenso num momento para depois se ir esbatendo à medida que me ia distanciando

do trabalho de terreno. Alguns desses indivíduos passaram a fazer parte do meu

universo de relações e houve um significativo envolvimento da minha parte com a

macrobiótica. Contudo, a escrita acabou por ter um papel mediador face a esses mesmos

indivíduos. A atitude reflexiva inerente a esse processo acabou por contribuir para o

desencadear da gestão dessas proximidades e distanciamentos. Sobre o meu

envolvimento com esta pesquisa, devo dizer que numa primeira fase, face até à

novidade da experiência alimentar, eu própria cozinhei e segui uma alimentação

próxima dos princípios defendidos na macrobiótica, todavia, rapidamente passei a fazer

uma selecção de acordo com critérios menos macrobioticamente centrados. Muitas das

aprendizagens que fiz foram relevantes e algumas delas ainda as utilizo na hora de

escolher e preparar alimentos, integrando assim a experiência da observação e do

trabalho de terreno na minha vida.

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«À Mesa com o Universo»

12

*

A abordagem adoptada neste trabalho foi uma abordagem qualitativa e intensiva,

característica da abordagem etnográfica. A recolha de elementos a partir dos quais foi

elaborado este trabalho ocorreu em diversos espaços de observação, estando, contudo,

particularmente enquadrada nas sessões de formação na área da macrobiótica e naqueles

que frequentaram essas sessões. Houve também contactos e entrevistas em

profundidade com indivíduos que se encontravam desligados desses contextos, mas foi

sobretudo no âmbito que referi que a informação foi recolhida. A pesquisa teve início

em 2001, mas a recolha mais intensiva de elementos ocorreu entre 2005 e 2009, altura

em que esta pesquisa passou a estar institucionalmente enquadrada e, também, altura em

que iniciei uma recolha mais sistematizada de dados a partir do Instituto Macrobiótico

de Portugal (IMP).

Lisboa e Braga foram os contextos geográficos escolhidos para a realização deste

trabalho. Tal opção, no caso de Braga, deveu-se mais à circunstância de morar nesta

cidade, tendo sido um critério diferente que me levou a escolher Lisboa. Na verdade, o

facto de o IMP se encontrar sediado nesta cidade, e de ser a partir desta instituição que

se estrutura muita da actividade desenvolvida em Portugal na área da macrobiótica,

tornou Lisboa num contexto incontornável nesta análise. Devo realçar, aliás, que o

curso de cozinha macrobiótica que frequentei em Braga conferia diplomas certificados

pelo IMP. Tratou-se, portanto, de uma actividade que era uma extensão daquilo que se

fazia em Lisboa, tendo também a formadora realizado a sua aprendizagem no IMP. Esta

circunstância acabou por ganhar relevo com o decurso da investigação e com a

avaliação do modo como foi sendo divulgada a macrobiótica na Europa e nos EUA. Um

processo de disseminação, que, como veremos, foi ocorrendo em diferentes contextos,

de forma relativamente isolada, ainda que sustentado por uma rede, e que rapidamente

se foi expandindo. Também Braga surge nesse processo, tendo nascido, a partir dessa

actividade, novos cursos de cozinha, dinamizados por indivíduos que entretanto conheci

nesse curso. O mesmo movimento levou ao surgimento de dois restaurantes a partir das

actividades iniciais, assemelhando-se a um efeito de contaminação.

Após a frequência do curso de cozinha em 2001-02 - curso que decorreu entre

Outubro e Julho - um fim-de-semana por mês entre as 10h e as 18h - e seguindo a

trajectória de muitos dos que se começam a interessar por estas áreas, acabei por

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Introdução

13

frequentar um curso de zen shiatsu1, também ele realizado em Braga e frequentado por

alguns dos meus colegas do curso de cozinha. Esse curso organizou-se em dois níveis e

em dois anos distintos. Assim, em 2003-04, de Setembro a Julho, frequentei o nível I,

um curso de 160h, com duas aulas por semana entre as 20h e as 22h. E em 2004-05, o

nível II, entre Outubro e Julho, com uma aula semanal, aos sábados, entre as 14.30 e as

18h, num total de 144 horas.

A frequência deste curso acabou por ocorrer por extensão à frequência do curso de

cozinha macrobiótica, como dizia. Foi aí que tive oportunidade de constatar que a

prática da macrobiótica se relacionava com outras actividades terapêuticas como o

shiatsu, a moxabustão e a massagem Do in2. Na verdade, estas actividades tinham uma

tal inter-relação que surgiam como integrando um mesmo «pacote» de ensinamentos e

de abordagem/intervenção sobre o corpo, sendo que uma formação mais completa na

área da macrobiótica implicava também esse tipo de conhecimentos. Nessa medida,

saber mais sobre shiatsu surgia como possibilidade não apenas de seguir um percurso

que é habitual neste tipo de formações e acompanhar esse processo, mas também como

forma de complementar os conhecimentos adquiridos no curso de cozinha e de aceder a

uma visão sobre o corpo que é vista, afinal, como constituindo um importante suporte às

intervenções sobre o corpo efectuadas a partir da macrobiótica. No decorrer do curso de

cozinha, um dos formadores havia já transmitido algumas noções sobre a energia ki,

sobre shiatsu, e sobre uma visão do corpo a partir dos meridianos, de tal forma que tais

temáticas surgiam como dimensões a aprofundar.

No contexto deste trabalho, não desenvolverei uma análise aprofundada do que aí

se ensinou, apenas farei menção a aspectos que considere relevantes para o

desenvolvimento da argumentação. Importa sublinhar, no entanto, a permeabilidade

entre estes diferentes cursos, e o modo como esse facto favoreceu a minha investigação.

A possibilidade de um contacto mais estreito com aqueles que frequentavam o curso de

shiatsu e que também se encontravam próximos da macrobiótica foi relevante. Por outro

lado, é de assinalar, que alguns dos que desconheciam a macrobiótica, acabaram por vir

a adoptá-la, dado que também a alimentação foi um dos conteúdos abordados no curso

de shiatsu. Como vemos, é possível observar, na verdade, uma relação estreita entre

1 Técnica em que é utilizada sobretudo a pressão dos dedos sobre o corpo para estimular a energia ki, que,

supostamente, circula através de canais específicos ou meridianos. Pode também ser utilizada a palma da

mão, os cotovelos, os joelhos ou os pés, para um diferente tipo de pressão. 2 A moxabustão é uma técnica em que é utilizado o calor, conseguido através da combustão de folhas

secas de artemísia (moxa), sobre os pontos de acupunctura. Tem como finalidade a estimulação da

energia ki. O Do In é uma técnica de auto-massagem que procura igualmente activar a energia ki.

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«À Mesa com o Universo»

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estas áreas, sendo que, muito frequentemente, umas implicam as outras. No caso do

curso de shiatsu, pude constatar que havia uma maior presença masculina, ainda que as

mulheres aí fossem predominantes. No capítulo 4 terei oportunidade de apresentar com

maior detalhe dados sociográficos relativos aos formandos com os quais fui

contactando.

Da mesma forma que alguns dos indivíduos que haviam frequentado o curso de

cozinha macrobiótica foram para o curso de shiatsu, também alguns dos que

frequentaram estes cursos ingressaram no Curso Curricular de Macrobiótica no IMP.

Era assim possível observar uma “rede de formação” na qual se moviam diversos dos

indivíduos contactados. Nos anos lectivos 2005-06; 2006-07; 2007-08, frequentei o

curso curricular de Macrobiótica Michio Kushi, um curso organizado em três níveis e

que se destinava a conferir uma formação geral na área da macrobiótica. Este curso foi

leccionado um fim-de-semana por mês, das 10h às 18h ao longo dos três anos. Contou

com a presença de vários formadores, nacionais e estrangeiros, e incidiu em domínios

tidos como fundamentais para que se desenvolvesse uma actividade como conselheiro

ou consultor na área da macrobiótica. Os conteúdos de formação iam dos aspectos

filosóficos contidos na abordagem que a macrobiótica faz do mundo, a classificações

yin e yang, e aulas de cozinha. Pelo meio surgiam ainda aulas de shiatsu, de diagnóstico

visual, de anatomia, de confecção de remédios caseiros, de aplicação da teoria das cinco

transformações na abordagem do corpo…, enfim, o núcleo duro daquilo que são

considerados os ensinamentos básicos para que se possa actuar nesta área. O curso era

frequentado maioritariamente por pessoas que residiam em Lisboa ou arredores, tal

como à frente se poderá constatar, mas também por indivíduos que vinham de outros

pontos do país para frequentar este curso. Uma aluna deslocava-se mensalmente da

Madeira para adquirir essa formação. Havia também estrangeiros a frequentar o curso,

sobretudo no terceiro nível. Nesse ano a presença de espanhóis foi muito significativa.

Neste sentido, o IMP funcionava, e continua a funcionar, como centro de divulgação a

partir do qual se processa a disseminação de conhecimentos nesta área.

Dada a importância do IMP enquanto centro de formação, as minhas observações

acabaram por se centrar de forma particular nesta instituição. Havia várias vantagens

neste tipo de procedimento, por um lado tinha acesso a um conjunto organizado e

sistematizado de conhecimentos que permitiam identificar de forma mais adequada a

macrobiótica e as suas práticas, e, por outro, permitia-me um contacto próximo com

indivíduos para quem a macrobiótica correspondia a uma orientação com algum

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Introdução

15

significado. Se havia pessoas que já praticavam a macrobiótica há algum tempo, outras

havia que se mostravam pouco informadas sobre tal prática. Os contactos que estabeleci

não se limitaram, como disse, às pessoas que fui conhecendo no contexto desses cursos,

mas a maior parte esteve ligada a eles.

Em concomitância com os cursos que fui frequentando, fui assistindo a palestras e

conferências sobre esta temática, tendo tido oportunidade de assistir a duas conferências

de Michio Kushi em Lisboa, uma ainda em Novembro de 2002 e outra em Dezembro de

2005. Ao mesmo tempo ia descobrindo lugares de abastecimento e de consumo

(sobretudo lojas e restaurantes) que sustentavam a prática macrobiótica, quer em Braga,

quer em Lisboa. Tive ainda a oportunidade de participar em diversos Programas

Residenciais (programas de formação organizados habitualmente em quintas, onde se

promove o ensino e troca de aprendizagens num ambiente mais próximo e informal) que

surgiam integrados nos cursos de formação e que eram também uma oportunidade para

estabelecer contacto com alunos de outros anos e, até, com indivíduos que não se

encontravam ligados ao IMP enquanto alunos, mas que tinham afinidade com algumas

das pessoas que aí se encontravam e com o tipo de práticas proporcionado pelo instituto.

Esses momentos correspondiam a períodos de formação intensiva em que num ambiente

de maior proximidade e cumplicidade era promovida a aprendizagem. Esses

residenciais funcionaram em quintas situadas nos arredores de Lisboa.

A centralidade do IMP (mesmo em termos de localização, em plena Baixa-

Chiado), reconhecida fora do país (nesse sentido se pronunciaram alguns dos

formadores estrangeiros que contactei), viria ainda a proporcionar a realização de

seminários internacionais com professores e profissionais na área da macrobiótica. Estes

momentos foram importantes para compreender as ligações internacionais que existem

entre os muitos centros de macrobiótica que se encontram espalhados pelo mundo e

faziam pensar na existência de uma comunidade transnacional. Esses momentos

constituíram ainda possibilidades de reflexão sobre o “movimento macrobiótico” e

rumo que este deveria seguir. O facto de o director do IMP ter feito a sua formação nos

EUA e manter contacto com muitos desses centros, também contribuiu, certamente,

para essa maior internacionalização do IMP.

Para além do IMP que, dentro da macrobiótica, se situa numa linha muito próxima

da de Michio Kushi, procurei ainda prestar atenção a alguns outros centros de

divulgação, tendo tido alguns contactos com o responsável pelo Centro Europeu do

Princípio Unificador, centro associado ao restaurante «Tao» em Lisboa, também ele

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«À Mesa com o Universo»

16

dedicado à divulgação da macrobiótica. Esse contacto destinou-se essencialmente a

observar continuidades e divergências relativamente ao IMP, dado que esse centro se

situava como estando mais próximo de Tomio Kikuchi, discípulo de Ohsawa que a

partir do Brasil divulgaria a macrobiótica, do que de Michio Kushi. O responsável pelo

Centro Europeu do Princípio Unificador, reivindicava, de facto, ainda uma maior

proximidade em relação a Ohsawa do que a Michio Kushi. Muito embora tenha acabado

por não me centrar, no decurso deste trabalho, na análise de eventuais divergências e

rivalidades entre estes dois centros existentes em Lisboa, ficou claro que representavam

formas de actuação independentes, surgindo como evidente que o IMP constituía, de

entre ambos, o pólo de atracção mais significativo. O contacto com o Centro Europeu

do Princípio Unificador, viria, contudo, a permitir que assistisse a uma conferência em

Lisboa de Tomio Kikuchi quando este, em 2009, se deslocou a Lisboa.

O Espaço para refeições do IMP, os restaurantes «Tao», «Espiral», «Yin-yang»,

«Colmeia», «Cantina da Universidade de Lisboa», restaurantes «Semente» e

«Alfacinha» em Braga, foram lugares por onde me movi, sozinha ou acompanhada por

colegas, procurando familiaridade com estes contextos, de forma a observar de que

modo estava a ser posta em prática a cozinha macrobiótica3. Os contactos foram tão

numerosos ao longo destes anos que não os indico de forma absoluta, embora calcule ter

contactado cerca de uma centena de indivíduos. Estes contactos tiveram, evidentemente,

graus de intensidade muito diferente, em alguns casos resumindo-se a encontros

rápidos, ou mesmo a um único encontro, com uma entrevista relativamente formal,

enquanto noutros houve um contacto muito mais continuado. Em termos gerais, vale

dizer que os meus colegas dos diferentes cursos, bem como os respectivos formadores,

tiveram um peso bastante maior no contributo que deram para a realização deste

trabalho.

Para além dos restaurantes, os espaços de venda de bens alimentares, bem como

de outros produtos associados à macrobiótica, foram também lugares que frequentei e

onde acompanhei alguns dos meus colegas. Lugares de venda de produtos biológicos

como o «Mercado do Príncipe Real», a «Biocoop» ou a «Miosótis», em Lisboa, ou a

«Biobrássica», em Braga, foram também lugares que frequentei como consumidora e

onde pude estabelecer contactos, quer com vendedores quer com outros consumidores.

3 Não analiso essas observações, mas a frequência desses lugares, sobretudo quando acompanhada,

permitiu muitas conversas sobre a prática da macrobiótica e as muitas dificuldades em a cumprir a

“100%”.

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Introdução

17

A estes espaços há ainda a acrescentar outros idênticos, como as lojas «Celeiro» e

«Jardim Verde», o espaço de vendas do IMP, e outros associados ao funcionamento de

alguns dos restaurantes que referi.

Sabendo que um dos principais pontos de encontro e de convívio de alguns dos

que seguem a macrobiótica, ou têm alguma afinidade com esta prática, são os Campos

de Verão passei também uma parte do mês de Agosto de 2008 no Monte Mariposa

(Tavira - Algarve) onde costumam ser feitos estes encontros. Também aí tive

oportunidade de um contacto mais próximo com certos indivíduos, numa situação de

maior informalidade. Alguns estrangeiros participavam nesse Campo de Verão, que

pode ser descrito como um espaço e lugar polivalente, onde se podia desfrutar de

comida macrobiótica, ter aulas de cozinha, ouvir palestras sobre temas ligados à

macrobiótica, fazer aulas de yoga ou outra modalidade com afinidade com a

macrobiótica, ir à praia, fazer uma consulta de orientação alimentar ou algum tipo de

massagem, em suma, um lugar que proporcionava umas férias activas e onde várias

pessoas se reencontravam todos os anos. Para alguns participantes tratava-se de um

primeiro contacto com a macrobiótica e em alguns casos esse contacto veio a despertar

um maior interesse por esta área, conduzindo à realização de cursos de formação.

Uma outra parte importante deste trabalho viria a desenvolver-se em contexto de

consultório de orientação alimentar/social na área da macrobiótica. Aqui o contexto

seria um contexto clássico de interacção entre consultor e consulente, em que sob

pretexto de uma doença, ou algum tipo de queixa, era desenvolvido um diagnóstico e

apresentado um processo de cuidados e tratamento. Tratava-se aqui, sobretudo, de pôr

em prática a vertente de orientação alimentar da macrobiótica e também a sua dimensão

terapêutica, de acordo com a sua representação específica sobre o corpo e a saúde. Os

processos de tratamento incidiam, como veremos, sobretudo em questões alimentares.

Neste espaço fui assistente do consultor, cabendo-me sobretudo as funções de

observação e de anotação das recomendações alimentares que eram dadas no final da

consulta aos consulentes. Procedi ao registo de 50 situações de consulta, a elas

retornarei numa fase mais avançada deste trabalho (capítulo 5).

A acrescentar a esta diversidade de contextos de recolha de informação, devo

ainda referir que, no decurso desta pesquisa, foram analisados dois processos judiciais,

existindo, em ambos, uma intervenção do Estado motivada por decisões que

implicavam a macrobiótica. Num dos casos, tratava-se de um processo que tinha sido

iniciado por se suspeitar de negligência parental, dado que os pais tinham decidido não

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«À Mesa com o Universo»

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vacinar o filho (decisão que decorrera da ligação à macrobiótica e das objecções que no

seu âmbito são feitas relativamente à vacinação) e, no outro caso, de um processo de

efectiva retirada dos filhos a seus pais por ter havido suspeita de incompetência

parental. Este segundo caso teve também na origem a decisão de não vacinar os filhos

(os pais também estavam ligados à macrobiótica), atitude que, mais tarde, levaria ao

abandono escolar e, posteriormente, à retirada da tutela dos filhos. Não terei

oportunidade, no contexto desta pesquisa, de analisar este caso de forma tão detalhada

como mereceria, mas gostaria de dizer, desde já, o quanto ele é ilustrativo das

consequências inesperadas de tomadas de acção marginais ou minoritárias, facilmente

susceptíveis de levantar suspeitas e desconfianças.

Para a caracterização sociográfica dos indivíduos contactados com ligação à

macrobiótica, recorri, sobretudo, à consulta de arquivos do IMP relativos ao registo dos

alunos. O facto de, na altura da inscrição, ser preenchido um documento de

identificação com algumas questões de ordem pessoal, permitiu uma identificação mais

rigorosa dos mesmos. Dos elementos recolhidos, darei conta mais à frente (cf. cap. 4).

Este conjunto de espaços, que podemos considerar multi-situados, constituíram a

principal fonte de informação para a realização deste trabalho. Muitos dos elementos

que resultaram das observações efectuadas acabaram por não ser directamente

mobilizados para esta pesquisa, dado que não se ligavam, de forma evidente, às linhas

argumentativas com que este trabalho foi sendo construído. Considero, contudo, que

esse não foi um trabalho vão, pois acabou por proporcionar uma visão mais ampla sobre

a prática da macrobiótica, permitindo-me reavaliar as preocupações que orientavam este

trabalho no início, reequacionando-as. Neste sentido, foi pela relação dinâmica entre

teoria e observação/recolha de informação que este trabalho foi sendo (re)pensado e

construído.

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A escrita que desenha as margens

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Capítulo 1

A Escrita que Desenha as Margens

1.1 Escrever sobre as margens

Que lugar ocupa hoje a macrobiótica em Portugal? Quais as suas características?

Que razões levam à sua adopção? Que efeitos práticos resultam da adopção da

macrobiótica? Estas questões constituíram inicialmente o ponto de partida de uma

pesquisa que se estende há já uma década. O tempo entretanto decorrido permitiu

reformular estas questões e levantar outras, que foram surgindo como mais pertinentes

ou mais susceptíveis de análise em termos científicos. É certo que estas preocupações

começaram por não estar enquadradas institucionalmente; tal não invalidou, contudo,

que sobre elas não tivesse decorrido o tempo suficiente para irem sendo reformuladas

ou abandonadas mediante as observações que ia efectuando e os dados que ia

recolhendo.

Aprendi neste processo que a macrobiótica extravasa claramente esse domínio

específico que é o de concepções e práticas ligadas exclusivamente à alimentação. A

macrobiótica integra, como veremos, um conjunto de aspectos que constituem uma base

de orientação no mundo que está muito para lá da dimensão alimentar. No entanto, o

certo é que a macrobiótica é sobretudo conhecida pela sua referência à alimentação, o

que, de algum modo, faz com que, também neste trabalho, a macrobiótica seja

perspectivada com particular preponderância a partir das questões alimentares. Estas

questões, tão propícias a serem pensadas enquanto fenómenos sociais totais,

convocando frequentemente diversas dimensões da vida social, permitem compreender

que a partir delas se tenha pretendido poder aceder à complexidade da vida social no seu

todo. A via que aqui proponho não tem essa pretensão. O que procurarei fazer será

trazer mais conhecimento sobre uma proposta de orientação no mundo que tem adeptos

em Portugal e, reflectindo sobre ela, observar de que modo alguns sectores da vida

social, sobretudo os que se ligam à alimentação e saúde, acabam por ser particularmente

interrogados, questionados e produzidos. Haverá neste trabalho uma preocupação em

procurar situar, compreender e interpretar escolhas, posições, e, nessa medida, é desde

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«À Mesa com o Universo»

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já assumido um posicionamento mais compreensivo do que explicativo (com as

implicações de ordem metodológica que daqui decorrem) na análise social.

Fazendo uso das categorias analíticas consideradas mais adequadas, procurarei

demonstrar, através dos elementos recolhidos, sobretudo em Braga e Lisboa, e durante o

período de 2001 a 2008, como certas práticas situadas nas margens podem conduzir a

um questionamento de formas predominantes de acção, podendo mesmo ser capazes de

influenciar, ainda que de forma subtil, contextos que extravasam a estrita esfera da

macrobiótica. Muito embora os meus primeiros contactos com a macrobiótica possam

ser situados nos anos 80, inicialmente na cantina da universidade e posteriormente junto

de conhecidos, o meu interesse pela macrobiótica enquanto área de pesquisa surgiu a

partir da frequência de um centro de yoga no final dos anos 90, em Braga. Desde esse

período, através da frequência de palestras, cursos de cozinha macrobiótica, curso

curricular Michio Kushi no Instituto Macrobiótico de Portugal (IMP), curso de Shiatsu,

participação em residenciais de formação, campos de férias organizados no âmbito das

actividades ligadas à macrobiótica e assistência em consultas de orientação alimentar

macrobiótica, tenho mantido um contacto estreito com indivíduos ligados à

macrobiótica

Desenvolver um trabalho sobre a macrobiótica significa desenvolver um

trabalho sobre as margens, no sentido de dissertar sobre um conjunto de opções que são

divergentes em relação a práticas e concepções dominantes observáveis em Portugal.

Nesta medida, é possível observar, na macrobiótica, discursos orientadores que são

frequentemente discursos de contestação em relação a algumas das formas de

organização dominantes das sociedades euro-americanas. Estas formas de contestação

não estão habitualmente consubstanciadas em movimentos organizados, nem se dirigem

a todos os aspectos da vida social, mas, na medida em que questionam aspectos de uma

ordem dominante e obedecem a uma lógica que, pelo menos em termos alimentares e ao

nível dos cuidados de saúde, é discordante das lógicas preponderantes, podem ser vistas

como formas de resistência. Talvez mais que isto até, como formas de erosão dos

próprios sistemas dominantes, como inputpara a sua reconfiguração. Não se trata

sempre de uma resistência activa, mas, como referi, mais essa resistência subtil que se

expressa ao nível das opções feitas em termos de consumos e que contribui para a

transformação de mercados e formas de acção. Realizar um trabalho sobre a

macrobiótica significa, pois, teorizar sobre as margens, sobre formas de resistência,

sobre hegemonias, mas também sobre modos de adequação. Significa também reflectir

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A escrita que desenha as margens

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sobre o modo como indivíduos que (pelo menos por enquanto) não têm nem agenda

política nem projecto objectivo de transformação da sociedade, acabam por contribuir,

por vezes de forma criativa e inovadora, como procurarei demonstrar, para transformar

a realidade social.

1.2 Ideologia, Ideologias Alimentares

As questões com que iniciei este capítulo surgem agora enquadradas numa

formulação teórica que perspectiva a opção pela macrobiótica como reveladora da

importância dos processos ideológicos, dos discursos, e das crenças, na definição de

práticas alimentares e modos de concepção/ orientação no mundo. Este posicionamento

não significa que vejamos as escolhas alimentares como sendo sempre determinadas por

questões ideológicas. É bem possível seguir orientações alimentares sem prestar atenção

a concepções específicas que supostamente lhe estão por detrás (ao longo deste percurso

tive oportunidade de conhecer pessoas que se encontravam nessa situação), mas adoptá-

las já significa de algum modo um “acto de fé”. Optar pela forma de alimentação

proposta pela macrobiótica significa dar algum suporte aos princípios orientadores que

lhe subjazem, significa reconhecer como válido, pelo menos num determinado

momento, um conjunto de concepções, uma cosmovisão, que, não configurando

exclusivamente uma ideologia alimentar, também pode ser identificado como tal.

Ainda que a macrobiótica defendida e praticada hoje nos muitos centros

macrobióticos da Europa e dos Estados Unidos seja diferente da de Ohsawa (fundador

da macrobiótica moderna), tendo conhecido transformações e adequações aos novos

tempos, ela continua fiel, como procurarei demonstrar, aos princípios basilares criados

pelo seu fundador. O conjunto de concepções e sentidos associados, neste caso, à

comida, surgem assim como extremamente relevantes para compreender as práticas

alimentares. Podem proporcionar uma reavaliação do gosto e das qualidades nutritivas,

uma diferente estética e um novo conjunto de vantagens para a saúde, tal como refere

Scrinis (2007:125).

Adoptar a macrobiótica, significa, quando tal resulta de uma opção livre,

reconhecer um conjunto de orientações como válido. Pode até ser possível que não se

esteja informado sobre os “princípios filosóficos” associados à macrobiótica,

conhecimento que deveria estar subjacente à sua prática, mas quando se fazem escolhas

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«À Mesa com o Universo»

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alimentares orientadas a partir desta proposta, deposita-se valor neste tipo de orientação.

Acredita-se que aquelas escolhas, naquele momento, têm significado. Age-se, assim, em

concordância com um quadro ideológico particular, no sentido de uma visão do mundo

particular, a partir do qual são definidas escolhas alimentares e técnicas específicas de

confecção. Ainda que os indivíduos possam agir de uma forma que nem sempre é

consciencializada como estando enquadrada por uma ideologia, ela parece existir e

orientar parte das suas acções. De acordo com Žižek (1997) estaríamos aí nesse nível

fundamental de uma ideologia que é o de uma fantasia inconsciente que estrutura a

realidade social. Contudo, convém reafirmar, que se a macrobiótica não é sempre um

exercício consciente através do qual se procura colocar em acção uma ideologia, em

algumas ocasiões essa consciência encontra-se presente. Assim, procurarei argumentar

que a compreensão de práticas e concepções ligadas à alimentação macrobiótica exige

um conhecimento mínimo das orientações ideológicas que enquadram essas mesmas

práticas e concepções.

Que condições permitem tornar a macrobiótica numa opção válida? São

diversificadas as razões. Podem resultar da ocorrência de uma doença; de contactos

estabelecidos com círculos de amigos; de leituras feitas sobre esta proposta de

orientação; de uma obsessão com uma alimentação pretensamente saudável; de razões

sociais e filosóficas conectadas com movimentos ambientalistas e de defesa da “comida

saudável”; de desejo de distinção social e de outras razões ainda. Sejam quais forem os

motivos, os indivíduos atribuem sentido a esta proposta e julgam que ela pode ser a

chave para uma vida com maior qualidade (claro que esta é uma apreciação de carácter

subjectivo). A crença depositada por estes indivíduos no valor da macrobiótica leva-os a

integrarem-se em redes de relações sociais associadas à prática macrobiótica e a

procurarem, por vezes, formação específica nesta área. Adoptar uma nova forma de

alimentação não significa sempre alterar de uma forma global o estilo de vida, mas

costuma ser um bom ponto de partida para efectuar uma série de transformações, o que

evidencia a importância dos enquadramentos ideológicos na compreensão das formas de

concepção/acção. Estas mudanças, como veremos, estão longe de ser homogéneas,

podem seguir padrões rígidos numa fase e, noutras, padrões mais brandos, adequando-

se, então, num modo de vida muito menos comprometido com a macrobiótica e mais

desligado do quadro ideológico associado a esta proposta de orientação no mundo.

Usar aqui o conceito de ideologia parece quase um atavismo, dada a utilização

menos recorrente que tem sido feita deste conceito. O facto de ter havido um uso

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A escrita que desenha as margens

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excessivo e talvez abusivo desta categoria cognitiva, de ter havido sobretudo, em certos

casos, uma identificação quase exclusiva da noção de ideologia com orientações

políticas, e, ainda, de as fronteiras entre o que é ideológico e o que não o é se terem

esbatido, terá levado a que esta noção fosse considerada vaga e pouco objectivável,

perdendo assim algum do seu valor analítico (Laclau,1997). Na minha perspectiva, esta

categoria, no seu sentido mais amplo, e que aqui tomo sobretudo como visão do mundo,

continua ainda a ser um recurso com significado, na medida em que constitui um

suporte onde são encontradas orientações que frequentemente condicionam concepções

e acções. Isto não significa que toda a acção seja suportada por esse quadro ideológico,

até porque os indivíduos, com os seus fraccionamentos, se podem auto-referenciar em

diferentes quadros ideológicos. O que pretendo dizer é que a menção a esse conjunto

específico de concepções e de orientações, aqui visto como configurador de uma

ideologia, permite uma análise mais sustentada dos modos de percepcionar e de agir.

Ainda que a adopção desse quadro de referência possa ser parcial, ou não se verificar a

todo o momento, constitui um plano incontornável a partir do qual é gerado sentido e

onde entendo que devemos procurar significados.

Não é tarefa fácil identificar e enumerar sumariamente todos os aspectos que

podem ser vistos como constitutivos de uma ideologia, mas alguma dificuldade de

objectivação também não deve constituir, no meu entender, condição suficiente para

abandonar um recurso no qual reconheço valor heurístico. Na apresentação e

caracterização da macrobiótica a que procederei, procurarei identificar esse sistema de

ideias e de representações, essa visão do mundo em que por diferentes processos

simbólicos, os alimentos e o corpo vão adquirindo significados particulares. Adianto,

desde já, que há um conjunto de características que concorrem para uma

conceptualização do mundo que ajuda a compreender as orientações, escolhas e

decisões adoptadas no âmbito da macrobiótica, a saber: uma visão alternativa do

mundo, com uma visão holística do universo, da vida e do corpo; um desejo de

transformação da vida social; uma visão do mundo como sendo transformação contínua

regida por forças antagónicas e complementares yin/yang; uma cosmovisão em que se

promove a aproximação à natureza e à harmonia do mundo social com o mundo natural;

uma defesa dos produtos biológicos e pouco processados pelo facto de traduzirem uma

energia mais favorável ao desenvolvimento humano; uma crítica à biomedicina e ao

modelo agro-industrial de alimentação; uma crítica à modernidade, ao progresso e ao

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«À Mesa com o Universo»

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industrialismo.4 Estes são pois alguns dos aspectos que considero mais relevantes na

configuração de uma ideologia orientadora da acção.

O uso que dou à noção de ideologia corresponde,assim, sobretudo à sua acepção

mais neutral e alargada, vai mais de encontro a Karl Mannheim, que a entendia como

visão do mundo, do que a Karl Marx que a tomava como deformação da realidade e

produto da classe dominante. Para Mannheim (Ideologia e Utopia, 1986 [1929]), cada

grupo, com a sua posição social, desenvolveria uma visão sobre o real que seria

expressão dessa mesma posição. Nesse sentido, e na sua acepção, os grupos dominantes

elaborariam sobretudo ideologias de justificação enquanto os grupos dominados

construiriam ideologias utópicas e de contestação. Qualquer estrutura de pensamento

era vista como implicada num processo de ideologização, podendo ser vista como

relativa e como expressão de uma perspectiva particular (cf. Bonte e Izard, 1991). Mais

do que de ideologia deveríamos então falar de ideologias. O plural adquire aqui

particular significado, pois chama a atenção para a dificuldade em reconstituir o todo

social numa ideologia, como se fosse um corpus homogéneo e harmonioso e convoca-

nos a pensar as sociedades como constituídas por diferentes lógicas simbólicas, de

encontro ao proposto por Augé(cf. Bonte e Izard, 1991).

Não pretendendo desenvolver aqui um debate aprofundado sobre o uso da noção

de ideologia, não é esse o objectivo deste trabalho, gostaria de realçar que o sentido que

aqui atribuo a esta categoria contempla essa pluralidade nas formas de concepção e de

orientação. Perspectivo as ideologias como sistemas de ideias e representações onde se

alojam teorias, convicções, crenças, formas de argumentação que condicionam as

formas de acção. As ideologias não estão fora do real (realidade simbolizada,

socialmente construída), são constitutivas desse real, surgem no coração da realidade

social e alimentam-se dele. Desta forma, perspectivo cada indivíduo como podendo

auto-referenciar-se em diferentes quadros ideológicos, de acordo com diferentes

contextos de expressão. Entendo as diferentes formações ideológicas como sendo

mutáveis e não eternas, como não tendo um sentido unívoco, mas sim um carácter

dinâmico, ou seja, como não condicionando apenas a acção mas também se deixando

influenciar por ela. São, para além disto, o resultado de entendimentos e circunstâncias

específicos, passíveis de ser reinterpretadas e recompostas.

4Agradeço a João Guerra a leitura atenta de uma parte deste trabalho bem como a sua proposta para que

estabelecesse um paralelismo entre o movimento da agricultura biológica e o movimento que leva à

adopção da macrobiótica. Alguns dos aspectos que assinalo são sugestão sua e são efectivamente

reencontráveis no movimento da agricultura biológica (cf. Truninger, 2010)

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A escrita que desenha as margens

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1.3 Macrobiótica e Nutricionismo

O esclarecimento desta posição impunha-se para que pudesse analisar e discutir

as escolhas alimentares enquanto escolhas suportadas por uma ideologia, ou seja, por

quadros específicos de representação. Por outro lado, perspectivar as escolhas

alimentares na macrobiótica como devendo ser ideologicamente referenciadas, permite

explorar, no contexto deste trabalho, uma contraposição que me parece pertinente,

justamente a que confronta macrobiótica e nutricionismo. Considero que o confronto

entre as orientações alimentares implicadas em registos tão distintos como a

macrobiótica e o nutricionismo, permitirá estabelecer com maior clareza o quanto as

crenças e convicções orientam a acção.

A abordagem do nutricionismo como ideologia alimentar tem vindo a ser

desenvolvida porGyorgy Scrinis (2002). Com este termo, Scrinis remete para uma

forma de concepção, descrição e análise dos alimentos que se encontra referenciada nas

Ciências da Nutrição (espaço de confluência de diversas áreas científicas) e que

constitui, no seu entender, uma forma de ideologia alimentar, dado o valor supremo

atribuído aos nutrimentos (Scrinis: 2002, 2007). Na acepção deste autor, o “paradigma

nutricionista”, suportado por cientistas, dietistas, autoridades de saúde e indústria

alimentar, terá conduzido a uma visão da comida em que esta é praticamente reduzida

às suas qualidades nutritivas e à relação que estas podem ter com um corpo saudável.

Este tipo de paradigma, que, de acordo com o autor, tem condicionado toda a indústria

alimentar e o modo como nos alimentamos actualmente, é apresentado como algo que

deve ser questionado e desmistificado, sob pena de estarmos a reduzir a comida apenas

a nutrientes. Fazendo referência ao modo um pouco errático como foram sendo

considerados certos alimentos pelas ciências da nutrição, procura evidenciar o quanto

esta orientação alimentar tem de ideológico.

No seu célebre artigo “Sorry, Marge” (2002), Scrinis utiliza o exemplo da

margarina para demonstrar de que forma um produto inventado no final do século XIX,

como alternativa menos dispendiosa à manteiga, foi tomado pelos nutricionistas, nos

anos 60 e 70 do séc. XX, como superior à manteiga, do ponto de vista nutritivo. A

importância que a partir dos anos 1950 e 1960 se atribuiria ao colesterol no

desenvolvimento de doenças cardiovasculares não seria nada benéfica para as gorduras

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«À Mesa com o Universo»

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saturadas e, neste caso, especificamente para a manteiga, passando alguns óleos a ser

recomendados como opções “mais saudáveis”. As vantagens que haviam sido atribuídas

à margarina caíram, entretanto, por terra. É que as gorduras hidrogenadas, as gorduras

trans, onde a margarina se inscrevia, passaram a ser vistas como extremamente

prejudiciais para a saúde. Ainda que não contenham colesterol, produzem-no no corpo

quando são ingeridas. Entretanto, em contextos como o português, o Instituto do

Coração, que durante muito tempo recomendou a margarina Becel, deixou de figurar

nas embalagens do produto, mas a marca passou a incluir ómega 3 e ómega 6 para

continuar a justificar a sua importância na prevenção de doenças cardiovasculares.

Exposta a poderosos lobbies e contra lobbies, a comida tem assim sido objecto de

interpretações muito variáveis.

Face a estas inflexões e percursos algo erráticos de certas visões sobre os

alimentos, de que a margarina seria apenas um exemplo, Scrinis (2002:114) critica as

orientações dadas pelos nutricionistas e classifica-as como sendo desorientadoras e

gerando confusão. No seu entender, as categorias nutricionais, enquanto produtos dessa

ideologia alimentar que designa por nutricionismo, não guiariam adequadamente as

pessoas nas suas escolhas alimentares. Mais que isto, esta ideologia estaria a ser

explorada para preparar os consumidores para uma nova vaga de produtos que

permitiriam fazer prosperar a indústria alimentar e farmacêutica: os alimentos

funcionais e os nutracêuticos. Os primeiros são considerados alimentos comuns que

fazem parte das dietas convencionais e em relação aos quais existe evidência científica

de reduzirem os riscos de doença. Encontram-se incluídos na categoria de alimentos

funcionais os alimentos prébioticos e probióticos, caracterizando-se estes últimos por

possuir substâncias biologicamente activas (os prébióticos estimulariam selectivamente

o crescimento das bifidobactérias e os próbióticos conteriam microorganismos

benéficos para a saúde, como por exemplo oLactobacillus acidophillus)5. Quanto aos

nutracêuticos, são alimentos, ou parte de alimentos, vistos como prevenindo ou tratando

doenças. Estes alimentos podem apresentar-se sob a forma de nutrientes ou de alimentos

processados, sendo os suplementos dietéticos um exemplo deste tipo de alimento (cf.

Moraeset al, 2006). De acordo com Scrinis (2002:115), a ideologia subjacente a este

tipo de classificação dos alimentos, o nutricionismo, instrumentalizaria a ideia de que os

alimentos disponíveis podem não ser suficientes para garantir uma nutrição adequada,

5 Note-se como a diversidade de iogurtes aumentou e como a referência a estes aspectos passou a fazer

parte da promoção deste produto.

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A escrita que desenha as margens

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olhando para a população como se estivesse sempre necessitada de cuidados

terapêuticos

Outros autores, como Pollan (2009a, 2009b) e Nestle (2002, 2006) têm vindo a

dar algum suporte a estas posições, chamando a atenção para o modo como a indústria

alimentar se vai aproveitando das “verdades” apresentadas pelo nutricionistas e como as

decisões políticas vão indo de encontro aos interesses da indústria agro-alimentar e de

certa actividade científica por ela apoiada. Não é objectivo deste trabalho esmiuçar estes

jogos, redes, negociações, que tão bem evidenciam o quanto a alimentação pode

obedecer a orientações ideológicas e inscrever-se numa actividade política, tomamos

apenas a posição de Scrinis para pensar, ao longo deste trabalho, as orientações

alimentares, mesmo as mais cientificamente fundadas, enquanto orientações

ideológicas. O facto de diversos autores (Pollan,2009a; 2009b; Nestle, 2002; 2006;

Scrinis, 2002; 2007, entre outros) questionarem uma certa actividade científica ligada às

Ciências da Nutrição e de sobre ela reflectirem, contribui, na verdade para uma

“dessacralização” de uma visão sobre a comida suportada por áreas científicas ligadas à

nutrição.

É certo que aquilo que Scrinis observa e critica nas Ciências da Nutrição, o facto

de se irem transmitindo mensagens que são contrárias ao que se defendia anteriormente

e de tal gerar alguma confusão, pode ser observado noutras áreas científicas. Aquilo

com que Scrinis parece não se conformar, não sendo apenas isto, é, afinal, a

provisoriedade do conhecimento e o facto de na arena científica nem sempre existir

consenso relativamente a certos assuntos. Nada que se adscreva apenas às Ciências da

Nutrição. O seu mérito é sobretudo o de interrogar o produto de uma certa actividade

científica, que, fora dos limites da academia, tinha pouco espaço de discussão, e de

evidenciar o quanto esta ideologia se encontra económica e politicamente implicada.

Para além disso, convida-nos, como foi referido, a pensar a comida como mais do que

um conjunto de nutrientes, facto para que, aliás, outras disciplinas (História,

Antropologia, Sociologia, Economia, etc.), com os seus estudos específicos, têm

contribuído. A visão truncada que as Ciências da Nutrição nos propõem também não é,

na verdade, uma especificidade desta área. Que a indústria alimentar explore

intensamente a dimensão que tem a ver com a composição nutritiva, tal como Scrinis

argumenta, que se foque nas questões da saúde e que contemporize com a ideia de uma

sociedade medicalizada, deve ser, provavelmente, uma forma de defender os seus

interesses. O que torna as críticas de Scrinis mais perturbadoras é, talvez, o facto de se

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«À Mesa com o Universo»

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manifestar sobre um assunto que nos é mais imediato, que pode influenciar as nossas

escolhas diárias e, que pode, pela desorientação por vezes gerada, afectar a saúde dos

consumidores.

Qual o interesse desta discussão no contexto deste trabalho? Reside justamente,

como já se antecipou, na possibilidade de podermos ampliar a discussão das orientações

alimentares como orientações ideológicas, ou seja, olharmos para os produtos

resultantes da actividade científica ligada aos estudos dos alimentos, como podendo ser

enquadrados por algum tipo de ideologia, não tomando apenas as orientações

alimentares inscritas numa religião, grupo, ou visão particular do mundo, como

produtos ideológicos. A referência a Scrinis, e à sua visão do nutricionismo como

ideologia alimentar, serve-nos aqui, sobretudo, para salientar como, em diferentes

registos, a importância dos discursos, das concepções, das crenças, influencia a visão do

mundo e as opções tomadas. O nutricionismo como contraponto à macrobiótica adquire

aqui pois particular sentido. A aproximação que estabeleço dos dois fenómenos, ao

inseri-los numa mesma categoria, a de ideologias alimentares, julgo que esbate algum

do distanciamento com que estas orientações poderiam ser pensadas. Certa das

diferenças existentes, pretendo apenas salientar o modo como os discursos que tomamos

como “verdade” acabam por influenciar escolhas e permitem compreender formas de

acção.Tal como as más práticas médicas não têm sido suficientes para abalar a medicina

(veja-se Foucault (2001), quando refere que Illich (1975), no fundo, não questiona a

medicina em si mesma, mas os maus actos médicos), também a investigação científica

de má qualidade não é, evidentemente, suficiente para descredibilizar a actividade

científica no seu todo.

Se os discursos e práticas sobre a alimentação se inserem em ideologias

alimentares isso significa que analisá-los implica sempre uma necessária atitude de

relativismo, no sentido clássico do termo, ou seja, enquanto forma de analisar e de

interpretar que deve levar em consideração contextos particulares de acção, produção e

de enunciação. Integrar o valor da contextualização (no sentido de Bateson, 1987) na

análise de fenómenos sociais surge assim como dimensão fundamental.

Para além deste aspecto, destacamos também a importância da detecção de

configurações sócio-históricas particulares (no sentido de Norbert Elias, 1990) na

interpretação desses mesmos fenómenos, dado que os posicionamentos ideológicos

devem também aí ser integrados. Decorre deste entendimento que o modo como

procurarei analisar neste trabalho as concepções e práticas associadas à macrobiótica

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A escrita que desenha as margens

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procura prestar atenção à emergência do fenómeno e aos contextos que propiciam a sua

divulgação. Talvez um dos contextos propícios a uma maior expressividade da

macrobiótica seja justamente este, o de uma sociedade caracterizada pela abundância

alimentar e que ao mesmo tempo sente insegurança em relação a certos alimentos que

consome, perspectivando-os como consumos de risco. É neste ambiente social que

muitas áreas (nutrição, alguns sectores da produção alimentar, terapêuticas

convencionais e não convencionais) criam necessidades particulares, dirigindo-se a cada

indivíduo como se fosse um doente a tratar e a requerer cuidados específicos. É também

desta forma, ainda que com argumentos peculiares, que, como veremos, os discursos de

divulgação da macrobiótica frequentemente se dirigem aos indivíduos.

1.4 Singularidades da Macrobiótica

O conjunto de princípios orientadores que encontramos na macrobiótica é em

muitos aspectos assimilável a uma formulação religiosa. Muito embora se defenda o

non credo como princípio orientador, a explicação do mundo e do universo, assente na

matriz dualista de yin e de yang, é frequentemente uma explicação de carácter

dogmático. Muitos dos que aderem à macrobiótica distanciam-se assim de matrizes

científicas de interpretação do mundo, chegando a revelar desprezo pela actividade

científica. Contrariando algumas das formulações associadas à modernidade, aqueles

que seguem a macrobiótica revelam um conjunto de atitudes que evidenciam uma quase

necessidade de reencantamento do mundo (no sentido weberiano do termo).

Paradoxalmente, como teremos oportunidade de verificar, e sobretudo ao nível da

divulgação e promoção da macrobiótica, recorre-se com frequência a linguagem

“científica” para sustentar de forma mais categórica algumas convicções. É desta forma

observável uma amálgama entre elementos que nos fomos habituando a perspectivar

como característicos da pré-modernidade e da modernidade, sendo esta uma das vias

através da qual é sugerido o carácter híbrido e interceptivo da macrobiótica6.

Tal como noutras narrativas religiosas, a cosmovisão associada à macrobiótica

oferece-nos uma narrativa integradora, uma “história dos começos” organizadora do

caos. Oferece-nos ainda uma visão sobre o espírito humano e aquilo que referem ser a

6 Sobre as perplexidades da modernidade, ver Bastos (2001), Canclini (1994), Latour (1997).

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«À Mesa com o Universo»

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“sua busca de absoluto”. A proposta de Ohsawa relativamente à macrobiótica evidencia

claramente, como veremos, essa dimensão espiritual e religiosa. Para aquele que é

considerado o fundador da macrobiótica, comer era um acto sagrado, uma convocação

do universo, uma forma de integração e comunhão com esse mesmo universo. No seu

entendimento, a comida era de tal forma importante que estava na origem do próprio

espírito (cf. Kotzsch, 1981). Toda a proposta macrobiótica se encontra pois, como

procurarei esclarecer, profundamente impregnada por uma dimensão mística e

espiritual. Negar tais aspectos seria descaracterizar a macrobiótica.A compreensão da

recomendação deste ou daquele alimento, das técnicas de confecção e composição dos

pratos, assenta, sublinho, numa visão particular do mundo, cujos fundamentos, criados e

recriados por Ohsawa, possuem essa essência mística.

A actividade de Ohsawa enquanto promotor e divulgador da macrobiótica foi

notável. Crente na absoluta importância da alimentação, construiu a partir do Shoku-yo

(movimento de defesa da importância de uma alimentação simples, inspirado naquilo

que se classificava como alimentação tradicional japonesa) as bases da macrobiótica. O

seu trabalho é em grande medida um trabalho de continuidade em relação ao que o

fundador deste movimento, Ishitsuka Sagen (precursor da macrobiótica), havia iniciado

no final do séc. XIX. O edifício teórico em que se encontra sustentada a macrobiótica

evidencia um sincretismo assinalável e, de certa forma, como procurarei evidenciar, o

intento de Ohsawa em construir uma ponte entre o Ocidente e o Oriente foi conseguido.

Analisando o trabalho sobre Ohsawa que Kotzsh (1981) nos propõe encontramos

um homem profundamente implicado do ponto de vista político e social, um homem

afectado por uma configuração sócio-histórica particular, a do Japão na primeira metade

do séc. XX, que, com o seu envolvimento nas guerras e com o sentimento de nação com

missão imperialista, exaltara a superioridade da nação japonesa. Kotzsh refere, em

relação a Ohsawa, pelo menos durante algum tempo, uma proximidade com a ideologia

nazi. O ideário relacionado com a defesa da natureza, trabalho do corpo e disciplina,

construção do homem perfeito por certo não lhe eram estranhos7. A defesa que faz de

um modo de alimentação mais simples e mais vinculado àquilo que supostamente seria

a alimentação tradicional japonesa revela não só o desejo de recuperação do passado

mas também o desejo de evidenciar a degradação da sociedade causada pela importação

de hábitos que teriam conduzido a uma certa degeneração nacional.

7 Corinna Treitel (2009) chama precisamente a atenção para a alimentação “natural” promovida pelo

regime nazi.

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A escrita que desenha as margens

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Como se pode ir antevendo, as posições de Ohsawa sobre a macrobiótica estão

muito marcadas do ponto de vista ideológico e resultam, em larga medida, das suas

próprias concepções e do modo como as organizou. Este facto não deve ser esquecido

numa investigação sobre a macrobiótica, deve sempre fazer-nos reflectir sobre o

carácter humano destas construções e sobre o modo como experiências individuais se

procuram tornar em experiências colectivas. A aura mística presente nestes discursos,

longe de ser vista como algo exterior ao homem, como algo que deve ser aceite sem

questionamento, deve ser vista como extensão desse humano, ser contextualizado,

matéria onde o “espírito do tempo” se inscreve8.

Aquilo que aqui se sugere é que também a macrobiótica deve ser pensada nessa

dimensão, a de invenção humana, ou seja, de construção ideológica que o tempo (outros

homens) foi recompondo e reactualizando, fazendo dela um fenómeno híbrido, aberto a

contaminações e influências diversas. É evidente que a relativa consagração de uma

proposta como a macrobiótica não se faz sem que haja casos bem-sucedidos entre

aqueles que decidiram enveredar pela macrobiótica, e, também é certo que muitos são

os ensinamentos nesta área que não são negligenciáveis. Tal não constitui, porém,

motivo para descurarmos essa dimensão de invenção e recriação presente na

macrobiótica, essa capacidade para se ir adequando a novos tempos e ir integrando

aspectos dos discursos relativos a movimentos com os quais tem algumas afinidades

como os que se ligam ao vegetarianismo, à agricultura biológica, ao ambientalismo, etc.

1.5 O Tempo, esse Grande Escultor: Dinamismo, Contaminação, Plasticidade

Recomposição

Muito embora a macrobiótica permaneça fiel aos seus fundamentos, tal não

significa, como se poderá perceber, um qualquer tipo de cristalização. A macrobiótica

tem vindo a conhecer fenómenos de recomposição e de alteração nos seus discursos,

sobretudo nas suas orientações alimentares. A alimentação macrobiótica que se

praticava em Portugal no final da década de 70 era, de acordo com os indivíduos

contactados, “mais rígida”, “mais yang”, por relação com a alimentação que se pratica

actualmente (claro que também aqui encontramos variações, mas o padrão dominante

8 Uso esta noção num sentido que é convergente com a ideia de configuração sócio-histórica particular.

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«À Mesa com o Universo»

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que é percebido, é esse). Esta condição, a da recomposição, ou seja, a capacidade de ir

integrando nova informação e novos elementos, abandonando outros, evidencia também

essa capacidade de adequação aos novos tempos e contextos, o que, naturalmente,

constitui uma condição de sobrevivência.

Uma das formas de olhar para esse trabalho de recomposição, que pressupõe

dinamismo, contaminação e plasticidade, consiste em prestar atenção a discursos e

práticas no interior da macrobiótica. Se no passado era possível encontrar nos textos de

Ohsawa um dicurso de certezas relativo a alimentação, sendo esta encarada como fonte

de todas as doenças, e a macrobiótica perspectivada como capaz de as curar a todas, tal

já não sucede hoje nas sessões de formação. Se no passado a dimensão emocional da

doença não era muito relevante, nos discursos que encontrei, em cursos de formação,

esta temática passou a ser significativa. Se no passado se promoviam mudanças radicais

e imediatas de alimentação, actualmente os formadores aconselham a que seja feita uma

mudança gradual de alimentação e a que se evite a sensação de privação em relação a

certos alimentos. Se no passado se promoveu uma alimentação sem qualquer tipo de

alimento de origem animal, hoje tal não é aconselhado nos cursos de formação. As

deficiências do ponto de vista nutritivo que foram apontadas à alimentação

macrobiótica, parecem, na verdade, ter contribuído para uma reflexão sobre as práticas

alimentares propostas, conduzindo assim,no interior da macrobiótica, à recomposição de

discursos sobre a alimentação.

O facto de diversos trabalhos científicos (Dagnelie, 1989,1990,1994; Genova et

al: 2007; Miller et al, 1991; Parsons, et al. 1997; Schneede et al. 1994;Stavern et

al,1988),terem alertado para um atraso no desenvolvimento de crianças alimentadas de

forma macrobiótica e de ter sido constatada nas populações estudadas a carência de

vitamina B12, vitamina D e de cálcio terá levado a repensar, no próprio meio

macrobiótico, o conjunto de alimentos aconselhados. Não foi apenas a roda de

alimentos ou pirâmide alimentar emitida pelas organizações ligadas à alimentação que

conheceu transformações, também na macrobiótica houve necessidade de criar uma

pirâmide alimentar mais adequada aos tempos actuais. O consumo de peixe é hoje

defendido na macrobiótica como devendo fazer parte da dieta semanal, pelo menos em

duas refeições, como forma de contribuir para que não haja deficiências nutritivas. Por

outro lado, a insistência na necessidade de consumir leguminosas para assegurar um

consumo adequado de proteínas tem também sido reiterado. Estes fenómenos de

recomposição devem-se a fluxos de ordem diversa, que, naturalmente, vão variando de

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A escrita que desenha as margens

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acordo com os tempos. Derivam de configurações sócio-históricas particulares, de

argumentos, ideias-força, que vão surgindo em todas as épocas.

Na macrobiótica, ainda que se manifeste algum desdém pela actividade

científica, a verdade é que não ser sensível aos argumentos apresentados em estudos

considerados rigorosos, realizados junto de crianças para avaliar a sua condição física,

acabaria por resultar numa maior dificuldade em afirmar as vantagens da macrobiótica9.

Não só a macrobiótica vai procedendo a uma recomposição do seu discurso, de acordo

com informações e descobertas recentes, como, também, no modo como evoca o

passado, “a tradição”, evidencia essa capacidade de apropriação e de reactualização do

seu discurso. A invocação do passado e da tradição serve frequentemente para dar

espessura e densidade às posições defendidas. O passado, tanto pode surgir na sua aura

mítica, de “saber que se perde nos tempos” e que importa recuperar, como pode surgir

como prova do tempo a evidenciar a eficácia de determinadas práticas.

Naquilo que a macrobiótica vai recuperando do passado podemos ainda observar

conexões, contaminações, a partir de correntes diversas que advogaram a defesa de

modos de vida saudável. Alguns aspectos da tradição hipocrática, como a importância

dada à alimentação, ao contexto ambiental e factores climáticos; do naturismo, como a

procura de harmonização com o “mundo natural”; e do vegetarianismo, como a

preferência por alimentos de origem vegetal, encontram ressonância na macrobiótica.

No decurso deste trabalho não explorarei particularmente estes aspectos (tal seria, só

por si, projecto para uma outra tese), tal não invalida que não surjam algumas remissões

que procurem dar conta da continuidade de certos argumentos ou da sua reconfiguração

à luz de enquadramentos operados na macrobiótica. Ainda que não proceda a um

exercício de análise histórica de diferentes “modas alimentares”, convém todavia

salientar que a macrobiótica deve ser inserida nessa vasta literatura que se foi

9 Pieter Dagnelie; Vergote et al (1990), dão conta de um estudo efectuado na Holanda junto de crianças

oriundas de famílias que haviam adoptado a alimentação macrobiótica. Nesse relevante estudo detectam

atrasos no crescimento dessas crianças, quando comparadas com crianças de famílias que seguem formas

de alimentação mais comuns. Face a estes resultados, e sabendo que tanto professores de macrobiótica

como famílias que seguiam a macrobiótica, dificilmente incluiriam cálcio e vitamina D sintetizados nos seus consumos, propuseram o consumo de peixes gordos, a inclusão de lacticínios e a redução do

consumo de fibras para potenciar a absorção de cálcio. Os autores deste estudo referem ainda que terão

contactado o “líder dos professores dos princípios da macrobiótica”, Michio Kushi, e que este terá

aceitado os resultados obtidos. Referem ainda que Michio Kushi, através de comunicação pessoal aos

investigadores, terá afirmado incluir o consumo de peixe gordo nas suas recomendações alimentares ao

nível da macrobiótica. Os investigadores agradecem-lhe, de resto, a promessa de adaptar a macrobiótica

aos conselhos dados (cf. Dagnelie; Vergote et al:1990:207). A pirâmide alimentar proposta por Kushi

(1998), traduz alguns destes conselhos, todavia, o consumo de produtos lácteos é relegado para o topo da

pirâmide (consumo mensal, ocasional).

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«À Mesa com o Universo»

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escrevendo ao longo de séculos sobre modos de vida e dietas supostamente saudáveis10

.

Apresentadas assiduamente como condição para a regeneração dos povos, muitas destas

orientações alimentares encontram agora novos argumentos como o da defesa do

ambiente, do desenvolvimento sustentado, da possibilidade de se providenciar comida

para todos e até o argumento do avanço civilizacional que a rejeição do consumo de

carne deveria representar (tal como pude ouvir recentemente numa palestra sobre

macrobiótica). É sobretudo neste argumentário e no modo como ele dialoga com outros

movimentos contemporâneos, como os da contra-cultura, os da defesa da agricultura

biológica ou outros movimentos ambientalistas que procuraremos encontrar algumas

ligações. Argumentos como os apresentados por Peter Singer na obra Libertação

Animal (2008 [1975]) sobre o carácter não ético do consumo de carne, encontram por

vezes ressonâncias na macrobiótica. Este trabalho não se focará essencialmente nestes

aspectos, como disse, e, por conseguinte, não se deve esperar um levantamento

exaustivo destas relações, entendo, todavia, que fazer-lhes referência permitirá situar de

forma mais adequada a macrobiótica no espaço social.

Poderá parecer ambicioso um projecto que procura por um lado caracterizar a

macrobiótica, dar conta de práticas e concepções, caracterizar algumas das redes que a

alimentam e que ainda presta atenção a movimentos com os quais a macrobiótica tem

afinidades. Entendo, todavia, que proceder de outro modo resultaria num truncar deste

projecto numa parte que lhe é essencial e que tem a ver com o modo como a rejeição ou

evitamento de alguns aspectos do modo industrial de produção de comida e do modo

como se encontram organizados outros sectores sociais como a saúde e a educação

dialogam com outras tendências. A contestação/rejeição/evitamento que encontramos na

macrobiótica está longe de se constituir como movimento social organizado, com

actividade política, reitero, mas, no seu relativo silêncio, influencia actividades

comerciais e contribui para o questionamento em torno dos modos de produção

alimentar, sobretudo aqueles que se encontram assentes num modo de produção

industrial. Contribui ainda para repensar certas práticas ao nível dos cuidados de saúde.

10 Vejam-se alguns dos títulos da Biblioteca Vegetariana publicada em Portugal em 1912 pela Sociedade

Vegetariana de Portugal, sediada na altura no Porto: A questão social e a nova Sciência de Curar, por

Angelo Jorge; Dieta frugívora e Renovamento Físico, por Abramowski (trad. de João Volmer); A saúde e

a longevidade, por J. Bastos; O vegetarismo e a moralidade das raças, por Jaime Lima, etc.

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A escrita que desenha as margens

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1.6 Quotidianos Saberes,Transformações, Manipulações, Articulações

O termo resistência surgirá ao longo deste trabalho nesse sentido que é o de

protecção, mas também de uma certa contestação/evitamento/ rejeição face a

determinadas práticas, sem que tal implique, como referi, uma forma de activismo clara

e deliberada (muito embora, em certos momentos, tal possa ocorrer). Convém também

referir que estas formas de resistência se enquadram em discursos que são críticos

relativamente a certas práticas alimentares e cuidados de saúde, sobretudo aquelas

práticas alimentares que resultam de um excessivo processamento dos alimentos e

aqueles cuidados de saúde que não perspectivam o corpo de forma holística e que se

encontram muito assentes na administração de medicamentos. Nesta medida, esses

discursos apelam a mudanças de atitude que, em meu ver, configuram formas de

resistência face a práticas dominantes. Com isto, não pretendo dizer que estas atitudes

sejam declaradamente, e conscientemente, uma forma de oposição às políticas

instituídas, aquilo que acontece é que, no decurso de tais formas de acção, há

concepções e procedimentos que são questionados, acabando tal por contribuir para uma

certa erosão de sistemas que são dominantes. Estes processos, como Foucault

demonstrou, são por vezes subtis e desencadeiam-se sem que haja sempre uma clara

consciencialização dos indivíduos relativamente ao tipo de relações em que estão

implicados. Essa oposição pode ocorrer num contexto em que aquele que contribui para

a erosão do sistema não tem sempre o propósito de o contestar de forma evidente.

Colocar a questão nestes termos pode permitir “desocultar” relações, que, não sendo

exclusivamente relações de poder, também o são. Permite ainda detectar formas de

erosão que podem, efectivamente, vir a alterar relações sociais.

Na formulação teórica que orienta este trabalho as noções de poder e de

empowerment articulam também alguns dos aspectos que analisaremos a propósito da

macrobiótica11

. Estes conceitos não são, seguramente, conceitos originais, mas são

certamente conceitos estruturantes que ajudaram a compreender lógicas sociais e

individuais de acção e que também aqui, na macrobiótica, me parecem instrumentos

conceptuais úteis para compreender opções e estratégias. A concepção de poder a que

aqui faço referência, de inspiração foucaultiana, não se prende apenas com aspectos

11 Muito embora a noção de empowerment possa ser entendida como noção excessivamente vulgarizada e

instrumentalizada (cf. Cunha e Durand: 2011), o certo é que ela me parece traduzir, melhor do que

qualquer outra, a incorporação de conhecimentos, traduzíveis num acréscimo de competências, numa

maior autonomia e confiança, que acabam por ter repercussões no modo como os indivíduos agem e

interagem.

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«À Mesa com o Universo»

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institucionais, formas hierárquicas ou relações de dominação e sujeição, tem também a

ver com conhecimento/informação que são percebidos como fonte de poder e que

permitem um saber acrescido capaz de gerar distinção sobre os demais. Um saber que,

de uma forma geral, se nos afigura como permitindo uma maior agencialidade na

condução de destinos individuais, na medida em que permite aos seguidores da

macrobiótica verem-se como detendo um conhecimento sobre o corpo e sobre os

alimentos que os singulariza e a que nem todos têm acesso. É esse mesmo saber/poder

que lhes permite frequentemente dispensar os cuidados do Serviço Nacional de Saúde

(SNS) e encarar processos de tratamento que, por vezes, estão quase exclusivamente

centrados em aspectos alimentares. Trata-se aqui de um saber/poder que, nessa medida,

é emancipatório, dado que confere maior autonomia e pode dispensar os cuidados

médicos. O domínio específico de conhecimentos veiculado através da macrobiótica

tem assim uma dimensão de empowerment, reconhecível na prática quotidiana daqueles

que seguem a macrobiótica, e, na medida em que esse conhecimento resulta de uma

aprendizagem específica a que nem todos puderam aceder, proporciona ainda, e numa

acepção bourdieuniana, distinção social.

Não pretendendo com isto dizer que a opção pela macrobiótica acompanha

sempre uma vontade de distinção social, deve ser sublinhado que esta acaba por

ocorrer, na medida em que conduz a um conjunto de opções que em muito singularizam

um modo de vida.Tive oportunidade de me confrontar com diversos casos em que era

possível observar algum distanciamento relativamente àqueles que se alimentavam de

uma forma mais comum. A crença de que o tipo de alimentação proporcionado pela

macrobiótica conduz a uma vida mais saudável e a um maior conhecimento do corpo é

uma ideia sempre presente.

Deve ser ainda realçado que diversos estudos têm revelado os hábitos

alimentares como sendo dos mais permanentes. Por este motivo, uma alteração a este

nível é sempre portadora de mudanças significativas. Quando se mudam

substancialmente as práticas alimentares, costumam observar-se, na verdade, alterações

nos modos de vida. Tal não significa que ocorra sempre uma alteração radical, mas há

transformações que são significativas. Os hábitos alimentares, sendo dos mais

arreigados, são aqueles que podem ser observados por mais tempo nas comunidades

imigradas. Perduram durante mais tempo que a utilização, no seio familiar, da língua em

que o grupo se expressava antes da imigração (veja-se Calvo,1982, e a defesa que este

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autor faz da ideia de continuum alimentar)12

. Também para Bourdieu os gostos

alimentares são os aspectos que mais perduram face ao afastamento do contexto em que

se cresceu e são dos que mais inspiram nostalgia (Bourdieu, 1979: 85). David Sutton

(2001), salienta também a importância do papel da memória na evocação de sabores.

Face a hábitos tão profundamente enraizados, como o são os hábitos alimentares, a

adesão à macrobiótica costuma proporcionar, na verdade, uma experiência de re-

invenção do quotidiano alimentar, desde a aquisição dos alimentos à sua confecção e

ingestão, o que, só por esta via, a da alimentação, acaba por se traduzir em alterações no

modo de vida.

Conhecimento/saber, introdução numa lógica que se acredita dotada de

virtualidades e que exige do indivíduo um controle de certos desejos, designadamente

os relacionadas com hábitos e gostos alimentares, bem como uma disciplina para que

nem todos estão preparados, eis pois ingredientes preciosos que assistem a uma vontade

de autonomia e que permitem uma maior sensação de controlo do corpo. Na verdade, a

macrobiótica, com o seu conjunto de concepções específicas, leva o indivíduo a

direccionar-se para o seu corpo, codifica esse corpo, ensinando a observá-lo e a cuidá-

lo. Produz uma espécie de gramática do corpo a partir da qual se constroem linguagens

e narrativas específicas, modos de agir sobre o corpo, tornando-o, por vezes, num

campo de experimentação. O corpo que encontramos na macrobiótica é um corpo

frequentemente aberto a experiências radicais, onde a comida, ou ausência dela, surgem,

por vezes, como forma de libertação ou de aprisionamento. Lido em termos de yin e de

yang e disponível para o ensaio de preparados específicos ou confecções alimentares

que seguem a lógica dualista de yin/yang, este corpo é, em certa medida, um corpo que

pode sujeitar-se a trabalho e disciplina e que pode ser preparado para uma ascese auto-

transformadora.

A ideia da dieta alimentar como forma de disciplina e controle do corpo é vista

por Bryan Turner (1982) como indispensável à compreensão do processo de

racionalização dos comportamentos observados no ocidente. Uma vida sóbria, com

exercício e alimentação regrada, tal como a defendida por Alvise Cornaro (1558),

Leonard Lessius (1634), George Cheyne (1733) evidenciariam, segundo este autor, um

ascetismo no espírito da medicina bem sugestivo de uma “afinidade electiva” entre

12 Uma investigadora albanesa, a residir em Londres, relatava-me, com alguma perplexidade, que quando se

encontrava no supermercado com um seu conterrâneo, ficava sempre surpreendida ao olhar para o conteúdo

do carrinho de compras de ambos, pois constatava que eram muito coincidentes.

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«À Mesa com o Universo»

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regimes dietéticos e desenvolvimento do capitalismo (cf. Turner,1982:27). Na verdade,

trata-se aqui de, através de uma observação dos regimes dietéticos, dar substância à

conhecida perspectiva de Weber (1983) defendida em A ética Protestante e o Espírito

do Capitalismo. A ascese alimentar seria apenas mais uma dimensão de uma moral

disciplinadora e anti-hedonista, um correlato de uma moral de salvação onde a privação

e o trabalho abnegado constituíriam meios para chegar a Deus. Se a disciplina e controle

do corpo através de regimes dietéticos podem ser vistos como indispensáveis à

compreensão do processo de racionalização dos comportamentos observados no

Ocidente, tal como é pretendido por Turner, no caso da macrobiótica, a investida

disciplinar sobre o corpo traduz um repensar desse corpo que não julgo ser confluente

com o processo de racionalização do Ocidente. É certo que este processo é de âmbito

demasiado vasto, tanto podendo remeter para aspectos como a maximização do lucro e

desenvolvimento do capitalismo, como para a secularização das sociedades. De

qualquer dos modos, a macrobiótica ao questionar tão amiudadamente o Ocidente e a

sua matriz tecnológica e científica, parece afastar-se, enquanto “regime dietético”

(também incorpora este aspecto) do processo de racionalização dos comportamentos e

desenvolvimento do capitalismo referidos por Turner. Desta discussão fica sobretudo

visível a importância que as concepções sobre alimentação e a adesão a um conjunto de

princípios alimentares acabam por deter na compreensão de certas formas de acção.

A comida assume na macrobiótica um valor de transformação que procurarei

não esquecer. Pela comida o indivíduo é perspectivado como podendo curar-se, adquirir

maior equilíbrio energético e conseguir uma relação mais harmoniosa com o universo.

A comida surge como condição de desenvolvimento da sua “espiritualidade” e da sua

“capacidade de discernimento”. Para além da transformação individual que os alimentos

podem proporcionar, a sua adopção não se esgota, evidentemente, nessa dimensão

individual, acaba por afectar outras esferas da vida social, podendo contribuir para a

inovação e criatividade social. Novos alimentos, novas técnicas de confecção, novos

mercados e novos espaços comerciais são produtos que, em alguns casos, em Portugal,

derivam da adopção da macrobiótica como sistema de referência e orientação no

mundo. Muito embora venha a desenvolver um pouco mais esta dimensão, no âmbito

deste trabalho, e por razões que se prendem com uma necessária delimitação, não me

centrarei numa análise aprofundada destes produtos e das relações que em torno deles se

geram, centrar-me-ei mais nos discursos que procuram induzir essa transformação

individual e no modo como esses mesmos discursos são acolhidos, levando a

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transformações no quotidiano, cenário que conduz inevitavelmente a transformações na

vida social.

1.7 A Macrobiótica, Sistema Terapêutico

Analisar a macrobiótica sem a perspectivar como sistema terapêutico seria uma

quase impossibilidade, dado que o próprio desenho das refeições, os seus ingredientes e

modo como são preparados seguem frequentemente preocupações de ordem terapêutica.

Um dos motivos pelos quais é seguida é justamente por prometer mais saúde e bem-

estar. Uma das dimensões deste trabalho incorporará assim a análise da macrobiótica

enquanto sistema terapêutico, procurando evidenciar concepções sobre saúde e doença,

formas de diagnóstico e de tratamento e percursos de tratamento na área da

macrobiótica. Abordar a macrobiótica enquanto sistema terapêutico significa trazer para

o debate a questão do pluralismo médico, ou, de forma mais rigorosa, do pluralismo

terapêutico. Não sendo um fenómeno novo, julgo não errar ao afirmar que a diversidade

de terapias propostas hoje em Portugal é mais expressiva do que nunca, tal como

acontece noutros países (cf. Eisenberg e Kaptchuk; 2001; Franco, 2010)13

.

Muito embora a macrobiótica não tenha sido reconhecida em Portugal como

terapêutica não convencional (foi-me comunicado por consultores nesta área não ter

havido vontade e investimento claro nesse sentido) a opção por tratamentos através da

macrobiótica coloca problemas que têm sido comuns à adopção de outras possibilidades

de tratamento entretanto reconhecidas. Desde logo, a dificuldade em obter

comparticipações do estado, seguradoras e outros sistemas de assistência, nas

consultas/tratamentos efectuados, o que constitui frequentemente um factor dissuasor.

Por outro lado, foi-me também assinalada a dificuldade em conjugar, quando

necessário, formas de tratamento não convencionais com a medicina convencional. A

13Ainda que diversas modalidades terapêuticas sejam hoje reconhecidas em Portugal - homeopatia,

fitoterapia, acupunctura, osteopatia, quiroprática, naturopatia – (Lei 45/2003) não se encontram, por enquanto, regulamentadas, o que dificulta a sua inserção no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Algumas

seguradoras (em 2006, a AdvanceCare e, em 2011, a Multicare) passaram a proporcionar aos seus

segurados consultas e tratamentos nestas áreas. De acordo com declarações prestadas ao jornal Público

(3/4/11) por Manuel Branco, presidente da assembleia da Federação de Medicinas Não Convencionais,

Portugal teria já 3,5 milhões de consumidores de terapêuticas não convencionais e Portugal estaria “(…) a

seguir o caminho de outros países, em que, antes de o Estado regulamentar o sector, as seguradoras

responderam ao mercado”. Também Pedro Choy, presidente da Associação de Profissionais de

Acupunctura, referia no mesmo jornal que “nos Estados Unidos, as seguradoras tiveram um papel

essencial na regulamentação das medicinas não convencionais”.

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«À Mesa com o Universo»

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articulação e permanência em sistemas distintos nem sempre são facilitadas, dada a

fraca receptividade que por vezes é encontrada relativamente a outros modos de

tratamento (tal verifica-se tanto na macrobiótica como nas consultas médicas mais

convencionais), verificando-se até a ocultação do facto de se estar a recorrer a outra

terapêutica. Vista como pouco receptiva a integrar outras modalidades de tratamento, à

medicina convencional são por vezes ocultados, como referi, outros percursos de

tratamento. Recorre-se frequentemente ao SNS para obter um primeiro diagnóstico,

meios complementares de diagnóstico ou outras formalidades de natureza burocrática.

Encontramos aqui, desde logo, questões que se prendem com o modo como as margens

interagem com o poder biomédico e o manipulam, e, também, com o modo como esse

poder trabalha nas margens ou com as margens. No caso deste trabalho, prestarei

sobretudo atenção ao modo como, a partir das margens, se trabalha com o poder

biomédico.

A situação atrás enunciada evidencia indivíduos que, de acordo com a

informação detida e com as circunstâncias específicas em que se encontram, se

movimentam entre diferentes sistemas, procurando as soluções que julgam mais

adequadas para os seus problemas. Claro que é possível observar indivíduos com

atitudes passivas ou que consideram que não devem sair da medicina convencional. No

caso dos que seguem a macrobiótica, também os há, que, pelas suas razões/convicções

específicas, dificilmente recorreriam à medicina convencional, mas essa, como

procurarei demonstrar, não é, na macrobiótica, a regra para casos sentidos como graves.

Há situações que são compreendidas como exigindo o recurso a outro tipo de serviços e

de tratamentos. Nenhum dos consultores de macrobiótica com que tive oportunidade de

contactar aconselharia a que, após um acidente de viação, se recorresse exclusivamente

à macrobiótica.

Optar por um tratamento na macrobiótica não significa, pois, na maior parte dos

casos, excluir outras possibilidades de tratamento. Junto daqueles que recorreram à

macrobiótica por motivo de doença, esta possibilidade terapêutica, surge,

frequentemente, apenas como mais uma dimensão do tratamento, por entre outras. Em

diversos casos é mais uma via que experimentam. Pode surgir quando o Serviço

Nacional de Saúde já não oferece respostas adequadas. Contudo, quando se pratica

macrobiótica com grande convicção, experimentam-se em primeiro lugar as soluções

dadas no interior desta proposta para os problemas apresentados e só depois se

procuram caminhos complementares. Em alguns casos chega-se até a confiar

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A escrita que desenha as margens

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excessivamente nas virtualidades da macrobiótica. Foi-me relatado um caso de criança

com queimaduras muito graves que os pais não quiseram hospitalizar, decidindo fazer o

tratamento em casa com aplicação regular de tofu frio. O caso teve um desenlace feliz,

mas tal poderia não ter ocorrido.

Os problemas enunciados remetem-nos para algumas questões que têm sido

debatidas nas ciências sociais e que podem ajudar a clarificar as observações efectuadas.

Uma delas prende-se com a necessidade de perspectivar estas questões no âmbito das

políticas do corpo e os sujeitos destes processos como cidadãos e sujeitos políticos (cf.

Cunha e Durand: 2011; Faizang, 2011). Sylvie Fainzang (2011), ainda que num registo

diferente, o da automedicação, perspectiva-a como um acto político, na medida em que

evidencia um exercício de autonomia e uma ruptura da dependência face à autoridade

médica. Neste sentido, também a adopção de terapêuticas não convencionais poderia ser

vista como instaurando uma disrupção face à medicina convencional. Sendo certo que

tal pode ocorrer na macrobiótica, convém também referir que é possível, em certos

casos, observar articulação entre diferentes sistemas, sendo integrada, como procurarei

demonstrar, informação resultante dos percursos na medicina convencional nas

prescrições feitas em consultório de orientação macrobiótica. Mesmo no caso da

automedicação, Noémia Lopes (2007) destaca, não tanto uma ruptura, mas mais uma

“crescente interdependência entre universos leigos e periciais” (Lopes, 2007: 137). A

noção de hegemonia dinâmica apontada por Mónica Saavedra (2011) em relação à

vacinação - “processo permanentemente recriado, envolvendo ideias, discursos, práticas

e experiências de agentes heterogéneos, de poder desigual, em interacção” (Saavedra,

2011:137) - julgo que contribui para a compreensão de opções como a automedicação

ou as terapêuticas não convencionais, na medida em que atende ao dinamismo destes

processos e às circunstâncias específicas que condicionam a acção.

Neste trabalho não explorarei eventuais transformações ao nível das práticas

hegemónicas; situar-me-ei, essencialmente, como referi, no modo como formas

marginais se situam face a essas práticas. Considero, todavia, que aí, também, a noção

de prática dinâmica, pode ser relevante, dado que do que aqui se trata também é de

compreender que tipo de articulações e dinamismos podem ser estabelecidos a partir da

macrobiótica com práticas tidas como hegemónicas. Todas estas questões têm uma

dimensão política iniludível e convém, pois, colocá-las nesses termos.

Na verdade, muito das dificuldades encontradas têm a ver com o modo como o

sistema de saúde se encontra organizado e com o reconhecimento e regulamentação de

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«À Mesa com o Universo»

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certas práticas. Por outro lado, a maior ou menor capacidade para acolher a autonomia

dos cidadãos e os seus processos de decisão é algo que necessita de ser discutido e

enquadrado. É claro que este pode ser um ponto de divergência entre interesses

colectivos e interesses individuais. Nem sempre o sentido de responsabilidade em

relação ao grupo é confluente com decisões individuais, mas, em sociedades que se

pretendem plurais e respeitadoras das liberdades individuais, julgo deverem existir

medidas políticas que, após amplo debate e negociação, permitam a expressão dessa

mesma pluralidade.

A análise destas questões remete-nos ainda para diferentes racionalidades

(formas de ver o mundo) que orientam diferentes actores e até para diferentes modelos

de biocomunicabilidade. Este conceito é aqui usado na acepção que lhe é dada por

Briggs e Hallins (2007: 45), ou seja, enquanto actos discursivos e práticas focados nas

questões da saúde e da medicina. De acordo com estes autores, seria possível identificar

três formas de biocomunicabilidade: uma primeira, assente na autoridade biomédica;

uma segunda, onde o paciente é visto como consumidor, e, uma terceira, focalizada na

esfera pública e no activismo em saúde14

. Face a estas diferentes formas de

biocomunicabilidade e demais mecanismos que orientam os processos de escolha e de

decisão, convém referir que, se em relação a alguns indivíduos podemos reconhecer

agencialidade, e orientação numa lógica que não a da submissão a práticas

tendencialmente hegemónicas, noutros, porém, pelo menos em relação a aspectos

relacionados com o cuidado de si, pode ser observada uma atitude passiva, no sentido

de aceitação e não questionamento do tipo de tratamento recomendado. Se esta atitude

pode ser observada em indivíduos que apenas recorrem à medicina convencional,

também pode ser encontrada na macrobiótica, verificando-se, por vezes, uma aceitação

tácita e acrítica dos seus princípios.

Indivíduos diversos, que agem de acordo com conhecimentos, contextos e

circunstâncias específicas, são um desafio para qualquer ciência, sempre disposta a

encontrar, senão leis, pelo menos regularidades, padrões e tendência gerais, a cumprir

essa finalidade que, como referia Foucault (1985), é a de ordenação e classificação de

objectos. Também na macrobiótica encontramos essa diversidade. É certo que é

possível observar tendências preponderantes, mas elas muitas vezes circunscrevem-se a

14 Para estes autores, o neoliberalismo teria modificado o modelo da autoridade biomédica. A introdução

da dimensão- possibilidade de escolha- terá sido relevante (ainda que variável de acordo com os

contextos), devendo-se-lhe acrescentar o modo como a informação é disseminada através de diferentes

cartografias da biocomunicabilidade e apropriada, criando diferentes subjectividades.

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A escrita que desenha as margens

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unidades temporais e contextuais muito específicas. O facto de este trabalho se ter

alongado mais tempo do que o inicialmente previsto permitiu-me observar situações de

indivíduos, que, da prática fervorosa, passavam a um reavaliar das suas concepções e

práticas, afastando-se da macrobiótica. É certo que inflexões, mudanças de rumo, de

acordo com novas orientações, são processos comuns, no caso da macrobiótica como

noutras situações. Encontra-se, pois, muita da actividade científica condenada a captar o

instante. Em todo o caso, são os diferentes instantes que permitem detectar indivíduos

ideologicamente orientados, indivíduos nem sempre congruentes, por vezes ambíguos e

também multi-referenciais, no sentido de agirem por referência a orientações, contextos

e situações de acordo com diferentes quadros de interacção social. Conceitos que

permitam capturar estes processos sociais são hoje, pois, de grande relevância.

Uma outra dimensão que a incursão pela macrobiótica enquanto sistema

terapêutico permite colocar é a questão da eficácia, questão que procurarei não esquecer

no âmbito deste trabalho15

. Como pode ser avaliada a eficácia deste tipo de práticas?

Pelo sucesso nos tratamentos? Como medir esse sucesso? Será necessária uma

teorização sobre esta eficácia para mobilizar os agentes, implicados na macrobiótica e

que dão consultas nesta área, para a questão do reconhecimento deste sistema

terapêutico? De que forma a eficácia é explicada? Através dos dados por mim

recolhidos, enquanto aluna de um curso de macrobiótica e como assistente em consultas

de orientação macrobiótica, procurarei explorar esta dimensão, prestando atenção a

discursos e narrativas explicativas apresentadas.

Como classificar a macrobiótica enquanto prática terapêutica? Fará parte do que

se costuma designar por práticas leigas de saúde? Esta questão, coloca, evidentemente,

problemas de reconhecimento e de classificação. É que, ainda que muito distante da

biomedicina, a macrobiótica construiu, em termos terapêuticos, um conjunto

relativamente articulado de conhecimentos (por certo questionáveis, como muitos

outros) cuja aplicação exige aprendizagem e treino; formou pessoas que se

especializaram nesta área e que fizeram dela profissão. Será o distanciamento em

relação a um conhecimento mais técnico e cientificamente fundado, motivo para

identificar estas práticas como leigas? Como classificar a categoria cognitiva: leigo? A

noção de disseminação dos sistemas periciais no quotidiano (Giddens, 1992; Beck,

15 Esta dimensão, entre outras, foi sugerida pela discussão empreendida por Anita Hardon (EASA, 2010).

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«À Mesa com o Universo»

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2008), tal como referido por Noémia Lopes (2007), aponta, justamente, para a

necessidade de perspectivar de um outro modo os saberes leigos16

.

Convém sublinhar, a este propósito, que, no caso do sistema terapêutico

associado à macrobiótica, é possível observar que os seus discursos se alimentam de

informação proveniente de instâncias que podemos situar na área das Ciências da

Saúde, revelando-se, assim, como área porosa, exposta a influências e contaminações

diversas, daí resultando a sua própria recomposição. Para referir alguma da influência

da macrobiótica na biomedicina seria necessário analisar o próprio sistema biomédico,

pesquisa a que, por limitações óbvias, não procedo. Contudo, outros trabalhos,

permitem referir uma relação dinâmica entre biomedicina e terapêuticas menos

convencionais. Veja-se por exemplo o caso referido por Salkeld (2005) em que médicos

com “formações convencionais” adoptam a linguagem das “medicinas não

convencionais” ao exercerem a sua profissão em quadros que são o da consulta em

“medicinas não convencionais”. Eisenberg e Kaptchuk (2001) chamam mesmo a

atenção para o facto de a interpenetração entre “medicinas complementares” e

“medicina ortodoxa” (talvez devêssemos também acrescentar um s a estes dois termos)

ser tão acentuado, no sentido de integração das primeiras no quadro de funcionamento

da última (ensino nas universidades e disponibilização de consultas, medicamentos e

tratamentos em estabelecimentos onde a “medicina ortodoxa” pode ser preponderante),

que esta integração poderia significar a eliminação do pluralismo terapêutico.

1.8 Cruzamentos Disciplinares: a Escrita que Transcende as Margens

Na pesquisa efectuada sobre estudos científicos realizados sobre a macrobiótica,

constatámos que a maior parte deles se situava nessa vasta área que é a das Ciências da

Saúde. As abordagens situavam-se sobretudo em questões como a relação entre o

tratamento do cancro e a dieta macrobiótica, bem como com aspectos nutricionais

ligados à componente alimentar desta proposta. Pude constatar que, muito embora se

procure caracterizar a macrobiótica através de discursos produzidos por autores de

referência na macrobiótica e tenham sido, por vezes, entrevistados consultores nesta

área, parece haver lacunas na caracterização das práticas e discursos associados à

16 Neste contexto, é de sublinhar o esforço empreendido por Noémia Lopes (2007) para distinguir e

relacionar saberes leigos e saberes periciais.

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A escrita que desenha as margens

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macrobiótica. Este estudo, com todas as suas limitações, pode ser assim um contributo

para um conhecimento mais aprofundado deste universo. Ao procurar identificar e

conhecer uma proposta relativamente marginal da sociedade portuguesa, visará um

conhecimento mais sistemático e rigoroso que poderá ser aproveitado por outras áreas

científicas, designadamente as ciências da nutrição, no desenho de projectos de

investigação associados a formas de alimentação menos comuns.Talvez contribua para a

formulação de hipóteses de trabalho capazes de desfazer ou questionar certas assunções

e formas de olhar para a proposta de alimentação que a macrobiótica incorpora, talvez

essas hipóteses permitam refutar de forma consistente algumas das convicções da

macrobiótica.

O lugar deste trabalho, nesse âmbito específico que é o da alimentação, é o de

uma investigação em Antropologia Social sobre concepções, atitudes e formas de

relação com os alimentos. Dado que a macrobiótica extravasa o âmbito da alimentação,

houve necessidade de convocar outras sub-disciplinas que não apenas a Antropologia da

Alimentação. A Antropologia da Saúde e da Doença, a Antropologia do Corpo e

disciplinas como a História e a Sociologia serão, desta forma, referências fundamentais

nesta pesquisa.

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Perspectivas sobre alimentação

47

Capítulo 2

Perspectivas sobre Alimentação

2.1 Antropologia da Alimentação: estradas, caminhos e encruzilhadas para uma

investigação

Como já tive oportunidade de referir, a macrobiótica extravasa a esfera estritamente

alimentar. Porém, como também já antecipei, é sobretudo pela sua referência a questões

alimentares que costuma ser identificada. Nesta medida, pareceu-me justificar-se, desde o

início, a inserção deste trabalho na área da Antropologia da Alimentação. Sem pretender

algum tipo de exaustividade, dado que diversos autores procederam a revisões dos

principais trabalhos efectuados na área da Antropologia da alimentação (Goody, 1982;

Messer, 1984; Lupton, 1996; Mintz e Du Bois, 2002; Contreras e Gracia, 2005; Araújo,

2006), seguirei um percurso clássico, justamente aquele que é sinalizado pela História da

Antropologia da Alimentação. Procederei inicialmente a uma apresentação mais descritiva

e, posteriormente, procurarei ser mais analítica e orientada para questões entendidas como

significativas para o desenvolvimento deste trabalho.

Convém referir, desde já, que os temas, conceitos e formas de abordagem que

encontramos em muitos dos textos que podemos incluir na História da Antropologia da

Alimentação são característicos de um tempo e de um tipo de inquietações que,

naturalmente, não correspondem aos que encontramos na actualidade. Nos textos mais

clássicos, como aqueles que encontramos nos finais do século XIX e na primeira metade

do século XX, temas como o da insegurança alimentar, associada ao modo de produção

industrial, não eram recorrentes. Do mesmo modo, temas como o da alimentação como

um direito humano básico; ou discussões sobre especificidades relativas à agricultura

biológica, como a sua maior ou menor adequação ao modo industrial de produção,

também não o eram (cf. Pollan, 2009a). Temas específicos como o da necessidade de

rever políticas alimentares em que países carenciados são “ajudados” com produtos

subsidiados e excedentários de países mais ricos, também não tinham aí lugar de

destaque, pelo menos tal como são formulados actualmente. Muito embora uma

preocupação de âmbito mais global com a questão alimentar pudesse ser encontrada em

organizações enquadradas na Organização das Nações Unidas (ONU), como a Food and

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«À Mesa com o Universo»

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Agriculture Organization (FAO), a generalidade dos trabalhos encontrava-se afastada de

preocupações sociais globais.

Se atentarmos numa abordagem clássica desta sub-disciplina, os primeiros textos,

que podemos enquadrar na designação de Antropologia da Alimentação, foram

produzidos nos finais do século XIX e são atribuídos a Garrick Mallery e Robertson

Smith que se centraram sobretudo em aspectos religiosos ligados aos consumos

alimentares (cf. Mintz e Du Bois, 2002). Posteriormente, autores como Audrey Richards

(1932; 1995 [1939]) que evidenciou a função social da alimentação; Margaret Mead

(1997 [1970]) que abordou a questão dos hábitos alimentares e a sua relação com a

cultura; Claude Lévi-Strauss (1965; 1968) que se centrou na dimensão simbólica dos

alimentos; Marvin Harris (1994 [1985]) que perspectivou os consumos alimentares a

partir do contexto ecológico e material; Mary Douglas (1991 [1966]; 1997 [1975];1979),

que perspectivou a comida como sistema de comunicação, entre outros, transformaram a

alimentação num objecto de relevância antropológica fundamental ao evidenciarem a

importância que os alimentos podem deter em termos de compreensão da vida social.

Para além do seu manifesto interesse do ponto de vista nutritivo, a atenção ao modo como

os alimentos eram recolhidos, produzidos, confeccionados, distribuídos, consumidos e

classificados, revelava-os como elementos extremamente significativos.

Se a alimentação se transforma numa temática importante para a Antropologia, é a

partir dos anos 80, com o livro de Jack Goody - Cooking, Cuisine and Class (1982) - que

se pode assinalar um ponto de viragem no que diz respeito aos estudos sobre alimentação.

As pesquisas nesta área, tal como destacado por Mintz e Du Bois (2002), têm permitido,

efectivamente, a clarificação de vários processos: político-económicos (Mintz, 1985);

simbólicos (Munn, 1986), de construção social da memória (Sutton, 2001), etc. A atenção

que tem sido prestada à relação entre alimentação e fenómenos migratórios; alimentação e

identidade; dimensão ritual e simbólica dos alimentos; à globalização de certas formas de

alimentação; ao modo como certas políticas afectam a forma de alimentação ou qual o

papel da guerra nas mudanças alimentares, ou ainda como a industrialização da produção

alimentar condiciona as formas de alimentação, ilustra bem a diversidade de áreas de

investigação, bem como a actualidade e importância deste tipo de estudos.

Entre os trabalhos realizados sobre alimentação é possível identificar, também,

diferentes orientações do ponto de vista teórico. Se nos servirmos, como critério de

ordenação, das matrizes clássicas da disciplina, deparamo-nos com um pólo evolucionista

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Perspectivas sobre alimentação

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(Frazer, Crawley, Robertson Smith…) que centrou a sua atenção sobretudo em aspectos

rituais, religiosos e sobrenaturais ligados ao consumo de alimentos (análise de tabus,

totemismo, sacrifício, comunhão…) e que se interessou particularmente por descrever e

interpretar proibições e prescrições de alimentos. Interessou a estes investigadores uma

identificação e interpretação de costumes alimentares estranhos, que ajudassem a explicar

a evolução das instituições sociais (Contreras e Gracia, 2005:104). Caracterizados pela

ausência de uma inserção no terreno, estes estudos defendiam, fundamentalmente, uma

perspectiva de evolução linear que desde há muito foi questionada e rebatida nos seus

pressupostos centrais, não se revelando, também por isso, pertinente a sua discussão neste

contexto.

Continuando a seguir uma apresentação apoiada em Contreras e Gracia (2005), um

outro pólo que podemos identificar é o funcionalista, que perspectivou a cultura alimentar

como preenchendo uma função específica, procurando, nessa medida, fixar os rituais e as

crenças a ela associadas em processos sociais mais amplos (Audrey Richards, 1932; 1995

[1939]). Os aspectos simbólicos associados à alimentação foram aqui relegados para

segundo plano, havendo uma focalização sobretudo nas funções sociais que dela

decorriam. Da alimentação sublinhou-se a sua dimensão como necessidade biológica

fundamental, mas foi mostrada, também, como instrumento essencial da socialização dos

indivíduos, imprescindível na perpetuação dos sistemas sociais. Aspectos como a procura,

preparação e consumo alimentares foram vistos como componente central da actividade

quotidiana, tendo de igual forma sido analisados, ainda que em segundo plano, os valores

simbólicos dos alimentos e o modo como estes serviam para evidenciar o estatuto social,

os recursos ambientais mais valorizados e os ciclos temporais. Ainda dentro desta corrente

de pensamento, foi também prestada alguma atenção ao modo como os processos de

produção e distribuição de alimentos se repercutiam na saúde da população – o trabalho de

Richards é, de resto, um bom exemplo de tal preocupação. O que hoje mais sobressai

destas propostas de análise é, talvez, o reconhecimento das influências mútuas entre

biológico e social, sendo de notar, todavia, que, de acordo com a predominância da

perspectiva durkheimiana de que um facto social só pode ser explicado por outro facto

social, esta relação só viria a ser recuperada e repensada dezenas de anos mais tarde (ver

Fischler, 2001 [1990]).

As críticas dirigidas à escola funcionalista são já bem conhecidas: realçou-se a

visão estática que produziu dos sistemas sociais, o facto de estes não serem inscritos na

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«À Mesa com o Universo»

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História, a pretensa objectividade, o facto de não se dar a atenção adequada aos conflitos e

aspectos não funcionais, etc. Apesar de tudo, vale a pena referir que de acordo com autores

como Beardsworth e Keil (1997: 59-60), as interpretações funcionalistas continuam a

permanecer, ainda que apenas de forma implícita, no centro de muitas investigações

actuais. Da minha parte, julgo que continua a ser pertinente a análise dos subsistemas de

produção, distribuição e consumo alimentar e o modo como estes influenciam os sistemas

sociais. Estas dimensões são, de resto, centrais em algumas das propostas de que mais à

frente falarei. De acordo com Contreras e Gracia (2005:115), predomina no panorama

actual uma orientação um pouco difusa, de inspiração funcionalista, que tem servido de

base para uma colaboração entre antropólogos e nutricionistas.

Uma outra vertente dos estudos sobre alimentação apontada por Contreras e Gracia

(2005) é o culturalismo, corrente que, em boa medida, coincidiu temporalmente com o

funcionalismo. Conferindo uma orientação psicológica aos seus estudos, o culturalismo

enfatizou a importância do conhecimento dos hábitos alimentares, e o modo como

diferentes culturas orientam os comportamentos neste âmbito particular. A preocupação

com o combate à fome no mundo foi aí também um elemento presente (Mead, 1997

[1970]). Os trabalhos realizados antes da Segunda Guerra Mundial centram-se em aspectos

como a ansiedade em torno da comida, a abstinência ou as frustrações alimentares (Messer,

1984). Mais tarde, tal como referido por Contreras e Gracia (2005:116), retomou-se a

análise psicológica das motivações dos comportamentos alimentares, procurando-se

observar, por exemplo, o modo como a ansiedade em torno de carências alimentares reais

ou fictícias, ou outros aspectos, podiam afectar a ordem cultural, social e psicológica de

uma sociedade (Shack, 1997 [1969]), Holmberg (1950), Massara (1997 [1989]) O que

interessa reter, a propósito da abordagem culturalista, é o lugar central atribuído à cultura:

é ela que determina diferentes práticas e representações alimentares. De acordo com

Contreras e Gracia (2005:128) durante os anos 1960 e 1970 aspectos como a imbricação de

factores económicos, ecológicos, tecnológicos e sociais, bem como a atenção às

configurações históricas e transformações sociais são menosprezados.

A vertente estruturalista, por seu turno, divulga uma concepção segundo a qual

para se compreender um sistema de alimentação nos devemos centrar nas estruturas

profundas e observar, por exemplo, de que forma o gosto e a definição do que é ou não

comestível se encontra conforme à sociedade e cultura. Evitando qualquer reducionismo

biológico a que a questão da alimentação se pudesse prestar, Lévi-Strauss esforça-se por

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Perspectivas sobre alimentação

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demonstrar que só depois de os alimentos serem reconhecidos pela nossa mente como

comestíveis é que são consumidos, ou seja, são os significados sociais atribuídos aos

alimentos, no quadro de uma taxonomia, que os tornam passíveis de ser ingeridos. Uma

outra proposta estruturalista é a de que devemos considerar os sistemas de alimentação

como sub-sistemas, não sendo possível no interior de cada sub-sistema, analisar os

elementos isoladamente (Lévi-Strauss, 1965,1968; Barthes, 1997 [1961]; Douglas, 1979;

1997 [1975]; Sahlins, 1988 [1976]; Fischler, 2001 [1990]); Bourdieu, 1979).

Nem sempre é fácil “arrumar” autores, todos eles referenciais e que, pelo menos em

alguns casos, se colocam em posições intersticiais e combinam aspectos que parecem

provir de diferentes quadros teóricos. Assim, Sahlins, embora possua referências fortes na

perspectiva estruturalista, amplia-a e dá-lhe novos horizontes, podendo ser remetido para o

culturalismo simbólico. A sua ideia de que a lógica simbólica que orienta a procura de

alimentos é a de que os que são comestíveis são os que se encontram em relação inversa

com a humanidade, quer dizer, quanto mais próximos do homem menos são consumidos,

expressa bem a importância dos aspectos culturais e simbólicos da sua perspectiva de

análise (Sahlins, 1988 [1976]). Douglas, por seu lado, evidencia tanto a influência da

corrente estruturalista francesa como a do estrutural-funcionalismo britânico.

Considerando fundamentais os aspectos biológicos do acto alimentar, esta autora, coloca,

contudo, a ênfase no carácter expressivo e significativo da alimentação (Douglas, 1991

[1966])

Bourdieu, pode, também, ser colocado entre os teóricos estruturalistas e os

materialistas, já que perspectiva o gosto e as preferências alimentares na óptica da

transmissão e da reprodução social. De facto, colocando em causa a ideia de que o gosto

seja uma escolha pessoal, Bourdieu (1979) defende que o gosto e os consumos alimentares

são uma expressão da identidade de classe através da qual se reproduzem distinções

sociais. As mudanças sociais, ligadas por exemplo, à ascensão social, resultam da

apropriação de consumos, práticas e valores das classes sociais dominantes, ou seja, é pela

imitação que se processa a alteração de uma situação social. Contudo, esta imitação nem

sempre dá lugar, de forma imediata, a uma inserção numa nova classe social. Certos

indivíduos ao procurarem mimetizar comportamentos alteram-nos, produzindo realidades

novas, não sendo assim linear a identificação com a classe social com a qual procuram ser

assimilados. A classe social surge em Bourdieu, desta forma, como estrutura relativamente

resistente; encontra-se associada a consumos alimentares e a um sentido do gosto

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«À Mesa com o Universo»

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específicos. Estes aspectos não são meramente individuais, antes resultam de uma

aprendizagem no interior de uma classe social a que não se acede unicamente pela

aquisição de capital económico.

As principais críticas aos trabalhos estruturalistas e que, de resto, também podem

ser dirigidas aos culturalistas, têm a ver com o facto de conferirem prioridade à análise dos

elementos descritivos e estruturais da alimentação e de conferirem uma autonomia

excessiva à razão cultural, sobrepondo-a a fenómenos materiais de ordem biológica,

ecológica ou histórica, negligenciando, dessa forma, o estudo do contexto sócio-económico

e político em que os alimentos são preparados e consumidos, bem como a sua evolução

espacial e temporal (Contreras e Gracia, 2005:127).

Algumas das principais respostas às orientações estruturalistas e culturalistas

podem ser situadas em torno dos trabalhos de Harris (1994 [1985]) e Ross (1980) por um

lado, e os de Goody (1998 [1982]), Mennell (1985), Mintz (1985;1996) e Beardsworth e

Keil (1997) por outro. Harris e Ross costumam ser situados na corrente neo-funcionalista,

na ecologia cultural ou no materialismo cultural. Os seus trabalhos incorporam uma

orientação ecológica e retomam aspectos da perspectiva materialista que haviam sido

redefinidos por Steward (1972 [1955]) e White (2005 [1949]). À premissa de Lévi-Strauss

«bom para pensar, então bom para comer» Harris (1994 [1985]) contrapõe a de «bom para

comer, então bom para pensar», enfatizando a ideia de que a comida tem que satisfazer em

primeiro lugar o estômago e só depois a mente. Ancorando a sua análise na compreensão

dos mecanismos de adaptação ao meio e realçando a importância das infra-estruturas

económicas em detrimento das super-estruturas ideológicas, Harris oferece-nos uma

interpretação da cultura alimentar e das preferências e proibições na qual os pontos de vista

dos actores sociais são ignorados e onde a tónica é colocada em critérios como a

maximização dos recursos disponíveis - é essa, por exemplo, a sua explicação para a

interdição do consumo de carne de vaca na Índia.

Apesar das críticas severas às posições de Harris, apresentadas por autores como

Sahlins ou Douglas, a ecologia cultural e o neo-funcionalismo abriram caminho para os

estudos etno-ecológicos que se desenvolveram entre os anos 70 e 80, de que é exemplo o

trabalho de Rappaport, (2000 [1968], 1979). De acordo com Contreras e Gracia

(2005:135), esses estudos apresentaram novas perspectivas ao defenderem que a

alimentação humana não depende apenas da adaptação aos ecossistemas, mas também das

heranças culturais; das elaborações surgidas mediante o contacto com outras populações;

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Perspectivas sobre alimentação

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dos constrangimentos face a factores externos e, também, traço relevante e que afasta esta

perspectiva dos neo-funcionalistas, do comportamento dos indivíduos enquanto actores

sociais. Estes aspectos implicavam, na verdade, uma nova postura teórica e metodológica,

obrigando a trabalhar com modelos interaccionais e processuais.

Outros autores a que já fiz referência, nomeadamente Goody (1998 [1982]),

Mennell (1985), Mintz (1985; 1996) e Beardsworth e Keil (1997), tecerão também críticas

às perspectivas culturalistas e estruturalistas. Estes autores costumam ser associados às

interpretações materialistas pela importância que atribuem à análise dos contextos

alimentares e pelo destaque que conferem a factores como o espaço, o tempo e a dinâmica

social dos grupos em diferentes quadros sócio-económicos e culturais. Autores como

Contreras e Gracia (2005:136) agrupam-nos sob o termo developmentalism, dada a sua

preocupação fundamental com o estudo do desenvolvimento dos sistemas alimentares.

Realçam, porém, que o developmentalism não é uma perspectiva explícita ou um corpo

teórico homogéneo, é sobretudo uma categoria, de acordo com a qual qualquer tentativa

para compreender as formas culturais e sociais contemporâneas deve ter em consideração a

relação destas com o passado e deve apelar à reconstrução histórica. As transformações

sociais tornam-se desta forma num tema fundamental, a partir do qual se analisarão os

efeitos da globalização, os conflitos, as contradições e as relações de poder em relação à

produção, distribuição e consumo de alimentos.

Goody (1998), que questiona a abordagem de Lévi-Strauss pela ênfase dada à

cultura e pela pouca importância atribuída às relações sociais e às diferenças individuais,

defende que não é possível uma análise da cozinha desvinculada das questões de poder e

de autoridade na esfera económica e que, consequentemente, é necessária uma análise da

estratificação social e divisão sexual do trabalho, dado que estes aspectos influenciam as

práticas alimentares. A sua análise sobre grupos do norte do Gana (Gonja e Lo Dagaa)

levá-lo-ia também a colocar em evidência os efeitos sociais produzidos pelos processos de

mudança que ocorrem a uma escala mais global, designadamente os que têm a ver com a

evolução da ‘alimentação industrial’.

Mennell (1985), desenvolvendo um estudo comparativo sobre a evolução das

cozinhas francesa e inglesa, procurou, também ele, compreender as diferenças e

semelhanças que se foram estabelecendo entre estas cozinhas, bem como entre as classes

sociais. Na sua abordagem aplicou a perspectiva de Elias (1989 [1939]), prestando atenção

a processos históricos e diferentes configurações sociais. Procurou, todavia, ampliar o

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trabalho desenvolvido por Elias. A seu ver, Elias centrou-se nas maneiras à mesa, nada nos

dizendo sobre o apetite (distinto da noção de fome em Mennell) como processo

civilizacional. Para Mennell o sentido do gosto, a civilização do apetite, era importante

enquanto processo histórico. Esta civilização do apetite só pôde evidenciar-se numa

situação de segurança alimentar e foi concomitante com o desenvolvimento da sociedade

de corte. Mennell defenderia ainda que uma maior interdependência e equilíbrio de

poderes entre classes sociais proporcionariam um maior equilíbrio na distribuição de

alimentos, facto que, muito embora não fosse linear, contribuiria para uma maior

similaridade entre cozinhas. A resolução da escassez dos alimentos, bem como o maior

equilíbrio na distribuição dos mesmos, seriam, assim, aspectos fundamentais para

compreender o desenvolvimento das cozinhas nacionais.

Para Mintz (1985) a análise do contexto alimentar nas suas diversas vertentes

(histórica, espacial, económica…) é também muito relevante, apontando este autor a

necessidade da elaboração de uma História Social sobre o uso de novos alimentos. O seu

trabalho sobre a produção, comercialização e consumo de açúcar - Sweetness and Power

(1985) – procura demonstrar que o consumo de açúcar pela classe trabalhadora no séc.

XIX não pode ser explicado apenas na óptica da imitação ou do gosto inato pelas

substâncias doces, mas pela interacção entre poderes económicos, políticos, necessidades

nutricionais e significados culturais. Curiosamente, defende Mintz, a suposta preferência

humana pelo doce teria encaixado perfeitamente na expansão do sistema capitalista

industrial. Constatamos que para ele, como para outros, por exemplo Fischler (2001), a

modificação dos hábitos alimentares não tem a ver apenas com um desejo de ascensão

social, pois nem todos os consumos das elites se convertem em desejos para as outras

classes sociais, sendo, ao contrário, realçada a importância das circunstâncias em que um

novo hábito é adquirido.

A análise de Beardsworth e Keil (1997), sobre a pluralidade de menus disponíveis

no sistema alimentar moderno, vai também de encontro à necessidade de contextualização

dos sistemas alimentares. A questão do desenvolvimento de tais sistemas encontra-se,

também aqui, muito presente. Para estes autores, o pluralismo na oferta de possibilidades

de alimentação é o resultado da globalização e da industrialização da produção e da

distribuição. Contrariamente a autores como Fischler (2001) que tendem a identificar a

sociedade actual com a gastro anomia, querendo com isto fazer referência à desagregação

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Perspectivas sobre alimentação

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das referências normativas17

, Beardsworth e Keil tendem a ver as tensões existentes como

emergência de uma nova ordem alimentar, mais aberta, flexível e plural.

Também os estudos de género fizeram a sua incursão pela alimentação, sendo

possível identificar um primeiro conjunto de trabalhos que se centrou, sobretudo, nas

questões do poder e no modo como a acção de homens e mulheres, relativamente à

produção, armazenamento e distribuição de alimentos se traduzia em relações de poder.

Tal como referido por Contreras e Gracia (2005:149), um segundo conjunto de trabalhos

interessou-se ainda pela análise do poder subjectivo - Caplan (1997); Counihan (1999);

Orbach (1986) Adams, (2010 [1990]) – tendo-se centrado em torno das diferentes relações

que homens e mulheres mantêm com a comida e no modo como estas se repercutem na

construção das suas identidades de género. Os estudos feministas das últimas décadas

tendem a enfatizar, de resto, que as mulheres não actuam sempre de igual forma e que não

são nem meras receptoras de uma sociedade patriarcal, nem inteiramente manipuladas por

interesses económicos e políticos. Esta visão remete, assim, para o debate estrutura-

agência.

Algumas das tendências mais recentes nos estudos sobre alimentação podem ser

identificadas com o construtivismo social e o pós-estruturalismo (Lupton, 1996;

Hepworth, 1999), o debate estrutura-agência (Germov e Williams, 2004 [1999]) e o

embodyment (Shilling, 2003 [1993]) (ver Contreras e Gracia, 2005). Nestas vertentes

acentuam-se aspectos que julgamos relevantes; a visão da realidade social como

construção social, resultante de discursos e dos significados produzidos por estes; a

necessidade de interpretar os fenómenos mediante a pluralidade de circunstâncias que os

produzem; a ênfase na subjectividade; a procura da conexão entre factores estruturais e

individuais; o entendimento da ordem social e da formação da identidade como sendo cada

vez menos uma questão de classe social; a ênfase nos padrões de consumo como forma de

evidenciar a posição individual e expressar a individualidade; as críticas às teorias da

conspiração dos sistemas capitalistas que manipulam os indivíduos e determinam as suas

formas de expressão; o reconhecimento do papel da acção individual e abandono da ideia

de sujeição a um sistema; a visão dos indivíduos como não sendo nem totalmente

poderosos nem como estando completamente desapossados; o estudo do corpo como lugar

crucial para a compreensão dos processos de identidade e saúde; a rejeição dos

essencialismos e o apelo a conceitos como relativismo, interacção social e processualismo.

17 Um exemplo do que se afirma seria a grande flexibilidade nos horários das refeições.

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«À Mesa com o Universo»

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Se atentarmos em diversos estudos que têm sido desenvolvidos sobre formas de

alimentação fora do “padrão” dominante, verificaremos que têm sido enfatizados aspectos

que visam um conhecimento das motivações que conduzem a essas práticas alimentares,

considerando as trajectórias individuais e o modo como se faz a inserção deste tipo de

alimentação num outro mais amplo. Para lá destes aspectos têm ainda sido considerados os

efeitos produzidos quer nos indivíduos que adoptam determinadas práticas, quer nos

membros que configuram as redes familiares e sociais, bem como as vantagens sentidas

relativamente a esta forma de alimentação. Dimensões que remetem para as relações entre

alimentação e saúde têm, neste âmbito, sido também alvo de atenção (cf. García, 2002).

Tão-pouco têm sido esquecidos os modos de percepção relativamente àqueles que praticam

estas formas de alimentação, as preocupações de carácter ambiental, as ideologias que

subjazem a diferentes práticas alimentares, a inserção destas práticas no sistema capitalista,

etc… Autores como Barkas (1975), Beardsworth e Keil (1997), Ossipow (1997), Maurer

(2002), Stuart (2007), Lau (2000), Belasco (2007 [1989]), Araújo (2006), Le Grand (2010)

têm desenvolvido os seus trabalhos neste campo. Muitas destas investigações, que vêm

sendo feitas sobre formas de alimentação fora do “padrão” dominante, não escapam à

remissão para as correntes que atrás referimos e que, pode dizer-se, estruturam fortemente

o pensamento antropológico.

De facto, os estudos sobre práticas alimentares como o vegetarianismo, a

macrobiótica, o frugivorismo ou o crudivorismo reflectem muitas das problematizações

atrás referidas e necessitam de ser aí enquadrados. A macrobiótica, de que me ocupo nesta

investigação, parece-me ser, na verdade, um campo sugestivo para reflectir sobre aspectos

cruciais que de alguma forma a transcendem enquanto forma específica de alimentação. É

possível analisar, através deste sistema alimentar, aspectos como as dinâmicas sociais, os

efeitos da globalização, as ideologias alimentares, a pluralidade de situações implícitas a

esta orientação alimentar, as modificações na produção e nos mercados (algumas delas

resultantes de novas atitudes face à comida), as concepções e atitudes face ao corpo e à

saúde, o distanciamento face aos discursos biomédicos, etc.

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Perspectivas sobre alimentação

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2.2 Perspectivar a Alimentação Macrobiótica a partir dos Estudos sobre Alimentação

A concepção sobre a alimentação e o acto de comer, entendidos como sendo

centrais na definição de subjectividades, no sentido enunciado por Deborah Lupton (1996),

constitui um bom ponto de partida para analisar escolhas alimentares, como são aquelas

que se associam à macrobiótica. O conceito de subjectividades, ao incorporar a ideia de

que os indivíduos são altamente mutáveis e contextuais, apesar de condicionados pelos

limites impostos pelo contexto sócio-cultural, pareceu a Lupton menos rígido do que o de

identidade (cf. Lupton, 1996:13). Na verdade, muito embora possamos falar de identidades

para fazer referência a uma ideia de sujeito plural e fragmentado, o conceito de

subjectividades, ao assumir claramente a ideia de que nenhuma identidade se encontra

definitivamente estabelecida, e que pode haver uma certa ambiguidade no modo como os

indivíduos se vão posicionando em circunstâncias específicas, tem surgido como categoria

analítica mais capaz de dar conta da complexidade individual. A possibilidade de na noção

de subjectividades se poder atender tanto à dimensão consciente como à inconsciente; às

emoções e ao modo como elas se expressam através de discursos, julgo que traduz alguma

dessa complexidade. É claro que para além dos discursos é importante olharmos as

práticas, sendo na análise dessa relação que, frequentemente, se encontram as

ambiguidades e incongruências que caracterizam os indivíduos.

Dos muitos campos através dos quais se constrói uma subjectividade, comer

constitui, tal como referi, uma dimensão importante. Ainda que o acto de comer seja, quase

sempre, culturalmente construído, as opções individuais nesta matéria reflectem uma

dimensão de subjectividade. Sobretudo em sociedades plurais, apesar dos

condicionamentos específicos derivados de certas formas de socialização e de apropriação

de concepções e práticas, é possível observar expressões dessa subjectividade através das

escolhas alimentares. Por exemplo, optar pela alimentação macrobiótica significa desde

logo, pelo menos para o exterior, construir um ethos ao qual associamos um conjunto de

concepções e práticas. Tal não significa, porém, que todos os indivíduos se posicionem de

modo idêntico em relação à macrobiótica, do mesmo modo que nem todos fazem das suas

opções alimentares um pretexto para mudar radicalmente de vida. Ainda que mudar de

hábitos alimentares signifique grandes alterações no quotidiano, é possível, evidentemente,

manter a mesma actividade profissional ou o mesmo círculo de amigos.

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«À Mesa com o Universo»

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O acto de comer constitui ainda uma forma particular de expressão de

subjectividades na medida em que corresponde frequentemente a um entendimento sobre o

corpo e o modo como se quer transformá-lo. A noção do corpo humano como projecto

(Shilling, 2003), isto é, como processo através do qual é possível concretizar uma

idealização sobre a sua forma e conteúdo, julgo que encontra alguma ressonância entre os

que seguem a macrobiótica. A visão do corpo como algo dinâmico e moldável, capaz de

responder a objectivos específicos, faz também sentido numa análise sobre a adopção da

alimentação macrobiótica. O corpo que se pretende obter através da macrobiótica é um

corpo saudável, enérgico, resistente, flexível, equilibrado em termos de yin e de yang. De

acordo com as necessidades específicas de cada um, o corpo pode ser “moldado” para

melhor responder aos objectivos concretos, havendo até orientações alimentares em função

da actividade profissional. Acredita-se que até as emoções podem ser trabalhadas a partir

dos alimentos ingeridos. A adopção da “alimentação macrobiótica padrão” costuma

também traduzir-se numa aparência corporal/física particular. Um dos consultores

contactados, referia que essa transformação se notava logo que as pessoas “levavam a

macrobiótica a sério”. Pelo que pude observar, verificam-se, efectivamente, alterações no

aspecto físico daqueles que passaram a fazer exclusivamente alimentação macrobiótica. A

perda de peso é, sem dúvida, um dos aspectos mais visíveis. Não encontrei ninguém que

seguisse a “alimentação macrobiótica padrão” há já alguns anos e que tivesse excesso de

peso. O projecto de um corpo saudável, tranquilo, libertado de excessos, em “harmonia

com o universo”, desperto e espiritualizado, constitui, portanto, uma ideia consolidada

entre os que praticam a macrobiótica. Idealmente, seguir este regime significa incorporar

um projecto de corpo e com ele concorrer para um tipo particular de subjectividade. O acto

de comer adquire, assim, um sentido mais denso, constituindo-se em dimensão vivencial,

com base na qual o indivíduo expressa escolhas, que tanto dizem respeito a um ideal de

corpo como a um entendimento do mundo.

A comida cumpre, naturalmente, necessidades biológicas, mas realçar sobretudo

esta dimensão, ou apresentá-la como instância última onde deve ser encontrada a

explicação para as opções alimentares, significaria uma remissão para o grau zero de

humanidade. A opção pela macrobiótica, com todas as expectativas que mobiliza, constitui

uma ilustração de como dimensões que transcendem a necessidade biológica, se

incorporam no acto de comer. Note-se que o que foi referido está para além de todos os

aspectos que costumam ser evocados a propósito da dimensão cultural e social da

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Perspectivas sobre alimentação

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alimentação (cf Lupton, 1996:1), pois a macrobiótica coloca-se num outro plano, o do

desenvolvimento da espiritualidade, já que é dessa forma que é vista por muitos dos

seguidores.

Lupton (1996), ao defender que as escolhas alimentares - e as emoções associadas a

estas - devem ser vistas como o resultado de um processo de construção social, mediado

pela cultura e pela sociedade, contempla uma perspectiva a que considero ser importante

prestar atenção, focalizando-a a partir da macrobiótica. Este modelo alimentar instaura

precisamente uma ruptura com hábitos e tradições associados à alimentação. Quem, por

acaso, conheça a despensa ou cozinha de indivíduos que pratiquem alimentação

macrobiótica, depara-se, inevitavelmente, com um conjunto de ingredientes que são

desconhecidos da maior parte dos portugueses. Não apenas os ingredientes são diversos

como também algumas das técnicas de confecção se afastam dos costumes nacionais. Face

a uma necessária reinvenção do acto alimentar, para a qual os praticantes de alimentação

macrobiótica são convidados, e que evoca outros contextos e outras culturas, como

equacionar, então, a questão da mediação cultural e social? Nancy Chen (2009: 111)

defende a necessária contextualização social e cultural das “dietas” ou dos “regimes

alimentares”, realçando que a simples replicação dessas dietas pela indústria alimentar é

inadequada. Esta posição, concordante com a importância atribuída pela autora à cultura e

aos sistemas de conhecimento na análise dos alimentos, pode ser um bom ponto de partida

para analisar a questão atrás enunciada.

Quando se procura contextualizar a alimentação macrobiótica do ponto de vista das

referências culturais e sociais, ela surge, na verdade, como um objecto ambíguo. Da

mesma forma que as mercadorias têm uma vida social (Appadurai, 1986), também a

macrobiótica, que não deixa de ser um produto possui essa vida. Circulando pelas pessoas

e pelo mundo, foi conhecendo transformações em diferentes contextos culturais e sociais.

Nas palavras de um dos formadores na área da macrobiótica que foram contactados, a

alimentação macrobiótica encontrar-se-ia radicada na alimentação tradicional japonesa,

devendo ser compreendida a partir desse contexto. Sabemos que Ohsawa (fundador da

macrobiótica moderna) reuniu muito conhecimento relativo à alimentação tradicional

japonesa (cf. Koztsh, 1981), mas construiu um sistema de alimentação e um sistema de

pensamento que continha algo de inovador. Influenciado por filosofias orientais, como o

taoismo e o budismo, desenvolveu uma classificação muito pessoal dos alimentos,

servindo-se das categorias tradicionais de yin e de yang. O que sucede é que, embora

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«À Mesa com o Universo»

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baseado na matriz binária (yin/yang) inventada pelos chineses, dá-lhe uma nova vida ao

reinventá-la. Tal como me foi referido numa das aulas do curso curricular Michio Kushi

(IMP), Ohsawa reinterpretara as noções de yin e de yang para as tornar mais

compreensíveis para os ocidentais. Podemos dizer que o sistema de conhecimento que se

encontra por detrás da alimentação macrobiótica tem por referência filosofias orientais,

abarcando particularmente o contexto sino-japonês, mas devemos ter presente que a

remissão para uma tal vastidão torna problemático o uso da ideia de quadro cultural.

De qualquer modo, a forma como a macrobiótica viaja pelo mundo e o facto de ser

provavelmente mais conhecida nas sociedades euro-americanas do que na China ou no

Japão, contribui para a difícil caracterização deste objecto. A sua desterritorialização

confere-lhe, na verdade, características singulares, na medida em que problematizam a sua

contextualização. Não havendo na macrobiótica uma correspondência entre uma forma

cultural específica e um lugar, e, muito menos a ideia de uma relação orgânica entre uma

população, um território e um conjunto organizado de significados, tal como referido por

Hannerz (1998:37), os termos da sua identificação e contextualização necessitam de

procurar outras vias. Se pensarmos a macrobiótica como forma cultural, podemos mesmo

encontrar nela uma boa ilustração para um objecto cultural desterritorializado,

fragmentário, poroso, adaptável a homens e lugares. Não conhece fronteiras, captura

significados de causas ambientalistas, mas também resultados da actividade científica,

transita pelo mundo com o seu conjunto organizado de sentidos, sendo, ainda assim, capaz

de se adaptar em diversos aspectos a sistemas culturais locais e às “suas cozinhas”. Produz

identidade entre os indivíduos que a ela aderem, sendo possível ver nela um espaço de

reconhecimento marcado por uma certa universalidade.

Quando alguém adere à macrobiótica, instaura, como referi, uma certa ruptura com

uma forma de alimentação e com a cultura alimentar em que surge integrado. Até que

ponto substitui a sua cultura alimentar por outra? A sua prática alimentar é uma prática

descontextualizada por relação às práticas predominantes, uma fuga em relação a um tipo

específico de prática cultural e socialmente construída? Como contextualizar a

macrobiótica? Pelo que venho afirmando e pelo que mais à frente se tornará mais explícito,

a perspectiva territorial, no sentido de análise de um fenómeno como sendo relativo a um

território em particular ou a um contexto geográfico e cultural específico, não permite uma

análise consistente sobre a macrobiótica, antes devendo essa contextualização ser

sobretudo procurada num sistema de conhecimentos com o qual diferentes indivíduos se

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Perspectivas sobre alimentação

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identificam. Apresentada a problemática desta forma, quase nos poderíamos interrogar

sobre se continuaria a fazer sentido falar da alimentação como algo sempre mediado,

construído, a partir do contexto cultural, aqui entendido a partir da referência à noção de

cultura alimentar18, em que se está inserido.

A macrobiótica, tal como procurarei demonstrar, constitui um exemplo de como a

adopção de uma outra visão sobre os alimentos pode abalar concepções anteriores sobre os

mesmos e pode significar um processo de reconstrução de sentidos. Este processo tanto

pode conduzir a uma ruptura com concepções relativas a determinada cultura alimentar,

como pode interceptá-la e encontrar inesperadas relações (como quando se confecciona

tofu à Braz). Considero que este processo de reconstrução de sentidos, no seu duplo

movimento e na relação dinâmica que empreende, acaba por contribuir para uma erosão de

concepções “mais tradicionais” sobre alimentação; erosão que pode não ter, de forma

imediata, um efeito disruptivo (no sentido de romper com “padrões alimentares” mais

instalados) mas que pode levar à transformação de práticas estabelecidas. Este processo

não será, evidentemente, exclusivo da macrobiótica, mas, como procurarei demonstrar, os

discursos, em torno dos receios relativos ao consumo de alimentos processados pelo sector

agro-industrial, proporcionam uma maior permeabilidade para a entrada de concepções

mais marginais sobre a alimentação, como a macrobiótica. Nesta medida, os sistemas

marginais surgem como indispensáveis para pensar aqueles que são predominantes. Uns e

outros vão estabelecendo entre si relações dinâmicas através das quais se transformam.

Refere Nancy Chen que se no início do séc. XX as filosofias sobre dietas

alimentares nos EUA se encontravam muito marcadas por ideias moralistas, surgindo a

alimentação como parte importante da vida espiritual, tal não se verifica nos dias de hoje

(2009:60). Se dantes as orientações alimentares estavam integradas num conjunto de

princípios morais, hoje surgem, a seu ver, sobretudo sob a alçada das ciências da nutrição e

da prática biomédica. A orientação alimentar em função de factos como a obesidade,

diabetes e doenças cardiovasculares ter-se-á tornado dominante. Tal é revelador para a

autora do modo como a ciência e a medicina passaram a estruturar os significados

18Cultura alimentar entendida no sentido que lhe é atribuído por Mabel Gracia: «conjunto de actividades

estabelecidas pelos grupos humanos para obter do meio envolvente os alimentos que possibilitam a sua

subsistência, desde a aquisição, produção, distribuição, armazenamento, conservação e preparação dos

alimentos, até ao seu consumo, incluindo aí todos os aspectos simbólicos e materiais que acompanham as

diferentes fases desse processo». (Gracia, 2002:17) [Tradução livre]

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«À Mesa com o Universo»

62

associados às prescrições dietéticas, tendo assim havido uma substituição das concepções

moralistas por outras de carácter científico.

Ainda que tal se verifique, convém dizer, a este propósito, que muito embora a

ciência e a biomedicina possam corresponder hoje a formas mais institucionalizadas e

aceites de discursar sobre o corpo, a preocupação com questões de saúde e com a

manutenção de um corpo saudável nunca deixou de estar presente nas diversas orientações

dietéticas que foram produzidas ao longo dos séculos. Se tomarmos como exemplo

específico a alimentação macrobiótica, constataremos que um corpo saudável surge

frequentemente como condição para o “desenvolvimento espiritual”. Em todo o caso, tal

como procurarei demonstrar, alguns dos discursos da área das ciências da saúde, em

particular das ciências da nutrição, invadiram efectivamente os discursos sobre

alimentação e saúde produzidos na macrobiótica, levando a que os alimentos fossem

também aqui classificados em termos nutritivos e em termos de efeitos relativos à saúde.

Verifica-se assim que a macrobiótica não é um sistema fechado, mas antes aberto a

influências diversas. Podemos também dizer que diversos aspectos da sua prática

alimentar, como a valorização dos cereais integrais na alimentação, ou a utilização de

certos ingredientes como o tofu, parecem, em contrapartida, ser cada vez mais

reconhecidos e considerados importantes na alimentação. Atente-se a este propósito, e tal

como poderá ser observado mais à frente, à pirâmide alimentar criada pelo departamento

de nutrição da Universidade de Harvard que inclui, precisamente, cereais integrais e tofu.

O que este processo indicia são relações dinâmicas entre diferentes sistemas de

conhecimento. Os sistemas dominantes “contaminam” os marginais, que, por vezes, para

se afirmarem necessitam de uma linguagem mais próxima da ciência. Contudo, os

dominantes, acabam por ser alterados para formas que permitem algum grau de identidade

com aqueles que são marginais, ainda que tenham de desenvolver um conjunto de

procedimentos específicos para sustentarem as verdades a que chegam.

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Perspectivas sobre alimentação

63

2.3 Estudos Sociais sobre Alimentação em Portugal: Interpelações a uma pesquisa sobre

a Macrobiótica

No âmbito das Ciências Sociais, os estudos sobre alimentação em Portugal têm

constituído uma área com fraca expressão. Recentemente, no entanto, têm sido conduzidas

pesquisas que parecem querer inverter essa situação. Ainda não se percebe claramente uma

tendência que permita identificar os estudos sobre alimentação como núcleo central na

investigação desenvolvida, mas diversos contributos têm sido dados para transformar esta

área num terreno menos ignorado. Decerto que o facto de, a nível internacional, a

alimentação ser um objecto de interesse crescente por parte das Ciências Sociais, ajuda a

compreender a maior atenção que, também entre nós, lhe tem sido dedicada.

No desenvolvimento desta pesquisa não poderia deixar de fazer menção a alguns dos

trabalhos sobre alimentação que têm sido realizados em Portugal; o recorte que tem sido

empreendido, na sua proximidade e distanciamento com esta investigação, permite também

situar de forma mais adequada esta pesquisa. Sem pretender algum tipo de exaustividade

relativamente a esses estudos, e orientando as minhas referências sobretudo para trabalhos

mais recentes que têm sido desenvolvidos em Antropologia e Sociologia, procurarei

assinalar alguns dos rumos de investigação que têm sido seguidos. Tal procedimento

procurará um duplo efeito: por um lado, identificar áreas temáticas e questões teóricas, por

outro, situar esta dissertação no âmbito da Antropologia da Alimentação desenvolvida em

Portugal.

Se procurarmos um dos escritores mais profícuos no que respeita os estudos sobre

alimentação em Portugal, e que sobre ela teorizaram, deparamo-nos, inevitavelmente, com

Alfredo Saramago. O trabalho deste autor, na intersecção entre a História e a Antropologia,

constitui, sem dúvida, uma referência significativa. O seu papel enquanto divulgador da

gastronomia portuguesa é sobejamente conhecido. Juntou as tarefas de investigação e de

divulgação ao gosto pela confecção e degustação; livros como Cozinha para Homens, a

Honesta Volúpia (1992) são disso exemplo. A par de José Quitério (1987, 1992) e José

Bento dos Santos (2008), terá sido um dos que mais fundiu o gosto pela comida com as

histórias que a comida podia contar.

A Saramago se deve a descrição e caracterização da cozinha de diferentes regiões do

país. Associando aspectos de natureza histórica com contextos ambientais, hábitos

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«À Mesa com o Universo»

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alimentares e técnicas e saberes na preparação dos alimentos, revela preocupação com a

identificação dos aspectos estruturantes das cozinhas. Em obras como Para uma História

da Alimentação no Alentejo (1997) o conceito de estrutura, embora evocado como

fundamental, não é alvo de uma apresentação teórica aprofundada. O seu uso, tanto pode

remeter para períodos históricos e levar-nos a pensar em noções como a de complexo

histórico-geográfico, como para uma perspectivação da alimentação como linguagem

(fazendo-nos pensar em Lévi-Strauus), como ainda para a estrutura da cozinha ou para a

caça como primeira estrutura civilizacional (Saramago, 1997). Saramago, que não dedica

muito do seu tempo ao esclarecimento de questões teóricas e conceptuais, como se estas

lhe obnubilassem o paladar, surge-nos sobretudo obstinado em identificar as paisagens

alimentares que teve oportunidade de conhecer. A ênfase que colocou na história e no

modo como a passagem de diferentes povos pelo território português marcaram a sua

cultura alimentar - quer ao nível da introdução de novos alimentos, quer ao nível das

técnicas e utensílios culinários - permitiram-lhe realçar a cozinha portuguesa como cozinha

que se transformou pela sua exposição ao mundo. Para além das particularidades

gastronómicas de diferentes regiões que são dadas a conhecer, a sua obra permite também

perspectivar a alimentação como indicador de transformação social.

Para um autor que se referiu a muitas das inovações alimentares promovidas pelo

sector agro-industrial como terrorismo alimentar e à busca de produtos para promover o

emagrecimento como ascetismo alimentar esclarecido (Saramago, 1992:14), a

macrobiótica deveria surgir, seguramente, como uma heresia; fruto amargo da exposição

de Portugal ao mundo. A sua referência à importância dietética da comida, permite aqui

alguma aproximação a esta investigação, dada a dimensão dietética que pode ser associada

à macrobiótica. Refere Saramago que «A cozinha teve como primeira orientação a

vigilância da saúde e da vida» (Saramago, 1997:27). Esta é uma afirmação que, como se

pode calcular, o autor não pode sustentar de forma adequada; a referência que faz ao facto

de os primeiros livros de cozinha publicados darem relevo a receitas relacionadas com a

saúde não permite que seja feita essa extrapolação. Salienta ainda este autor que desde os

livros hipocráticos (séculos V e IV a.C.) têm sido publicados textos sobre a relação entre

alimentação e saúde, não podendo esta questão ser identificada com preocupações

recentes.

A ideia de uma dieta personalizada, de acordo com a idade, profissão, modo de vida

e ainda de acordo com a estação, fazia parte, segundo Saramago, de um conjunto de

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Perspectivas sobre alimentação

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orientações dietéticas que ficaram consagrados em textos árabes clássicos19

. Na

interpretação de Saramago, a «cozinha de estação» alentejana, com as suas «comidas de

Verão» e «comidas de Inverno» (comidas frias e húmidas, quentes e secas), seria

«tributária da influência que a dietética teve na cozinha árabe» (Saramago, 1997:118).

Como veremos, a recomendação de uma alimentação de acordo com o contexto

geográfico, com a estação (comidas que aquecem ou arrefecem o corpo), com a idade,

género, profissão e condições de vida, faz parte do conjunto de orientações promovidas na

macrobiótica, o que permite, na verdade, pensar num fundo comum ou qualquer outra

forma de influência e de contacto para estas orientações.

A cozinha regional portuguesa tem sido uma das áreas às quais tem sido dedicada

mais atenção. Leite de Vasconcelos, Lopes Dias, Veiga de Oliveira, são alguns dos

etnógrafos que dedicaram alguma da sua atenção às comidas de Portugal. Em diversas

monografias a presença de descrições relativas ao tipo de alimentação praticado é uma

referência comum. A descrição e análise da matança do porco deram mesmo lugar a um

bom conjunto de trabalhos (O’Neill, 1989; Martins, 1991; Cerqueira, 2000 - são apenas

alguns exemplos). Contudo, caracterizar os diferentes comeres regionais nem sempre

significa tomar a alimentação como objecto de problematização. Este facto implica, na

verdade, uma abordagem particular em termos teóricos.

A cozinha regional, sobre a qual recaiu inicialmente um olhar sobretudo descritivo,

continua a ser hoje uma área bastante merecedora de atenção, quer como factor de

identificação e projecção de um território, quer ao nível estritamente gastronómico, quer

ainda ao nível dos agentes turísticos que exploram as potencialidades do turismo

gastronómico. Vários têm sido os processos analisados: identitários; de mudança social; de

legitimação social; de tradição e inovação; de invenção da tradição; de patrimonialização,

de turistificação; de mercantilização, etc. Vejamos alguns contributos específicos que

têm sido dados para a discussão destas questões.

João Leal (1991, 1994) não analisa a cozinha regional, mas parte das Festas do

Espírito Santo (Açores) para analisar a circulação cerimonial do alimento e o modo como a

festa configura um espaço de reconstrução de identidades. Os festejos, e a comida a eles

19 As referências que Saramago faz à alimentação dietética são breves e focam-se essencialmente nos

aspectos dietéticos da alimentação muçulmana. Curiosamente, é possível detectar nos aspectos que refere

alguns pontos de contacto com a macrobiótica, como se uma raiz comum assistisse a esses dois sistemas de

interpretação.É bem provável, aliás, que as concepções hipocráticas tivessem influenciado ambos os

sistemas.

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«À Mesa com o Universo»

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associada, surgem assim como elementos simbólicos a partir dos quais é possível

esconjurar a desagregação social e legitimar uma nova configuração social. Neste âmbito, a

dádiva a residentes e forasteiros e as prestações alimentares «(…) ao mesmo tempo que

ligam os homens à divindade, ligam também os homens entre si.» (Leal, 1991: 35).

Surgem como forma particularmente expressiva de os lugares e a freguesia se

apresentarem como «corpo social unificado» (ibid.:41) ou, quando se recusa a prestação de

alimentos, de evidenciarem a sua dissidência e desejo de autonomização. Na análise da

ruptura do vínculo ritual do lugar de Santo Antão, (que se recusou a participar nos festejos

da freguesia a que pertencia - Topo), João Leal evidencia claramente como a quebra de

solidariedade expressa na recusa da participação e da dádiva servem para representar a

tensão social. É de reforçar que a festa e a comida não são, no seu trabalho, o objecto

último de análise, antes são convocadas enquanto instrumentos de análise de fenómenos

mais gerais, facto a que, indubitavelmente, a alimentação se presta.

Maria Manuel Valagão (1990, 2006) tem dirigido a sua pesquisa em torno de

dimensões como a mudança social, a inovação e tradição. O seu trabalho, Práticas

Alimentares Numa Sociedade em Mudança. Estudo de Caso numa Freguesia do Alto-

Douro (1990), é marcante nos estudos sociais sobre alimentação. Neste trabalho procurou

observar de que modo as transformações sócio-económicas da região, observadas nos anos

1980, se repercutiam no sistema e práticas alimentares. Mudança social e continuidade

foram, pois, conceitos chave na sua abordagem. O trabalho de Raquel Moreira tem-se

também centrado no modo como a comida pode reflectir transformações sociais. Na

pesquisa que desenvolve no concelho de Sintra (Moreira, 1995), aborda o modo como as

práticas alimentares e as sociabilidades foram modificadas com o turismo. A sua análise

leva-a a defender a importância de se aliar turismo, gastronomia e agricultura como forma

de projecção local. Os recursos alimentares e a cozinha regional são também por si

analisados na óptica da identidade territorial (Moreira, 2006).

Autores como Vasco Teixeira (1993, 2005), Daniela Araújo (2009) e José Manuel

Sobral (2004), partindo da cozinha regional/local, têm também contribuído para a análise

de processos que permitem um conhecimento mais aprofundado do fenómeno alimentar

em Portugal. Focalizando-se nas práticas alimentares do Fundão, Vasco Teixeira procura

caracterizar e definir os principais traços da cozinha local. Em conjugação com este

aspecto, desenvolve uma etnografia minuciosa do que considera serem os principais

elementos distintivos dos manjares - elementos alimentares, técnicas de preparação e

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Perspectivas sobre alimentação

67

situações (condições) de consumo - (Teixeira, 2005:30). Partindo da articulação entre a

noção de cozinha e a de manjares cerimoniais (anteriormente explorada por Veiga de

Oliveira, 1984),procura, não apenas fazer um levantamento rigoroso de alimentos, técnicas

e receitas do contexto que analisa, mas também detectar o sistema de valores inerentes ao

sistema alimentar que estuda; aspecto, sem dúvida, fundamental na afirmação da

identidade da região.

Daniela Araújo tem orientado a sua investigação para contextos alimentares

bastante distintos. Numa primeira fase para a cultura culinária em contexto religioso,

pesquisa que a levou a analisar a culinária no Templo de Lisboa da Associação

Internacional para a Consciência de Krishna (Araújo, 2006). Numa fase posterior, centrar-

se-á no Concelho de Chaves, onde procurou analisar questões como a patrimonialização e

a abertura a influências externas da cozinha regional (Araújo, 2009)20

. Defende que os

processos de patrimonialização, onde se inclui o património alimentar, devem ter em

consideração as assimetrias regionais e ser percebidos no contexto da globalização, do

transnacionalismo, da construção europeia e do reconhecimento a nível nacional e

internacional destes processos21

. Na verdade, a salvaguarda do património alimentar, ao ser

estabelecida através de consagração legal, acabou por incentivar os processos de exaltação

das tradições alimentares22

.

Daniela Araújo não se limita, com o seu trabalho, a projectar turisticamente uma

região através da comida, aspecto que acaba por ficar mais enfatizado em trabalhos como o

de Claúdia Henriques e Maria João Custódio (2010). Ao invés, questiona o sentido dessa

patrimonialização através de instrumentos conceptuais como: turistificação,

mercantilização e neotribalismos gastronómicos. Neste âmbito, refere a autora, «Qualquer

alimento ou comida que tenha uma qualquer ligação a um determinado lugar, pode ser

20 Trabalhando a partir de histórias de vida e de memórias ligadas à alimentação no concelho de Chaves,

desenvolveu o trabalho: O local e o global na construção de uma paisagem alimentar plural. Das versões

privadas e públicas da cultura alimentar às ativações do património alimentar de Chaves. 2011. Dissertação

de doutoramento a aguardar defesa. 21 Ver Araújo, Daniela. «Das comidas aos lugares». Disponível em http://www.mapadasideias.pt/?p=919&lang=pt [Acedido em 14.08.11]. 22 A Resolução do Conselho de Ministros nº 96/2000, Diário da República, 171, série I-B, de 26/07/2000, pp.

3618-3620, já consagrava a gastronomia nacional como património intangível que cumpria salvaguardar e

promover. Em 24 de Janeiro de 2008 é aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República

n.º 12/2008, a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, adoptada na 32.ª Sessão da

Conferência Geral da UNESCO, em Paris, a 17 de Outubro de 2003. A Convenção é ratificada em 2008 pelo

decreto do Presidente da República nº 28/2008, Diário da República,60, série I, 26-03-08, p. 1685. O

Decreto-lei nº139/2009 estabelece o regime jurídico de salvaguarda do património cultural imaterial e

reconhece a sua importância na internacionalização da cultura portuguesa - Diário da República, 113, I série,

15-06-09, pp. 3647-3653.

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«À Mesa com o Universo»

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vendido como representando a essência desse lugar contribuindo para marcar a identidade

local e/ou regional das suas populações, facto que tem sido rentabilizado pela indústria

turística»23

. Acrescenta ainda que «Esses processos de ativação do património alimentar

assumem frequentemente uma dimensão de neotribalismos gastronómicos fundados em

afiliações, mais ou menos naturais, das comidas aos lugares e da diferenciação dos últimos

por referência às primeiras» (ibid.). Estas afirmações remetem, sem dúvida, para um

posicionamento problematizante em torno da cozinha regional e para o modo como ela

pode servir interesses locais, nacionais e transnacionais, aspectos através dos quais

estratégias e políticas associadas à comida merecem ser pensadas.

As questões a que acabo de aludir, reenviam-nos para fenómenos como a

regionalização, nacionalização e internacionalização, podendo ser pensadas à luz de

conceitos como relocalização e deslocalização (Poulain, [2002] 2003: 19-29)24

. É pela

evocação destes conceitos e pelo reconhecimento da sua presença na culinária e

alimentação portuguesas que José Sobral analisa questões ligadas ao nacionalismo,

cosmopolitismo e estrutura de classes (2007, 2008). Tomando como referência um festival

nacional de gastronomia, onde a cozinha regional se encontra representada (2007) e,

posteriormente, os menus coleccionados pelos escritores Ramalho Ortigão e Carlos

Malheiros Dias (2008), José Sobral analisa diferentes práticas em torno da alimentação na

sociedade portuguesa e o modo como elas se podem prestar a objectivos sociais diversos.

A exaltação da cozinha nacional, do mesmo modo que a internacional, julgo poder ser

entendida no seu trabalho como devendo tomar sempre em consideração os agentes

implicados e os efeitos que estes procuram.

Se a sublimação da cozinha regional é indispensável ao estabelecimento de uma

cozinha nacional - «O nacional é o regional.», observa Sobral (2007:25) a propósito do

XXIV Festival Nacional de Gastronomia de Santarém (Outono de 2004) - o

cosmopolitismo alimentar pode ser uma boa forma de expressar a diferenciação social. A

nação, com a sua cozinha nacional composta a partir das diferentes cozinhas regionais,

projectava-se nesse festival a partir das regiões, afirmando a sua identidade nessa

diversidade. Nessa encenação da nação, palavras e alimentos fundem-se, concorrendo para

23 Ver Araújo, Daniela. «Das comidas aos lugares». Disponível em

http://www.mapadasideias.pt/?p=919&lang=pt [Acedido em 14.08.11]. 24A relocalização remeteria para processos onde o “tradicional” e o “autêntico” são valorizados, e onde o

território, a região, são exaltados enquanto lugares de produção. Por sua vez, a deslocalização remeteria para

um âmbito de circulação mais global e para a industrialização de certos alimentos.

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Perspectivas sobre alimentação

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um objectivo que acaba por conduzir a um duplo efeito: criar particularismos através dos

quais cada região se pode autopromover, e afirmar a identidade nacional pela riqueza da

diversidade apresentada. Sabe-se que nestes processos a incorporação de discursos sobre o

que deve ser uma cozinha regional/nacional (que os livros de cozinha tão bem servem para

codificar) acaba por contribuir para criar a própria realidade. É dessa relação dialéctica

entre palavras e práticas que parece resultar aquilo que se pode designar por cozinha

regional ou nacional. Sobral nota, justamente, duas dinâmicas distintas mas comunicantes

na relação entre nacionalismo e cozinha, por um lado os actos alimentares quotidianos de

produção e consumo, lentamente incorporados, por outro, um conjunto de intervenções

intencionais, pedagógicas, doutrinária e políticas através das quais se procura promover a

cozinha portuguesa (Sobral, 2008:118). Uma cozinha regional ou nacional, tal como é

sugerido por Sobral, é sempre o resultado de circunstâncias históricas, políticas e

económicas particulares, de diversos cruzamentos. É assim que diversos pratos tidos como

nacionais, podem, nos seus aspectos mais estruturantes, ser encontrados noutros contextos.

O cosmopolitismo alimentar, observado em Portugal tanto no séc. XIX como no

séc. XX e XXI, evidenciou um movimento de natureza diferente. Os menus elaborados

entre as elites do séc. XIX e que foram analisados por Sobral, salientam o valor simbólico

atribuído à língua, cultura e comidas francesas, facto evidenciado tanto pelo idioma de

redacção como pela estrutura da refeição apresentada. O cosmopolitismo observado

limitava-se, assim, às classes dominantes e a cozinha constituía, por entre outros, um

importante veículo de diferenciação social; os pobres não tinham acesso a essa cozinha

(Sobral, 2008:103). De um cosmopolitismo alimentar restrito a certos grupos no séc. XIX,

passou-se, nos sécs. XX e XXI, sobretudo a partir da década de 1970, para uma grande

diversificação das propostas culinárias, fruto de diversos fluxos migratórios e de uma

maior abertura de Portugal ao mundo.

Referia Poulain que o que diferencia os cozinheiros franceses de hoje dos seus

predecessores é que deixaram de olhar para as outras tradições culinárias como «sub-

culturas» a civilizar e passaram a vê-las como fonte de inspiração (Poulain, 2003:28), facto

que, seguramente, assinala a maior receptividade a outros produtos e modos de cozinhar.

Numa alusão às transformações observadas no espaço alimentar metropolitano de Lisboa a

partir da década de 70, afirma Sobral: «(…) neste espaço pós-colonial, a diversidade vai

penetrando e, nas mesmas zonas em que se consomem cozidos, caldeiradas e açordas,

comem-se também agora as muambas, as cachupas, o funge.» (Sobral, 2004:85). Para além

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«À Mesa com o Universo»

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do funge, vale a pena acrescentar no contexto desta investigação: come-se também agora o

tofu ou a sopa de miso.

A sopa de miso faz parte, na verdade, desse mesmo processo que é o de abertura a

novos modos de confeccionar e novas concepções sobre a alimentação. Neste sentido, a

noção de cosmopolitismo, no sentido de abertura ao exterior e de recepção de influências

externas, faz também sentido numa investigação sobre a macrobiótica. Como consequência

dessa abertura e do interesse que muitos votaram à macrobiótica, temos hoje um mercado

alimentar muito mais diversificado. De acordo com relatos que me foram feitos, produtos

como as algas e o miso, que hoje podem ser facilmente encontrados em lojas de

“alimentação natural”, terão surgido no espaço comercial sobretudo por solicitação

daqueles que decidiram adoptar a macrobiótica.

Pensar a cozinha macrobiótica por relação à cozinha regional/nacional constitui um

desafio onde não é difícil encontrar categorias oponíveis. Se à primeira associamos

imediatamente o território, a outra surge como objecto desterritorializado, como atrás foi já

sugerido. É certo que remete para o contexto sino-japonês, sendo defendida a sua

inspiração na “cozinha tradicional” japonesa, mas, por outro lado, a macrobiótica tem uma

presença mais expressiva nas sociedades euro-americanas do que no Japão. Se a uma

cozinha associamos um saber local transmitido na família de geração em geração, à

macrobiótica associamos uma aprendizagem que frequentemente é externa ao contexto da

casa e do grupo familiar. Se a uma associamos contextos de sociabilidade que intensificam

laços sociais, na macrobiótica é frequente encontrar casos de conflito familiar devido à

opção por uma forma de comer distinta. Se a uma associamos o excesso alimentar, à outra

associamos mais a frugalidade. Se a uma associamos uma atitude despreocupada em

relação à saúde, à outra associamos uma certa obsessão pelo tema. Com todas estas

diferenças é evidente que a macrobiótica instaura uma ruptura face à cozinha

regional/nacional. Ainda que seja verdade que frequentemente procura adaptar certos

pratos da “cozinha tradicional portuguesa” e dar-lhe um ar mais familiar para despertar

uma maior receptividade, o conjunto de concepções que guia a cozinha macrobiótica é

bastante distinto.

Uma outra dimensão que tem sido desenvolvida a propósito dos estudos sobre

alimentação é a questão da segurança alimentar. É focando um produto regional, o queijo

de Serpa, que Harry West desenvolve a sua pesquisa em torno do debate relativo à

utilização do leite cru. A sua preocupação é dirigida para o debate sobre questões ligadas à

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Perspectivas sobre alimentação

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segurança alimentar. Animado pelos debates científicos, políticos e económicos em torno

do fabrico de queijos com leite cru, confronta posições europeias, defensoras de um modo

de produção artesanal de queijo (com utilização do leite cru), com outras mais

representativas do sector agro-industrial, onde o argumento da segurança alimentar é usado

para justificar a substituição do leite cru pelo leite pasteurizado (West, 2008). A sua análise

leva-o a perspectivar o debate em torno do leite cru como debate que acabou por ter

implicações nas negociações relativamente aos alimentos transgénicos. Assim, a aceitação

de um produto – queijo fabricado com leite cru - visto à partida como mais inseguro (facto

discutível, mesmo em termos científicos, tal como West evidencia), poderia ser utilizada

para obter outra concessão ou maior permissividade em relação aos temidos transgénicos.

É também sobre questões ligadas à segurança alimentar que se debruça Elsa Frazão

(2009). Evocando alguns episódios recentes relativamente aos receios alimentares,

designadamente a crise causada pela «doença das vacas loucas», procura demonstrar o

quanto a proximidade social e a confiança depositadas no talhante que comercializa a carne

são importantes para superar receios relativamente ao consumo. Destacando a importância

do local de aquisição de bens alimentares, Monica Truninger expressa-se num sentido

próximo deste ao afirmar que « (…) os espaços e contextos onde se estabelecem as

relações de troca de bens alimentares, como, por exemplo, os mercados de venda directa,

tornam-se importantes mediadores dos significados da qualidade alimentar» (2010:47). A

questão da confiança, por vezes obtida através da garantia pessoal depositada em

produtores e retalhistas com os quais se tem uma ligação familiar, é também apresentada

por esta autora como fundamental para analisar os consumos de alimentos biológicos

(Truninger 2010: 183). Atentos às crises alimentares, muitos seguidores da macrobiótica

vêem nessas crises o resultado de opções alimentares inadequadas. A insegurança

alimentar serve-lhes de pretexto para se distanciarem de um modo de produção alimentar

que contestam e para promoverem a macrobiótica. De certa forma, e tendo em

consideração os consumos feitos, é também uma certa forma de activismo alimentar que

podemos observar entre os praticantes de alimentação macrobiótica, ainda que nem sempre

haja uma consciência desse activismo. Claro que é discutível falar de activismo, quando

não há uma mobilização particular que dê visibilidade social a uma causa, mas entendo que

os consumos, ou a decisão sobre a abstenção em relação a certos consumos, são formas de

intervenção social cujos efeitos podem gerar transformação social. Yvonne Le Grand

(2010), no trabalho que desenvolve a propósito do JantarPopular, organizado pelo Grupo

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«À Mesa com o Universo»

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de Acção e Intervenção Ambiental (GAIA), explora justamente o modo como o activismo

social se pode expressar através da comensalidade.

Paula Mascarenhas (2007) toma como objecto de estudo a compreensão de uma

cultura alimentar e a sua transformação, reportando-se, para tal, ao Concelho de Cascais

(1960-2005). Na sua análise, junta um vasto conhecimento sobre os principais contributos

teóricos na área da Sociologia e da Antropologia da alimentação à observação de 29

“grupos familiares” do concelho. Identifica aí os principais factores que conduziram a uma

nova cultura alimentar e que conduziram a mudanças significativas em relação ao que se

passava há 50 anos atrás. O crescimento demográfico da região, as migrações internas, a

urbanização, a transformação da estrutura sócio-económica, a participação da mulher no

mercado de trabalho, a influência da industrialização alimentar e a tecnificação das

cozinhas no espaço doméstico, são aspectos por si identificados como os principais

motivos que conduziram a essa mudança. Longe de identificar esta nova cultura alimentar

como desestruturada, classifica-a como complexa e múltipla. Constata, a partir da sua

análise, que na escolha de produtos alimentares se valorizam sobretudo aspectos como o

preço e a qualidade, mas que se verifica também uma preocupação com a saúde e com

questões dietéticas e ecológicas, sendo essa preocupação visível num “novo imaginário”

em torno da alimentação (2007:388). Refere, a este propósito, que «A presença de produtos

Light nas despensas e nos frigoríficos, na quase totalidade dos grupos domésticos

observados (leite magro ou meio-gordo, iogurte magro, margarinas, Coca-Cola sem

calorias, produtos de emagrecimento, suplementos vitamínicos), veio confirmar uma

grande preocupação com a saúde e a estética em todos os grupos sociais» (Mascarenhas,

2007: 231). Em relação a três grupos, observa o consumo de alimentos como arroz

integral, milho painço e outros cereais, algas, tofu e leite de soja, ou seja, produtos que

encontramos habitualmente numa despensa ou frigorífico de alguém que segue uma

alimentação macrobiótica. Constata ainda Paula Mascarenhas que o primeiro restaurante

macrobiótico em Cascais surgiu nos anos oitenta e que em 2001 existiam quatro

restaurantes vegetarianos e/ou macrobióticos. A autora relaciona ainda a “nova cultura

alimentar”, de que a macrobiótica e o vegetarianismo fazem parte ainda que com pouca

expressividade, com questões que têm a ver com uma maior consciencialização do risco

associado a certos consumos alimentares, desencadeados em boa medida pelas crises de

um período recente (“doença das vacas loucas”, frangos belgas com dioxinas, gripe das

aves, etc.). Este trabalho, pelo que nos diz sobre as mudanças na cultura alimentar

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Perspectivas sobre alimentação

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(conceito que serve de suporte ao desenvolvimento da sua pesquisa) e pela referência que

faz a novas atitudes face aos alimentos, contribui na verdade para reforçar a ideia de que

opções alimentares como a macrobiótica e o vegetarianismo têm vindo a adquirir maior

expressividade.

O trabalho de Mónica Truninger sobre o desenvolvimento da agricultura biológica

em Portugal e sobre o consumo de produtos biológicos, reflecte, também, sobre alguns dos

receios relativos ao panorama alimentar que levam os consumidores a optar pelos

consumos «bio». A sensação de insegurança face ao modelo agro-industrial e motivos

ligados à saúde são alguns dos aspectos identificados para justificar a escolha destes

produtos. Muito embora Monica Truninger note, relativamente ao consumo de produtos

biológicos, que o conceito de saúde pode adquirir diversos significados - desde a segurança

alimentar, conteúdo nutricional dos alimentos, ao bem-estar físico, espiritual e social e até

mesmo do ambiente (Truninger, 2010:73) – transmite-nos a ideia de que evocações desta

natureza costumam ser frequentemente apontadas como razões para consumir «bio». A

aplicação que desenvolve da teoria das convenções para analisar os consumos «bio»,

levam-na a identificar argumentos diversos para justificar este tipo de consumo;

argumentos que nem sempre se encontram de forma isolada, mas antes se entrelaçam e

sobrepõem, conduzindo a justificações plurais para o consumo.

Vários aspectos do trabalho de Truninger convergem para esta pesquisa. Antes de

mais, o facto de diversas justificações para consumir bio poderem ser observadas entre os

seguidores da macrobiótica. A desconfiança face ao sector agro-industrial, a evocação da

maior qualidade nutritiva dos alimentos, as justificações por motivos de saúde (nas suas

diversas cambiantes) e até as razões éticas, ambientais e espirituais são frequentemente

encontradas entre os que optaram pela macrobiótica. As origens do movimento de

agricultura biológica, por serem marcadas, tal como refere Truninger (ibid.), por uma

abordagem ecológica espiritual-cósmica, constituem outro aspecto que permite relacionar

este movimento com a macrobiótica25

. A perspectiva holística, em que corpo, espírito,

ecossistemas naturais e cosmos formam um todo, que marcou inicialmente este

movimento, é também reencontrável na macrobiótica, como teremos oportunidade de

verificar.

25 As origens do movimento da agricultura biológica são situadas por Truninger nos anos 1920. Rudolf

Steiner, filósofo austríaco fundador da corrente filosófica da Antroposofia, ligado ao conceito de agricultura

biodinâmica, terá sido um dos mentores deste movimento (Truninger, 2010:23).

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«À Mesa com o Universo»

74

Por outro lado, o facto de a Unimave (União Macrobiótica Vegetariana)26

ter sido, tal como

refere Truninger (2010:106), pioneira na venda de produtos biológicos, permite estabelecer

uma forte relação entre o movimento da agricultura biológica em Portugal e a

macrobiótica. Outras empresas, como a Celeiro-Dieta, a Espiral-Centro de Divulgação de

Alternativas, a Próvida – Produtos Naturais, Lda. e o Instituto Macrobiótico de Portugal,

são também apontadas como tendo estimulado o consumo de produtos biológicos. O facto

de se encontrarem fortemente ligadas à comercialização de produtos alimentares usados

habitualmente na macrobiótica, cria, inequivocamente, uma estreita associação entre o

consumo de bens alimentares biológicos e a prática de uma alimentação macrobiótica. Esta

pesquisa acaba, assim, por se sentir particularmente interpelada pelo trabalho de Truninger,

dado o facto, entre outros, de irmos ao encontro dos mesmos consumidores, ainda que por

vias diversas. Com isto não pretendo dizer, obviamente, que os consumidores de produtos

bio se encontrem sempre ligados à macrobiótica - Truninger demonstra bem que tal não

acontece - o que pretendo sublinhar é que a opção pela macrobiótica inclui,

frequentemente, um privilegiar de consumo de bens alimentares bio.

A presente pesquisa sente-se ainda interpelada pela de Truninger pela menção que a

autora faz à escassez de trabalhos sobre indivíduos com estilos de vida mais alternativos

(Truninger, 2010:66). Face a essa escassez, este trabalho procura ser um contributo no

sentido de melhor conhecer, em Portugal, concepções e práticas ligadas a uma proposta de

orientação no mundo com carácter mais alternativo. Procurarei demonstrar neste trabalho

que a macrobiótica não deve ser perspectivada como “movimento” isolado, mas como

proposta que convoca e dialoga com outros movimentos, sendo o movimento da

agricultura biológica, da «alimentação natural» e da contracultura alguns deles. Julgo que

a articulação da macrobiótica com o movimento da agricultura biológica contribuirá para

esclarecer o modo como práticas marginais e periféricas concorrem para afirmar outras que

são mais valorizadas e vão adquirindo maior centralidade.

Pela apresentação efectuada relativamente a alguns dos trabalhos desenvolvidos na

área da alimentação em Portugal, é possível detectar diversos temas em análise que

interpelam este trabalho e que permitem coloca-lo em diálogo com um conjunto mais vasto

de trabalhos que têm vindo a ser realizados nas ciências sociais sobre alimentação. Dentro

deste campo, duas áreas têm vindo a ganhar particular destaque: uma mais ligada à cozinha

26 Associação surgida no início dos anos 1970. Em páginas subsequentes terei oportunidade de a apresentar

com maior detalhe.

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Perspectivas sobre alimentação

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nacional/regional e a questões relacionadas com identidade e patrimonialização, outra mais

centrada em questões que têm a ver com a segurança alimentar, qualidade dos alimentos e

princípios associados ao consumo de bens alimentares. Tanto num como no outro caso,

acabamos por ser remetidos para diferentes dinâmicas e interesses sociais relacionados

com o acto de comer. A dimensão política (para além de cultural e biológica) deste acto é

indiscutível, podendo ser observada a partir de diversas instâncias: regulação, promoção,

prevenção, consumo, activismo social… Comer ou produzir alimentos surgem nessas

instâncias sempre como actos ideológicos (é claro que o sabor também conta, muito

embora também ele possa ser gerido a partir de um treino particular), no sentido de que é

sempre um sistema de conhecimentos particular que é activado para justificar as opções

feitas. Estes sistemas de conhecimento não são, como referi, entidades rígidas; constroem-

se através de relações dinâmicas e por vezes convocam saberes tidos como periféricos.

Nesta medida, analisar esses saberes mais periféricos pode contribuir para um

conhecimento mais aprofundado de aspectos relacionados com as transformações

alimentares.

2.4 A Macrobiótica Olhada pelas Ciências Sociais

Os estudos na área das ciências sociais que se debruçam especificamente sobre a

macrobiótica, e que foram publicados, são escassos, sendo possível identificar Kotzsch

(1981), Ossipow (1997), Lau (2000). Autores como Berkson (1985), Angulo (1986) e

Whetstone (2002), desenvolveram também trabalhos nesta área, não tendo, todavia, sido

possível encontrar menção à publicação dos seus trabalhos. A pesquisa empreendida para

situar trabalhos neste campo em Portugal permitiu identificar dois trabalhos finais de

licenciatura: Gomes (2003) e Teixeira (2006). Se não nos cingirmos especificamente à

macrobiótica, e atendermos a temáticas de investigação como “dietas alternativas”;

“movimento de alimentação saudável”; “vegetarianismo”; “alimentação biológica”;

“capitalismo new age” e “capitalismo verde”, o campo abre-se enormemente, sendo

possível encontrar inúmeros autores a trabalhar sobre o assunto. Se procurarmos textos

sobre a macrobiótica escritos fora do quadro científico, e que são sobretudo textos de

divulgação e promoção, encontramos um número incontável de publicações, sítios na

internet e blogues.

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«À Mesa com o Universo»

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Dos trabalhos desenvolvidos na área das Ciências Sociais especificamente

direccionados para a análise da macrobiótica, destaco o de Ossipow (1997).

Desenvolvendo trabalho de investigação em território suíço, mais particularmente a partir

de Genebra, esta autora procura testar três hipóteses: uma primeira, que postula que as

práticas e representações associadas à macrobiótica e vegetarianismo podem ser

assimiladas a estilos de vida; uma segunda, que defende que a adopção do vegetarianismo

e da macrobiótica se encontram associados a um projecto de vida que, gerando uma

recomposição progressiva da identidade dos indivíduos, os leva a transformar o seu estilo

de vida; uma terceira, que postula que não há mudanças no estilo de vida sem que haja

uma modificação do habitus (Ossipow, 1997: 11). Encontramos nesta autora um trabalho

direccionado para a questão das transformações nos estilos de vida associadas às mudanças

alimentares, abordagem muito identificada com conceitos bourdieunianos, tais como o de

distinção social, habitus, capital, campo e luta de campos (Bourdieu, 1979;1989), mas

também com o conceito de redes desenvolvido por autores como Barnes (1969), Mitchell

(1969) e Boissevain (1974). Conceitos como os de identidade, alteridade, representações

sociais e estilos de vida, são também referências centrais. Este é um dos poucos trabalhos

encontrados na área da Sociologia e da Antropologia que analisa especificamente a

macrobiótica pelo que a ele voltarei mais adiante.

Destaco também o trabalho de Kotzsh (1981), integrado nos estudos sobre religião,

que analisa a vida e obra daquele que é considerado o fundador da macrobiótica moderna,

Georges Ohsawa. Kotzsh estabelece relações entre o pensamento de Ohsawa e a tradição

religiosa japonesa. Perspectiva a dimensão sincrética visível na obra deste autor como

corolário da religiosidade japonesa. Apresenta ainda Ohsawa como resultado de um

conjunto de circunstâncias singulares, de que fazem parte uma história familiar, um quadro

de saúde e um quadro histórico, político e económico particular. Kotzsh é uma referência

significativa, na medida em que procura contextualizar o pensamento de Ohsawa e

identificar as raízes da proposta macrobiótica, evidenciando assim o quanto a macrobiótica

é herdeira de práticas e dinamismos da sociedade japonesa. Um exemplo desses

dinamismos que é identificado por Kotzsh é o movimento Shoku-yo - movimento fundado

por Ishitsuka Sagen no final do séc. XIX que exaltava um modo de vida “em conformidade

com as leis da natureza”. Com o seu afã nacionalista, visava a recuperação e defesa de

valores tidos como tradicionais da sociedade japonesa, quer ligados à educação e valores

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Perspectivas sobre alimentação

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quer à alimentação (cf. Kotzsh, 1981:45). Ohsawa seguirá este movimento e dar-lhe-á

conteúdo, como à frente veremos.

Lau (2000), por sua vez, desenvolvendo um trabalho sobre a macrobiótica na área

dos estudos culturais, procura destacar o modo como um conjunto de práticas corporais

com referências no Oriente se expressa na sociedade americana. Mais especificamente, o

seu livro procura tornar explícita uma tensão que a autora observa: a que existe entre uma

proclamada espiritualidade das práticas alternativas de obtenção de saúde (como as que

analisa: yoga, Tai Chi, aromaterapia e macrobiótica) e o modo como essas práticas se

transformaram em mercadorias na economia de mercado (Lau, 2000:2). Para evidenciar tal

tensão, baseia-se sobretudo em informação retirada da web (sítios e blogues) e textos de

divulgação relativos às referidas práticas corporais. É com estes materiais que procura

observar de que forma é incorporada uma ideologia que, através das práticas físicas, é

transformada em mercadorias corporais. Neste contexto, a macrobiótica é perspectivada

como um dos produtos daquilo que designa como capitalismo new age, ou seja, seguindo

Lau, um conjunto de actividades económicas que tem frequentemente uma inspiração

oriental e onde é evocada a dimensão espiritual da vida humana e promovida uma visão

holística dos fenómenos.

De acordo com Lau, a macrobiótica terá conseguido implantar-se na sociedade

americana em parte porque participava do discurso mainstream relativo à saúde e à dieta,

ou seja, o discurso dos “super alimentos”, dos “super corpos” e do controle do corpo (Lau,

2000:87). O que Lau vê como participando do discurso mainstream, pode, na verdade, ter

sido marginal noutra altura, sendo ainda assim capaz de influenciar esse tipo de discurso.

Considera a autora que muitas dessas práticas, outrora marginais, se começam a deslocar

para o centro e que, pela disponibilidade de tempo e de recursos económicos que

implicam, acabam por ficar disponíveis sobretudo para classes sociais com mais recursos.

Na sua opinião, a tradição americana (transcendentalismo americano do séc. XIX) mais os

regimes dietéticos defendidos no séc. XIX por homens como Kellogg (médico, adventista

do sétimo dia, fundador da companhia Kellog’s) e a exaltação de aspectos como o

individualismo e a autoconfiança terão proporcionado um bom espaço de acolhimento e

desenvolvimento dessas propostas. Por outro lado, a promoção do multiculturalismo e o

fascínio pelo Oriente terão também contribuído, na sua opinião, para a expansão dessas

práticas. Práticas que, através da celebração da natureza e romantização do passado,

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«À Mesa com o Universo»

78

constituiriam, na linha de Beck (2008 [1986]), uma crítica da modernidade. Voltarei a

estes aspectos.

Retomando o conceito de etnomimesis, proposto por Robert Cantwell (1993), Lau

utiliza-o para designar o modo como certas influências culturais são encenadas e

apropriadas. Caracteriza, desta forma, a adopção das práticas que estuda como marcadas

pela etnomimesis. A mimetização seria, neste processo, uma forma de representação da

cultura de outros povos e apropriação da mesma; uma forma de transformação do corpo

num outro corpo, mais identificável com a cultura que se procuraria incorporar. Esta

concepção, aliás pouco desenvolvida pela autora, sugere um conjunto de problemas.

Importa notar, desde logo, que a macrobiótica está longe de subsumir a cultura japonesa. A

julgar pela fraca expressividade que parece ter no Japão, talvez nem possa ser considerada

representativa da sua cultura. Da mesma forma, julgo poder dizer-se que a prática de yoga

nas sociedades euro-americanas deve estar longe de ser uma encenação/mimetização da

cultura indiana. Pretender representar uma cultura a partir de uma prática específica não

pode deixar de ser senão redutor.

A dimensão política, que por vezes é associada aos consumos, também não é

esquecida por Lau. Segundo a autora, acreditar que o consumo é acção política pode ser

um dos maiores riscos da modernidade (Lau, 2000:140). Por outro lado, a adopção de

práticas alternativas é apontada por Lau como podendo ser vista enquanto busca de um

antídoto para os riscos emergentes da sociedade moderna, caracterizada por um

individualismo crescente, contexto onde um fascínio New Age pela autodescoberta e auto-

cura se expressam (Lau, 2000:139). Também estas são dimensões a que regressarei no

capítulo 3. O livro de Lau é, na verdade, rico no conjunto de propostas interpretativas que

apresenta, muito embora não as aprofunde. Ainda assim, oferece-se como bom ponto de

partida para a discussão que mais à frente apresentarei.

Os trabalhos desenvolvidos em Portugal por Rita Gomes (2003) e Carla Teixeira

(2006) seguem algumas orientações já apresentadas. O de Rita Gomes focaliza-se nas

questões identitárias, procurando evidenciar o papel da alimentação na construção e

expressão de uma identidade. Procura observar de que forma a ruptura com práticas

alimentares anteriores levam a uma reconstrução identitária. Não se focando

particularmente na questão dos estilos de vida, considera, todavia, que existe um

rompimento com aquilo que era a realidade quotidiana dos indivíduos que aderem à

macrobiótica. Recolhendo elementos para o seu trabalho fundamentalmente a partir de

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Perspectivas sobre alimentação

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entrevistas semi-estruturadas, a autora conclui que se verifica, entre aqueles que aderem à

macrobiótica, uma reconstrução identitária que resulta do “desejo de ser outra pessoa”

(Gomes, 2003:59), existindo um desenho de um novo projecto identitário que tem reflexos

mesmo ao nível da profissão. Algumas das situações por mim observadas confirmam este

aspecto, pois pude detectar casos em que os indivíduos mudaram para profissões que

entendiam ser mais compatíveis com as suas opções. Não se trata, todavia, de uma regra, já

que em muitos casos observados tais mudanças não se verificavam.

O trabalho de Carla Teixeira (2006) assenta em grande medida num inquérito por

questionário efectuado no IMP (Instituto Macrobiótico de Portugal), através do qual

procura caracterizar aqueles que frequentam o IMP. Partindo da importância das opções

alimentares na definição de um estilo de vida, procura observar os elementos através dos

quais se constrói uma identidade ao nível da macrobiótica. Acaba por concluir que o IMP

surge como uma comunidade imaginada, na medida em que é um local de comunhão,

gerador de sentimento de pertença, de vinculação e onde é intensificada a unidade do

grupo (Teixeira, 2006: 98). Esta visão do IMP como comunidade imaginada parece-me um

pouco excessiva, mais à frente, de acordo com os dados etnográficos que recolhi procurarei

demonstrar porquê.

2.5 A Macrobiótica Olhada pelas Ciências da Saúde

Muito embora haja escassez de trabalhos sobre a macrobiótica na área das Ciências

Sociais, é possível encontrá-los em maior número nas áreas das Ciências da Saúde e da

Vida. Esses textos estão sobretudo situados no domínio das ciências da saúde e, de uma

maneira geral, julgo que beneficiariam com os contributos resultantes de uma

caracterização e análise sociológica relativa a indivíduos que tivessem adoptado a

macrobiótica. A análise social não deveria, na verdade, ser apartada de outras pesquisas

sobre o corpo e os seus processos. Ainda que não se focalize na ínfima e microscópica

partícula, a investigação social deveria constituir referência para muita da actividade

científica que é desenvolvida. Os estudos sobre os efeitos dos alimentos beneficiarão

sempre do conhecimento das práticas e das histórias de vida associadas a determinadas

opções alimentares.

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«À Mesa com o Universo»

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Os primeiros estudos científicos que começam a ser referidos na literatura destinada

à divulgação da macrobiótica são atribuídos a Sacks (1974; 1975). Estes trabalhos são bem

acolhidos entre aqueles que seguem a macrobiótica, dado que é estabelecida uma relação

benéfica entre a prática do vegetarianismo e a diminuição do colesterol total e tensão

arterial. No primeiro trabalho (Sacks et al.,1974), defende-se que o controle da pressão

arterial deve ter em consideração orientações dietéticas. Até à data as preocupações

limitavam-se ao sal, mas os dados recolhidos revelavam que os vegetarianos tinham menos

casos de tensão arterial elevada, o que permitia concluir que o consumo de produtos de

origem animal tinha também implicações na tensão arterial. Mais tarde, Sacks (1975),

demonstraria ainda que o consumo de produtos lácteos e de ovos tinha influência no

aumento do nível de lípidos e que estes alimentos implicavam um aumento do colesterol

total. Este estudo não se dirigia especificamente aos seguidores da macrobiótica, mas foi

visto como um estudo que apoiava as suas ideias sobre a alimentação e que poderia ser

usado para ajudar a sustentar as suas posições. Haveria na macrobiótica uma atenção muito

especial aos estudos que, de alguma forma, ajudassem a promover a prática alimentar

associada a esta proposta, dada a sua focalização nas questões de saúde. Outros estudos,

mais críticos em relação à macrobiótica, não seriam alvo da mesma atenção por parte

daqueles que seguiam a macrobiótica.

Dos trabalhos desenvolvidos sobre os efeitos da macrobiótica na saúde, um dos

mais significativos correspondeu, como já referi, a uma pesquisa iniciada na Holanda nos

anos 80 (Dagnelie et al., 1990). O facto de ter havido neste país um aumento do número de

casos de raquitismo e de os hospitais terem reportado situações que diziam respeito a

crianças pertencentes a famílias com “hábitos alimentares alternativos”, como a

macrobiótica, e que não administravam vitamina D aos seus filhos, constituiu um dos

motivos para que a pesquisa fosse desenvolvida. Com esta investigação procurou-se

avaliar alguns aspectos do desenvolvimento de crianças com alimentação macrobiótica,

tendo sido observadas 53 crianças nascidas em 1985 com idades entre 11 e 24 meses. Os

autores do estudo dizem que as crianças foram recrutadas com a ajuda de professores de

macrobiótica, bem como das famílias. Afirmam ter feito uma relação de todas as famílias

holandesas que praticavam macrobiótica (173), sendo que 97% dessas famílias tinham

seguido cursos ou palestras na área da macrobiótica e 75% delas praticavam macrobiótica

há mais de 5 anos. O nível educacional médio das famílias era elevado e as crianças tinham

sido alimentadas exclusivamente com leite materno até aos 4-8 meses, após o que foram

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Perspectivas sobre alimentação

81

introduzidos na sua alimentação sólidos de origem vegetal, persistindo a amamentação, em

média, até aos 13 meses.

Procurando apresentar dados rigorosos, os autores concluem que 28% dessas

crianças apresentavam sintomas de raquitismo, atribuindo tal facto à falta de vitamina D e

a níveis baixos de cálcio. Os autores preocupam-se em sugerir, àqueles que seguem a

macrobiótica, a inclusão de peixe gordo na alimentação das crianças, tendo em conta o

facto de os pais recusarem os produtos lácteos e os suplementos alimentares. Preocupam-

se, também, em alertar aquele que é um dos grandes promotores da macrobiótica, Michio

Kushi, para que possa influenciar as práticas alimentares de muitos dos que seguem esta

prática. Neste sentido, estamos perante um estudo que revela preocupação social,

procurando corrigir o que considera serem deficiências na macrobiótica.

Um dos consultores de macrobiótica, por mim contactados, defendeu, porém, que

os problemas apontados resultariam essencialmente de um excesso de rigidez na

alimentação e da não inclusão de peixe na mesma. Acrescentou que, entretanto, tinha sido

muito revista esta prática alimentar, tendo o próprio Michio Kushi elaborado uma pirâmide

alimentar menos restritiva. De qualquer modo, este estudo demonstrou existir uma maior

percentagem de crianças com problemas de raquitismo entre os que seguiam a

macrobiótica do que entre aqueles que seguiam formas mais comuns de alimentação.

Aquele trabalho, pelo destaque que deu a alguns dos aspectos negativos que podem

estar relacionados com a alimentação macrobiótica, parece ter sido decisivo num certo

rumo que a investigação tomou e que levou a que se investigassem efeitos negativos

inesperados na alimentação. Assim, a partir dos anos 80, surge um ciclo de trabalhos que

se ocupa sobretudo com as repercussões, em termos de saúde e desenvolvimento,

decorrentes da opção por “dietas alternativas”. Alguns desses trabalhos são dirigidos

especificamente para a macrobiótica, mas outros observam, sobretudo, os efeitos

provocados pela adopção do vegetarianismo. De um modo geral, constatamos que tais

estudos tendem a afastar os receios relativamente a estas dietas, sendo mesmo

frequentemente apontados benefícios de uma dieta vegetariana, sobretudo na vertente

lacto-ovo-vegetariana.

Se nos detivermos em alguns dos primeiros artigos científicos publicados sobre a

macrobiótica, poderemos constatar a existência de alguma preocupação em relação a

propostas alimentares menos comuns, dado que haviam sido descritas algumas deficiências

nutritivas em crianças vegetarianas (Van Stavern e Dagnelie, 1988). Estes autores

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«À Mesa com o Universo»

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começam por referir a existência, na Holanda, de “vários movimentos filosóficos,

espirituais e pseudo-científicos ” (movimento ecológico, antroposófico e macrobiótico),

que ensinam o uso de uma “dieta natural e saudável”, convergindo na proposta de uma

dieta vegetariana e sustentada por “alimentos saudáveis” (Van Stavern e Dagnelie, 1988:

819). Partindo da observação das deficiências descritas, são analisadas crianças ligadas aos

diferentes movimentos, concluindo-se que as que praticam uma alimentação macrobiótica

seguem uma dieta que se aproxima do veganismo (sem consumo de qualquer tipo de

alimentos de origem animal) e que estas são, provavelmente, as que se encontram em

maior risco (Van Stavern e Dagnelie, 1988: 821). É sugerido, portanto, que se averigúem,

nas crianças que seguem uma alimentação macrobiótica, os níveis de cálcio, riboflavina,

vitamina D e vitamina B12, bem como uma hipotética maior vulnerabilidade para

infecções, e ainda se existem alguns indicadores em temos de retardamento mental.

Finalmente, é evidenciada a preocupação em saber se é possível melhorar a condição

nutritiva destas crianças também seguindo a “filosofia macrobiótica”.

Trabalhos posteriores procuram esclarecer algumas destas situações. Surgem assim,

numa fase inicial, resultados que apontam para deficiências em termos nutritivos,

sobretudo carência de ferro e de vitamina B12 (Dagnelie et al, 1989) - esta última avaliada

posteriormente através de marcadores como o ácido metilmalónico e a homocisteína no

plasma (Schneede et al, 1994) - mas também carência de cálcio e de vitamina D, que

surgem implicados nos atrasos de crescimento (Dagnelie et al, 1990). Em trabalho

publicado em 1994, Dagnelie e Staveren, apresentam os seus resultados relativos a

crianças com idades entre 4-18 meses nascidas em famílias que seguiam a macrobiótica.

As avaliações antropométricas levam-nos a concluir que os atrasos no crescimento se

verificavam sobretudo entre os 6 e os 18 meses. Estas crianças tinham, de resto, um menor

peso à nascença. São também aqui notadas carências de proteínas, vitamina B12 e D,

cálcio e riboflavina, bem como um desenvolvimento psicomotor mais lento. Constatam

ainda que o leite materno de mulheres que seguiam a macrobiótica tinha menos vitamina

B12, cálcio e magnésio. Os autores frisam que a ocorrência de tal facto não pode ser

justificada com o facto de as famílias não estarem bem informadas sobre como praticar

alimentação macrobiótica, dado que as mães já seguiam a macrobiótica há mais de três

anos e tinham tido formação sobre este tipo de alimentação. Muito embora refiram que as

suas conclusões não são extensíveis a toda a população residente na Holanda que pratica

macrobiótica, referem que os dados cobrem 80% das crianças com aquelas idades que

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Perspectivas sobre alimentação

83

estão integradas em famílias que seguem esse regime alimentar. Face aos dados

apresentados, recomendam o consumo de peixe gordo e de produtos lácteos (Dagnelie e

Stavaren, 1994).

Em 1997 é publicado um estudo sobre a massa óssea de 195 adolescentes

holandeses, com idades entre 9 e 15 anos, que seguiam uma alimentação macrobiótica, de

tipo vegan e pobre em cálcio e vitamina D, tal como é descrita pelos autores (Parsons et al,

1997). São retomados os estudos que haviam sido publicados 10 anos antes, sobre crianças

que seguiam alimentação macrobiótica e nas quais se descreviam diversas carências, de

acordo com o que atrás referi. A partir desses trabalhos é analisada a situação desses 195

adolescentes em termos de desenvolvimento e conteúdo mineral ósseo (CMO). Concluem

os autores que o CMO total é significativamente mais baixo nos adolescentes que seguem

a macrobiótica do que no grupo de controle, pelo que a adopção desta prática alimentar na

infância influencia negativamente a condição óssea dos adolescentes, defendendo que este

facto poderá fazer aumentar o risco de fracturas numa idade mais avançada. São

observados desvios em relação a esta tendência, mas não são suficientes para inflectir estes

resultados. Referem, por outro lado, e como já havia sido salientado em estudos anteriores,

que o nível educacional dos pais destas crianças é elevado e que neste estudo a condição

socioeconómica das famílias é similar (Parsons et al, 1997:1489), não sendo tal, portanto,

justificativo, dos resultados obtidos.

Um outro estudo (Miller et al, 1991), realizado na Nova Inglaterra (EUA) sobre a

população que seguia a macrobiótica (110 adultos e 42 crianças) confirma a carência de

vitamina B12. Nesse grupo, 51% apresentavam uma baixa concentração de vitamina B12,

sendo que esta era tanto menor quanto maior fosse o tempo de duração da prática de

alimentação macrobiótica. 55% das crianças e 30% dos adultos apresentavam uma

concentração elevada de ácido metilmalónico na urina, o que permitia aferir sobre a

carência de vitamina B12. A pequena estatura e baixo peso relativos constatados nas

crianças, são, aliás, associados à elevada concentração de ácido metilmalónico na urina

(Miller et al, 1991). Podemos pois verificar que algumas das carências observadas nos

estudos desenvolvidos na Holanda continuam a observar-se noutros contextos geográficos.

Deve notar-se que a carência apontada não é exclusiva da “dieta macrobiótica”, ela havia

já sido reportada anteriormente em diversos estudos relativos a vegetarianos. No entanto,

em trabalho publicado em 2007, é referido que o peso e a altura relativos de crianças que

seguiam a macrobiótica eram inferiores aos de crianças vegetarianas (Di Genova,

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«À Mesa com o Universo»

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2007:186). Revelando preocupação com eventuais deficiências na alimentação das

crianças, as autoras deste trabalho recomendam, tanto a vegetarianos como àqueles que

adoptaram a macrobiótica, vigilância relativamente ao consumo de proteínas, gorduras de

origem vegetal (para incrementar o aporte energético) vitamina D, vitamina B12, ferro e

cálcio.

Estas críticas são contrabalançadas por estudos que sublinham as virtudes de

modelos de alimentação alternativa. Assim, estudos efectuados sobre o efeito da “dieta

macrobiótica Ma-Pi 2”27

em 25 indivíduos com diabetes de tipo II, tratados com anti-

hiperglicemiantes e que tinham praticado até então “alimentações comuns”, revelaram que,

após ensaio clínico de 6 meses com a nova dieta alimentar, houve significativas melhoras

(Porrata et al.,2007). A glicemia diminuiu em 53%, a hemoglobina glicosilada em 32%, o

colesterol em 21% e os triglicéridos em 43%. O peso diminuiu bem como o perímetro da

cintura. Ficaram ainda normalizados os valores da hemoglobina, creatinina, ácido úrico,

ureia, transaminase glutâmico pirúvica, frequência cardíaca e tensão arterial. Do total dos

pacientes, 88% suprimiriam os anti-hiperglicemiantes. Neste estudo, tão favorável a Mario

Pianesi e à associação “Un Punto Macrobiótico”, vemos, assim, serem destacados os

benefícios de uma alimentação à base de cereais integrais, vegetais, leguminosas e chá

verde - uma alimentação que tenderia a alcalinizar o organismo: equilibrada, em termos

energéticos e proteicos, baixa em gorduras e com elevado consumo de hidratos de carbono

complexos, fibras, betacaroteno, manganésio e magnésio.

Resultados favoráveis à adopção de um regime macrobiótico pelos diabéticos são

igualmente descritos por Bhumisawasdi et al. (2006). Curiosamente, neste último artigo,

onde são também feitos agradecimentos a Mario Pianesi e seus assistentes, para além da

referência à redução dos níveis de açúcar no sangue, do peso, da tensão arterial e

frequência cardíaca são também referidos aspectos mais dificilmente quantificáveis e

objectiváveis, como maior tranquilidade, maior vibração e energia (Bhumisawasdi et

al.,2006: 2104).

Um outro conjunto significativo de estudos que foram efectuados procuraram

avaliar os efeitos da macrobiótica na prevenção e tratamento do cancro. Jane Teas, Joan

Cunningham e Andrew Cousins (2000-2002) desenvolveram um projecto onde procuraram

conjugar a biomedicina com a Antropologia Médica - Complementary and Alternative

27 Referida como dieta macrobiótica-vegetariana preconizada por Mario Pianesi, fundador e presidente da

associação internacional “Un Punto Macrobiótico”, em Itália (Porrata et al.2007).

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Perspectivas sobre alimentação

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Medicine with Curative Intent: Macrobiotics and Faith Healing . Um dos objectivos deste

projecto era observar os efeitos da macrobiótica na saúde e prevenção do cancro. A

investigação decorreu entre 2000 e 2002 e centrou-se em entrevistas a seguidores da

macrobiótica. Para além deste aspecto, foi desenvolvido um esforço de caracterização dos

centros de divulgação da macrobiótica existentes nos EUA bem como das lojas de

“produtos naturais” onde poderiam ser encontrados alimentos habitualmente utilizados

nesta área. Um dos sítios de divulgação da macrobiótica - The Rice House -, gerido por

“consultores macrobióticos” radicados em Israel, dá conta, justamente, da investigação

efectuada28

.

Em trabalho publicado sobre a relação entre macrobiótica e cancro, no qual alguns

desses investigadores (Teas e Cunningham) participaram (Kushi et al., 2001) faz-se uma

assinalável revisão da investigação desenvolvida sobre esta matéria. Para além desta

revisão, os autores baseiam-se nas respostas a um inquérito que teria sido enviado a 548

indivíduos com cancro que teriam sido observadas entre 1981 e 1984 por Michio Kushi

(consultor de macrobiótica), e ao qual apenas 98 dos inquiridos responderam. Destes

indivíduos, 91% recebia pelo menos um tipo de terapia convencional, como a

quimioterapia, 56% usavam outras terapias não convencionais sem ser a macrobiótica.

61% revelava clara adesão às recomendações macrobióticas;10% uma adesão parcial e 1%

não aderiu. Foram analisadas avaliações subjectivas por parte dos inquiridos, onde uma

parte significativa referia um efeito positivo da macrobiótica no tratamento do cancro,

afirmando uma maior tolerância à quimioterapia e maior bem-estar emocional. Por outro

lado, 90% referia que tinha apoio dos companheiros no seguimento da macrobiótica e 82%

referia que tinham apoio de membros da família. Apenas 25% responderam que os

médicos que os acompanhavam apoiavam a decisão de adoptar a macrobiótica; 19%

referiram a oposição dos seus médicos à adopção da macrobiótica e 50% referiram que os

seus médicos eram indiferentes relativamente a tais práticas (Kushi et al., 2001:3060S)

Para além disto, esta pesquisa permitia concluir que a maior parte das pessoas que

procurava um conselho na área da macrobiótica o fazia após uma consulta com um

28 Ver Macrobiotics research Project

http://www.thericehouse.com/research/Research%20Home%20Page.htm [Acesso em 14.07.2011].

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«À Mesa com o Universo»

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terapeuta convencional e que muitas vezes não informava o seu médico sobre a prática da

macrobiótica.

Concluiu-se nesse trabalho que as mulheres que seguiam uma alimentação

macrobiótica tinham um nível de circulação de estrogénios ligeiramente mais baixo, o que

sugeria um risco menos elevado de cancro de mama. Concluíram ainda que existiam

probabilidades de a dieta macrobiótica reduzir o risco de cancro, mas que não dispunham

de bases empíricas cientificamente fundadas que fossem suficientes para recomendar ou

desaconselhar esta dieta, pelo que seria necessário prosseguir com a investigação nesta

área. Rezash (2008), em trabalho posterior, dá-nos também conta da necessidade de uma

investigação mais sistemática para avaliar os riscos e benefícios da macrobiótica na

prevenção e tratamento do cancro, no mesmo sentido se expressando Horowitz (2002).

Apesar de esta necessidade ser apontada, a investigação de Kushi (2001) dá conta

de diversos estudos efectuados sobre o uso da “dieta macrobiótica” e o desenvolvimento de

doenças cardiovasculares. Na perspectiva dos seus autores, tais estudos evidenciam de

forma consistente um menor risco de doenças cardiovasculares na população que seguia a

macrobiótica por relação à generalidade da população. Como justificação para esta

conclusão, era apontada a existência de um nível de colesterol mais baixo. Para além deste

aspecto, também o facto de a tensão arterial ser, em média, mais baixa; de se observarem

níveis mais elevados de antioxidantes no plasma e ainda de o peso dos indivíduos ser

menos elevado, foram igualmente apontados como factores relevantes (Kushi et al., 2001:

3060S)

Uma das razões evocadas pelos autores para desenvolver a investigação acima

mencionada, foi a da existência de relatos de casos de cura de cancro através da

macrobiótica. Um desses casos, frequentemente referido nas sessões de divulgação sobre

macrobiótica, é o «caso Sattilaro». Anthony Sattilaro, ficou conhecido como o médico a

quem, aos 49 anos, foi diagnosticado um cancro na próstata em fase avançada (já com

metástases nos ossos) e que conseguiu vencer adoptando a macrobiótica, tendo ficado

completamente resolvidas as lesões provocadas nos ossos pelas metástases. O seu livro,

Recalled by Life: the Story of my Recovery from Cancer (1984), dá conta do seu processo

de cura e de como foi aconselhado na mudança de alimentação por Waxman (director da

East-West Foundation em Filadélfia) consultor e professor na área da macrobiótica, que

tive oportunidade de conhecer em curso de formação promovido pelo IMP (Instituto

Macrobiótico de Portugal).

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Perspectivas sobre alimentação

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Após um período sem a doença, Sattilaro viria a ter uma recidiva e morrer de

cancro da próstata em 1989. No “meio macrobiótico” a mensagem que foi divulgada foi a

de que “depois de se ter curado terá abandonado a macrobiótica e voltado a criar as

condições para desenvolver, de novo, este tipo de cancro”, mas podemos sempre especular

sobre os motivos que estiveram na origem desta situação. É aliás de realçar que Sattilaro,

pelo menos numa primeira fase, foi submetido a intervenções cirúrgicas e foi medicado,

não sendo possível, portanto, apontar apenas a adopção da macrobiótica no seu processo de

cura. Em todo o caso, a “sua história” foi suficientemente estimulante para incentivar a

pesquisa sobre os efeitos da macrobiótica no cancro, sendo o trabalho que atrás referi, pelo

menos em parte, uma resposta a esse estímulo. O facto de um dos autores deste estudo ser

filho do mais proeminente consultor de macrobiótica actualmente vivo, Michio Kushi, não

deverá ser completamente alheio ao interesse por uma investigação de carácter científico

sobre a relação entre macrobiótica e cancro. Deve ser referido, neste contexto, que ainda

que a prática da macrobiótica possa ter sido importante para superar certas situações de

cancro, mesmo aqueles que dedicaram a sua vida à macrobiótica, como Aveline e Michio

Kushi foram vítimas de cancro, Aveline foi vítima de um cancro no colo do útero, que não

superou, tendo falecido em 2001, e Michio de um cancro do cólon, aparentemente

resolvido através de intervenção cirúrgica.

Um dos aspectos que é referido nesse trabalho (Kushi, Cunningham e outros), é que

a macrobiótica engendra um respeito pela natureza espiritual da existência e que as

modificações no estilo de vida causadas pela adopção da macrobiótica pressupõem uma

participação activa por parte do indivíduo (2001: 3057S). De acordo com os autores, comer

de forma macrobiótica, contribui para desenvolver a agencialidade e o sentimento de

poder, dado que o indivíduo participa activamente no seu tratamento. Esta participação não

se observaria nas formas convencionais de tratamento de cancro, onde o indivíduo se torna

apenas num receptor de uma terapia, vendo-se assim desempoderado (Kushi et al.,

2001:3060S).

Outros trabalhos científicos como o The China Study (Campbell; Campbell, 2006) e

Eat, Drink, and be Healthy (Willett; Skerrett, 2005) devem também ser mencionados.

Muito embora não se debrucem especificamente sobre a macrobiótica, acabaram por se

tornar numa referência importante para diversos professores e consultores de macrobiótica,

e também para muitos dos que praticam este tipo de alimentação. O livro The China Study

é o resultado de uma investigação desenvolvida na China pela Universidade de Cornell e

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«À Mesa com o Universo»

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pela Universidade de Oxford. A escolha deste país ter-se-á devido, em parte, ao facto de

em muitas regiões, sobretudo nas zonas rurais, se praticar uma alimentação com ampla

base vegetariana. Nesta pesquisa, que constitui um estudo epidemiológico, foram

observados 6500 adultos (metade homens/ metade mulheres, com idades entre os 35 e os

64 anos) de 65 zonas rurais e semi-rurais na China. Cada um dos observados permitiu a

recolha de sangue, tendo sido também analisada a urina de metade da amostra. Ao grupo

foi também administrado um questionário sobre o seu estilo de vida e tipo de alimentação.

Para lá da recolha destes elementos, a equipa de investigação fez visitas de três dias a 30%

das famílias, procurando avaliar os seus consumos alimentares. Nesse âmbito, foram

também recolhidas amostras de alimentos nos mercados locais, que procuravam

corresponder àquilo que era considerado representativo da dieta típica de cada região

(Campbell, 2006: 353-354). Um dos principais objectivos do trabalho foi o de avaliar os

efeitos da alimentação sobre a saúde. Ainda que o livro China Study dedique apenas um

capítulo aos resultados específicos obtidos na China, é a partir das conclusões aí

apresentadas que se discutem as doenças cardiovasculares, diabetes, obesidade, vários

tipos de cancro, etc. Através da comparação entre os dados obtidos na China e os

observados no mundo ocidental, sobretudo nos EUA, Campbell disserta sobre a

importância da nutrição no desenvolvimento de inúmeras doenças.

Com base nos dados recolhidos, este autor e a sua equipa, concluíram que uma

alimentação de base vegetariana era mais adequada aos humanos, tendo mesmo defendido

não existir praticamente nenhum nutriente que se encontre nos alimentos de origem animal

que não pudesse ser substituído, de forma vantajosa, por alimentos de origem vegetal. Por

esta razão, uma das grandes linhas de discussão ao longo do trabalho é a de que o consumo

de proteínas animais e gordura animal se encontra relacionado com a maior parte das

doenças crónicas, nomeadamente ao produzirem um significativo aumento do colesterol. A

constatação de um nível de colesterol muito mais baixo entre a população chinesa

observada (média de 127 mg/dl quando a dos americanos era de 215 mg/dl), levou

Campbell a atribuir grande relevância a este aspecto concreto29

.

O trabalho de Campbell foi alvo de forte contestação e a sua visão sobre o efeito

das proteínas e da gordura classificada como excessiva e redutora. Um amplo e

29 Numa das palestras sobre alimentação macrobiótica a que tive oportunidade de assistir (2011) foi referido

que Campbell praticaria uma alimentação próxima da macrobiótica e que, sob seu conselho, Clinton teria

procedido a modificações alimentares para tratar os seus problemas cardiovasculares.

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Perspectivas sobre alimentação

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pormenorizado debate sobre o seu trabalho, com respostas e contra-respostas entre

Campbell e seus críticos, pode ser encontrado em Minger (2010) e em Masterjohn (2005-

2008). De qualquer forma, estudos recentes têm vindo a atribuir menor importância às

gorduras saturadas na alimentação, bem como ao nível de colesterol. O sítio “cholesterol-

and-health.com”, onde Masterjohn escreve, procura mesmo afirmar a importância do

colesterol e das gorduras na alimentação humana30

. Pollan (2009b: 57) faz referência a

proeminentes cientistas da Harvard School of Health que teriam concluído que muito

embora adicionar ácidos ómega-3 à alimentação reduzisse a morte por doenças

cardiovasculares (DCV) e a morte em termos globais, os níveis totais de gordura na

alimentação tinham aparentemente um impacto muito reduzido no risco destas doenças,

devendo-se antes ter em consideração o tipo de gorduras consumido31

. Por outro lado,

sublinha ainda Pollan, alguns investigadores já não consideram que um colesterol elevado

seja factor de risco, dado que “metade das pessoas que sofre um enfarte não apresenta

níveis de colesterol elevado, e que cerca de metade das pessoas com colesterol elevado não

sofre de DCV” (Pollan, 2009b: 60). Não irei proceder, evidentemente, a uma discussão

técnica destes aspectos, mas devo assinalar que aquilo que parecia ser um dado

relativamente consensual passou a ser alvo de controvérsia, o que vem corroborar a ideia,

atrás avançada, de que a fobia por certos alimentos, ou a sua classificação como «super-

alimentos», deve ser também ela colocada no plano das ideologias alimentares. A corrida

às fontes de ácidos ómega-3 parece ter, neste contexto, mas em sentido inverso, algum

paralelismo com a fobia às gorduras.

Retornando ao estudo de Campbell, compreende-se porque foi tão bem acolhido

entre os seguidores da macrobiótica, é que as suas conclusões vão de encontro àquilo que é

defendido por eles como sendo uma alimentação adequada. De facto, algumas das

conclusões do trabalho de Campbell - existência de um forte peso da nutrição no

desenvolvimento de doenças; consideração de que a alimentação de base vegetariana é a

mais adequada às populações humanas já que provoca um índice de colesterol mais baixo;

de que a dieta à base de vegetais e o exercício físico estão na base da saúde ou ainda de que

as fibras e antioxidantes reduzem o cancro no trato digestivo - vão de encontro ao tipo de

30Ver: “Cholesterol-and-health.com, Uncovering the truth about America’s most demonized nutrient”

http://www.cholesterol-and-health.com/index.html [acesso em 4.08.11]. Campbell (2006) refere que o

trabalho de Masterjohn, que escreve neste website, é em parte suportado por produtores de animais e que se

estaria a procurar criar uma agenda para reabilitar o colesterol. 31 Hu, Frank et al. 2001. «Types of Dietary Fat and Risk of Coronary Heart Disease: a critical Review»

Journal of the American College of Nutrition.Vol. 20, 1, 5-19.

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alimentação padrão que é preconizado na macrobiótica. Pode pois dizer-se que este estudo

científico surge de alguma forma como a “prova científica” das verdades que a

macrobiótica procura veicular.

O trabalho de Willett e Skerrett (2005), Eat, Drink, and be Healthy, é também uma

referência importante nas sessões de esclarecimento sobre macrobiótica. Willett é um

reputado investigador, ligado à Harvard Medical School, que apresenta um conjunto de

argumentos e de conclusões que vão, de modo idêntico, de encontro a algumas das

concepções sobre saúde e alimentação que são defendidas na macrobiótica. Trata-se de um

trabalho que, por essa razão, é apresentado na macrobiótica como relevante, e cujos

resultados devem ser tomados em consideração. O trabalho de Willett e Skerrett, à

semelhança do que aconteceu com o de Campbell, permitiu a muitos dos seguidores da

macrobiótica olhar para as suas práticas alimentares não como algo marginal e pouco

fundamentado, mas como tendo um elevado valor, susceptível mesmo de adquirir um lugar

central nas práticas alimentares. De alguma forma, os defensores da macrobiótica

encontraram na comunidade científica porta-vozes de incontestável autoridade, por forma a

afirmar que muitas das concepções que defendiam constituíam um caminho a seguir.

Willett e Skerrett centram-se na pirâmide alimentar criada pelo Departamento de

Agricultura dos EUA, 1992-2005 (USDA), e nas outras que foram propostas

posteriormente, para demonstrar que as orientações básicas sobre alimentação se

encontram desactualizadas e que é necessário reconstruir a pirâmide32

. Apresentam em

alternativa a sua própria versão da pirâmide da alimentação, que consideram ser mais

saudável.

32 É de notar que as recomendações da USDA têm sido revistas, sendo possível encontrar no sítio da USDA

12 pirâmides diferentes (MyPyramid), de acordo com necessidades específicas de grávidas, crianças em

idade pré-escolar, para perder peso, etc.

Ver: http://www.choosemyplate.gov/global_nav/MyPyramidAnimationTranscript.pdf [acedido em 7.08.11].

Para Willett, também a “MyPyramid” parecia uma boa ideia, na verdade, não o foi; não faz referência ao

tamanho, no seu entender o elemento mais importante na definição das calorias necessárias. Uma das suas

poucas vantagens é a de acrescentar a importância do exercício e da actividade física (Willett, 2005:20).

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Figura 1- Pirâmide original da USDA33

Figura 2 – Pirâmide de Willett e Skerrett34

33 Imagem disponível em http://www.everynutrient.com/food-pyramid.html [acedido em 7.8.11] e também

em Willett (2005:17). 34 Imagem disponível em http://www.trustyguides.com/healthy-eating1.html [acedido em 7.8.11] e também

em Willett (2005: 13).

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Os principais pontos questionados relativos à pirâmide proposta pela USDA, são os

de não fazer distinção entre o tipo de gorduras usado na alimentação (saturadas,

polinsaturadas e monoinsaturadas), promovendo-se assim a fobia pelas gorduras. Um outro

aspecto sublinhado é o da recomendação, na base, do consumo de hidratos de carbono, sem

realçar aqueles que para Willett são mais aconselháveis como os alimentos integrais;

situação idêntica é observada em relação à fatia das proteínas e ao facto de não se fazer

distinção entre carnes vermelhas, carnes brancas, peixe e ovos. Finalmente, nota Willett, é

recomendado um uso diário de produtos lácteos que a ele parece excessivo. Em

consequência, considera este autor que embora os americanos sejam dos povos que mais

consomem cálcio isso não os impede de apresentarem uma das mais altas taxas de fracturas

ósseas do mundo. Refere, neste contexto, diversos estudos que sugerem que a ingestão

excessiva de produtos lácteos aumenta a possibilidade de as mulheres desenvolverem

cancro nos ovários e os homens cancro na próstata (Willett, 2005:18-19). Willett contesta

ainda que se aconselhe o consumo de batatas numa base diária, dado o seu elevado índice

glicémico (superior ao do açúcar). Por fim, critica o silêncio da pirâmide relativamente a

aspectos como o peso, necessidade de exercício, importância de beber diariamente uma

bebida alcoólica e tomar suplementos vitamínicos. Defendendo que a pirâmide da USDA

foi construída de forma a contemplar mais os lobbies da indústria alimentar do que

critérios científicos, Willett refere a dimensão política associada ao estabelecimento de

uma pirâmide alimentar (Willett, 2005:15).

De forma sumária, pode dizer-se que a pirâmide proposta por Willett e Skerrett em

“The New Healthy Eating Pyramid” (Willett, 2005:13), nos é apresentada como sendo o

resultado das melhores evidências científicas conhecidas e o resultado de 40 anos de

pesquisa em todo o mundo, com Harvard à cabeça. Em relação à pirâmide anterior, para

além do exercício e da actividade física, Willett propões sete mudanças básicas:1) vigiar o

peso; 2) ingerir poucas gorduras de má qualidade (leia-se saturadas) e mais de boa

qualidade (de notar que estas últimas são colocadas na segunda fatia da pirâmide, a contar

da base); 3) consumir menos hidratos de carbono refinados e em maior quantidade os

provenientes de alimentos integrais; 4) procurar fontes saudáveis de proteínas, como

leguminosas e nozes, juntamente com peixe, aves e ovos (é feita uma separação entre

proteínas de origem animal e origem vegetal, de forma a que aqueles que pretendam seguir

um regime vegetariano possam aí encontrar orientação); 5) consumir abundantemente

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Perspectivas sobre alimentação

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vegetais e fruta mas evitar as batatas por causa dos níveis de açúcar no sangue e da

insulina; 6) beber álcool com moderação para prevenir doenças do coração e isquemia; 7)

como forma de prevenção tomar suplementos vitamínicos (sobretudo vitaminas B6 e B12,

ácido fólico e vitamina D), considerados essenciais para prevenir doenças

cardiovasculares, cancro, osteoporose e outras doenças crónicas (cf. Willett, 2005:21-24).

Finalmente se percebe que estas orientações alimentares foram bem recebidas pela

“comunidade macrobiótica” que viu nesta nova pirâmide - que inspirou a pirâmide da

Harvard School - uma maior aproximação à que tinha sido elaborada para a macrobiótica

por Michio Kushi.

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Figura 3 - “The Healthy Eating Pyramid”35

Figura 4 - Pirâmide macrobiótica de Michio Kushi36

35 Imagem disponível em http://www.hsph.harvard.edu/nutritionsource/what-should-you-eat/pyramid-full-

story/index.html [Acedido em 7.8.11]. 36 Imagem disponível em http://www.holistic-cooking.co.uk/WhatIsMacrobiotics.htm [Acedido em 7.8.11] e

também em Kushi et al. (2001).

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Perspectivas sobre alimentação

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Se compararmos as duas pirâmides, verificamos a grande importância que em

ambas é dada ao consumo de vegetais e de cereais integrais37

. Às leguminosas é dado um

papel de destaque idêntico e vemos o tofu aparecer na “The Healthy Eating Pyramid

(HEP)”. As algas têm um lugar importante na pirâmide de Kushi, dada a importância

nutricional que lhe é atribuída em termos de minerais38

. O uso de peixe e carne tem um

maior destaque na HEP, mas é de ter em consideração que também na pirâmide seguida na

macrobiótica é recomendado o uso semanal de peixe, aspecto que não encontrávamos nas

primeiras orientações relativas à alimentação macrobiótica padrão. A utilização de

produtos lácteos continua a ter importância na HEP, mas menor do que a que se verificava

na pirâmide original da USDA. Este aspecto constitui também uma maior aproximação à

pirâmide alimentar proposta por Kushi, onde se pode observar que os produtos lácteos, a

carne e os ovos são considerados opcionais, recomendando-se que se consumam de modo

pouco frequente, apenas mensalmente ou numa fase de transição. Alimentos que

habitualmente não são recomendados na macrobiótica, como o açúcar, os cereais refinados

e as batatas, encontram-se também relegados para o topo da pirâmide da HEP, não sendo

aconselhado o seu uso regular. A aproximação entre estas pirâmides permite-nos observar

de que modo contributos situados nas margens e com pouco relevo podem adquirir maior

visibilidade quando associados a formas mais institucionalizadas de produção de

conhecimento, como é o caso do estabelecimento de uma pirâmide alimentar por parte de

um departamento científico ligado à nutrição. De alguma forma, as margens adquirem

centralidade, dado que vêem reconhecidos os seus argumentos. Não há, evidentemente, um

reconhecimento directo das recomendações feitas na macrobiótica, mas o facto de os

resultados da investigação científica irem, por vezes, de encontro ao recomendado na

macrobiótica, acaba por dar mais força aos argumentos usados pelos defensores desta

corrente. A recomendação de Willett, de que se consumam mais vegetais, hidratos de

carbono complexos, gorduras saudáveis em porções moderadas e se faça mais exercício,

vai de encontro a princípios defendidos na macrobiótica.

Para Kaptchuk e Eisenberg (1998), o facto de haver a ideia de uma convergência

entre algumas das concepções dos movimentos de “alimentação saudável” e as

37 É de notar que a pirâmide proposta por Michio Kushi considera ainda a importância do consumo de

pickles. Não se trata de pickles comuns, como os que habitualmente encontramos em conserva, mas de

vegetais que são habitualmente fermentados em casa (cebolas, couves, rabanetes…) e considerados muito

benéficos nos processos digestivos pela macrobiótica. 38 Por outro lado, o facto de a alimentação macrobiótica ter uma forte inspiração japonesa ajuda também a

explicar este aspecto.

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«À Mesa com o Universo»

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observações desenvolvidas nas ciências da nutrição não deve representar uma qualquer

aproximação entre estas duas formas de abordagem dos alimentos. Para estes autores, o

facto de as ciências da nutrição terem descoberto tardiamente a importância dos cereais

integrais, não deve permitir que se confundam instâncias que são distintas e não partilham

modos de construção do conhecimento similares. É que se as ciências da nutrição assentam

num conjunto de procedimentos que incluem uma metodologia de investigação científica,

esses movimentos surgem a estes autores como visando sobretudo promover uma

ideologia, e como contendo intenções morais, sociais e de pureza ética que são

potencialmente perigosas. Consideram, assim, que para haver uma interacção construtiva

entre estes diferentes domínios é necessário reflectir sobre as suas diferenças em termos de

modo de abordagem39.

A análise desenvolvida por Kaptchuk e Einsenberg, sobre os movimentos de

alimentação saudável nos EUA, conduzem-nos aos fundadores da tradição do

vegetarianismo e dos cereais não processados na América, apontando Sylvester Graham

(1795-1851) e William Alcott (1789-1859) como pioneiros nesse processo. A primeira loja

de “alimentos saudáveis”, a Graham Provision Store, abriria em Boston em 1837. Os

cereais tostados Granula (mais tarde conhecidos por granola) seriam preparados pela

primeira vez em 1863 por James Caleb Jackson (1814-1895). Os autores detectam, desde

logo, nesta primeira fase do movimento, um desejo de expressar sentido e moralidade

através da comida. Aspectos como a abstinência e regramento nos comportamentos

estavam aí implícitos. Elementos da mesma natureza podem ser encontrados num segundo

estádio do movimento, quando a reintrodução dos granola, com John Harvey Kellogg

(1852-1943) e a criação dos Corn Flakes, foram associados a uma relação harmoniosa

entre mente e corpo. Também Bernarr Macfadden (1868-1955) transformou a comida

numa fórmula para a masculinidade, fertilidade e sexualidade - os macfadden’s granola

lançavam a mensagem da purificação do sangue.

39 Referem a este propósito os autores: «As Ciências da Nutrição procuram utilizar as ferramentas científicas

para investigar e esclarecer sobre os efeitos dos alimentos, da dieta e dos suplementos dietéticos. O

movimento da alimentação saudável serve-se livremente (frequentemente de forma selectiva) das discussões

científicas relativas ao impacto da dieta no bem-estar e nos riscos de doença. Contudo, subjacente à sua

abordagem, encontra-se uma agenda social e moral de amplo alcance. Neste movimento, a comida é

impregnada, de forma flexível, de qualidades simbólicas, a que se associam significados e moralidade. A

comida é uma reserva iconográfica para projectos sociais e para a defesa da pureza ética. A dieta constitui

uma forma persuasiva de corporizar propósitos e auto-conhecimento. É fácil e potencialmente perigoso

ignorar esta dimensão da alimentação saudável.» (Kaptchuk e Eisenberg, 1998: 472) [Tradução livre]

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Perspectivas sobre alimentação

97

Nos anos 1960 os cereais integrais seriam reintroduzidos, de acordo com Kaptchuk e

Eisenberg, na “onda holística” que explorava o potencial humano. Uma “onda“ de atracção

pelo Oriente, e pela espiritualidade que lhe estava associada, pelo yoga e pela meditação,

teria mesmo conduzido para as margens os movimentos cristãos de defesa da alimentação

saudável. A partir dos anos 1970, os cereais tostados, o arroz integral e a “comida

saudável”, ter-se-ão tornado cada vez mais compatíveis com o mainstream (cf. Ibid.: 472).

Esta perspectiva, algo concordante com a análise de Lau (2000) – que defendia que certas

práticas corporais de inspiração oriental antes tomadas como marginais terão adquirido

uma cada vez maior centralidade nos EUA - reposiciona os movimentos de alimentação

saudável, apresentando-os como estando cada vez mais integrados no sistema.

Kaptchuk e Eisenberg, ainda que apresentem os resultados da investigação

científica como algo que está sempre em transformação, e ainda que não adoptem uma

atitude de arrogância face a outros tipos de conhecimento, defendem que as

recomendações em termos nutritivos devem ser o resultado de investigação básica e não de

filosofias ou políticas sociais. Sendo certo que sugerem uma interpenetração entre estas

diferentes áreas, não deixam, todavia, de contribuir para alguma tensão entre elas. Parece-

me legítimo observar que, ao caracterizarem os movimentos filosóficos e as políticas

sociais como sendo ideologicamente orientados, esquecem que também a prática científica

pode ser ideologicamente orientada. De facto, como atrás referi, o nutricionismo pode

também ser visto como expressão de uma ideologia e instrumento capaz de servir causas

políticas e sociais. Sobressai desta discussão o evidente cruzamento entre informação

oriunda dos movimentos de comida saudável e informação proveniente da investigação

científica. Estas diferentes áreas nem sempre estabelecem diálogos entre si, mas não são

totalmente insensíveis aos argumentos que apresentam, parecendo alimentar-se desses

mesmos debates.

*

Dos trabalhos recolhidos sobre os efeitos da alimentação macrobiótica, verifica-se

que, de uma grande preocupação que marcou os anos 80 e 90 sobre este tipo de

alimentação, se passou para uma fase de avaliação menos negativa sobre os seus efeitos,

afirmando-se mesmo o reconhecimento dos seus benefícios, quer na prevenção de doenças

cardiovasculares, quer na prevenção da diabetes. Julgo que esta tendência é, aliás,

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«À Mesa com o Universo»

98

concomitante com o que se observa relativamente aos trabalhos científicos sobre o

vegetarianismo. Muitos são os estudos que apontam os benefícios destas formas de

alimentação - desde que haja, bem entendido, preocupação em assegurar aqueles nutrientes

que se considera serem deficitários neste tipo de alimentação. Observa-se, ainda que de

forma difusa, uma nova orientação nos trabalhos científicos, com maior abertura para a

aceitação deste tipo de práticas alimentares, sendo possível detectar, ao mesmo tempo,

alguma transformação na “alimentação padrão” seguida na macrobiótica - que de um

modelo mais rígido terá passado para um modelo um pouco mais flexível, pelo menos foi

isso que me foi transmitido por diversos seguidores da macrobiótica.

A referência a estes estudos parece-me ser relevante no contexto deste trabalho,

dado que encontramos na macrobiótica uma grande discussão sobre questões ligadas à

saúde e a uma alimentação saudável. Basta notar que os estudos mais controversos e

críticos sobre a alimentação macrobiótica raramente eram mencionados nas sessões de

formação sobre este modelo alimentar, muito embora fossem utilizados dados provenientes

de investigação científica que eram favoráveis à adopção da macrobiótica enquanto

prática. Nessas sessões, o tema “mais quente” em termos de eventual deficiência nutritiva,

recaia sobretudo em torno da vitamina B12. O facto de alguns dos participantes seguirem

uma dieta vegan, colocava o problema de saber onde procurar essa vitamina. Se para o

cálcio e ferro era relativamente fácil encontrar alimentos vegetais que fornecessem este

tipo de micronutrientes, para a vitamina B12 era mais difícil, dado o facto de ela se

encontrar, sobretudo, em produtos de origem animal. As discussões sobre se o tempeh

(alimento fermentado, feito à base grãos de soja) e algumas algas teriam ou não vitamina

B12 ocuparam algum tempo dessas sessões. O facto de o tempeh ser fermentado pela

exposição ao ar permitia que se defendesse que o contacto com diferentes

microorganismos, provocado por uma menor assepsia, o tornava uma fonte de B12.

Todavia, as recomendações por parte do formador salientavam que não se desse muita

importância a este aspecto, dado que o passado de comedores de produtos de origem

animal da maior parte dos presentes fazia com que tivessem acumulado B12 suficiente para

não sentirem esse tipo de carências. Por outro lado, a recomendação de consumo de peixe,

duas vezes por semana, evitaria que se sentissem carências de vitamina B12. Uma

recomendação comum nas sessões de formação era também a de que os participantes não

se transformassem numa espécie de “intelectuais da comida” sempre a avaliar a

quantidade de proteínas, hidratos de carbono, vitaminas e minerais. Não havendo uma

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Perspectivas sobre alimentação

99

situação específica de doença, ou qualquer outra situação a acautelar em termos de saúde, a

alimentação macrobiótica padrão (representada na pirâmide elaborada por Kushi) seria

suficiente.

*

Procurei mostrar, neste capítulo, que os estudos sobre alimentação são já

abundantes no seio da literatura antropológica, mas, no entanto, em Portugal, são

relativamente escassos os que existem inteiramente votados a esta matéria. Apesar dos

esforços feitos, parece haver, entre nós uma lacuna a este nível. Se procurarmos trabalhos

sobre formas de alimentação como o vegetarianismo ou a macrobiótica, eles são ainda

mais raros e, no entanto, o estudo dessas propostas alimentares reveste-se de alguma

importância – pode ajudar a compreender modos singulares ou minoritários de orientação

no mundo, bem como esclarecer formas de resistência, lutas ideológicas sobre como nos

devemos alimentar e modos de classificação, produção, confecção e circulação de

alimentos. Por outro lado, convém acrescentar que práticas alimentares como a

macrobiótica e o vegetarianismo parecem estar em franca expansão noutros países e

também em Portugal. Refira-se, a título de exemplo, que nos Estados Unidos em 1985 o

número de vegetarianos era de 6 milhões, tendo passado a ser em 1992 de 12,5 milhões (cf.

Contreras e Gracia, 2005:181) e que no Reino Unido, de 1984 para 1990, o número de

vegetarianos aumentou em 76% (García, 2002:251).

Com este capítulo pretendi, essencialmente, situar esta pesquisa no âmbito dos

estudos desenvolvidos sobre alimentação. Muito embora possa ter parecido excessiva a

atenção dada aqui a alguns dos contributos referidos, pareceu-me um olhar oportuno na

medida em que permitia colocar este trabalho em diálogo com outros desenvolvidos sobre

alimentação. O pouco que se escreveu sobre a investigação desenvolvida em Portugal na

área da alimentação acabou por justificar essa maior atenção. Escrever sobre uma proposta

alimentar que tanto se distancia da “gastronomia nacional”, permite pensar Portugal como

um espaço mais plural também em termos alimentares. Permite, igualmente, dar conta de

fenómenos na sociedade portuguesa que têm contribuído para uma maior diversificação

dos produtos alimentares disponíveis - produtos que, em grande medida, começaram por

surgir por via da macrobiótica, mas que acabaram por começar a ser incluídos noutras

despensas ou frigoríficos que não os dos praticantes de alimentação macrobiótica, refiro-

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«À Mesa com o Universo»

100

me especificamente a produtos como o tofu, seitan, miso, etc. É verdade que o consumo

destes produtos está longe de se encontrar generalizado, mas a sua adopção significa, sem

dúvida, inovação relativamente aos consumos “mais tradicionais”. Em alguns casos

podemos dizer que provoca mesmo uma certa erosão naquela que era a forma de

alimentação mais arreigada. Neste contexto, um sistema marginal de alimentação como a

macrobiótica, acaba, por ter alguma influência em formas alimentares mais instituídas,

sendo um dos diversos aspectos que levam à sua transformação. Não se pense contudo que

esta relação é unívoca. A alimentação macrobiótica é também influenciada pelos diferentes

contextos de integração. A tentativa de fazer na macrobiótica certos pratos da cozinha

regional, denuncia também essa permeabilidade aos gostos mais entranhados. É essa

permeabilidade que ajuda a compreender o arroz doce elaborado com bebida de soja e

malte de cevada, as pataniscas de seitan, as fatias douradas sem ovos, etc.

Convém, agora, destacar alguns aspectos que se tornarão importantes no decurso

deste trabalho. Desde logo, e em conexão com o parágrafo anterior, a relação entre

sistemas alimentares marginais e sistemas dominantes, o modo como vão sendo

contaminados uns pelos outros através de relações dinâmicas que vão estabelecendo. Por

outro lado, a comida, e os consumos que em torno dela se observam, como expressão de

subjectividades. A incorporação ideológica que o acto de comer pode envolver, e o modo

como nesse acto se expressa uma visão sobre o corpo e sobre o mundo parece ajustar-se a

uma análise sobre a macrobiótica. O corpo surge aí como forma de concretização de um

projecto individual e, por vezes, até como projecto com desejo de alcance social. A

transformação do corpo num campo de experimentação, frequentemente observada com a

adopção da macrobiótica, constitui uma forma muito particular de expressão de si mesmo,

sendo, em algumas ocasiões, um desafio relativamente a orientações mais

institucionalizadas. Suscita, ainda, um olhar por parte da ciência, que, tal como vimos,

aponta para as deficiências neste tipo de alimentação, embora também lhe reconheça

benefícios. A comunicação entre práticas alimentares ligadas à macrobiótica e discursos

científicos sobre as mesmas julgo que é um factor indispensável para compreender

fenómenos de recomposição e de reorganização de significados, quer na macrobiótica quer

nos discursos científicos.

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

101

Capítulo 3

A Macrobiótica: Trânsitos e Trajectos e de um sistema de conhecimento

3.1 Em Busca das Origens: Percursos e Sentidos da Macrobiótica

Muito embora a macrobiótica pareça encontrar uma clara fonte de inspiração nas

filosofias orientais, designadamente no taoismo e no budismo zen, o modo como é

designada remete, dir-se-ia que inesperadamente, para uma raiz grega (macro-grande,

bios-vida). A explicação passa, decerto, pelo facto de o termo macrobios ter sido

introduzido por Heródoto (484?-425 A.C) na sua História para fazer referência aos

etíopes e à sua suposta longevidade. Também Hipócrates (460?-377? A.C) terá utilizado

este termo para se referir a uma vida longa em Dos Ares, Águas e Lugares (cf.Collins et

al, 2001). Aristóteles (384-322 A.C) e Galeno (129-199?) usariam o vocábulo no mesmo

sentido (cf. Wenker, 2008).O termo - macrobiótica - terá sido introduzido e divulgado no

Ocidente por Christoph Von Hufeland (1762-1836), primeiro médico de Frederico

Guilherme III, rei da Prússia, de Goethe e Schiller, que em 1797 escreveria a obra A

macrobiótica ou a arte de prolongar a vida humana40

. Mais tarde, Georges Ohsawa

adoptaria este termo para identificar a sua proposta de orientação no mundo.

Von Hufeland acreditava que ainda que o termo da vida pudesse ter um limite

natural, de acordo com as espécies, era possível agir de modo a preservar e prolongar a

vida. A macrobiótica seria, justamente, um programa geral a partir do qual se poderia agir

de forma a estender os anos de vida. Não se dirigia exclusivamente à alimentação, mas

antes a um conjunto de factores (clima, localização geográfica, constituição física,

alimentação, profissão, etc.) que deveriam ser tomados em consideração para se alcançar

uma maior longevidade. Alguns desses factores não podiam ser controlados pela acção

humana, mas o seu conhecimento foi visto como permitindo uma conduta mais avisada

para se alcançar uma idade avançada. Por esta perspectiva se pode constatar, desde já,

que logo nestas formulações sobre o que se entendia ser a macrobiótica, se evidenciava

40 Esta obra surgiu em diferentes edições francesas com título distinto. Foram consultadas duas edições:

Von Hufeland, Christoph. 1833 [1797] L’Art de Prolonger la Vie de l’ Homme. Paris: J. B. Baillière.

Tradução da 2ª edição alemã por Antoine Jourdan. Versão disponível no Google Books:

http://books.google.com/books/about/L_art_de_prolonger_la_vie_humaine.html?id=IKMUAAAAQAAJ

[Acedido em 4-10-11] e Von Hufeland, Christoph. 1871[1797]. L’Art de Prolonger la Vie par la

Macrobiotique. Paris: J. B. Baillière et Fils. Edição revista e acrescentada por Jacques Pellagot.

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«À Mesa com o Universo»

102

um programa de vida que extravasava a esfera estritamente alimentar e que não se dirigia

exclusivamente ao corpo físico. Mais do que um simples conjunto de regras dietéticas, a

proposta de Von Hufeland continha preocupações de ordem moral. Entendia o médico de

Goethe que a saúde física se encontrava intimamente ligada à saúde moral, acreditando

na superior missão moral dos homens. A sua proposta buscava, pois, ser bastante mais

que uma mera orientação de ordem dietética. A macrobiótica surgia como conjunto de

orientações práticas que visava manter e aumentar algo através do qual espírito e corpo se

expressavam, a força vital41

.

Para Von Hufeland a duração da vida dependia sobretudo da dotação em termos

de força vital, da qualidade dos órgãos e do modo como a força vital era despendida e

restaurada. Se o objectivo da medicina era a saúde, o da macrobiótica era preservar e

aumentar a força vital, de forma a alcançar uma maior longevidade. Neste âmbito, a

medicina deveria ser apenas um meio auxiliar da macrobiótica e não um recurso de uso

banal. Pela importância colocada nos cuidados com a preservação da força vital e com a

manutenção de um corpo saudável, Von Hufeland foi identificado como um dos

precursores da medicina preventiva. No que respeitava a duração da vida, reconhecia que

o desejo de a prolongar constituía uma preocupação de todos os tempos, mas que faltava

a esta arte uma sistematização que lhe permitisse eficácia. A escrita do livro A

macrobiótica ou a arte de prolongar a vida humana, em parte inspirada na obra de

Francis Bacon (1561-1626), Historia Vitae et Mortis, visava justamente suprimir essa

lacuna42

.

Interessa no contexto deste trabalho destacar de forma um pouco mais detalhada

alguns aspectos que são considerados relevantes por Von Hufeland como forma de

proporcionar uma maior longevidade, dada a proximidade que encontramos entre a sua

obra e a macrobiótica moderna de Ohsawa. Como foi já referido, o clima constituía um

importante factor a ter em conta, ideia que se conserva também na macrobiótica moderna,

41 Conceito que Von Hufeland identifica como “verdadeiro sopro da divindade”, como força existente nos

organismos vivos que tudo conserva e renova, que tanto existe de forma latente como livre. Quatro agentes

vitais: luz, calor, ar (oxigénio) e água constituíam o seu principal alimento. Manifesta-se de forma diversa

de acordo com os diferentes órgãos do corpo humano, podendo expressar-se nos nervos como sensibilidade ou nos músculos como irritabilidade. A força vital não seria igual em todos os indivíduos e certas

condições externas poderiam fazê-la aumentar ou diminuir. O trabalho rápido levaria a um maior dispêndio

da força vital e teria como contrapartida a diminuição do tempo de vida (Von Hufeland,1833: 26 e segs).

Este conceito, que viria a ser abandonado pela medicina, é reencontrável na macrobiótica moderna, sendo

por vezes identificado com o ki (Chi), sopro vital dos orientais. 42Historia Vitae et Mortis, segundo título da Phaenomena universi sive Historia naturalis et experimentalis

ad condendam philosophiam, terceira parte da Instauratio Maga (1620), obra onde Bacon defende o

império do homem sobre a natureza e sobre as coisas. A procura da longevidade pode aí ser vista como

inserindo-se num projecto onde o domínio e controle da vida constituem expressão da realização humana.

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

103

segundo a qual as orientações alimentares devem variar de acordo com o clima e a

estação do ano. Considerava Von Hufeland que contextos mais amenos, onde não

houvesse uma grande variação de temperaturas, eram mais favoráveis à longevidade do

que aqueles onde se observassem temperaturas extremas. A adaptação do corpo a

variações sensíveis de temperaturas provocaria um desgaste da força vital. Por essa razão,

ainda que considerasse a montanha como lugar favorável a uma maior longevidade, dada

a pureza dos ares, acreditava que os suíços não seriam dos mais longevos dadas as

oscilações térmicas a que eram expostos. Por outro lado, defendia que a vida nas

pequenas cidades ou no campo era também mais saudável do que nas grandes cidades. A

agitação da vida nas grandes cidades, o excesso de população, a fraca qualidade dos ares,

não contribuíam para aumentar a longevidade.

Este tipo de considerações não é original, já Hipócrates revelava preocupação com

os lugares, os ares, as águas e o clima, considerando-os relevantes para a saúde. Aspectos

da obra de Von Hufeland parecem assim constituir uma ressonância de trabalhos

anteriores, o mesmo se passando com a obra de Ohsawa. A crítica deste último à

civilização de matriz tecnológica e científica encontra algum paralelismo com a

inquietação que a vida nas grandes cidades causava em Von Hufeland. A sensação

produzida é a de trabalharmos sobre um palimpsesto narrativo, onde, cada nova história

conserva partes do texto antigo. A romantização da natureza, o “viver de acordo com as

leis da natureza”, a vida simples, frugal, moderada em tudo, constituem apanágio do

modo de vida preconizado tanto por Von Hufeland como por Ohsawa.

Para Von Hufeland, não eram os filtros mágicos nem os sortilégios que permitiam

prolongar a vida, nem tão-pouco as purgações e sangrias, comuns na época, mas antes

factores como os referidos, a que se juntava a alimentação, o vestuário, a constituição

física, actividade desenvolvida e ainda atitude. Não eram os que consumiam carne e

bebidas alcoólicas em excesso que chegavam a uma idade mais avançada, mas antes os

que se alimentavam sobretudo à base de vegetais, frutos e leite (quanto a estes dois

últimos alimentos a macrobiótica moderna seria bem mais restritiva). O uso de alimentos

de origem vegetal de acordo com a estação do ano fazia igualmente parte das suas

recomendações (orientação que também encontramos na macrobiótica moderna). Para

além das recomendações de carácter prático, convém salientar que Von Hufeland

reconhecia igualmente a importância da hereditariedade, um “stamen vitae particular”,

que estaria na origem de uma maior longevidade. Entre as predisposições principais para

uma longa vida contava: um bom estômago e aparelho digestivo, bons dentes, caixa

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«À Mesa com o Universo»

104

torácica bem desenvolvida e bons órgãos respiratórios, coração pouco susceptível,

capacidade de auto restabelecimento, força vital suficiente e bem repartida pelos

diferentes órgãos, bom temperamento, constituição regular e sem disformidades, nenhum

órgão claramente fraco e constituição perfeita do aparelho reprodutor (Von Hufeland,

1833: 157 e segs), aspectos que serão igualmente importantes na macrobiótica moderna.

Será o termo da vida algo fixado à partida ou pode ser modificado pela acção

humana? Velha questão. Pomo de discórdia entre filósofos, teólogos e cientistas.

Conhece novos modos de formulação, de acordo com os contextos em que é produzida,

sem que o enigma seja desfeito. Se no passado as acções para prolongar a vida foram

consideradas uma heresia, um desafio a Deus que tudo decide, essas acções foram

também consideradas uma forma de afirmação humana. A questão da duração da vida e

de como prolongá-la surge também na macrobiótica moderna. Um dos livros mais

influentes escritos sobre a macrobiótica surgiria, precisamente, com o título Macrobiótica

Zen, Arte da Longevidade e do Rejuvenescimento (Ohsawa,1976 [1960]). À ideia de uma

vida longa, sugerida de forma mais imediata pelo termo macrobiótica, alguns dos

seguidores desta proposta contrapõem a ideia de uma “grande vida”, isto é, uma vida que

não é necessariamente longa mas que é vivida com qualidade. Estas interpretações para o

termo não significam, no entanto, que a preocupação com a longevidade e com a

manutenção de um corpo harmonioso e saudável não se encontrem nos textos sobre a

macrobiótica. Os textos de Ohsawa revelam preocupações desta natureza. A aura mística

que envolve a macrobiótica, a sua via alquímica, com experiências e dissertações sobre a

transmutação da matéria (como a experiência empreendida por Ohsawa para transformar

sódio em potássio), procura, justamente, um conhecimento mais profundo sobre os

mistérios da vida. Um certo fascínio pelo oculto e pela espiritualidade caracterizam a sua

obra.

Fiz referência até aqui, sobretudo, à obra de Von Hufeland, dado que foi ele que

deu à designação macrobiótica os contornos de uma proposta de orientação no mundo.

Esta proposta, como vimos também, parece ter constituído fonte de inspiração para

Ohsawa, tendo este adoptado o termo que havia sido divulgado por Von Hufeland43

.

Convém aqui referir, contudo, ainda que de forma breve, que o trabalho de Von Hufeland

se insere numa vasta tradição literária do Ocidente, que viu a alimentação como dimensão

43 Não é certo, todavia, que Ohsawa tenha lido o livro de Von Hufeland. A informação recolhida refere que

Ohsawa terá conhecido um descendente de Von Hufeland. Herman Aihara, discípulo de Ohsawa que com

ele privou, não o apresenta como um conhecedor da obra de Von Hufeland. Ver Aihara, Herman «The

History of Macrobiotics» in Eden Organic.

Disponível em: http://www.edenfoods.com/articles/view.php?articles_id=66 [Acedido em 10-10-11].

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

105

fundamental para nutrir corpo e espírito e assegurar uma vida longa. Uma das primeiras

referências à abstenção de carne como via para desenvolver o espírito, vem-nos de

Pitágoras (580?-495? A.C) que, presumivelmente, sob influência da tradição religiosa e

filosófica indiana, adoptaria na sua escola um regime vegetariano. Se aspectos como a

pureza e contaminação associados ao consumo de carne eram os que mais caracterizavam

a tradição filosófica indiana, em Pitágoras as concepções ligadas à transmigração das

almas constituíam motivo para que se defendesse a abstenção do consumo de animais. O

regime alimentar com ausência de consumo de carne ficaria conhecido durante muito

tempo como dieta pitagórica. Também Hipócrates tomou a alimentação como parte

fundamental do processo de cura. Muitos outros se lhe seguiriam. No século XIX o

número de publicações sobre o vegetarianismo aumentaria enormemente. Em Portugal,

de acordo com as declarações de alguns dos indivíduos entrevistados, a macrobiótica

seria impulsionada precisamente a partir do movimento vegetariano. É pois provável que

noutros países a adesão à macrobiótica tivesse igualmente sido efectuada sobretudo por

indivíduos que já seguiam regimes alimentares mais restritivos. Nesta medida, e tendo

também em consideração o trabalho de Von Hufeland, a macrobiótica de Ohsawa

encontra já um contexto particular de acolhimento. Convém até salientar que, mais do

que contexto de acolhimento, encontra referências e fundamentos com os quais encontra

uma particular afinidade44

.

Apesar dos contributos de Von Hufeland e dos paralelismos que possamos

encontrar, a ampla difusão da macrobiótica dar-se-á, como já se foi deixando entender,

com Georges Ohsawa. De acordo com Herman Aihara (um dos discípulos e biógrafos de

Ohsawa), Ohsawa terá conhecido na Alemanha, em 1958, um descendente de Von

Hufeland e terá usado pela primeira vez o termo macrobiótica na sua tradução para

japonês do livro O Homem, esse Desconhecido, de Alexis Carrel. O termo começaria a

ser usado com toda a propriedade em 1960 no livro Macrobótica Zen45

. Os princípios

44 De acordo com Wenker (2008), entre os textos e autores que fizeram menção à importância da

alimentação numa vida longa, podem ser referidos os Diálogos de Platão (428/27-348/347 A.C); o Corpus

Hermeticum (100-300 D.C.) atribuído a Hermes Trismegistus; as Enéadas de Plotino (205-270); De

Triplici Vita (De Vita Sana; De Vita Longa; De Vita Coelitus Comparanda) de Marsilio Ficino (1433-1499) e o Tratado da vida sóbria de Alvise Cornaro (1484-1566). Renascentistas como Giovanni Pico della

Mirandola (1463 –1494), Paracelso (1493-1541), Marco Fabio Calvo (1440-1527), Leonardo da Vinci

(1459-1519) são também considerados como tendo tido preocupações específicas com a dieta alimentar.

Nos séculos XVIII e XIX assiste-se a um aumento significativo de publicações defensoras da abstinência

de carne. Georges Cheyne (1671-1743); Joseph Ritson (1752 –1803); Johnny Appleseed (1774 – 1845);

Percy Bysshe Shelley (1792-1822); Amos Bronson Alcott (1799 - 1888); Gustav Struve (1805 – 1870);

Sylvester Graham (1794-1851) são alguns dos defensores do vegetarianismo.

6 Ver Aihara, Herman «The History of Macrobiotics» in Eden Organic.Disponível em:

http://www.edenfoods.com/articles/view.php?articles_id=66 [Acedido em 10-10-11].

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«À Mesa com o Universo»

106

filosóficos associados à macrobiótica podem, contudo, ser encontrados em obras

anteriores, como no Principe Unique de la Philosophie et de la Science d’Extrême-Orient

(Principe Unique), de 1931, surgindo aí, de resto, o termo macrobiótica, ainda que sem a

importância, enquanto categoria identificadora, que posteriormente viria a ter

(cf.Ohsawa,1973: 102).

Pensa-se que Ohsawa terá adoptado o termo macrobiótica a partir de Von

Hufeland, mas os ‘segredos’ da macrobiótica tê-los-á começado a aprender a partir de

Saguen Ishizuka (1850-1910), médico do exército japonês que se teria curado de uma

doença renal grave através da adopção deste tipo de alimentação. Ishizuka publicaria em

1890 o livro Teoria da dieta para prolongar a vida e, em 1900, o Tratamento da dieta

pela teoria de Ishizuka. Julgo ser importante determo-nos neste momento no percurso de

Ohsawa, habitualmente considerado o fundador da macrobiótica moderna. Compreender-

se-á melhor o fundo ideológico que orienta a construção deste sistema filosófico de

orientação no mundo e compreender-se-á também melhor em que medida as questões

ideológicas orientam o acto de comer46

.

3. 2 Ohsawa, Fundador da Moderna Macrobiótica

Georges Ohsawa nasceu nos subúrbios de Quioto, a 18 de Outubro de 1893,

tendo-lhe sido dado o nome de Sakurazawa Jyõichi, nome que viria a trocar em 1949 por

um outro mais ocidentalizado, como se na carga simbólica associada à invenção de um

nome se expressasse um desejo de aproximação e maior facilidade de penetração no

Ocidente47

. Viria a falecer em Tóquio, no dia 23 de Abril de 1966. Ao longo da sua vida

viajou pelo mundo, tendo vivido em países como o Japão, Índia e França. Kotzsch (1981,

46 Kotzsh (1981; 1985; 1988) desenvolveu um estudo aprofundado da vida e pensamento de Ohsawa. É

também possível encontrar informação relevante nos seguintes endereços electrónicos:

Shurtleff, William; Aoyagi Akiko. 2004. George Ohsawa, The Macrobiotic Movement. A Special Exhibit -

The History of Soy Pioneers Around the World - Unpublished Manuscript. Soyinfo Center, Lafayette,

California. Disponível em:

http://www.soyinfocenter.com/HSS/george_ohsawa_macrobiotics_soyfoods1.php [Acedido em 10-10-11]. ZenMacrobiotics.«A tribute to George Ohsawa».

Disponível em: http://www.zenmacrobiotics.com/ [Acedido em 10-10-11].

Aihara, Herman «The History of Macrobiotics» in Macrobiotic Guide.

Disponível em: http://macrobiotics.co.uk/history.htm [Acedido em 10-10-11].

Varatojo, Francisco «História da Macrobiótica»in Instituto Macrobiótico de Portugal

Disponível em: http://www.e-macrobiotica.com/artigos_e_multimedia/artigos/diversos/ [Acedido em 21-

11-11]. 47 Kotzsch (1985,37) refere o nome de nascimento de Ohsawa como sendo Yukikazu Sakurazawa. Outra

grafia encontrada foi Sakurazawa Nyoiti.

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

107

1985, 1988), um dos estudiosos de Ohsawa, reconhece-lhe várias profissões: na área

comercial, na marinha mercante, como escritor, professor, médico, activista político,

reformador social, alquimista e pensador religioso.

De acordo com Kotzsch, os pais de Ohsawa vinham de famílias de samurais,

sendo possível identificar os seus ancestrais nos anais históricos da região em que

viveram. As reformas da primeira fase do período Meiji (1868-1912), que conduziram a

uma modernização do Japão, ao terminarem com o sistema feudal e restaurarem o

império, fizeram com que esta elite ficasse desapossada e conhecesse a pobreza. Ohsawa

seria educado de forma tradicional, ainda que sem o estatuto dos seus antepassados. A

situação de pobreza conduziria a família da zona rural para a cidade para procurar

emprego. No seu primeiro ano de vida, Ohsawa terá estado à beira da morte. Duas das

suas irmãs morreram na infância. Infelizes coincidências, que, em parte, atribuiu ao facto

de a mãe seguir algumas das ideias ocidentais relativamente à alimentação, e de dar aos

filhos, diariamente, ovos, leite e pão. O pai saiu de casa para viver com outra mulher

quando Ohsawa fez 6 anos, o que contribuiu para que os rendimentos familiares não

permitissem à família sair da situação de pobreza. Anos mais tarde, quando Ohsawa tinha

12 anos, a sua mãe contraiu tuberculose pulmonar, doença de que viria a falecer. Nessa

altura, Ohsawa terá ido viver com o pai e a madrasta, mas durante pouco tempo,

acabando por se tornar discípulo num templo budista. Mais tarde seria acolhido pela

família de um colega de escola que se dedicava ao comércio de chá. Ohsawa é tratado

como se fosse da família e faz estudos comerciais, vindo mais tarde a trabalhar nesta área,

primeiro como caixeiro, depois como gerente. Este percurso de vida, marcado por

frequentes dificuldades económicas tê-lo-á impedido de continuar a estudar (cf. Kotzsch,

1981).

No final da adolescência, viu morrer o irmão, vítima de tuberculose. Algum tempo

depois, já com 18 anos, ele próprio é diagnosticado com tuberculose intestinal, sendo-lhe

dadas poucas esperanças de sobreviver. Terá sido nessa altura que Ohsawa,

afortunadamente, de acordo com os registos biográficos, encontrou numa biblioteca um

livro de Ishitsuka com a dieta shoku-yō (shokuyo-kai, shoku-yō-kai). Tentou um regime

com arroz integral, vegetais cozinhados, óleo e sal, tendo os sintomas de tuberculose

desaparecido rapidamente. Este sucesso terá levado Ohsawa a continuar com a dieta

shoku-yō, dieta associada ao movimento shoku-yō, fundado por Ishitzuka, e que era

largamente inspirada nas recomendações de Ekken Kaibara (1630-1716), como à frente

veremos. De acordo com Nishibata Manabu (presidente do movimento quando Ohsawa

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«À Mesa com o Universo»

108

se tornou membro), shoku designava o alimento - qualquer tipo de alimento, devendo-se

aí incluir não só a comida mas também a luz, a atmosfera e os factores culturais – e yō

significava a via através da qual se procurava a saúde e a felicidade (cf. Kotzsch,

1981:89).

Ohsawa viria a identificar-se com o movimento shoku-yō, a integrá-lo e dirigi-lo.

A macrobiótica por si inventada traduziria alguns dos aspectos fundamentais deste

movimento, sendo o termo macrobiótica, em larga medida, uma designação

ocidentalizada para essa prática radicada no Japão que é o shoku-yō. A substituição deste

último termo pelo vocábulo macrobiótica, bem como a substituição do nome pessoal

Sakurazawa Jyõichi para Georges (George) Ohsawa, ou ainda a ocidentalização do

primeiro nome de alguns dos seus discípulos japoneses, como Cornellia (Cornellia

Yokota), e Herman (Herman Aihara) levam a pensar, aliás, num objectivo comum

associado a essas substituições, justamente o de tornar uma proposta de orientação no

mundo com profundas raízes orientais mais familiar ao Ocidente.48

3.3 Da Macrobiótica ao Movimento Shoku-yō: Percursos e Precursores

O movimento shoku-yō foi fundado por Ishitsuka em 1908 e procurava, em larga

medida, recuperar algumas das práticas e valores que caracterizavam o Japão tradicional.

Contava, entre os seus membros, com indivíduos oriundos da nobreza, das elites militares

e das facções mais conservadoras dos negócios e da política, facto que viria a

proporcionar a Ohsawa o contacto com elementos influentes na sociedade japonesa.

Muitos desses indivíduos apoiavam ideias nacionalistas e de preservação da “essência

nacional”, expressa em movimentos como o Nippon-shugi, considerando, assim, que um

dos aspectos fundamentais de preservação da identidade nacional era seguir a

“alimentação tradicional japonesa” (Kotzsch, 1988: 43).

De acordo com Kotzsch (1981), à política de fechamento que havia caracterizado

o país no período anterior à restauração Meiji (entre 1638 e 1868), seguiu-se uma política

8 A este propósito, Kotzsch refere situações mais prosaicas, como a de Tomoko Yokoyama que adoptaria o

nome de Aveline para adquirir um título de passagem do Japão para os EUA (Kotzsch, 1988: 164). Após o

casamento com Michio Kushi, passaria a ser conhecida por Aveline Kushi. Sobre a substituição dos nomes

pessoais ver: Shurtleff, William; Aoyagi Akiko. 2004. George Ohsawa, The Macrobiotic Movement. A

Special Exhibit - The History of Soy Pioneers Around the World - Unpublished Manuscript.Soyinfo Center,

Lafayette, California e Kotzsch (1988).

Disponível em: http://www.soyinfocenter.com/HSS/george_ohsawa_macrobiotics_soyfoods1.php [Acedido

em 10-10-11].

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

109

de abertura e ocidentalização que viria a abalar alguns dos sistemas sociais vigentes,

designadamente o sistema terapêutico e o sistema alimentar. É nesse contexto que, a

partir de 1883, o governo passa a proibir a prática de técnicas terapêuticas tradicionais e

estabelece a medicina de bases científicas como modo oficial de tratamento. Na

sequência deste acto, o uso de ervas medicinais, os técnicos de acupunctura, moxabustão

e massagens, passam a ser considerados como baseados em superstições e como não

tendo fundamentos científicos, sendo, com este tipo de justificações, ilegalizadas as suas

práticas. O desaparecimento destas técnicas não terá sido imediato, mas passaram a ter

uma existência subterrânea, da qual só reemergiriam mais tarde.

De acordo com Kotzsch (1981), também no campo da alimentação e da nutrição

terá ocorrido um fenómeno de ocidentalização que viria a desestruturar algumas das

práticas tradicionais. Desta forma, a moderna ciência da nutrição, que se começara a

desenvolver na Europa do século XIX, com o trabalho de químicos como o do alemão

Justus Von Liebig, viria a ter grande peso também no Japão. O governo japonês, desejoso

de aumentar a saúde e vitalidade do povo (e, provavelmente, deslumbrado com a

supremacia tecnológica do Ocidente), terá difundido algumas das concepções ocidentais

sobre alimentação, designadamente as relativas à importância do consumo de carne e de

leite para assegurar um desenvolvimento físico e mental apropriado. A crença de que o

consumo destes alimentos se encontrava associada a uma estatura mais elevada e,

portanto, a uma superioridade física, terá constituído motivo para o incentivo no consumo

destes alimentos.

Nas casas urbanas mais sofisticadas o leite e as tostas terão começado a aparecer

com regularidade, substituindo as bolas de arroz, a sopa de vegetais e o chá. O açúcar

branco terá também aumentado a sua presença nos pratos confeccionados, constituindo o

seu consumo um barómetro de cultura e refinamento. De uma alimentação muito assente

em componentes como o arroz, os feijões de soja (a partir dos quais se fazia miso, tofu e

molho de soja), outras variedades de feijão, algas, peixe fresco e seco, vegetais e frutos

locais, ter-se-ia passado para uma outra onde era incentivado, e visto como condição de

progresso, o consumo de carne, açúcar, leite, manteiga e queijo (produtos cujo consumo

no passado, sobretudo o de produtos lácteos, era pouco comum). Refere Kotzsch

(1981:37), numa aproximação a considerações que por diversas vezes ouvi em sessões de

esclarecimento sobre a macrobiótica, que os japoneses pré-modernos acreditavam que o

consumo de leite faria com que os humanos adquirissem algumas das características das

vacas. É de referir, neste contexto, que nas sessões de macrobiótica uma das razões dadas

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«À Mesa com o Universo»

110

para o não consumo de leite prendia-se com o facto de ser considerado um consumo

antinatural (algo próprio dos bezerros e jovens crias), um adulto não só não necessitaria

de consumir leite, como tal consumo revelaria uma “certa imaturidade”.

Face às inovações introduzidas, que colocavam os japoneses entre dois mundos,

um agrícola, de uma ruralidade com vestígios do feudalismo, e outro moderno,

industrializado, urbano e ocidentalizado, a tensão teria levado a um abandono de certas

práticas que importava recuperar e estimular. O movimento shoku-yō surgiu, justamente,

no quadro da recuperação e estímulo da divulgação de certas práticas “tradicionais”,

como as relacionadas com a alimentação e outros cuidados terapêuticos menos

institucionalizados. Ishitsuka, que desde criança sofria de uma crónica infecção de rins,

que se traduzia numa inflamação de pele, sentia que através da medicina

institucionalizada não alcançaria a cura, o que ajuda a compreender o seu empenho na

criação desse movimento e na promoção de uma forma diversa de abordar os problemas

de saúde. Efectivamente, seria através daquilo que kotzsch (1981) designa como

“medicina tradicional oriental” que Ishitsuka viria a resolver os seus problemas de saúde.

Para que melhor se compreenda a acepção deste tipo de “medicina” (a macrobiótica

funda-se nela) vale a pena determo-nos no percurso de Ishitsuka e nas fontes que ele

considerou relevantes para dar conteúdo àquela prática terapêutica.

De forma resumida, pode dizer-se que Ishitsuka provinha de uma família de

samurais e que, tal como Ohsawa, tinha tido uma infância marcada pela pobreza e pela

disciplina. Terá terminado a sua escolaridade formal aos 18 anos e começado a trabalhar

num hospital, iniciando a partir daí uma formação autodidacta. De acordo com Kotzsch

(1981), os seus estudos e a prática no hospital terão permitido que adquirisse o grau e

estatuto de médico. Aos 28 anos assumiria o cargo de médico militar e, nove anos depois,

a liderança da farmácia do exército, posto que terá mantido até 1895. Porém, insatisfeito

com as respostas que a medicina de base científica dava aos seus problemas de saúde,

decide empreender uma pesquisa pelas práticas e textos “tradicionais”.

A sua investigação leva-o a obras como o Nei Jing de Huang Di, também

conhecido como Clássico de Medicina do Imperador Amarelo (aproximadamente 500

anos A.C.), obra que constitui uma compilação da sabedoria médica chinesa da época. Aí

são tratados assuntos como a anatomia humana, tipos e causas de doenças, métodos de

diagnóstico - pelo pulso, cor facial e voz – e de métodos de tratamento (alimentação,

acupunctura, massagens e ervas medicinais). A saúde é apresentada como derivando de

um modo de vida em harmonia com a natureza e a alimentação surge como meio eficaz

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

111

no tratamento de doenças. A importância do consumo de cereais, que será tão importante

na narrativa macrobiótica, está bem assinalada nessa obra. É ainda estabelecida a

associação entre os cinco sabores (doce, amargo, salgado, picante e ácido) e os órgãos do

corpo humano, sendo que um consumo excessivo de algum destes sabores ou a sua falta

podiam estar relacionados com distúrbios nos órgãos correspondentes.

Uma outra influência significativa em Ishitsuka e no movimento shoku-yō foi

Mizuno Nanboku (1760?-1834?), um dos clássicos japoneses do estudo da fisionomia.

Kotzsch (1981) diz-nos que a sua longa experiência de observação de pessoas se terá

iniciado com o trabalho numa barbearia, depois com o trabalho numa casa de banhos e,

por fim, num crematório, onde terá tido oportunidade de observar mortos e estabelecer

relações entre as suas características e as causas de morte. Na obra Nanboku Sõhõ (obra

em 10 volumes, publicados entre 1788 e 1805), Mizuno Nanboku expõe a sua

metodologia de observação de pessoas e as suas considerações quanto aos traços

fisionómicos. Acreditava que o carácter das pessoas, bem como o seu passado e o seu

futuro, podiam ser detectados através de uma observação atenta das características físicas.

Acreditava também que as pessoas podiam aumentar a sua longevidade através da

alimentação. O trabalho de Mizuno Nanboku viria a influenciar a prática do diagnóstico

visual na macrobiótica (técnica comummente utilizada para avaliar a condição

física/emocional dos indivíduos)49

.

O filósofo e escritor Ekken Kaibara (1630-1714), que popularizou o pensamento e

ética de Confúcio, terá sido outra influência importante para Ishitsuka. Kotzsch

apresenta-o como o avô da macrobiótica (1985:15). Um dos seus livros é um manual de

higiene e de cuidados de saúde inspirado no Nei Ching. Também para ele a vida em

“harmonia” com a natureza, a comida e a bebida eram os principais aspectos que

afectavam a saúde. O consumo de cereais, particularmente de arroz, devia prevalecer

sobre qualquer outro alimento. De acordo com Kotzsch (1981:44-45), a essência da

técnica de saúde proposta por Kaibara não era o ascetismo mas o autocontrole e a

moderação; na comida, na bebida, na actividade sexual, no sono e até na conversação.

Recomendava que apenas se comesse quando se tivesse fome e só até 80% a 90% da

capacidade do estômago. Dever-se-ia ainda evitar comer antes de dormir e ter exercício

moderado após as refeições (recomendações que reencontramos na macrobiótica e que

são igualmente recorrentes noutros registos de orientação alimentar). A chave para a

49A obra Food Governs your Destiny: The Teachings of Namboku Mizuno (Kushi et al.,1991), procura

justamente divulgar o trabalho de Mizuno Namboku enquanto fisionomista e realçar a importância do

diagnóstico visual.

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«À Mesa com o Universo»

112

saúde e para uma vida longa seria o controlo dos desejos e o evitamento das sete emoções

extremas (alegria exultante, raiva, preocupação, pensamentos obsessivos, medo, loucura e

surpresa). Daqui resultaria um resguardar da vitalidade. Como vemos, é possível

encontrar aproximações entre estas recomendações e as que atrás foram referidas

relativamente a Von Hufeland, assim se sugerindo um significativo paralelismo entre

concepções defendidas no Ocidente e no Oriente50

.

Destes diferentes contributos (Nei Jing, Mizuno Nanboku e Ekken Kaibara),

Ishitsuka registou a importância a atribuir à alimentação, quer como fonte de doenças

quer como fonte de cura. Registou ainda a importância dos cereais e de um modo de vida

em conformidade com as leis da natureza. Foi com esta base que partiu para a pesquisa

em áreas como a Nutrição, Antropologia, Química e História. No exército, Itshisuka terá

observado soldados de diferentes partes do Japão e prisioneiros chineses, fazendo um

registo sistemático dos seus tipos físicos e do tipo de alimentação ingerida em cada

região. Terá ainda usado dados antropológicos em segunda mão, procurando informar-se

sobre os hábitos alimentares dos esquimós, dos chineses do norte da China e dos nativos

de Kamchatka (cf. Kotzsch,1981:46). Serão esses dados que o levarão à definição de um

conjunto de recomendações que entendia permitirem assegurar uma boa saúde. A

constatação de que os monges budistas evitavam o consumo de carne por julgarem que

este alimento não permitia um pleno desenvolvimento espiritual ou que o consumo de

arroz integral tostado, e depois vaporizado, teria sido o principal alimento do povo chinês

no período Han, terão também tido o seu peso na avaliação que fez relativamente a

questões alimentares.

As suas pesquisas na área da Química levam-no a considerar os minerais

fornecidos pela alimentação como o elemento chave para assegurar a longevidade. É esta

constatação que o conduz a uma teoria da fisiologia humana fundada na relação entre

sódio (Na) e potássio (K). Na sua óptica, uma vida longa resultaria de uma relação

adequada entre estes dois elementos (Na-3: K-7), desta relação dependeria a capacidade

do organismo para absorver outros minerais. De acordo com Ishitsuka, esta proporção

entre Na e K encontrava-se sobretudo nos cereais, razão por que estes deviam constituir a

50 No contexto deste trabalho não é possível explorar a hipótese de a medicina tradicional chinesa ter

influenciado a medicina praticada no ocidente. Joseph Needham, sinólogo, autor de Science and

Civilisation in China, defende que a medicina tradicional chinesa faz parte, ainda que de forma

embrionária, do processo civilizacional do Ocidente e que há uma série de coincidências entre esta e o

corpus hippocraticum, designadamente na concepção dualista, na dinâmica dos cinco elementos, na relação

microcosmo – macrocosmos e na interacção entre saúde e ambiente (Needham, Joseph et al. 1996 [1954-

1995]. Science and Civilisation in China.7 Vols. Cambridge.Cambridge University Press).

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

113

base da alimentação humana. A estes dever-se-ia ainda juntar vegetais, feijões, algas,

frutos e pequenas quantidades de alimentos de origem animal, sendo que tanto os frutos

como os vegetais deveriam ser da época. A geografia e o clima, bem como a actividade

física, eram importantes, mas não tanto como a alimentação. As doenças surgiriam de um

desequilíbrio entre sódio e potássio, causado sobretudo por uma dieta inadequada. As

batatas e os lacticínios, pelo seu suposto desequilíbrio entre estes elementos, são

considerados por Ishitzuka como predispondo para a varíola (cf. Kotzsch, 1981:52). Em

1897 seria publicada a sua principal obra - Kagakuteki Shoku-yõ Chõjuron (Teoria

química e nutricional da vida longa), onde procuraria apresentar uma disciplina de

alimentação prática baseada em leis científicas. São as orientações aí apresentadas que

constituirão os alicerces da macrobiótica de Georges Ohsawa.

Para Ishitsuka o efeito da comida era tão poderoso e subtil, que os diferentes tipos

de grão produziam diferentes tipos de desenvolvimento espiritual. As características

físicas, emocionais, psicológicas e espirituais eram por ele entendidas como sendo

determinadas em primeiro lugar pela comida. Se se ingerissem alimentos com uma

relação adequada entre Na/K ter-se-ia uma vida longa, saudável, uma mente feliz e ser-

se-ia naturalmente polido e com sentido de moral. As suas observações levaram-no a

considerar que nas zonas costeiras os habitantes tendiam a ser mais baixos e de cara mais

arredondada, enquanto os das zonas montanhosas seriam mais altos. Atribuía tal facto à

maior abundância de sódio nas zonas costeiras (no solo, no ar e na comida) e de potássio

nas zonas montanhosas (cf. Kotzsch, 1981:56). Estariam igualmente dependentes dessa

relação o peso, o grau de desenvolvimento e maturação (?), longevidade, tipo de voz e de

sonoridade, temperamento, memória, rapidez de pensamento, tipo de resposta emocional,

sentido de negócio, capacidade para guardar um segredo, tranquilidade, força de espírito

e bom coração (ibid.:57). As pessoas com predominância de potássio teriam tendência

para ser mais calmas, sensíveis e espirituais, enquanto as que se caracterizavam por uma

predominância de sódio seriam mais activas e materialistas. O desejo sexual seria nas

primeiras mais constante e perdurável, prolongando-se até uma idade mais avançada,

enquanto nas segundas seria mais esporádico, intenso e de curta duração.

*

Como vemos, é longo o rol de atribuições físicas/mentais/emocionais/espirituais,

que a comida pode proporcionar. Os alimentos são apresentados como contendo o

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«À Mesa com o Universo»

114

gérmen da própria regeneração social, deixando assim a alimentação de ter meras

repercussões em termos individuais para passar a ter uma amplitude social. Nesta leitura

do mundo se encontra alicerçada a macrobiótica actual, ainda que novos contributos

tenham sido introduzidos. A preocupação com a relação Na/K manter-se-ia em Ohsawa,

continuando actualmente a ser veiculada nas sessões de formação sobre alimentação

macrobiótica. A recomendação para que se evite a ingestão de batatas e bananas continua

a assentar no suposto desequilíbrio Na/K destes alimentos (potássio em excesso nos dois

alimentos), tendo mais recentemente sido introduzido, como factor negativo, o elevado

valor glicémico destes alimentos e as suas consequências ao nível da elevada produção de

insulina.

O movimento shoku-yō expressava mais do que o desejo de retorno a uma forma

de alimentação que se julgava mais sadia e identificada com a alimentação tradicional

japonesa, revelava preocupações com a preservação de traços culturais de um Japão que

se via cada vez mais industrializado e exposto ao Ocidente. O regresso à suposta forma

de alimentação “tradicional” era apontada por Ishitzuka como modo de o Japão responder

à crise que vivia na época. Estas características são assim indiciadoras de que este

movimento pode ser visto como movimento nacionalista. Ishitzuka considerava que a

alimentação ocidental era sobretudo baseada no desejo e avidez, visando apenas a

produção em quantidade e pouco se importando com a saúde e felicidade humanas.

Considerava que uma dieta à base de carne e batatas produzia gente de carácter fraco e

incapaz de concentrar-se, enquanto uma dieta baseada no consumo animal tenderia a

tornar as pessoas escravas de gratificações. Quanto ao açúcar, esgotaria os minerais do

corpo, sendo causador de muitas doenças. Os frutos tropicais, por seu turno, tornariam os

ossos mais fracos e as comidas pré-preparadas destruiriam a memória e a capacidade de

pensar. O arroz branco, ainda que pudesse ser visto como de mais fácil digestão, teria

falta de gorduras, proteínas e de uma relação adequada de minerais inorgânicos (cf.

Kotzsch, 1981:61). Define-se assim um conjunto de concepções, um fundo ideológico,

que virá a orientar a visão sobre a alimentação na macrobiótica.

Em 1895, Ishitsuka inicia actividade na medicina privada em Tóquio. Torna-se

conhecido como médico com poderes miraculosos de diagnóstico e de cura, capaz de

tratar com sucesso, através de prescrições alimentares, indivíduos a quem os médicos

convencionais da época já haviam retirado as esperanças. Cada paciente recebia um

diagnóstico e a indicação dos alimentos que devia consumir ou evitar (prática que pude

continuar a observar enquanto assistente em consultório de orientação alimentar

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

115

macrobiótica). Algumas das cartas que recebia no seu consultório vinham-lhe dirigidas da

seguinte forma «Dr. Daikon Radish, Tokio”, «Dr. Miso Soup» ou «Dr. Anti-

Doctor»(Kotzsch, 1981:64). O movimento iniciado por Ishitsuka não morreria consigo,

encontraria seguidores, entre eles, um jovem estudante da Escola Comercial de Quioto,

Nyoiti Sakurazawa (Georges Ohsawa), que se tornaria membro do movimento em 1916.

*

Esta genealogia tem por finalidade ajudar a melhor situar as origens da

macrobiótica moderna. Desde já é importante assinalar uma configuração histórica

particular que se desenhava desde meados do século XIX, justamente a da abertura do

Japão ao ocidente, com fenómenos como a industrialização, urbanização, modernização,

e a alteração de estruturas tradicionais. Após a vitória nas guerras sino-japonesa (1894-

95) e russo-japonesa (1904-05), e, ainda, a conquista, por parte do Japão, do estatuto de

potência política e militar, ter-se-á desenvolvido, de acordo com Kotzsch (1981), um

crescente sentimento chauvinista, um ethos nacionalista e japanocêntrico. Três anos antes

do nascimento de Ohsawa, em 1890, era publicado o Decreto Imperial sobre educação em

que se exortava a população à adopção da educação tradicional japonesa, reafirmando-se

a importância da hierarquia. A educação moral- shushin – terá passado a ter um carácter

imperativo no sistema nacional de educação. Ter-se-á procurado inculcar a ética

confucionista e instrumentalizado a religião para reforçar a ideologia de Estado e formar

cidadãos leais e obedientes, tendo-se mesmo passado a considerar o Shintoísmo como

religião nacional. Tal seria parte, ainda de acordo com Kotzsch, de um projecto para

combater o individualismo ocidental, o igualitarismo, o materialismo e a democracia.

Desde os primeiros anos era ensinado às crianças que o imperador era o descendente de

uma divindade solar e promovida uma visão da política nacional radicada em

fundamentos religiosos51

.

É visível em Ishitsuka e Ohsawa uma preocupação com a perda de valores e

referências tidos como tradicionais que parece ser corolário da ideologia educativa que se

pretendia implementar. O receio de uma descaracterização social associado ao

crescimento das cidades e à industrialização é, de resto, um fenómeno facilmente

51 Ruth Benedict (1989 [1946]), em The Chrysanthemum and the Sword veicula também a ideia da

importância do imperador entre os japoneses, centrando-se no modo como a suposta educação japonesa

(não foi realizado trabalho de terreno) justificava as suas atitudes. Abstenho-me de comentar as

circunstâncias sociais e políticas em que tal obra foi produzida, dada a sua irrelevância para o

desenvolvimento deste trabalho.

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«À Mesa com o Universo»

116

reencontrável no mesmo período noutros contextos, designadamente no português. Há, no

entanto, alguma ambiguidade na história de Ohsawa, que é reveladora de uma certa

complexidade em termos de subjectividade. Se por um lado adere ao movimento shoku-

yō (adopta a prática alimentar aos 18 anos e torna-se membro formal aos 23) e advoga a

defesa de valores tradicionais, por outro, revela um fascínio pelo Ocidente e pela sua

cultura que parecem incongruentes. A pesar neste balanço estará, por certo, o facto de a

elite intelectual do Japão da sua juventude se caracterizar por um amplo humanismo e

abertura a elementos liberais da cultura ocidental. Tanto a literatura japonesa moderna

como a ocidental seriam objecto do interesse de Ohsawa, vindo mesmo este a traduzir

para japonês Les fleurs du mal (Baudelaire) e a escrever poemas. Ohsawa é assim um

homem com um interesse profundo pela cultura ocidental mas que, em virtude de

circunstâncias históricas e pessoais, acaba por se inclinar numa fase da sua vida para uma

exaltação dos valores tradicionais japoneses. A sua admissão formal no movimento

shoku-yō coincide com uma defesa mais activa desses mesmos valores.

Após uma breve passagem por um emprego no escritório de uma empresa

comercial (1913), Ohsawa foi contratado para trabalhar num navio, transportando

material de guerra para o Reino Unido. Teve oportunidade de viajar pelo sudeste asiático,

oceano Índico, Canal do Suez, Mediterrâneo e Atlântico Norte. Em 1917 trabalharia

numa companhia de comércio de sedas em Tóquio, tendo continuado a viajar pelo

sudeste asiático, Europa e América do Norte. Durante este período casa-se e aprende

francês. Apesar de ler e traduzir textos da cultura ocidental, começa a mergulhar

profundamente em alguns dos textos clássicos orientais, lendo Confúcio e Lao Tze, bem

como textos importantes da medicina chinesa e japonesa.

De acordo com Kotzsch (1981), Ohsawa, ao tornar-se membro activo do

movimento shoku-yō, começa a cultivar uma identidade japonesa “mais nativista”, a

distribuir comida confeccionada de acordo com os princípios do movimento e a organizar

palestras e encontros. No início dos anos 20 divorcia-se da sua primeira mulher e casa

com uma mulher japonesa mais conservadora. Transforma-se num líder dentro do

movimento, escrevendo, viajando e dando palestras. Ao fim de dois anos era o supervisor

da organização e editor da revista. De acordo com Kotzsch (ibid.), os seus escritos

evidenciavam que, em 1928, se havia mudado para um posicionamento tradicionalista,

chauvinista e, às vezes, xenófobo. Para este autor são difíceis de determinar as

circunstâncias exactas desta mudança, sendo contudo apontada a desilusão face à

civilização ocidental - fruto da I Guerra mundial - e a destruição do mito do progresso do

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

117

homem ocidental, como tendo contribuído para este facto (cf. Kotzsch, 1981:76). A

turbulência económica e social dos anos 20, que terá feito com que muitos japoneses se

dispersassem por diferentes movimentos (marxistas-leninistas, artísticos, místicos, entre

outros), proporcionaria orientações e formas de expressão muito distintas. Aos princípios

hedonistas que observava e que via como decadentes, Ohsawa contraporia a ética samurai

da disciplina. É possível, ainda de acordo com Kotzsch, que Ohsawa se tenha

direccionado para a tradição e tenha radicalizado o seu discurso devido à ameaça do

socialismo e do comunismo.

Kotzsh (1981:79), considera provável que o factor mais importante no

redireccionamento de Ohsawa nos últimos anos da década de 20 tenha sido a filosofia

conservadora e nacionalista do movimento Nippon Shugi. Ainda que tenha surgido como

movimento moderno nos anos 1880, as raízes do Nippon Shugi eram mais remotas.

Pensadores como Kada Azumamaro (1669-1736), Kamo Mabuchi (1697-1769), Motoori

Norinanga (1730-1801) e Hirata Atsutane (1776-1843) contribuíram para esse

movimento, desenvolvendo ideias sobre a singularidade e superioridade dos valores

morais e espirituais dos japoneses. Um pouco ao jeito do que sucedia com os românticos

europeus, tendiam a olhar para um primeiro período da história nacional com profunda

nostalgia. O período em que foi constituída a Man'yōshū (antologia da mais antiga poesia

japonesa, compilada no século VIII) foi visto como período imaculado que antecedeu a

corrupção estrangeira, neste caso a influência chinesa.

No âmbito desse movimento, a cultura ocidental, vista como assente no

materialismo, individualismo, igualitarismo e hedonismo, foi tomada como ameaça

mortal à alma da nação japonesa e à sua sobrevivência. Houve um apelo para uma

restauração de valores, de forma a permitir que o Japão retornasse ao “caminho original”.

Uma das ideias desenvolvidas era a de que o Japão tinha um papel de liderança único na

história mundial e de que deveria ser pioneiro num novo tipo de civilização que juntasse

oriente e ocidente. Esta linha de pensamento rapidamente conduziria ao militarismo e

expansionismo, tendo alguns grupos defendido que era destino do Japão expandir-se

territorialmente para o continente asiático (cf. Kotzsch, 1981:81 e segs). Em 1885, o

Seikyo Sha (sociedade nacionalista) já se havia organizado com o fim de preservar a

“essência nacional” e de se opor às ideias ocidentais. Nas décadas seguintes outros

grupos viriam a promover a necessidade da preservação da “essência nacional”. Ohsawa

esteve distante de uma influência directa destes grupos numa primeira fase, sendo através

do movimento shoku-yō que os encontraria e se deixaria influenciar.

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«À Mesa com o Universo»

118

Como vemos, é num contexto de apelo a ideais nacionalistas, resultante de uma

configuração histórica particular, que deve ser situada a actividade de Ohsawa. O seu

interesse pelos textos clássicos orientais e pela “alimentação tradicional” pode ser vista

como reacção à ocidentalização, apesar do fascínio que a cultura ocidental causara no

jovem Ohsawa. O facto de tanto Ishitsuka como Ohsawa terem nas suas histórias de vida

situações de doença que apenas puderam curar usando procedimentos terapêuticos

tradicionais, terá sido também significativa para compreender a exaltação e defesa desses

procedimentos, inserindo-os no quadro de um conjunto de saberes tradicionais que

interessava defender. Em 1931, Ohsawa escreveria a propósito do Japão «…perdeu o

espírito oriental autêntico, sem ter sabido conquistar o verdadeiro espírito ocidental.

Reteve apenas uma salada russa americanizada, de comunismo, capitalismo, cinema e

jazz.» (1973:109) [Tradução livre]. Era pois contra essa descaracterização que importava

lutar, surgindo o movimento shoku-yō como projecto ambicioso no qual poderia ser

promovido um programa reformador da humanidade.

Um outro elemento que importa destacar, prende-se com um dos aspectos que

costumam ser assinalados relativamente ao contexto religioso japonês, justamente o seu

carácter sincrético. É um aspecto importante, na medida em que a proposta de Ohsawa,

nos contributos diversos que convoca, parece reflectir esse mesmo sincretismo. A

complexidade da vida religiosa japonesa, com a integração de diferentes formas de

religiosidade, parece ajudar a compreender a macrobiótica de Ohsawa. A introdução do

budismo no Japão, do confucionismo, do taoismo e do cristianismo no Japão, terá gerado,

de acordo com Kotzsch (1981), uma forma muito particular de apropriação destes

sistemas religiosos. De um modo geral, os japoneses não terão retido estes sistemas

religiosos na íntegra, antes tendo rejeitado certos elementos e adaptado outros, de forma a

construir algo de novo. É o próprio Ohsawa que refere a propósito dos japoneses: «En

contact avec la civilisation chinoise pour la première fois, il y a plus de quinze cents ans,

ils en reçurent tout ce qu’elle offrit: les lettres, la philosophie, le taoisme, le boudhisme,

la literature, les arts et les métiers, les costumes, etc. Ils ne refusèrent rien.» (1973:109).

Nada terão recusado, bem pelo contrário, e, ainda de acordo com Ohsawa, tudo terão

querido praticar antes de julgar.

A possibilidade de identificação com mais do que uma forma de religiosidade não

terá sido sequer problemática. Diz-nos Kotzsch (1981:10), que, muito embora o

confucionismo, o budismo e o shintoísmo possam ser considerados os pilares da nação, e

tenham tido uma efectiva relação com o estado e com a nação, alguns japoneses casam-se

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

119

numa cerimónia xintoísta e são sepultados com uma cerimónia budista. Evocando a

faculdade de síntese como característica japonesa é ainda Ohsawa quem nos refere a

existência entre os japoneses de uma cultura do espírito de síntese que permitiria unificar

domínios como a filosofia, sociologia, ciência, artes e religião… A formação da nação

nipónica seria ela mesma um exemplo de síntese sociológica (Ohsawa, 1973:110).

Uma das primeiras obras de Ohsawa, com significado para a compreensão da

macrobiótica, intitulava-se, justamente, Principe Uniquede La Philosophie et de la

Science d’Extrême-Orient (1973 [1931]). Aí procurou unificar diversos contributos das

religiões e filosofias orientais (Índia e China antigas) com a ciência, de forma a

estabelecer o Princípio Único (princípio que governaria a causalidade de todos os

fenómenos do universo e que se expressaria através da yniologia). A yniologia (análise de

acordo com os princípios yin e yang) seria a filosofia que permitiria integrar e

compreender os diferentes contributos e sabedorias52

.

De acordo com Kotzsch (1981), dois aspectos são importantes para compreender a

receptividade dos japoneses em relação a religiões estrangeiras. Em primeiro lugar, a

recusa da divisão entre sagrado e profano; em segundo, a importância atribuída à vida

prática em detrimento de outras dimensões mais conceptualizadas. Neste âmbito,

subsistiria na religiosidade japonesa um entendimento do cosmos como «continuum

ôntico» (Kotzsch, 1981), em que a natureza é expressão do divino, sem dicotomias entre

sagrado e profano, e onde o Homem é visto como parte integrante da natureza. Daqui

derivariam uma perspectiva optimista sobre a natureza humana; a continuidade entre

domínio material e espiritual; a primazia à experiência directa e ao modo de apreensão

intuitivo e afectivo e, até, a concepção segundo a qual as crenças e comportamentos

religiosos não são mutuamente exclusivos (Kotzsch, 1981: 3-4). À ideia de um sagrado

exterior ao Homem contrapor-se-ia uma visão do sagrado como algo de que o Homem

faz parte e que se encontra perante ele. A religiosidade japonesa estaria, assim, muito

mais focalizada em certas manifestações particulares do divino do que em aspectos

universais e transcendentais, conjugando de forma intensa a experiência religiosa e a

experiência estética. Pronunciando-se sobre o espírito japonês, Ohsawa diria: «A única

coisa que lhe interessava era a vida prática, é pois o pragmatismo que orienta, desde

sempre, o povo nipónico.» (1973:109) [Tradução livre].

52 Ohsawa caracteriza a yniologia do seguinte modo: «A In’yologia é a mais englobante filosofia do

Extremo Oriente. Inclui toda a ciência. Creio que ela facilita aos ocidentais a compreensão do budismo e,

por extensão, toda a filosofia do Extremo Oriente mais profunda, lugar onde a totalidade das ciências

práticas da vida, medicina, biologia, economia, sociologia, por exemplo, se encontram extraordinariamente

sintetizadas de forma harmoniosa (Ohsawa,1973:8).

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«À Mesa com o Universo»

120

Tanto o confucionismo como o taoismo nunca tiveram o estatuto de religiões

independentes no Japão - o seu estatuto enquanto religiões é de resto discutível. O

taoismo, e também o budismo, partilhavam a qualidade maternal e protectora

relativamente ao entendimento da natureza, qualidade que, de acordo com Kotzsch, ia de

encontro à consciência religiosa nativa. O confucionismo, por seu lado, terá sido

particularmente importante em termos éticos e morais, tendo-se traduzido em aspectos

pragmáticos da vida social e política. A sua orientação seria mais paternal e masculina,

baseando-se numa perspectiva hierárquica das relações humanas e na piedade filial. A

obediência e respeito pelos mais velhos constituíam valores fundamentais, bem como os

princípios éticos da subordinação, lealdade, humildade e auto-sacrifício. Taoismo e

confucionismo coincidiriam numa explicação do mundo através da teoria dos cinco

elementos, teoria que será também adoptada pela macrobiótica proposta por Ohsawa.

Esta breve explanação está ciente das suas limitações relativamente à referência à

religiosidade japonesa e ao contexto histórico em que Ohsawa começou a desenvolver o

seu trabalho. Muito mais haveria a dizer, mas tal desviar-nos-ia dos objectivos desta

pesquisa. O enquadramento a que procedo serve apenas para evidenciar o quanto a

macrobiótica de Ohsawa é orientada por fundamentos ideológicos/religiosos e que a sua

proposta deve ser analisada à luz desses fundamentos bem como tendo em conta o

contexto histórico-social específico em que se moveu. É claro que é também a trajectória

pessoal de Ohsawa que permite compreender a sua proposta de reforma da humanidade.

Trata-se de uma trajectória pessoal marcada por uma doença grave, acontecimento que

acabará por conduzi-lo a uma forma de alimentação mais identificada com a

“alimentação tradicional japonesa”, e, depois, ao interesse por textos filosóficos clássicos

do Oriente, bem como à exaltação de valores e práticas tradicionais. Também a sua

formação e a actividade profissional, associados com as viagens que teve oportunidade de

realizar, devem ser tomadas em consideração para compreender o seu interesse pelo

mundo ocidental.

*

Ohsawa, dando uma importância inequívoca à dimensão prática da sua proposta,

suporta-a com um conjunto de orientações para o dia-a-dia, além de procurar torná-la

mais compreensível para os ocidentais. A macrobiótica pode, desta forma, ser vista como

uma filosofia prática na qual a Natureza é endeusada, à semelhança do que acontecia no

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

121

taoismo, budismo e confucionismo. Ohsawa integra na sua cosmovisão uma dimensão

espiritual inequívoca, que faz a macrobiótica parecer uma quase religião. De uma forma

sarcástica, alguns dos críticos da macrobiótica ter-lhe-ão chamado “a religião do arroz

integral”. Ainda que tenha divulgado o non credo como fundamento básico, a visão do

universo que Ohsawa nos apresenta conceptualiza o homem como ser espiritual. Nas suas

palestras, exaltava, justamente, a dimensão pessoal, espiritual e religiosa do shoku-yō, ou,

do shoku-yō-dō, a via através da alimentação. Uma via que implicava “viver de acordo

com a natureza”, ficar satisfeito com comida simples e em pequenas quantidades. Estas

eram condições básicas para caminhar em direcção à espiritualidade e desenvolver a

clarividência. A comida foi vista por Ohsawa como tão determinante que defendeu que

ela precedia o espírito. Só uma alimentação adequada permitiria o desenvolvimento da

espiritualidade.53

3.4 Do Movimento Shoku-yō à Macrobiótica: Aspirações Universalistas

Convencido da universalidade dos princípios do shoku-yō e da superioridade do

que designou por “espírito japonês”, mas também atraído pela cultura europeia, Ohsawa

deixou Tóquio em 1929 para ir viver para Paris. Tinha o objectivo de divulgar o shoku-yō

e de se afirmar como escritor. Viveu em Paris com muito poucos recursos. Diz-nos

Kotzsch (1981), que vivia numa águas furtadas e que se alimentava de grãos

habitualmente vendidos como comida para pássaro e de vegetais que haviam sido

rejeitados nos mercados ou que apanhava nos parques e nos subúrbios. Terá começado

por escrever artigos sobre a cultura japonesa para vender em revistas e jornais, sem obter

grande sucesso, pelo menos numa fase inicial.

É numa atmosfera rica do ponto de vista intelectual e artístico que Ohsawa

imerge. De acordo com Kotzsch (1981), terá começado a estudar de forma aprofundada a

tradição intelectual e científica do Ocidente. Assistiu a conferências na Sorbonne e ter-se-

á tornado “estudante-investigador” no Instituto Pasteur, tendo-se aí interessado pela

espectroscopia.54

O mergulho que fez na “cultura ocidental” levou-o à confirmação de

53 “Viver em harmonia com a Natureza” é um aspecto incansavelmente repetido por Ohsawa. A poucos

princípios terá sido tão fiel, pelo menos no que é visível na produção escrita. 54 Forma de observação que utilizaria como auxiliar na classificação dos elementos químicos em termos de

yin e de yang. Os elementos que tinham um comprimento de onda em direcção ao vermelho e laranja do

fim do espectro eram relativamente yang (carbono, hidrogénio e sódio estavam nessa categoria), os que se

encontravam próximos do violeta eram mais yin, como o potássio. (cf. Ohsawa, 1973:68).

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«À Mesa com o Universo»

122

que a mente ocidental era excessivamente analítica e direccionada, não estando preparada

para compreender a abordagem holística e intuitiva dos orientais. Aparentemente, terá

sido o desejo de divulgar essa visão holística, bem como o de tornar os princípios do

shoku-yō acessíveis e atractivos para os ocidentais, que o terá levado a escrever e publicar

em 1931 o livro Principe Unique. Com este livro, Ohsawa conquistaria uma notoriedade

que até aí não almejara. Consegue melhorar a sua situação financeira e movimentar-se

por alguns dos círculos intelectuais parisienses, conhecendo figuras como Paul Valery,

André Malraux e Lévy-Bruhl55

.

O livro Principe Unique constituiu uma oportunidade de divulgar na Europa

alguns dos aspectos de sistemas religiosos e filosóficos orientais (budismo, taoismo,

shintoísmo) e, mais especificamente, permitiu a Ohsawa apresentar os pilares do seu

sistema de pensamento, o Princípio Único, ou Princípio Unificador e a teoria da

yniologia, aspectos a que, de resto, já atrás fiz referência56

. Atento às preocupações de

Lévy-Bruhl, Ohsawa procura também ele fornecer o seu quadro da “mentalidade

primitiva”, considerando que Lévy-Bruhl havia falhado nos seus intentos dada a sua

incompreensão da profunda relação entre domínio material e espiritual. Na sua óptica, a

“mentalidade primitiva” seria caracterizada por uma visão unificadora destes domínios. O

homem era perspectivado como não se encontrando apartado da natureza, mas como

parte integrante da mesma, o mesmo acontecendo em relação à dimensão metafísica. A

compreensão de todos os fenómenos deveria, assim, estar baseada numa relação de

interdependência. Para sublinhar esta relação, Ohsawa evocaria as palavras de Lao Tze:

«O homem (yo) [yang] é alimentado e governado pela Terra (In) [yin]; a Terra é

governada pelo Céu (yo) (Sol); o Céu é governado pelo Tao, e Tao pela Grande Natureza

(Taikyoku)» (Ohsawa, 1973:101) [Tradução livre]. Defendendo a inexistência de uma

separação entre o real e o ilusório, sublinharia que a nossa «consciência» cria a

«realidade» e que a nossa «realidade» depende das funções mentais (cf. Ohsawa,

1973:61).

Procurando sempre destacar a noção de unidade e de interdependência entre os

fenómenos, procuraria evidenciar de que forma religião, filosofia e ciência podiam ser

55 Ainda que numa fase mais avançada da sua vida tivesse mantido um posicionamento anti-intelectual e

anti-académico parece ter havido uma certa sedução por certos círculos intelectuais. Poder-se-á especular

que a ausência de uma formação de nível superior poderá estar na origem do desdém de Ohsawa pelos

meios intelectuais e científicos, mas o certo é que se serviu deles, e dos saberes deles emanados, para

afirmar as suas concepções. 56Alguns dos formadores na área da macrobiótica preferiram adoptar o termo «Princípio Unificador a

«Princípio Único», por o considerarem mais adequado para expressar a propriedade de síntese e para evitar

a conotação com um certo monolitismo.

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

123

interligadas através do Princípio Único. Apropriando-se de alguns termos e técnicas

científicas, como a espectroscopia, interpreta-os à luz de teorias filosóficas e religiosas

orientais e procura elementos de síntese e de unidade que lhe permitam afirmar a validade

do Princípio Único, um princípio universal de compreensão do mundo que acreditava que

deveria ligar todos os homens. Na combinação de aspectos científicos com a sua teoria,

podemos detectar alguma criatividade, mas, simultaneamente, alguma sensibilidade para

o entendimento dos recursos necessários para uma penetração no ocidente de alguns dos

elementos do pensamento oriental, ou, mais especificamente, do seu sistema de

pensamento. Ainda que muito crítico em relação à ciência produzida no ocidente, na sua

opinião uma mistura de teorias em constante mudança e que apenas se podia expressar

em termos de volume, peso e espaço; incapaz de interligar diferentes fenómenos, Ohsawa

parece ter percebido o seu poder do ponto de vista discursivo e o quanto poderia

constituir um instrumento valioso para reforçar a sua visão do universo. As

reinterpretações que fez da física moderna através do recurso às categorias de yine de

yang (cf. Kotzsch, 1981:116), afiguram-se como consequência desse entendimento. Nem

mesmo o cristianismo constituiu um óbice à divulgação da sua concepção sobre a vida e o

universo. De acordo com o espírito sincrético que reconhece nos japoneses, integra-o na

sua visão unificada do universo, e apresenta Cristo como um mestre do «Princípio

Único», cujos ensinamentos seriam apropriados aos bárbaros europeus que tinham uma

miopia espiritual (Kotzsch, 1981:227).

Após seis anos de permanência na Europa, em que divulgou as suas concepções

filosóficas e em que, supostamente, ajudou pessoas a curarem-se através da alimentação,

Ohsawa regressou ao Japão em 1935, aí vivendo até 1953. A sua actividade social, e até

política, seria intensa, conhecendo fases de ultra-nacionalismo. Face a um contexto em

que vê ser implementada a vacinação em massa e os programas higienistas, e onde é

promovido o uso de vitaminas, fruta, carne, leite e óleo fígado de bacalhau (produtos

associados a uma superioridade física e cujo consumo era incentivado no ocidente),

procura defender de forma obstinada a importância da “alimentação tradicional

japonesa”. Na sua opinião, a propaganda de certos alimentos tinha a ver com conceitos de

nutrição ocidentais que não eram adequados aos japoneses. A confirmá-lo estaria o

elevado número de tuberculosos que existiria no Japão, número que seria o sinal de uma

crescente degeneração física, mental e espiritual. A melhor forma de venerar o imperador

e ser patriota passaria então por adoptar a “comida nativa”, sendo “o verdadeiro shinto” a

prática do shoku-yō. Por esta altura terá chegado a revelar alguma simpatia pelo nazismo

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«À Mesa com o Universo»

124

e pela disciplina do corpo que este regime procurava promover. De acordo com Kotzsch

(1981:165), Ohsawa ter-se-ia associado a intelectuais e militares que estudavam a questão

judia, tendo mesmo escrito virulentos ataques anti-semitas, identificando o materialismo

ocidental e o hedonismo com a “ideologia judia”. É, portanto, um posicionamento

radicalista, o que encontramos em Ohsawa, pelo menos nesta fase. Moviam-no ideais de

regeneração do povo e de estabelecimento de uma comunidade pacífica, mesmo que para

tal fossem necessárias medidas mais autoritárias. Diz-nos Kotzsch, que mais do que tratar

de doenças o que interessava verdadeiramente a Ohsawa era criar um movimento

religioso e social que resolvesse os problemas da nação (1981:295).

No decurso da sua vida terá mudado frequentemente de posições, mas uma crença

profunda no poder da comida, forma de expressão do universo, terá estado sempre

presente no seu pensamento. A comida constituiu, no seu caso, uma forma primeira de

expressão de um projecto ideológico. Projecto através do qual as sociedades se deveriam

organizar. A comida pode ser perspectivada, em Ohsawa, como sendo lugar de recepção,

participação e percepção do universo. O alimento, essência concretizada dos ritmos

cósmicos, substância na qual o ambiente surge incorporado, constituía para Ohsawa a

fonte através da qual se transmutava o mundo vegetal em vida humana. Da sua recepção

dependia essa vida e por ela se participava da “ordem do universo”. Pela comida se podia

obter maior discernimento e capacidade de entendimento dessa “ordem”. A ordem de

Ohsawa, claro57

.

Em 1937, Ohsawa tornar-se presidente do movimento shoku-yō; promove

publicações e distribuição de comida. Organiza, então, o primeiro congresso nacional do

movimento, que contava, na altura, com cerca de 2500 membros. Dedica-se a consultas

individuais, criando a regra de não ver um paciente mais do que uma vez, e cobrando

valores muito elevados para observar pessoas durante 15m justos. Entendia que a leitura

dos livros publicados no âmbito do movimento shoku-yō seria suficiente para dar

sequência ao tratamento. Após 20 anos de ligação ao movimento, Ohsawa abandona-o, e,

decide devotar-se, por sua conta, a causas políticas e sociais. Em 1940, muda-se para uma

pequena cidade próxima de Quioto, adquire um velho restaurante e aí estabelece, com um

pequeno grupo de discípulos, um centro de pesquisa e de conferências que será

57 Não discuto neste contexto, os pressupostos de Ohsawa, nem enveredo por uma análise crítica da sua

proposta ideológica. Convém destacar, todavia, a partir dos dados que vêem sendo apresentados, a visão

profundamente ideológica que Ohsawa apresenta para a alimentação, fazendo da macrobiótica um projecto

ideológico de reforma da sociedade.

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

125

responsável pela publicação de uma revista. Marcando esta nova fase da sua vida, adopta

a designação Shin Seikatsu Ho (verdadeiro modo de vida) em vez de shoku-yō.

Após a eclosão da II Grande Guerra, sobretudo a partir de 1943, assume uma

posição anti-militarista, discordando, por conseguinte, de uma solução militar para o

Japão. Em alternativa ao confronto entre países, defende a existência de um governo

mundial, sustentado num parlamento, também ele mundial. De acordo com Kotzsch

(1981), terá procurado ser intermediário entre os EUA e o Japão para conseguir a paz.

Com o decorrer do conflito, começa a profetizar a derrota do Japão e o fuzilamento dos

governantes58

. Acaba por atrair a atenção das autoridades pelas suas críticas e profecias,

de tal forma que a sua escola e revista são interditadas. Ao mesmo tempo, alguns jornais

começam a referi-lo como charlatão. Ainda de acordo com Kotzsch (1981), será feito

prisioneiro por diversas vezes na sequência destes acontecimentos. O próprio Ohsawa –

alude a este período, referindo ter sido condenado à morte por duas vezes, sendo salvo in

extremis pelo general MacArthur (Lopes, 1978: 22).

Mais tarde, em 1948, em Yokohama, colocaria uma placa identificadora na nova

escola, que entretanto abrira, onde se podia ler «Centro do Governo Mundial». Chama ao

seu centro «Maison Ignoramus» e, como atrás foi referido, atribui nomes ocidentais a

alguns dos seus alunos, procurando transformá-los em cidadãos internacionais. Será

também por esta altura que, de forma mais sistemática, passa a designar o conjunto de

concepções que defendia por macrobiótica.

Desapontado com a fraca adesão dos japoneses à sua proposta, Ohsawa e Lima

(sua mulher) deixam o Japão em 1953. Vivem algum tempo na Índia e, em 1955, seguem

para África para irem ao encontro de Albert Schweitzer, a viver em Lambaréné (no actual

Gabão). Schweitzer, médico-missionário alsaciano a quem foi atribuído o Prémio Nobel

da Paz em 1952 e que fundou, a partir da missão existente nessa localidade, o Hospital de

Lambaréné, era, no entender de Ohsawa, a personalidade adequada para credibilizar a

macrobiótica. A “sensibilidade espiritual” que Ohsawa lhe atribuía, a preocupação com

princípios universalistas e com uma ética comum a todos os homens, e, possivelmente, o

facto de ser vegetariano, terão constituído para Ohsawa factores de aproximação.

Ohsawa adoece durante a sua estada em África: fere-se e tem dificuldade em

cicatrizar as feridas (úlceras tropicais). Schweitzer recomenda-lhe que vá de imediato

para a Europa, mas Ohsawa insiste em se tratar através da macrobiótica. Adopta uma

58 Procurando atribuir-se poderes superiores, obtidos por um profundo conhecimento de yin e de yang,

Ohsawa vangloria-se de ter profetizado (sic) a derrota do Japão, o assassínio de Gandhi, Kennedy…

(Ohsawa in Lopes, 1978:22).

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«À Mesa com o Universo»

126

dieta muito restritiva e ingere sal embrulhado em algas59

. Ao fim de duas semanas refere

que as feridas haviam desaparecido. Fica aparentemente curado, mas não consegue

convencer Schweitzer sobre a superioridade do que designava como “medicina

macrobiótica”. Muito embora a escrita do livro La Philosophie de la médecine d'Extrême

Orient, que terminara recentemente, se dirigisse particularmente a Schweitzer, Ohsawa

parece não ter conseguido conquistar este médico para a sua causa. Seguirá para Paris em

1957, onde começará a publicar uma revista mensal Yin – Yang, desenvolvendo, a partir

de então, actividade em diversos países da Europa (Bélgica, Suiça, Alemanha, Suécia,

Itália e Inglaterra), nos quais ministra palestras e promove a macrobiótica. O livro

Macrobiotique Zen surgido em 1960 é o resultado visível desta fase da sua vida.

3.5 Trânsitos da macrobiótica pelo mundo

A passagem de Ohsawa pela Europa dará origem a um número crescente de

seguidores da macrobiótica. O ambiente que Ohsawa encontra nessa altura é também

mais favorável à introdução da macrobiótica e à recepção de concepções vindas do

oriente. No Verão de 1959 será organizado um Campo de Verão em França (Sainte

Marie-Sur-Mer) onde surgirão cerca de 300 pessoas de diferentes países. Aí foram dadas

palestras e consultas médicas, começando a crescer o número de pessoas que diziam ter-

se curado com a adopção da macrobiótica. A afirmação de Ohsawa de que todas as

doenças se poderiam curar em 10 dias, por certo deve ter causado curiosidade por tal

prática. Uma revista francesa Rouge et Noir publica diversos artigos sobre Ohsawa,

chamando-lhe “o japonês que deseja salvar a civilização ocidental” (Kotzsch, 1981:240).

Na Bélgica, surge um grupo de entusiastas que começa a fazer pela primeira vez na

Europa a distribuição de produtos macrobióticos de origem biológica, criando uma

empresa de distribuição a que será dado o nome da mulher de Ohsawa – «Lima».

A introdução da macrobiótica na Europa viria a proporcionar a circulação de

produtos que dantes não se encontravam nas prateleiras das áreas comerciais. Na verdade,

as práticas de “alimentação natural” e o direccionamento para a agricultura biológica, têm

uma especial dívida para com Ohsawa, que estimulou este tipo de agricultura. De acordo

com Kotzsch (1981:236), terá sido Ohsawa a iniciar o cultivo de arroz biológico em

59 Kushi referiria que teria sido ele e sua mulher a enviarem desde os EUA os alimentos necessários ao

tratamento de Ohsawa.

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

127

França. Haveria poucas quintas de agricultura biológica na Europa, onde o arroz integral

e a sopa de miso não surgissem regularmente na mesa (Kotzsch,1981:308, o que é

indiciador da influência de Ohsawa neste grupo e da profunda conexão entre as

perspectivas deste autor, relativamente à alimentação, e as preocupações dos que, numa

fase inicial, se associaram ao movimento da agricultura biológica. De resto, a ligação

deste movimento a Rudolf Steiner, fundador da corrente filosófica da Antroposofia, (cf.

Truninger, 2010: 23), evidenciava que este grupo tinha um entendimento sobre a comida

que estava longe de se limitar a questões nutritivas e ambientais. Tinha também, pelo

menos num primeiro momento, uma clara dimensão espiritual. Com a passagem de

Ohsawa pela Europa e EUA nos anos 1960, rapidamente começam a aparecer centros

macrobióticos na Bégica, França e EUA. Muitas pessoas começam a devotar-se por

inteiro a negócios relacionados com a produção e distribuição de bens alimentares,

necessários para uma alimentação macrobiótica, bem como à formação. Este último

aspecto seria, aliás, imprescindível para a divulgação da macrobiótica, dada a novidade

do conjunto de conhecimentos (concepções filosóficas, ingredientes, técnicas e estilos

culinários…) associados à macrobiótica. Começam a surgir revistas dedicadas a esta

proposta em francês e em inglês, e os livros de Ohsawa começam a ser traduzidos para

diversos idiomas. Em Portugal, será sobretudo a partir da década de 1970 que começarão

a ser publicados os livros deste autor.

É de referir que o contexto de acolhimento da proposta de Ohsawa nos anos 1960

é-lhe particularmente favorável. Ohsawa representa uma proposta crítica em relação a

diversos aspectos da sociedade ocidental. As suas objecções em relação à ciência (ainda

que tivesse a pretensão de a harmonizar com a sua cosmovisão), ao materialismo e ao

racionalismo, que, em seu entender, impediam o desenvolvimento da intuição e da

sensibilidade espiritual, surgem, para muitos, como proposta alternativa a uma forma

excessivamente racionalizada de explicação do mundo. A ausência de sentido ou de

finalidade para a vida humana, de uma compreensão integrada do universo, ou o

sentimento do absurdo da vida (aspectos que terão sido associados a correntes filosóficas

em voga nos anos 60 e 70, como o existencialismo), terão contribuído para a necessidade

de uma proposta de reencantamento do mundo. Uma visão do universo como sistema

fechado (organizado em sete estádios segundo a proposta de Ohsawa), coerente e

inteligível, com um quadro de valores e de orientações organizado e sintético, como

aquele que a macrobiótica sugeria, encontrou facilmente seguidores. A macrobiótica

surgia assim como uma espécie de saber prático, onde teoria e praxis podiam ser

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«À Mesa com o Universo»

128

colocados em acção para transformar cada indivíduo e, concomitantemente, a própria

ordem social.

Kotzsch (1981) apresenta a desilusão com a ortodoxia científica e médica como

um dos factores que pode ter desencadeado um maior interesse no Ocidente por propostas

alternativas como a macrobiótica. A proposta ecléctica e sintética de Ohsawa, sem

teísmos, apelava a um certo cosmopolitismo, e, o seu enfoque na intuição, como

dimensão significativa da acção, constituía uma espécie de antídoto em relação a vias

mais intelectualizadas e racionalizadas. Para além disso, a proposta de Ohsawa incluía

um elemento poderoso, um optimismo em relação ao mundo, ao Homem e à

possibilidade de felicidade na Terra que era um claro contraponto a visões mais

pessimistas e desencantadas do mundo. Refere Kotzsch (1981:312), que o seu

pensamento constituiu uma refrescante celebração do Homem, da natureza, do cosmos e

do modo como se podiam harmonizar entre si. O sofrimento do Homem, visto como

transgressão humana da “ordem da natureza”, passava a ser perspectivado como podendo

ser facilmente superado; constituía, de resto, o prelúdio necessário para a autocrítica e

para o despertar para uma via em conformidade com a “ordem do universo”.

Muito embora Ohsawa tivesse presente o preceito budista de que a fonte de todo o

sofrimento eram os desejos humanos e tivesse sido crítico de vias mais hedonistas, não

asfixiou o indivíduo relativamente à sua condição de sujeito desejante. Se em relação à

comida seguiu as orientações restritivas de Kaibara e de Ishitsuka, o mesmo não se

passou em relação à sexualidade. Para além deste aspecto, a sua proposta procurou

constituir um estímulo para que o indivíduo perseguisse os seus próprios objectivos e se

tornasse livre. Na sua opinião, o homem livre era aquele que vivia exactamente como

queria. A vida era para ele um jogo divertido em que cada indivíduo poderia ser produtor,

realizador e actor principal. Não vendia o seu tempo por dinheiro. A preocupação

fundamental deveria assentar num sentido autocrítico e em ser humilde. As características

fundamentais que frequentemente evocava, eram, justamente, a humildade, generosidade,

gratidão, auto-sacrifício, simplicidade e contentamento (cf. Kotzsch, 1981:28). A forma

de as realizar fazia-se, sobretudo, pela comida, simples e frugal.

Retornando à questão do contexto de acolhimento à proposta de Ohsawa, é de

salientar que um certo fascínio pelo oriente e atracção pelos seus sistemas filosóficos e

religiosos tinham já começado a fazer o seu caminho na Europa e nos EUA, existindo

uma audiência potencial para os seus ensinamentos. A presença em França, antes da

chegada de Ohsawa, de grupos de estudo Vedanta e do yoga atestavam esse interesse. Por

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

129

outro lado, a leitura atenta de Henry David Thoreau (1817-1862), com o livro referencial

para o movimento ambientalista Walden ou a Vida nos Bosques (1854); o zen

popularizado por Allan Watts (1915-1973); os beatniks, com Kerouac (1922-1969) a

escrever Os Vagabundos do Dharma (1958); o movimento psicadélico iniciado por

Richard Alpert (Ram Dass, n.1931) e Timothy Leary (1920-1996), com as experiências

psicotrópicas e viagens à Índia, representavam a contestação a uma sociedade materialista

e, portanto, pouco centrada na espiritualidade. Representavam a busca de novos

horizontes e sentidos para uma sociedade desencantada, pelo menos em alguns dos seus

segmentos. É pois junto dos simpatizantes destas propostas que Ohsawa encontrará

muitos dos seus seguidores. Outros virão do mainstream, outros ainda virão por razões de

saúde. Aproveitando o boom zen, Ohsawa dará ao seu livro o título Macrobiótica Zen.Em

1960, apresentará uma palestra na Academia Budista de Nova Iorque, indo de encontro a

apelos de seguidores da macrobiótica que já aí existiam. Cultivará, numa fase final da sua

vida, a imagem do homem sábio, um dos últimos filósofos do oriente que iria iluminar o

mundo (cf. Kotzsch, 1981: 238).

*

A divulgação na Europa e na América da macrobiótica ficará ainda a dever-se ao

trabalho exercido pelos seus discípulos directos, a maior parte deles japoneses. Um dos

esforços de Ohsawa foi justamente o de promover a colocação de alguns dos seus

discípulos na Europa e na América. A partir de 1949, e durante os anos 1950, assistir-se-á

à chegada desses discípulos. Michio Kushi (considerado actualmente o “líder” da

macrobiótica, n.1926), seria o primeiro a sair do Japão. Chegaria a Nova Iorque para

estudar Direito Internacional na Universidade de Columbia em 1949, após ter estudado

Direito e Ciências Políticas na Universidade de Tóquio. Aveline Tomoko Yokoyama

(mais tarde Aveline Kushi, 1923-2001), campeã de vendas do jornal promovido por

Ohsawa, World Government (Kushi et al.,1989: 293), chegaria a Nova Iorque em 1951,

casando-se em 1953 com Michio Kushi. Herman Aihara (Nobuo Aihara, 1920-1998)

chegaria a San Francisco em 1952 e seguiria nesse mesmo ano para Nova Iorque.

Brevemente, Cornellia Yokota (Chiiko Yokota) juntar-se-lhe-ia. Viriam a casar em 1955,

formando o casal Aihara. Desenvolveriam a sua actividade sobretudo na Califórnia, onde

criariam um centro de macrobiótica que viria a ficar conhecido por George Ohsawa

Macrobiotic Foundation. Também na Califórnia, sob convite dos Aihara’s, Noburo

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«À Mesa com o Universo»

130

Muramoto (1920-1955), outro discípulo de Ohsawa, iniciaria a sua actividade, ensinando

medicina tradicional e dando consultas; o Asunaro Institute, em Glen Ellen, seria por ele

criado.

Uma actividade significativa associada à macrobiótica pode ser assim observada

na Califórnia, contexto de particular expressão de diversos movimentos de contestação

dos anos 1950-60, e, em relação ao qual, diversos autores referem o desenvolvimento de

movimentos ligados à agricultura biológica e comercialização de “produtos alimentares

alternativos” (cf. Pollan, 2009a; Belasco, 2007[1989]). No entanto, um primeiro conjunto

de actividades ligadas à macrobiótica nos EUA, centra-se inicialmente em Nova Iorque.

Em 1954, Michio Kushi e Aveline Kushi começariam a ensinar filosofia e medicina

oriental e a dar aulas de “cozinha natural” nessa cidade e, em 1956, envolver-se-iam,

também aí, na abertura da primeira loja japonesa onde surgiriam produtos associados à

cozinha macrobiótica «Azuma». Ao trabalho de Ohsawa e Lima Ohsawa (Sanae [Sanai?]

Tanaka,1899-1999) em França, juntar-se-ia o de Clim Yoshimi, (Kaoru Yoshimi) que,

com Françoise Rivière e René Levy, contribuiriam para difundir a macrobiótica neste

país. Na Bélgica, com o apoio de Clim Yoshimi e, depois, Roland Yasuhara e sua mulher,

Josianne Bagno, desenvolver-se-ia a macrobiótica; Eb Nakamura e Augustine Kawano

(Kiyozumi Kawano) contribuiriam para essa maior presença da macrobiótica na

Alemanha; Tomio Kikuchi e Bernardette Kikuchi assegurariam a divulgação na América

do Sul, no Brasil, a partir de 1955. Após a morte de Ohsawa, Hideo Ohmori, Shuzo

Okada e Lima Ohsawa terão assegurado o desenvolvimento de actividades ligadas à

macrobiótica no Japão. Em 1959, Okada fundaria a Muso Shokuhin, empresa alimentar

ligada à macrobiótica que teve um importante papel na introdução e distribuição de

alimentos no Japão, Europa e América. Começaram por exportar produtos fermentados

derivados da soja para a companhia «Lima» (sediada na Bélgica), em 1963 e em 1966

para a Chico-san, na Califórnia (cf. Shurtleff e Aoyagi, 2004)60

.

60 Para uma informação mais detalhada sobre aspectos relativos à implementação e institucionalização da

macrobiótica, ver sobretudo Kotzsch (1981, 1985, 1988), William Shurtleff com Akiko Aoyagi (2004) e

Kushi (1989). Kotzsch é um dos mais significativos estudiosos da macrobiótica, tendo conciliado uma

consistente análise documental com o contacto directo com algumas das mais proeminentes figuras ligadas à macrobiótica. Teve oportunidade de viajar pelo Japão e de aí recolher dados e estabelecer contactos com

interlocutores privilegiados ligados à macrobiótica, contribuindo, desta forma, para uma visão mais

aprofundada e global sobre o fenómeno. Este autor realizou trabalho de doutoramento sobre Georges

Ohsawa (Kotzsch, 1981) na área da Religião Comparada (Universidade de Harvard), sendo o seu trabalho

um dos mais citados. Apesar deste importante contributo, verifica-se a necessidade de uma investigação

rigorosa especificamente sobre a história da macrobiótica. O estabelecimento em 1999, no Smithsonian

Institution's National Museum of American History, da colecção da família Kushi de materiais relativos a

macrobiótica (ver apêndice 1), deve constituir uma fonte preciosa para uma análise detalhada sobre a

macrobiótica. Poderá constituir também uma fonte importante para a história das práticas relacionadas com

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

131

Um olhar atento sobre a história da macrobiótica rapidamente permite detectar a

importância da família, mais especificamente, do «casal», no desenvolvimento de

actividades ligadas à macrobiótica, pelo menos ao nível dos promotores. O envolvimento

parece ser tão profundo que exige regularmente a participação de ambas as partes do

casal. Surgem frequentemente como compartilhando um mesmo projecto, procurando

colocar em prática os ensinamentos da macrobiótica. Manter outro tipo de actividades

tornaria certamente mais difícil a praxis da visão do mundo que procuram defender. O

casal consubstancia assim, regularmente, uma empresa da qual depende a diversos níveis,

financeiros e emocionais. Partindo, supostamente, de um conjunto de concepções

comuns, estes casais organizam-se empresarialmente e estabelecem por esta via um modo

de sustento que é também um modo de vida. A criação de um centro macrobiótico é a

forma mais recorrente de estabelecimento deste tipo de empresas. A ele costumam ser

associadas actividades de formação (aulas de cozinha, palestras, aulas teóricas sobre

macrobiótica), restauração, consultas e por vezes publicações.

A divisão de tarefas entre homens e mulheres costuma ser clara, sendo a

polaridade yin yang, tal como estabelecida pela macrobiótica, geralmente observada.

Desta forma, as mulheres tendem sobretudo a ocupar-se com a área da restauração e com

as aulas de cozinha. Os homens dedicam-se, essencialmente, à formação e divulgação da

macrobiótica através de aulas e palestras, consultas e também publicações. Tendem, por

isso, a ter ocupações que lhes dão maior exposição social, se consideradas em confronto

com as mulheres, habitualmente associadas a actividades mais recatadas. Esta tendência

pode ser observada para os casais Ohsawa, Kushi, Aihara e Varatojo (casal que

actualmente protagoniza a macrobiótica em Portugal), além de muitos outros. O facto de

diversas famílias que seguem a macrobiótica serem numerosas, contribui também para a

acentuação dessa polaridade, surgindo realçado o papel das mulheres sobretudo enquanto

cuidadoras. Uma estrutura tradicional de divisão de tarefas entre os sexos, pode assim ser

observada em algumas destas empresas familiares, facto que, de resto, se encontra em

concordância com os princípios macrobióticos divulgados por Ohsawa, teorizador que, à

partida, se encontrava familiarizado com a concepção de Kaibara (inspirada em

Confúcio) de que as mulheres deveriam ter sempre algum tipo de relação de

subserviência com um homem (cf. Kotzsch, 1988:16).

as terapêuticas alternativas nos EUA, dado que algumas dessas práticas, como o shiatsu e a moxabustão,

surgem associadas à macrobiótica.

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«À Mesa com o Universo»

132

*

No ano em que Ohsawa morreu, em 1966, com uma paragem cardíaca, a

organização macrobiótica no Japão (Centro nipónico Ignoramus) encontrava-se sediada

num edifício modesto. Os discípulos de Ohsawa no Japão eram poucos e ocupavam-se

sobretudo com aulas de cozinha e com a publicação da revista Atarashiki Sekai. Havia

mais alguns ramos do centro noutras cidades, mas pouco expressivo. De acordo com

Kotzsch, Ohsawa deixou poucos praticantes no Japão. A alimentação macrobiótica

representava para a maior parte das pessoas uma forma de ascetismo (na verdade,

encontrava-se próxima da dieta dos monges budistas que levavam uma vida de renúncia)

e aqueles que a ela aderiam eram sobretudo indivíduos cuja saúde dependia da

alimentação. Por outro lado, o consumo de arroz integral era ainda associado a memórias

de guerra e pobreza. Para além disso, seguir a macrobiótica significava ainda, para

muitos, um esbatimento indesejável de certas relações sociais, dado que por vezes

significava o afastamento em relação a certos grupos e a impossibilidade da

comensalidade. Após a morte de Ohsawa, houve um período de estagnação relativamente

às actividades associadas à macrobiótica. Algum tempo depois, com o trabalho

persistente de Lima e alguns dos seguidores de Ohsawa, foi possível desenvolver uma

actividade relativamente consistente de formação e publicação nos dois principais centros

de divulgação da macrobiótica, Tóquio e Osaka.

Em 1984, um dos números da revista Atarashiki Sekai apresentaria uma lista com

160 centros e lojas de venda de produtos pelo país. De acordo com Kotzsch (1985:213),

esta actividade ligada à macrobiótica viria a contribuir para que se estabelecesse no Japão

um sector económico ligado à comercialização de “comida alternativa”. Na verdade,

muitos dos produtos utilizados no âmbito da macrobiótica, que passaram a ser

comercializados na Europa e EUA eram importados directamente do Japão. «Musō

Shokuhin» e «Mitoku» são exemplos de empresas de distribuição entretanto criadas. Da

sua actividade resultou a possibilidade de encontrar de forma mais regular, tanto na

Europa como na América, diversos produtos usados na macrobiótica (algas, miso, ameixa

umeboshi, tamari…). Diz-nos ainda Kotzsch (ibid.), que o desenvolvimento da

agricultura biológica no Japão conheceu também um particular impulso com o

envolvimento nesse sector de pessoas ligadas à macrobiótica. Na área do fornecimento de

sal, que constituía um monopólio do Estado no Japão, surgiram também duas companhias

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

133

dirigidas por pessoas procedentes da macrobiótica e que procuraram, de acordo com o

mesmo autor, colocar no mercado um sal de maior qualidade.

*

De Ohsawa alguns dos seus discípulos recordarão a sua frontalidade e severidade,

como quando perguntava aos seus discípulos o que haviam comido no dia anterior e não

ficava satisfeito com as respostas que lhe davam. Por vezes agia como um pai. Os seus

discípulos recordam ainda o seu carisma, a capacidade de influenciar e de atrair pessoas,

a coragem e diversidade de competências. Não teve uma educação formal de nível

superior e não tinha grandes preocupações com questões de rigor científico, mas era um

leitor e escritor incansável. Contrapunha à racionalidade científica e ao saber estabelecido

o valor insuperável da intuição. Muitas das suas posições estavam longe de ser

sustentadas. Instigava os seus seguidores não a trabalharem, mas a divertirem-se, o que,

por certo, alimentava essa velha utopia que é a libertação do trabalho. Defendia com

convicção que qualquer doença podia ser curada, atraindo, assim, muitas pessoas e

afastando outras que o viam como um charlatão. O seu estilo profético e a convicção que

depositou nas suas posições proporcionaram-lhe muitos seguidores, que de forma quase

textual quiseram pôr em prática tudo o que ele recomendava, ainda que fosse uma dieta

pouco recomendável para o seu estado. O gosto pela higiene levava-o a apresentar-se de

forma cuidada e até a ocupar-se com a limpeza profunda das casas em que ficava

hospedado, sobretudo da cozinha, que considerava um lugar sagrado. Fumava muito,

entendia que o tabaco não era prejudicial para a saúde, apreciava cerveja e cometia

excessos alimentares, ainda que fosse absolutamente contrário ao desperdício61

(cf.

Kotzsch, 1988). Estes consumos são, aliás, observáveis em diversos seguidores da

macrobiótica, como se fosse um contraponto a um maior zelo nas questões alimentares.

Dos elementos recolhidos fica também visível a sua capacidade de iniciativa e de

influenciar novas actividades. Diz-nos Kotzsch (1981) que por vezes era dogmático e

fanático e que as suas posições estavam longe de se encontrar sempre fundamentadas.

Ainda que defendesse o non credo, impregnou, de acordo com este autor, a sua proposta

de uma profunda religiosidade, ao ponto de transformar o alimento num sacramento e o

61 Numa ocasião, num campo de verão em França, alguém terá deitado fora arroz que começara a azedar.

Ohsawa foi apanhar os gãos de arroz ao lixo e comeu-os na refeição seguinte, dizendo que a comida que se

tinha começado a decompor era de mais fácil digestão. Kushi relata ainda que numa ocasião em que se

encontrou com Ohsawa nos EUA foram a um café, aí, Ohsawa pediu um cheese-cake e uma coca-cola,

tendo Kushi feito o mesmo tipo de pedido. Ohsawa ter-lhe-á então recomendado que mastigasse bem.

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«À Mesa com o Universo»

134

acto de comer num ritual através do qual se convocava a “ordem do universo” para a

mesa. Uma das suas maiores preocupações foi, de acordo com Kotzsch (1981:295), não

tanto a de tratar doenças mas mais a de criar um movimento religioso e social que

contribuísse para a paz mundial.

*

Sem pretender alongar-me excessivamente com factos relativos ao processo de

divulgação, implementação e institucionalização da macrobiótica, julgo ser ainda

pertinente referir alguns acontecimentos que, de acordo com os dados disponíveis,

acabaram por marcar o rumo da macrobiótica. Em 1961, Ohsawa visitaria os EUA para

participar num campo de verão (actividade consagrada na macrobiótica) nas montanhas

Catskill – Wursboro (Nova Iorque). Aí, num contexto marcado pela guerra fria, revelaria

alguma preocupação relativamente à crise associada à construção do muro de Berlim e à

situação de Cuba, referindo a possibilidade de uma catástrofe nuclear. Exortou, por

conseguinte, os seus seguidores a deixarem Nova Iorque e a instalarem-se num local mais

a salvo da radioactividade, que, para além disso, fosse adequado para o cultivo de arroz.

Após intensa procura desse local, vários seguidores decidiram-se por Chico, no vale de

Sacramento (Califórnia). Treze famílias (36 pessoas) juntaram os seus bens e dirigiram-se

para Chico em caravana (Kushi e Jack, 1989:294)62

. Chegaram a 1 de Outubro de 1961.

Entre estas pessoas, de talentos muito diversos, mas poucos conhecimentos no sector da

produção e distribuição de alimentos, estava Herman Aihara63

.

Esta deslocação em caravana não deixa de ter o seu lado “folclórico”, no sentido

menos intelectualizado do termo, mas constitui também apanágio de uma época marcada

pelos movimentos de contracultura, pelo desejo de celebração da natureza, reacção ao

materialismo, industrialização e procura de novas formas de espiritualidade. Uma

contracozinha (countercuisine), conceito adoptado por Belasco (2007 [1989]), com

preferência pelo orgânico, que condenasse a “comida de plástico” e que tivesse uma

dimensão terapêutica (Belasco, 2007:4). Uma cozinha com um novo paradigma, portanto,

surgia, assim, como um desafio a seguir, algo que pode ser visto como compaginável com

62 Shurtleff e Aoyagi (2004) referem 32 pessoas e 11 famílias. 63 Dizem-nos Shurtleff e Aoyagy a propósito do exôdo para Chico «Os talentos eram diversos mas poucos

no que respeitava a confecção e distribuição de alimentos: cinco trompetistas profissionais, um pintor, um

escultor, um economista de Harvard, uma estrela de telenovelas e um engenheiro» (2004:7). A base de

recrutamento para a macrobiótica incluía assim um conjunto de indivíduos ligados a profissões que

costumam ser associadas à classe média - média-alta.

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

135

o desejo de transformação social. Os aspectos referidos por Belasco, aqui entendidos

como configuradores dessa cozinha marginal que era a contracozinha, constituem

também dimensões fundamentais na macrobiótica. Tais aspectos, ainda que não sejam

exclusivos à macrobiótica, têm vindo a adquirir um lugar cada vez mais central nos

discursos de base científica sobre a comida (Nestle, 2006; Pollan, 2009a; Willet, 2005;

Campbell, 2006), e até junto dos consumidores. A este propósito, ainda que

especificamente sobre os alimentos orgânicos, diz-nos Pollan reportando-se ao contexto

americano: “A palavra «orgânico» passou a ser uma das palavras mais poderosas no

supermercado: sem qualquer ajuda da parte do governo, produtores e consumidores,

trabalhando juntos, criaram uma indústria avaliada em 11 mil milhões de dólares, o sector

da economia alimentar que apresenta actualmente o crescimento mais rápido”

(2009a:145). A macrobiótica, apesar da importância dada aos alimentos orgânicos, não

adquiriu, no entanto, a centralidade que Lau (2000) lhe atribui, mas, muitos dos aspectos

a ela associados (preferências alimentares e ingredientes), foram, efectivamente, sendo

introduzidos no mainstream das orientações alimentares, tal como atrás procurei

demonstrar, sem que esse processo relacional fosse explicitado. De um modo geral, ainda

não foi devidamente reconhecida, ao nível do mainstream, a importância da

macrobiótica, e dos movimentos a que acima aludi, nos novos entendimentos sobre o que

deve ser uma alimentação saudável. Quando Lau (2000:87) refere que a macrobiótica

conseguiu implantar-se porque participava do discurso mainstream relativo à saúde e à

dieta, o discurso dos “super alimentos”, dos “super corpos” e do “controle do corpo”,

oculta a influência que a macrobiótica teve em relação a esse mesmo mainstream, com o

seu trabalho pioneiro. Por outro lado, não dá conta, evidentemente, das especificidades da

macrobiótica em relação a essas dimensões (saúde e dieta), nem da resistência e dúvidas

que essa proposta sempre foi suscitando, e continua a suscitar, junto desse mesmo

mainstream. Um trabalho de “desocultação” dessas relações seria indiciador de como as

práticas marginais associadas ao grupo que nos anos 60 se instalou na Califórnia, e a

muitos outros que adoptaram a macrobiótica, podem ser perspectivadas como lugares de

cumplicidade e de criatividade, a partir dos quais seria possível desenvolver

aprendizagens e ir apresentando novos conceitos e produtos ligados à alimentação64

.

64 Diz-nos Pollan (2009a) que do desejo de uma produção alimentar não contaminada surgiram grupos hoje

expressivos do ponto de vista económico como a empresa «Whole Foods», que terá passado de uma

actividade marginal para uma de maior centralidade, medida pelo volume de negócios. O mesmo não

sucedeu com todos os grupos, tendo alguns permanecido marginais, como os que se encontram em

«People’s Park», que Pollan caracteriza como “(…) parque com lixo espalhado por entre a erva e as

árvores, salpicado com as tendas esfarrapadas de algumas dúzias de sem abrigo. Na sua maioria entre os

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«À Mesa com o Universo»

136

Em 1962, o grupo que, sob incentivo de Ohsawa se havia deslocado para a

Califórnia fundaria a empresa alimentar «Chico-san», uma empresa de importação e

distribuição de alimentos, que rapidamente importaria e colocaria no mercado alguns dos

produtos básicos da macrobiótica (algas, shoyu, miso, ameixas umeboshi…). Seria, de

acordo com Shurtleff e Aoyagy (2004), a primeira empresa na América a distribuir

produtos alimentares associados à macrobiótica. Numa primeira fase a empresa não teve

muito sucesso com a venda de alimentos, mas após recomendação de Georges Ohsawa

(visitou a «Chico-san» no início dos anos 1960, onde deu palestras) para que produzissem

bolos de arroz, tornou-se mais popular, transformando-se esse produto no primeiro

produto de sucesso da «Chico-san» (cf. Shurtleff e Aoyagy, 2004). Começam a ser

divulgados os livros de cozinha macrobiótica, que constituem um importante ponto de

apoio para as “aventuras” na cozinha, e são publicados diversos livros de Ohsawa nos

EUA. Os livros Zen Cookery (1985 [1964])65

, e Zen Macrobiotics (Ohsawa, 1979 [1960])

constituiriam dois dos primeiros importantes veículos através dos quais os americanos se

familiarizariam com a macrobiótica. A partir de 1965, de acordo com Shurtleff e Aoyagy

(2004), as actividades ligadas à macrobiótica cresceram rapidamente nos EUA,

estimando estes autores que de 300 praticantes se tenha passado para 2000 pessoas

activamente envolvidas com a macrobiótica. De acordo com Shurtleff e Aoyagy (2004)

um número significativo de empresas ligadas à transformação da soja foram fortemente

influenciadas pela macrobiótica. Nos EUA, as três primeiras empresas não orientais,

produtoras de miso, seriam criadas por estudantes de macrobiótica.

Muito embora o cultivo de soja se tenha iniciado nos EUA em 1765, com Samuel

Bowen, só a partir de 1887 haveria um verdadeiro incentivo às experiências agrícolas

com esta leguminosa. Tal como descrito no livro The World of Soy (Du Bois et al.,2008),

apenas a partir de finais do século XIX os americanos revelaram alguma curiosidade pela

soja. Numa fase inicial, aquele que viria a ser o primeiro produto agrícola em termos de

valor das exportações dos EUA, seria sobretudo utilizado para enriquecer os solos e como

forragem, não sendo os feijões de soja percepcionados como comida para humanos.

cinquenta e os sessenta anos, alguns deles ainda com roupas e penteados ao estilo hippie” (Pollan, 2009a:149). 65 Livro elaborado pelos fundadores da «Chico-san» (Ohsawa Foundation of Chico), como resposta à

necessidade de uma orientação prática na cozinha. Seria reeditado pela George Ohsawa Foundation,

instituição criada na Califórnia por Herman Aihara e Cornellia Aihara. A elaboração deste livro constituiu

uma das primeiras tarefas que os fundadores da «Chico-san» se auto-impuseram, dado o desconhecimento

sobre a macrobiótica e a falta de livros que constituíssem referenciais de orientação. Com as devidas

ressalvas, tendo em consideração o impacte social destes livros, tal como «o livro de cozinha» foi

importante para o “estabelecimento” de uma cozinha nacional (Appadurai, 1988; Sobral, 2008), também

este livro seria uma referência incontornável para a macrobiótica desenvolvida nos EUA.

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

137

Mintz (2008), no conjunto de aspectos que menciona para procurar compreender por que

motivo na Europa e nos EUA nunca se havia antes do século XX fermentado as

leguminosas - técnica que, no caso da soja, permite criar um conjunto assinalável de

derivados (miso, molho de soja, tofu, tempeh [tempe], natto…) - conduz-nos a identificar

o valor vital da soja em alguns países asiáticos (sobretudo China, Japão, Coreia e

Vietname) com motivos de que beneficiariam tanto produtores como consumidores66

. A

soja seria importante para enriquecer os solos e como fonte de energia e de proteínas para

os humanos. É evidente que a questão das proteínas não podia ser colocada numa fase

inicial do consumo da soja, mas face a uma alimentação com uma ampla base vegetal, a

soja constituía, com grande probabilidade, um recurso de ordem energética não

negligenciável. Por outro lado, uma das hipóteses para que a fermentação da soja

ocorresse primeiro na China, e que é sugerida a Mintz por Huang (Mintz, 2008:62),

aponta para uma conjunção favorável, naquele contexto ambiental, entre o tipo de cereais

cultivados (arroz e millet), a utilização do vapor como técnica para cozinhar e a existência

de várias espécies de fungos no ambiente. No ocidente, tais condições não terão sido tão

propícias. Por outro lado, não teria havido necessidade de fermentação das leguminosas,

dado que, ainda que os feijões disponíveis não fossem fáceis digerir, não apresentavam os

problemas de indigestibilidade da soja. A estes aspectos haveria ainda a acrescentar, de

acordo com Mintz (2008), a existência de um momentum cultural específico, na China,

que permitiria a fermentação da soja. Aliás, seriam também outros momenta culturais

particulares que levariam ao sucesso do açúcar e, mais tarde, ao sucesso da soja fora do

contexto asiático.

Desde a domesticação da soja, cerca de 1000 anos A.C., até à sua fermentação,

por volta do ano 900, um longo caminho foi percorrido, favorecendo uma íntima

convivência com um produto de difícil digestão, que tornaria possível a invenção de

diferentes formas de o manipular e de o apresentar. Mais que isto: seria definido através

da fermentação da soja um tipo específico de tempero e de sabor que virá a caracterizar

tanto a cozinha chinesa como a japonesa. O molho de soja impregnaria inúmeros pratos

confeccionados em muitos lugares, tornando-se num dos marcadores mais expressivos

das cozinhas da China e do Japão, podendo ser visto como enquadrando os seus

princípios de condimentação67

. Possivelmente porque pouco familiarizados com estes

66Dos produtos fermentados derivados da soja, só o molho de soja era utilizado na cozinha europeia. O

molho de soja terá entrado na culinária europeia no século XVII (Mintz, 2008:62).

67 A noção de princípios de condimentação (aromas e sabores específicos) é considerada por Contreras e

Gracia (2005: 202), seguindo Elizabeth Rozin e Paul Rozin (1981), como um dos aspectos mais

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«À Mesa com o Universo»

138

princípios de condimentação, e porque a questão do gosto também é importante na

eleição dos alimentos, tanto europeus como americanos terão tido alguma relutância em

relação a este tipo de alimentos (cf. Du Bois, 2008).

Associar estes sabores a uma nova cosmovisão e a novas orientações ideológicas

com as quais se sentia alguma afinidade, como a macrobiótica, ou ainda, exaltar os

efeitos do ponto de vista biológico da adopção desses alimentos, com as vantagens

correspondentes para a saúde, acabaria por facilitar a introdução destes produtos. Estes

aspectos devem, assim, ser vistos como relevantes numa análise das mudanças

alimentares e de desenvolvimento do gosto. Du Bois refere, também ela, a importância do

movimento da contracultura nos anos 60 para que se tornassem mais conhecidos os

sistemas de pensamento orientais, as suas comidas e práticas médicas. A soja aparece

como produto com muitas potencialidades ao qual se associam escolhas culinárias New

Age (Du Bois, 2008:221). Esta autora não especifica o que entende por “escolhas

culinárias New Age”, apenas refere a existência de um número crescente de imigrantes

asiáticos que consumiam soja e o maior interesse por este produto, tanto ao nível da

investigação médica, como por parte dos jornalistas que davam conta dessa

investigação68

. Nos dados apresentados, Du Bois nunca refere a macrobiótica, como

opção particularmente importante para ajudar a compreender algumas das transformações

do ponto de vista alimentar. Todavia, os elementos que têm vindo a ser apresentados

apontam para o facto de os seguidores da macrobiótica terem sido um grupo decisivo na

introdução da soja e seus derivados na alimentação humana. Factor que terá contribuído

para a transformação do mercado de bens alimentares. A partir dos anos 1980, foi notório

o aumento do consumo de alimentos à base de soja, de tal forma que, de 1992 para 2004,

o volume de vendas deste tipo de alimentos, produzidos nos EUA, aumentaria de 300

milhões de dólares para 3,9 biliões (cf. Du Bois, 2008), números, sem dúvida, bastante

reveladores da importância que este produto adquiriu em termos alimentares.

permanentes (porque mais resistente) e identificador de uma cozinha, algo que pode permanecer durante

séculos enquanto outros componentes desaparecem. 68 A importância da soja em termos nutritivos tem sido amplamente difundida, bem como os seus efeitos para a saúde. As proteínas presentes na soja transformaram-na num alimento particularmente recomendado

nos regimes vegetarianos e semi-vegetarianos, como forma parcial de substituição dos alimentos de origem

animal. Os benefícios das isoflavonas presentes na soja têm também sido largamente divulgados, sendo

associadas ao combate da osteoporose e desconfortos da menopausa, bem como na prevenção de certos

tipos de cancro. Este alimento surge assim na categoria dos nutracêuticos, ou seja, alimentos com efeitos

medicinais. Curiosamente, o “leite” de soja (bebida de soja), cuja presença é cada vez mais regular nos

supermercados e à mesa, tido por muitos como um substituto saudável ao leite, foi-me apresentado nas

sessões de formação em macrobiótica como um produto “de difícil digestão” e que não deveria ser

consumido diariamente.

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

139

Antes que esta expressividade no consumo de produtos derivados da soja se

verificasse e se observasse neles uma trajectória alheada da macrobiótica, alguns

acontecimentos relativos à História da macrobiótica devem ser mencionados. Em 1965,

um acontecimento trágico viria a contribuir para uma imagem negativa da macrobiótica.

Uma mulher jovem, Beth Ann Simon, com problemas de adição, e que decidira seguir,

por sua conta, uma dieta muito restritiva proposta pela macrobiótica (apenas à base de

cereais), morre. Dada a acção do seu pai enquanto advogado, a Fundação Ohsawa de

Nova Iorque, entretanto criada, é encerrada pela Food and Drug Administration (FDA),

vindo então o centro a mudar-se para Boston, onde se tornou a base de actividades nos

EUA. Este facto contribuiu para uma imagem negativa da macrobiótica e para uma

mediatização pouco favorável a esta proposta. No final da década dos anos 1970, uma

imagem igualmente negativa seria divulgada a propósito de um caso de suicídio em

França. Roger Ikor, professor na Sorbonne, acusaria a macrobiótica de ser responsável

pela morte de seu filho e de a macrobiótica ser uma seita baseada em superstições e

falácias (cf. Kotzsch, 1988:224). Descrito como tendo problemas de ordem física e do

foro psicológico, o seu filho ter-se-ia suicidado na sequência da permanência numa

clínica de René Lévy (seguidor da macrobiótica). Estes casos contribuiriam para que a

macrobiótica fosse associada a charlatanice, mas, por outro lado, terão também

incentivado alguma investigação de carácter científico sobre esta prática, alguma dela,

deve dizer-se, pouco favorável à macrobiótica.

Na sequência do encerramento da Fundação Ohsawa de Nova Iorque, o casal

Kushi muda-se para Brookline, aí ficando sediada uma boa parte da actividade ligada à

macrobiótica. Em 1966, Aveline Kushi abre uma pequena loja de produtos associados à

macrobiótica - «Erewhon»69

. A «Erewhon» tornar-se-ia numa das mais importantes lojas

de distribuição de “comida orgânica e natural”, sendo a representante exclusiva de

empresas japonesas como a «Muso» e a «Mitoku». Mais tarde (1986) viria a adoptar o

nome «U.S. Mills», nome de companhia de venda de cereais fundada em 1908, que seria

adquirida pela «Erewhon», quando o volume de negócios desta última empresa atingiu

um milhão de dólares70

.

69 Designação que é também uma homenagem a Ohsawa, dado que é igualmente o título de um livro de

Samuel Butler [1872], que era do agrado de Ohsawa. 70 Entretanto a «U.S. Mills, Inc.» foi adquirida em 2009 pela «Attune Foods», empresa do ramo alimentar

dedicada sobretudo à produção de cereais de pequeno-almoço. Este tipo de cereais não é dos produtos mais

recomendados nas sessões de formação sobre macrobiótica, dado o processamento de que são alvo. A

mudança de mãos desta empresa parece estar assim associada a uma estratégia onde a macrobiótica, ainda

que possa ser vista como fazendo parte da História da empresa, tem já um valor residual.

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«À Mesa com o Universo»

140

Em 1972 seria criada, em Boston, a «The East West Foundation» (EWF), uma

organização sem fins lucrativos, votada ao ensino da macrobiótica, da medicina oriental e

outras artes tradicionais, presidida por Michio Kushi. Associada a esta organização,

surgiria uma revista com o mesmo nome que se transformaria numa espécie de porta-voz

de estilos de vida alternativos. A EWF acolheria entre 10-12 estudantes que viveriam

com os Kushi. Mais tarde (1978), seria fundado o Instituto Kushi em Boston, que hoje se

encontra sediado nas Berkshires (Becket – MA). Nova Iorque, Massachusetts e Califórnia

seriam assim três pólos importantes no desenvolvimento de práticas relativas à

macrobiótica.

No Reino Unido, só a partir de finais dos anos 1960, com Greg e Craig Sams, se

começaria a promover a macrobiótica. Diz-nos Kotzsch (1988) que a maior receptividade

a este tipo de propostas viria do movimento contracultura, onde se encontrariam

albergadas tendências que viam na macrobiótica uma forma de expressão adequada ao

espírito contestatário. Diz-nos ainda o mesmo autor que, com uma certa falta de

informação sobre o que era realmente a macrobiótica, alguns destes indivíduos juntavam

o arroz integral à marijuana (Kotzsch, 1988:221). A partir de 1975, o casal Kushi

começaria a divulgar a macrobiótica na Europa, apresentando esta proposta como tendo

preocupações ligadas à agricultura, ecologia, saúde, desenvolvimento espiritual e paz

mundial, temas para os quais havia cada vez maior sensibilidade. Diz-nos Kotzsch

(1988:220) que nos anos 80 havia já uma larga e crescente rede de pessoas ligadas à

macrobiótica na Europa. Em 1982 é fundada a Associação Macrobiótica Europeia, com

secretariado em Antuérpia e com organização de congressos anuais71

.

Dos diferentes países da Europa onde a macrobiótica foi introduzida, destaco aqui

apenas a Suécia, país que é apresentado por Roland Keijser (envolvido na macrobiótica)

como estudo de caso (mais à frente analisarei com maior pormenor a situação

portuguesa). Na Suécia, terá havido um intenso debate entre os defensores da

macrobiótica e o movimento vegetariano. De acordo com Roland Keijser, os suecos terão

tido dificuldade em integrar as referências orientais da macrobiótica e viram a proposta

de Ohsawa como um «Ohsawa-ismo», tendo afirmado a “verdadeira macrobiótica” como

sendo a da tradição germânica (a de Von Hufeland,), baseada numa perspectiva

romântica da natureza e na moderna Ciência da Nutrição (cf. Kotzsch, 1988:228).

71 Para uma visão mais completa sobre o desenvolvimento da macrobiótica na Europa veja-se Kotzsch

(1988).

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

141

Deste debate vale a pena destacar o entrosamento que é defendido existir entre

vegetarianismo e macrobiótica, dado que se sugere que é no grupo dos vegetarianos que a

macrobiótica encontrará alguns adeptos. Em Portugal, os depoimentos de diversos

informantes conduzem-me também ao estabelecimento dessa relação e a um

entroncamento da macrobiótica no vegetarianismo. Por outro lado, a importância dada às

Ciências da Nutrição revelava já a importância desta área na estruturação dos discursos

sobre alimentação. Na verdade, serão cada vez mais aspectos ligados às questões

nutricionais e às questões de saúde que estruturarão os discursos sobre alimentação e não

aspectos de ordem ética ou disciplinar, como os que tinham caracterizado algumas das

orientações alimentares dos finais do século XIX. Mesmo na macrobiótica, a referência a

aspectos nutricionais e às vantagens, em termos de saúde e de energia, do consumo de

certos alimentos, passou a ser elemento estruturante dos discursos.

*

Julgo ser possível sustentar após esta apresentação, a importância de Ohsawa, e do

conjunto de actividades associadas à macrobiótica, na compreensão de algumas das

transformações alimentares que se têm vindo a observar nas sociedades euro-americanas.

Alimentos que no passado não se consumiam ou que tinham uma importância residual,

passaram a ser consumidos com maior regularidade, fazendo o seu caminho das margens

para o centro. É nesse sentido que se expressam Du Bois (2008), Mascarenhas (2007) e

Belasco (2007). O “leite” e iogurtes de soja passaram a ter um lugar proeminente nas

fileiras dos grandes supermercados, sendo assim evidenciada a importância que estes

consumos adquiriram. A produção e consumo de produtos biológicos, ainda que longe de

se encontrar limitada aos que seguem a macrobiótica, foram largamente incentivados por

esta proposta. De acordo com os dados recolhidos, a distribuição de alimentos como o

miso, molho de soja, tofu, óleo de sésamo, algas, diversidade de grãos, resultou em

grande medida da introdução da macrobiótica. Por outro lado, a opção por tratamentos

alternativos como os propostos pela macrobiótica, o shiatsu, e até a acupunctura

beneficiaram com a introdução da proposta de Ohsawa. Este autor, defendia, aliás, ter

sido ele a introduzir a acupunctura na Europa (cf. Lopes, 1978: 22) e, muito embora Luísa

Franco refira datas anteriores à sua passagem por França (Franco, 2010), é possível que o

exercício prático da acupunctura tivesse sido particularmente estimulado por Ohsawa, o

mesmo se aplicando a outras formas alternativas de tratamento, como o shiatsu e a

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«À Mesa com o Universo»

142

moxabustão. Julgo poder dizer que os dados apresentados apontam uma efectiva

centralidade da macrobiótica, que, de prática marginal, proporcionou, pelos consumos,

alimentares e ao nível dos tratamentos, transformações dos sistemas sociais. Convém

salientar, contudo, que muito embora alguns consumos e algumas práticas possam ter

relação com a macrobiótica, a partir de determinado momento ter-se-ão autonomizado

dessa proposta e seguido um caminho próprio, sendo, frequentemente, ignorada a história

desses processos.

3. 6 A Macrobiótica: Princípios e Categorias para Ler o Mundo

Os princípios que fundam a macrobiótica não se resumem à apresentação inicial

que foi feita por Ohsawa no livro Principe Unique, (1973 [1931])72

. A visão de Ohsawa,

sobre a macrobiótica, seria construída no decurso da sua vida e exposta em diversas

obras. Diga-se, desde já, que a macrobiótica de Ohsawa não é exactamente a mesma de

Michio Kushi, que, depois de Ohsawa, pode ser visto como o mais importante divulgador

desta prática. Michio Kushi integraria na macrobiótica novos elementos como a «Teoria

das cinco transformações» e atenuaria alguma da rigidez, em termos de orientação

alimentar, que por vezes é atribuída a Ohsawa. Faria ainda um grande esforço para

encontrar na investigação científica suporte para a visão macrobiótica dos alimentos, do

corpo e do mundo, como se se tivesse apercebido que este suporte era fundamental para

credibilizar a macrobiótica. Por conseguinte, os discursos científicos, ou, de forma mais

rigorosa, os discursos que resultaram da apropriação dos discursos científicos, tornaram-

se, paradoxalmente, estruturantes também na macrobiótica. Esses discursos deram lugar a

um tipo de linguagem onde se misturam saberes periciais, leigos e ideologicamente

orientados, que organizam muitos dos discursos ao nível da macrobiótica. De tal mistura

resulta um “reservatório” de significados a partir do qual é feita uma leitura do mundo,

tanto ao nível dos promotores da macrobiótica como por parte dos que têm formação

nesta área, agindo-se, desta forma, como se se procurasse corresponder, ainda que de

forma indeliberada, ao desejo de síntese e de sentido prático explicitado por Ohsawa no

livro Principe Unique.

72 Como referido, é nesta obra que Ohsawa começa por expôr o seu pensamento à sociedade europeia. Teve

a sua primeira edição em França, pela J. Vrin, uma respeitada editora de textos filosóficos, continuando

ainda a ser editado.

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

143

Nesta parte do trabalho, focar-me-ei, sobretudo, no conjunto de princípios e

categorias que actualmente são tomados como fundamentais no ensino da macrobiótica e

que são, em larga medida, o resultado do trabalho de Ohsawa e de Kushi. Sobre este

assunto convém ainda dizer que se é possível encontrar uma linha na macrobiótica que

fez uma leitura mais estrita dos ensinamentos de Georges Ohsawa, uma linha que não

tolera algumas das inovações trazidas por Kushi, e que o encara como tendo feito muitas

cedências ao materialismo – linha, que, de acordo com alguns dos meus informantes,

pode ser identificada com Tomio Kikuchi (Brasil) - é também possível encontrar outras

perspectivas que consideram positiva a maior abertura introduzida por Kushi. O que

importa aqui salientar, é que a macrobiótica está longe de ser um objecto estático, como,

de resto, vem sendo referido. Tem procurado adequar-se a diferentes tempos e diferentes

modos, sendo um objecto aberto a recomposições e com capacidade para interceptar

influências diversas, revelando vontade e capacidade de adquirir um efectivo sentido

prático.

A compreensão do «Princípio Único», também designado «Princípio Unificador»,

constitui um dos pontos basilares que costuma ser referido pelos promotores da

macrobiótica para entender este sistema de pensamento, ainda que nem sempre seja

devidamente explorado73

. A percepção deste princípio teria resultado da observação do

universo, da natureza, da ideia de não permanência e de transformação e mudança

contínuas, tal como sugerida por textos clássicos como o I Ching ou Livro das

Mutações74

.

Tendo em vista a compreensão, por parte dos ocidentais, do sistema cognitivo que

sustentava a macrobiótica, Ohsawa elaborou uma teoria que, a seu ver, procurava

simplificar os ensinamentos dos seus antecessores e apresentar uma visão integrada dos

sistemas religiosos e filosóficos orientais. Mais do que simplificar ensinamentos, convém

73 Ohsawa adoptou a terminologia «Princípio Único», no entanto, como referido, alguns formadores têm

sugerido o conceito de «Princípio Unificador» como sendo mais expressivo daquilo que se procura afirmar,

ou seja, como transmitindo de forma mais adequada a ideia de unidade de todos os fenómenos e de visão

integrada. 74 A origem deste livro é atribuída ao fundador mítico Fu-hsi,(Fou-Hi) apontado como primeiro “sábio”

civilizador da China Antiga. Terá sido ele o inventor dos trigramas e do método de adivinhação que lhes está implícito, tendo governado mediante a consulta das varinhas de aquileia (cf. Kielce, 1988: 9). Estas

varinhas permitiriam definir os trigramas e hexagramas a partir dos quais se augurava o futuro. O termo I

significaria transformação e king a trama de um tecido ou também “tratado de base”. De acordo com a

tradição chinesa, as origens do I Ching podem ser situadas no terceiro milénio A.C., sendo assim

classificado como um dos livros mais antigos de que há registo (cf. Guita, 2005:26). Este livro terá sido

posteriormente aperfeiçoado com os contributos do rei Wen (1092-1090 A.C), do seu filho, duque de Tcheu

e com Confúcio (séc. V A.C.). A primeira tradução, lacunar, é feita em meados do séc. XIX, tendo surgido

posteriormente, em 1924, uma tradução completa pela mão do missionário Richard Wilhelm, que viria a ser

publicada em inglês em 1951 (cf. Kielce, 1988:17).

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«À Mesa com o Universo»

144

dizer, contudo, que Ohsawa os organizou de forma criativa e arrojada. Face à mente

racional, que considerava ser característica do ocidente, arquitectou um sistema de

pensamento que esperava que tornasse possível, aos ocidentais, compreender uma forma

de entendimento do mundo mais intuitiva e dedutiva. De uma forma simples, pretendia

que a partir da apreensão de um princípio universal (lei universal), fosse possível a sua

aplicação em casos particulares (kotzsch, 1988: 54)75

.

Através do «Princípio Único», Ohsawa estabelecia uma visão do universo em que

tudo seria proveniente de uma única fonte (“absoluto”, “infinito”) e participaria da

mesma realidade. A visão do universo é assim uma visão holística, através da qual pode

ser detectada uma relação de interdependência entre todos os fenómenos. Desta forma, a

visão do cosmos sugerida é a de um “continuum ôntico” (Kotzsch, 1981), onde todos os

fenómenos podem ser vistos como expressão do divino e como sendo perpassados pela

mesma energia universal. Este princípio surge, assim, como princípio integrador, capaz

de tudo abarcar. O «Princípio único» encontrar-se-ia por detrás de todos os fenómenos do

universo, expressando-se através da relação dinâmica entre yin e yang (categorias opostas

e complementares). Do seu entendimento resultaria a compreensão da ordem do universo.

O conceito de «Princípio Único» aparece em Ohsawa (1973 [1931]) de forma algo

imprecisa, como «Lei Única», «Tao», «Taikyoku», «Brahman», «Deus», «universo-éter»,

«Absoluto» «Natureza». Uma certa complexidade associada a este conceito tem sido,

possivelmente, o motivo pelo qual, apesar de ser entendido como princípio norteador,

nem sempre lhe ser feita menção quando se introduz a macrobiótica. É o que sucede com

alguns livros que abordam este assunto (cf. Varatojo, 2010), em que se opta por referir

uma energia universal - o Ki (Japão) ou o Chi (China), ou ainda o prana (Índia) -, que

seria a base da criação de tudo o que existe, e que corresponderia a uma energia subtil

que fluiria pelo universo e que poderia também ser reconhecida nas estruturas humanas.

Esta categoria, a de Ki, parece ser menos problemática e de mais fácil assimilação.

Ao «Princípio único», Ohsawa acrescentaria mais tarde os «Sete axiomas da

ordem do universo» ou, como refere Kushi (1978:19), os «Sete Princípios Universais do

Universo Infinito», ou seja

75 É certo que a aplicação deste procedimento sugere também uma lógica científica, o que sugere que

muitos aspectos do pensamento de Ohsawa merecem uma análise detalhada. Contudo, não desenvolverei

no contexto deste trabalho uma análise aprofundada da sua proposta, dos seus excessos e das suas

incongruências, dado que tal não constitui o objectivo desta pesquisa. Esta apresentação, ainda que não seja

totalmente não analítica, visa sobretudo apresentar um quadro orientador a partir do qual se possa

compreender de que modo se arquitectou uma cosmovisão que integra um sistema alimentar e um sistema

terapêutico.

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

145

Tudo é diferenciação da Infinidade Una.

Tudo Muda.

Todos os antagonismos são complementares.

Não há nada idêntico.

Tudo o que tem uma frente tem um dorso.

Quanto maior a frente, maior o dorso.

Tudo o que tem um princípio tem um fim.

(Kushi, 1978:19)

A estes princípios universais haveria que juntar os doze teoremas do «Princípio

Único» ou as «Doze leis da mudança do universo infinito», de acordo com a interpretação

dos discípulos de Ohsawa:

Doze leis da mudança do universo infinito

A Infinidade Una manifesta-se em tendências complementares e antagónicas, yin

e yang, em sua mutação sem fim.

Yin e yang manifestam-se continuamente a partir do movimento eterno do

universo infinito.

Yin representa a centrifugalidade. Yang representa centripetalidade. Yin e Yang

juntos produzem energia e todos os fenómenos.

Yin atrai yang. Yang atrai yin

Yin repele yin. Yang repele yang.

Yin e yang combinados em proporções variadas produzem fenómenos diferentes.

A atracção e repulsão entre os fenómenos é proporcional à diferença existente

entre as forças yin e yang.

Todos os fenómenos são efémeros, mudando constantemente a sua constituição

quanto a forças yin e yang; yin muda-se em yang, yang muda-se em yin.

Nada é exclusivamente yin ou exclusivamente yang. Tudo é composto por ambas

as tendências em graus variáveis.

Nada é neutro. Em tudo existe uma predominância de yin ou de yang.

Grande yin atrai pequeno yin. Grande yang atrai pequeno yang.

Extremo yin produz yang e extremo yang produz yin.

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«À Mesa com o Universo»

146

Todas as manifestações físicas são yang no centro e yin na periferia.

Fonte: Kushi, 1978:20

A representação gráfica das mutações energéticas e das diferentes combinações entre yin

e yang pode ser observada num conhecido hexagrama associado ao Livro das Mutações.

Figura 5 - Ba Gua do I Ching76

Como referi, não procederei, neste contexto, a uma análise em profundidade do

conteúdo desta proposta. A sua apresentação destina-se, sobretudo, a fornecer um

conjunto de elementos que norteiam a macrobiótica e que serão importantes para a leitura

deste trabalho. A ideia de mudança, transmitida pelo I Ching, é uma das constantes no

conjunto dos 12 teoremas apresentados. Essa mudança aparece expressa pelas categorias

yin e yang, categorias que Ohsawa interpretou de forma pessoal, tendo mesmo alterado o

seu sentido em relação à medicina tradicional chinesa.

Compreender a «ordem do universo» implicava ter sempre presente ideia de que

todos os fenómenos participam de uma mesma energia cósmica, procedendo do infinito,

numa espiral de materialização, e, a ele retornando, numa espiral de dissolução. Este

76Representação gráfica das mutações abordadas no I Ching. Hexagrama onde podemos observar oito

trigramas com as diferentes combinações entre yine yang. Imagem disponível em Miami community

acupuncture http://www.miamicommunityacupuncture.com/blog/balance-method-acupuncture/ [Acedido

em 3-12-11].

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

147

movimento expressaria a suposta «ordem do universo», uma «ordem» com diferentes

manifestações do ponto de vista energético, mas sempre na trajectória da materialização

ou desintegração, de acordo com os diversos estádios ocupados na espiral. Kushi,

justificaria esta arquitectura em espiral tendo em consideração a universalidade deste

padrão e a sua observação na via láctea, no crescimento e desenvolvimento das plantas,

nas impressões digitais, nos embriões… (cf. Kushi, 1989). Essa estrutura espiralada do

universo seria detectada pelos vestígios que deixaria na configuração humana e na

natureza em geral, revelando, assim, a unidade e interconexão de todos os fenómenos.

Desta forma, contribuía para unificar tudo aquilo que podia parecer contraditório e

expressaria, de modo eloquente, o mecanismo da criação. (Kushi etal., 1989)77

.

Vejamos alguma das estruturas em espiral que são consideradas:

Figura 6 - A espiral da evolução

Fonte: Kushi, 1989: 44

77 Sobre a formação das espirais diz-nos Kushi: «As espirais são inicialmente criadas por uma força

centrípeta yang, da periferia para o centro, no sentido da fisicalização e materialização, e, ao atingir o seu

estado máximo de contracção, esta força centrípeta torna-se no seu oposto, uma força centrífuga, yin, que se

expande a partir do centro de retorno à periferia, tomando um curso de decomposição e desmaterialização.»

(1978:32). Qualquer espiral completa do universo seria uma espiral logarítmica de sete órbitas (1978:34).

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«À Mesa com o Universo»

148

Aqui encontramos representadas as sete órbitas da espiral de evolução. O

entendimento aqui sugerido remete-nos para a teoria evolucionista de desenvolvimento

das espécies, ainda que esta surja de forma simplificada. Coloca o homem no centro da

espiral, apresentando-o como a forma de vida mais contraída, mais yang. Em cada um

destes estádios as espécies representam uma forma específica de transformação dos

alimentos disponíveis, podendo todos os domínios da vida biológica ser considerados

como comida.

Na imagem seguinte, apresenta-se a visão em espiral do desenvolvimento humano

como mais uma evidência da universalidade deste padrão:

Figura 7 - Desenvolvimento humano em espiral: de embrião a adulto

Fonte: Kushi, 1989:33

A representação em espiral pode ser observada nos principais sistemas humanos,

estando as forças centrífugas (yin) e centrípetas (yang) sempre presentes, mimetizando os

fluxos do universo.

A representação em espiral é, na verdade, utilizada para mostrar os mais diversos

fenómenos, mesmo a História de diferentes civilizações. Procurando-se estabelecer uma

ordem no devir histórico, recorre-se à localização da Estrela Polar para referir

«civilizações materiais» e «civilizações espirituais».

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

149

Figura 8 - O ciclo Vega/Estrela Polar

Fonte: Kushi, 1989:52

Na imagem seguinte, encontramos uma apresentação mais detalhada dos

acontecimentos históricos, cada secção e cada estádio da espiral com acontecimentos

específico, procurando-se demonstrar, assim, que esta configuração pode explicar todos

os fenómenos. A imagem traduz ainda a ideia da repetição de acontecimentos históricos e

a ideia de alternância, entre períodos de expansão e conquista, e períodos de

universalização de ideias.

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«À Mesa com o Universo»

150

Figura 9 - Espiral da História

Fonte: Kuschi, 1989: 53

Nem a tabela de Mendeleyev resiste a uma apresentação em espiral. O gosto pelas

experiências de transmutação da matéria, evidenciado por Ohsawa através de diversas

experiências por ele efectuadas, levaram-no também a interpretar os elementos químicos

em termos de yin e de yang, procurando, através da espectroscopia, aproximações a

discursos científicos verdadeiramente ousadas (Ohsawa, 1973). Na imagem em espiral, os

elementos mais yin ocupam as áreas mais periféricas, enquanto os elementos mais yang

ocupam zonas mais centrais. Os elementos mais leves, mais yin, vão-se gradualmente

transmutando em direcção a elementos mais pesados e, os mais pesados, vão-se também

gradualmente transmutando em elementos mais leves (cf. Kushi, 1989:42).

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

151

Figura 10 - A espiral dos elementos

Fonte: Kushi, 1989: 42

Outros exemplos da formação em espiral, e de como, através delas, se pode

explicar o mundo podem ser encontradas na obra de Kushi The Book of Macrobiotics

(1989).

Para concluir esta apresentação vejamos o esquema elaborado por Kotzsch para

dar conta da representação da «ordem do universo», tal como ela havia sido concebida

por Ohsawa.

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«À Mesa com o Universo»

152

Figura 11 - A ordem do universo

Fonte: Kotzsch; 1988:

Neste esquema podemos encontrar os sete níveis de evolução da espiral

logarítmica. De acordo com a concepção representada no esquema, a partir do Infinito

terão sido criados dois pólos, yin e yang, que, através de forças centrípetas (yang) e forças

centrífugas (yin), terão dado origem a todos os fenómenos do mundo relativo. Observa-se

uma espiral de materialização, “fisicalização”, onde, da sétima esfera para a primeira, há

um movimento gradual de contracção, “yanguização”, como é comum ouvir junto de

seguidores da macrobiótica. Neste esquema, encontramos assim uma sétima esfera que

representa a infinidade una, unidade, deus; uma sexta esfera a partir da qual se observa a

polarização, yin e yang, o início do mundo relativo; uma quinta esfera (energia e

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

153

vibração; início do mundo fenoménico); uma quarta esfera (partículas pré-atómicas,

início do mundo material); uma terceira esfera (o mundo dos elementos e a natureza

física); uma segunda esfera (o reino vegetal, início do mundo orgânico) e, por fim, a

primeira esfera (o reino animal, terminando no Homem) (Kushi, 1978:36). Nesta espiral,

cada uma das esferas permite a seguinte, ainda que todas se encontrem interligadas. Da

primeira à sétima esfera, esta espiral representa ainda o caminho do absoluto em direcção

ao mundo relativo, representa a trajectória para a materialização, desde o estádio de maior

expansão (energia cósmica) até à sua contracção (vida humana).

Este esquema pode também ser perspectivado a partir do Homem, situando-se este

no primeiro estádio e caminhando em direcção ao sétimo, em direcção ao infinito (espiral

de espiritualização). Como se pode observar, há uma trajectória inversa à que acabei de

referir. Podemos aqui ver presente a ideia de circularidade e de eterno retorno, em que

cada indivíduo transporta algo dessa centelha de absoluto e infinito. De acordo com

Kotzsch, nesta concepção, em última instância o Homem é Deus, tem nele o eterno como

desígnio, a memória do infinito ao qual regressará. O destino de cada pessoa seria, pois, o

de redescobrir o seu eu infinito e, de acordo com esta concepção, tal não é algo que

aconteça apenas após a morte, pode ser realizado em vida - desde que cada um se

encontre de perfeita saúde (em termos emocionais, psicológicos e físicos) e tenha

consciência da unicidade divina, pode realizar essa identidade com o absoluto (Kotzsch,

1988:157).

Figura 12 - A Espiral da Criação

Fonte: Kushi, 1989:16

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«À Mesa com o Universo»

154

Daqui decorre, em larga medida, a importância atribuída a aspectos como a

consciência e a alimentação, formas de proporcionar um estado que concorreria para a

realização dessa identidade. Os «Níveis de discernimento e consciência» seriam, neste

contexto, elementos fundamentais para definir cada tipo de orientação e dariam ainda

conta do “estádio de desenvolvimento” de cada um face à escala evolutiva que lhe é

apresentada.

Quadro 1 – Níveis de Discernimento e Consciência

Nível de

Discernimento

Nome da Infi-

nidade em

cada Nível

Manifestações em

cada Nível

7º Supremo Consciência universal e eterna.

Aceitação incondicional, que

tudo abraça. Gratidão ilimitada,

liberdade completa.

Liberdade Felicidade eterna

com o espírito de

Um Grão, Dez Mil

Grãos. Vida em

Satori ou Nirvana

6º Ideológico Distinção entre justiça e

injustiça, rectidão e iniquidade.

Justiça Religiões,

doutrinas e

disciplinas.

5º Social Distinção entre o bom e o mau,

conveniente e inconveniente,

próprio e impróprio,

adaptabilidade e

inadaptabilidade.

Paz Éticas, códigos

morais, economia

e política.

4º Intelectual Distinção entre razão e sem-

razão, provado e não-provado.

Verdade Teorias, conceitos,

organizações,

sistemas.

3º Sentimental Distinção entre amor e ódio,

simpatia e antipatia, graça e

inépcia, alegria e tristeza.

Amor Artes, romances,

poesia, música.

2º Sensorial Distinção entre conforto e

desconforto, satisfação e fome,

beleza e fealdade.

Conforto e

Prazer

Objectos,

artefactos,

maquinarias.

1º Mecânico Reacções espontâneas,

automáticas.

Adaptabilidade A mudança está

sujeita ao estímulo

do meio-ambiente.

Fonte: Kushi, 1978:39

O que esta proposta nos apresenta é, assim, um julgamento relativamente aos

comportamentos, dando-se uma indicação, em termos evolutivos, do caminho a percorrer.

Referia atrás que Ohsawa interpretou as categorias de yin e de yang de forma pessoal e

distante da que encontramos na medicina tradicional chinesa. A informação dada nas

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

155

sessões de formação relativamente a este aspecto é a de que Ohsawa terá feito uma

adaptação da proposta dos chineses relativamente aos conceitos de yin e yang, para que

os ocidentais compreendessem mais facilmente a sua proposta. Assim, órgãos que na

medicina tradicional chinesa são classificados como yang, como o intestino grosso e a

bexiga, na macrobiótica são considerados yin, enquanto que órgãos considerados yin pela

medicina tradicional chinesa, como o fígado, o coração e os rins, são considerados yang

na macrobiótica. Na macrobiótica o princípio de categorização é o de que quanto mais

quente, denso e contraído, mais yang; órgãos ocos são órgãos yin.

As categorias yin e yang são vistas, portanto, como compondo o mundo relativo e

como governando todos os fenómenos “…individuais e colectivos, as partes e o todo, o

passado e o futuro” (Kushi, 1978:21), são categorias opostas, mas complementares. “Elas

constituem o entendimento, o conhecimento mais elevado que a humanidade jamais teve,

e constituem a sabedoria inata, genuína e intuitiva inerente a todos os seres humanos.

Elas são a chave para a realização de todos os sonhos possíveis. Conhecendo-as, seremos

capazes de transformar a doença em saúde, a guerra em paz, os conflitos em harmonia, o

caos em ordem, a miséria em felicidade.” (ibid.:21-22). Assim se afirma a importância da

compreensão destas categorias, elas são um instrumento indispensável para agir sobre os

alimentos, o corpo e a saúde. Na tabela que se segue podem ser observados exemplos de

yin e de yang, tal como apresentados na obra O livro da Macrobiótica (Kushi, 1978).

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«À Mesa com o Universo»

156

Quadro 2 – Exemplos de Yin e Yang

*Por conveniência, usam-se os símbolos para Yin e para Yang.

Fonte: Kushi, 1978: 22

Este quadro de orientações é fornecido para que se possa detectar o movimento

yin e yang. Uma das ideias fundamentais aqui contida é a de que tudo se encontra em

perpétuo movimento. A mutação surge como condição eterna, devendo o Homem

aprender a analisar ritmos, mudanças e transformações.

CATEGORIAS

Geral

YIN

Força centrífuga

YANG *

Força centrípeta

Tendência Expansão Contracção

Função Difusão

Dispersão

Separação

Decomposição

Fusão

Integração

Reunião

Organização

Movimento Mais lento e inactivo Mais rápido e activo

Vibração Ondas curtas e de mais alta

frequência

Ondas longas e de mais baixa

frequência

Sentido/Direcção Ascendente e vertical Descendente e horizontal

Posição Mais exterior e periférico Mais interior e central

Peso Mais leve Mais pesado

Temperatura Mais frio Mais quente

Luz/ Luminosidade Mais sombrio e escuro Mais claro e brilhante

Humidade Mais húmido Mais seco

Densidade Menos espesso Mais espesso

Tamanho Maior Mais Pequeno

Configuração Mais expansiva e frágil Mais contractiva e resistente

Forma Mais longa Mais curta

Textura Mais mole Mais dura

Partícula Atómica Electrão Protão

Elementos N, O, K, P, Ca, etc. H, C, Na, As, Mg, etc.

Meio-ambiente Vibração….Ar….Água…..Terra

Efeito do clima Tropical Clima mais frio

Qualidade biológica Vegetal Animal

Sexo Feminino Masculino

Estrutura dos

órgãos

Mais ocos e expansivos Mais compactos

Nervos Mais periféricos, ortossimpático Mais centrais, parassimpático

Atitude Mais branda, negativa Mais activa, positiva

Trabalho Mais psicológico e mental Mais físico e social

Dimensão Espaço Tempo

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

157

A estas orientações Kushi acrescentaria a «Teoria das cinco transformações», uma

teoria captada também a partir do pensamento chinês e associada à medicina tradicional

chinesa, tal como expresso no Clássico de Medicina Interna do Imperador Amarelo.

Através dela ensina-se a olhar para os ritmos do universo e da natureza e a observar os

processos de transformação. Agregada à percepção dualista de yin e de yang, permitiria

compreender o corpo, a saúde e a doença. Seria a observação dos ritmos naturais,

sucessão dos dias e das noites, das estações do ano e dos diferentes contextos ambientais,

que permitiria detectar diferentes tipos de movimento, diferentes estádios de

transformação da matéria e a preponderância de certos elementos. A estas transformações

(cinco) estariam associados cinco órgãos humanos, cinco sabores, cinco cores, cinco

alimentos, cinco estádios emocionais… Uma adequação a cada um destes estágios de

transformação só seria possível com a compreensão da «ordem do universo» e com a

compreensão do ciclo de transformações. Estamos perante a ideia de uma aprendizagem

que exige formação, mas também muita intuição, dado que os conceitos de yin e de yang

são apresentados como sendo sobretudo intuitivos.

A teoria dos cinco elementos foi também introduzida na macrobiótica para

permitir uma observação mais adequada de diferentes ritmos e ciclos, e também de forma

a auxiliar a realização de diagnósticos. Esta teoria baseia-se na observação da natureza,

identificando aí cinco elementos, cinco formas de manifestação da energia universal. São

eles: Terra (Solo), Metal, Água, Madeira (Árvore) e Fogo. Estes cinco elementos

encontrar-se-iam relacionados com as estações do ano, sendo um determinado elemento

predominante em cada estação78

. Assim, o ciclo das cinco transformações pode ser visto a

partir do elemento Madeira, uma energia ascendente, expansiva, que corresponderia à

Primavera e à dupla de órgãos Fígado/Vesícula biliar, segue-se-lhe o elemento Fogo,

muito activo, muito expandido, corresponde ao Verão e à dupla de órgãos Coração e

Intestino delgado, depois o elemento Terra, energia descendente, identificada com o final

do Verão e associada aos órgãos Estômago/Baço-Pâncreas, a seguir o elemento metal,

uma energia de contracção, de reunião, associada aos Pulmões/Intestino grosso, e, por

fim, o elemento Água, uma energia flutuante, associada aos Rins/Bexiga. Cada estação

do ano activaria de forma particular os órgãos com ela relacionados e teria também

características mais yin ou mais yang. Haveria também um ciclo de controle e de apoio

78 Poderá parecer estranho que se refiram cinco elementos quando apenas conhecemos quatro estações,

mas convém dizer que esta é uma construção simbólica oriental e, tal como me foi referido nas sessões de

formação, os chineses considerariam o final do Verão como correspondendo a uma estação e a uma energia

particular.

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«À Mesa com o Universo»

158

entre os diferentes elementos.

Esta breve descrição não dá conta da complexidade desta construção e muito

menos da sua aplicação, mas importa referi-la por ser tida como importante meio de

apoio em termos de orientação no mundo e como importante auxiliar de diagnóstico e de

tratamento.

Figura 13 - Os cinco elementos79

No quadro que se segue encontraremos uma síntese das principais características

deste esquema de compreensão do mundo.

79 Fonte: http://www.acupuncturetunbridgewells.co.uk/the-five-elements.htm [acesso 3-12-11]

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

159

Quadro 3 As Cinco Transformações

Transformação Árvore Fogo Solo Metal Água

Tipo de energia Ascendente Muito activa Descendente Solidificada Flutuante

Órgãos de de

alimentação e

eliminação

Vesícula

biliar

Intestino

Delgado,

triplo

aquecedor

Estômago Intestino

Grosso

Bexiga

Órgãos de de

armazenamento

e distribuição

Fígado Coração.

Governador

Do coração

Baço-

Pâncreas

Pulmões Rins

Cor Verde,

cinzento

Vermelho Branco

leitoso-

amarelo

Branco

Pálido

Escuro

Estação Primavera Verão Fim de Verão Outono Inverno

Horas do dia Amanhecer Meio-dia Tarde Anoitecer Noite

Fases da lua Quarto

crescente

Lua cheia Lua coberta

Por nuvens

Quarto

minguante

Lua nova

Direcção Este Sul Centro Oeste Norte

Sabor Ácido Amargo Doce Picante Salgado

Odor Oleoso Queimado Fragrante A peixe A podre

Som Grito Riso Canto Choro Gemido

Emoção Zanga Histeria Auto-

compaixão

Melancolia Medo

Sentido Visão Tacto Paladar Olfacto Audição

Órgão sensorial Olhos Boca Língua Nariz Ouvidos

Cereal Cevada,

Aveia,

centeio

Milho Millet Arroz Leguminosas,

trigo

sarraceno

Vegetal De

crescimento

ascendente

De folhas

largas

Redondos,

doces

Pequenos e

contraídos

Raízes

Tecido Músculos Artérias Tendões Pele e

Cabelo

Ossos

Planeta Júpiter Marte Saturno Vénus Mercúrio

Fonte:IMP (2005)

Não terei possibilidade de explorar, nesta ocasião, todas estas características e o

modo como se relacionam entre si, julgo, no entanto, que a referência às mesmas

esclarece em que medida esta construção constitui um importante instrumento de

orientação na macrobiótica. A teoria das cinco transformações toma, como ponto central,

a «natureza», dando-nos conta de como na macrobiótica, ela é um poderoso recurso em

termos discursivos.

Pelo que tem vindo a ser apresentado, julgo ter ficado evidenciado o quanto as

questões ideológicas orientam as escolhas alimentares. No caso da macrobiótica, a ênfase

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«À Mesa com o Universo»

160

na espiritualidade; na narrativa das origens; na explicação da ordem do universo; nos

níveis de consciência; na ética que deve nortear a acção (honestidade e integridade

absolutas), são elementos que impregnam a macrobiótica de uma aura de religiosidade.

Algumas das orientações em termos de conduta não estão muito distantes dos

mandamentos:

Ser grato a tudo: dificuldades, pobreza, infelicidade e miséria.

Nunca temer ou odiar.

Ter fé na Ordem do Universo. Não desistir.

Não esquecer favores ou gentilezas. Mostrar sempre gratidão

Nunca mentir.

Ser perfeito

Gostar de todo mundo

Não se mostrar suspeito aos outros.

Nunca pretender ser altruísta.

Descobrir sempre alegria, mesmo nas coisas pequenas.

Dar a outros o que é importante a você próprio.

Conscientizar-se que a vida é um milagre.

Fonte: Lopes et al. 1978:25-26

Ainda que Ohsawa tivesse defendido o non credo, o certo é que a aceitação da sua

visão do universo assenta, em boa medida, num acto de fé. Por mais interpretações que

possam surgir relativamente ao que deve ser entendido por non credo na macrobiótica,

este princípio parece contraditório. A este propósito podia ler-se nos textos de apoio

distribuídos pelo IMP «Por non-credo entende-se que não se deve adoptar teorias e

concepções sem reflectir e adquirir experiências sobre todas elas, incluindo aquelas aqui

apresentadas». Uma forma suavizada, portanto, de contornar esta questão.

A mensagem de Ohsawa relativamente à vida podia ser também muito cativante.

A sua mensagem é a de optimismo e de que qualquer um se pode tratar. Para ele não

existiam doenças incuráveis, podia era haver falta de discernimento. Vender a vida por

um salário, trabalhando, era, também para ele, um acto de incompreensão da «ordem do

universo», os seus discípulos diriam, no entanto, que era um trabalhador incansável.

Defendia os seus argumentos com convicção e a sua mensagem optimista e de convite à

experimentação terá por certo seduzido muitos. Outros ter-se-ão entusiasmado com o

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A Macrobiótica: trânsitos e trajectos

161

reencantamento do mundo que a macrobiótica propunha, uma visão em que o indivíduo

era celebrado e livre das clássicas obrigações religiosas.

Em termos de recomendações alimentares, a orientação dada na macrobiótica é a

de que se escolham alimentos em harmonia com o contexto ambiental, de preferência

cultivados próximos do lugar em que se vive, de acordo com a estação do ano e de

preferência de origem biológica. Os alimentos devem ser muito bem mastigados e deve-

se prestar atenção ao modo como os alimentos são consumidos, procurando fazer do acto

de comer um ritual de comunhão com o universo.

Uma das questões que, desde logo, pode ser suscitada, a partir destas observações,

prende-se com a natureza de muitos dos produtos utilizados na macrobiótica (algas,

derivados de soja, feijões azuki…). Julgo que o facto de a divulgação da macrobiótica ter

sido feita inicialmente sobretudo por japoneses e seguindo a alimentação “tradicional”

japonesa ajuda a compreender este facto. Por outro lado, uma das razões que me foram

apontadas, por formadores na área da macrobiótica, incide em questões nutritivas e

medicinais. As algas, ainda que não figurem habitualmente na alimentação dos

portugueses, são vistas como extremamente ricas em termos minerais, o que justifica a

sua importação e consumo. Por outro lado, o miso, as ameixas umeboshi, bem como

outros produtos, são vistos como tendo propriedades medicinais, figurando em diversos

remédios caseiros que são propostos. Nos capítulos seguintes, terei oportunidade de

apresentar de forma mais detalhada aspectos ligados à alimentação proposta pela

macrobiótica.

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A Macrobiótica em Portugal

163

Capítulo 4

A Macrobiótica em Portugal

4. 1 A Macrobiótica em Portugal: Condições de Emergência e Divulgação

O objectivo desta parte do trabalho é, sobretudo, o de permitir um

enquadramento relativo à emergência e divulgação da macrobiótica em Portugal.

Pretendo, assim, perspectivar historicamente este fenómeno e dar conta das

circunstâncias que envolveram a produção social de um tipo específico de consumo e de

orientação na vida. Julgo que esta contextualização histórica se afigura relevante, na

medida em nos permite aceder a um espaço social de germinação e proliferação de

perspectivas que acabarão por ter repercussões relevantes em termos sociais.

Relevantes, em primeiro lugar, pelos efeitos ao nível das transformações dos hábitos

alimentares, mas também, e concomitantemente, pelas repercussões ao nível dos

cuidados terapêuticos, dado que a macrobiótica incorpora, claramente, essa vertente.

Estes dois aspectos (comida e terapia), suportados por um conjunto de concepções

específicas sobre os alimentos, o corpo, a saúde, a doença e até o mundo, darão lugar,

em Portugal, como noutros contextos, a um conjunto de acções que contribuirão para

criar novos dinamismos sociais e introduzir inovações sociais e culturais.

A cadeia de pessoas, lugares, produtos, saberes e significados, criada a partir da

macrobiótica, gera um tipo de dinamismo específico no espaço português. Ainda que

possa ter ligações com estruturas pré-existentes, como as que promoviam o naturismo e

vegetarianismo, há uma dinâmica nova que importa perceber. A movimentação

observada, resultante da circulação de ideias, entendimentos, produtos e acções,

caracteriza-se, na verdade, por um tipo de realizações que tem semelhanças com o que

se verificou em países como a França ou EUA. Começa por haver um contacto com o

tipo de proposta defendido pela macrobiótica; surgem alguns indivíduos (por vezes

marcados por uma história de doença) que decidem adoptá-la e que experimentam os

seus benefícios; segue-se um período de implementação e diversificação das vias

através das quais se materializa um novo produto social: sessões de informação e

promoção, publicações, aulas de cozinha, restaurantes, produção e circulação de bens

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«À Mesa com o Universo»

164

alimentares, consultas de orientação alimentar e estilo de vida, procedimentos

terapêuticos, etc.

Para que esta materialização ocorresse e dela decorressem efectivas

transformações sociais, algumas com efeitos disruptivos - pelo menos em relação às

práticas alimentares preponderantes -, foram necessárias condições sócio históricas

particulares. Da mesma forma que a generalização do consumo de açúcar ou o aumento

do consumo de soja, analisados por Mintz (1985; 2008), necessitaram de um quadro

histórico, económico e cultural particular, também a alimentação macrobiótica só se

pode expandir devido a um contexto favorável de acolhimento. É certo que, no caso da

macrobiótica, a acção de agentes concretos, como Ohsawa, foi fundamental para que a

macrobiótica se pudesse expandir, mas é de notar que a primeira passagem de Ohsawa

pela Europa (no início da década de 1930) não nos surge descrita como tendo gerado

uma movimentação significativa em torno da macrobiótica neste continente. Só mais

tarde, a partir da década de 1950, se observa um movimento de entusiamo (entusiasmo

relativo, claro) por esta proposta, surgindo um conjunto de actividades que tornam a

macrobiótica mais expressiva.

Nesta última fase, tal como atrás referi, países como a França, ou os EUA,

caracterizavam-se pela existência de um quadro social e cultural que terá sido mais

favorável ao acolhimento da macrobiótica. Movimentos como o da Beat Generation, de

reacção ao materialismo e tecnocracia (Roszak, 1970); de fascínio pelo Oriente; de

retorno à Natureza; de celebração do self (Heelas, 1999); de recusa de uma certa ordem

social e de procura de soluções fracturantes e alternativas, parecem ter sido

efectivamente favoráveis ao desenvolvimento de propostas algo exóticas como a

macrobiótica (Kotzsch, 1985; Belasco, 2007 [1989]). Conjugada com estas

manifestações de contracultura, ter-se-ia mesmo desenvolvido, de acordo com Belasco

(ibid.), uma «contracozinha», que, sintonizada com os movimentos ecologistas e de

defesa da agricultura biológica, procuraria soluções que fossem simultaneamente

sustentáveis, saudáveis e conscientes. Por outro lado, estes movimentos, não sendo em

muitos aspectos absolutamente pioneiros - a celebração da natureza e a preocupação

com o regime alimentar têm uma longa História, como já vimos -, reactivam alguma

literatura e orientações do passado e criam um espaço onde propostas alternativas como

a macrobiótica podem encontrar alguma afinidade.

Portugal, apesar do isolamento a que o regime ditatorial pré -1974 o votara, não

ficará completamente alheado a estes dinamismos sociais. Os movimentos estudantis da

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A Macrobiótica em Portugal

165

década de 1960 e o período pré-revolucionário que se viveu desde então até Abril de

1974 evidenciaram claramente não apenas um desejo de mudança social, mas também a

penetração de um ideário favorável a diversos tipos de experimentação social. Ainda

que a macrobiótica tenha surgido em Portugal, no final da década de 60, como um

programa rígido de orientação social, em alguns aspectos conservador - como nas

representações em termos de género, na defesa das hierarquias, na crítica à sujeição ao

hedonismo, materialismo e tecnocracia -, propunha um projecto de transformação

individual e social que não era totalmente incompatível com a efervescência e vontade

de mudança que se vivia no momento. Se, por um lado, a macrobiótica oferecia uma

proposta de disciplina do corpo e da vontade, por outro, prometia um Homem mais

livre, sem doenças, capaz de ousadas realizações e de um nível de consciência, que

representavam, para alguns, não apenas uma espécie de evolução em termos humanos

mas também uma possibilidade de aperfeiçoar os sistemas sociais. Para além destes

aspectos, a macrobiótica surgia aliada à defesa de um modo de produção de alimentos

(modo biológico e de fraco processamento) que entusiasmava pessoas mais sensíveis às

questões ecológicas, e que desejavam também novas formas de intervenção social. Este

período, na sua abertura a novas ideias e experimentações sociais – onde se inclui a

comida, o corpo, os procedimentos de cura e os estilos de vida -, surge assim como

contexto favorável à expansão da macrobiótica.

Os elementos que apresento, seguidamente, estão longe de recriar por inteiro o

processo relativo à emergência e disseminação da macrobiótica em Portugal. Haverá

sempre dados a acrescentar e outros que serão alvo de discussão. Em todo o caso, e

ainda que não constitua objectivo fundamental deste trabalho a apresentação de uma

história da macrobiótica em Portugal, foi empreendido um esforço de contextualização

que julgo que permitirá compreender o modo como foi sendo acolhido e promovido

esse novo produto social que é a macrobiótica.

Os dados em que me baseio, para a apresentação desta breve e possível história

da macrobiótica em Portugal, resultam essencialmente de entrevistas e conversas

estabelecidas com “informantes privilegiados”: ex-dirigentes da Unimave e praticantes

de alimentação macrobiótica de há longa data80

. Nesta tarefa de reconstrução de

segmentos de um passado recente, procedo a esse exercício imprescindível que é o

80 Uso a expressão “informantes privilegiados” no seu sentido mais comum, ou seja, refiro-me a

indivíduos que, pelas suas trajectórias pessoais e pelos cargos que ocuparam na direcção de instituições

ligadas à macrobiótica, acabaram por ter um conhecimento profundo da macrobiótica praticada em

Portugal. Refiro-me também a praticantes com um longo convívio com a prática macrobiótica.

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«À Mesa com o Universo»

166

cruzamento de dados do terreno. Os elementos que apresento não permitem, só por si,

um cruzamento totalmente satisfatório de informações, mas constituem, ainda assim,

um contributo com algum significado para uma visão mais esclarecida sobre o que foi a

macrobiótica em Portugal.

Os dados recolhidos permitem situar o surgimento da macrobiótica em Portugal,

com actividade visível, nos finais dos anos 60, na cidade de Lisboa. De acordo com

Kotzsch (1985: 225), por volta de 1968, um português, que não identifica, teria

regressado a Portugal, vindo de França, e teria aberto um pequeno restaurante no centro

de Lisboa, onde começara a cozinhar arroz integral com uma pequena quantidade de

vegetais. Esta proposta gastronómica, inspirada na macrobiótica de Ohsawa, terá

decorrido da oportunidade que tivera em França de contactar com a macrobiótica.

Assim, na sequência da inserção deste tipo de pratos nas ementas daquele restaurante,

ter-se-á criado uma clientela com entusiasmo suficiente para organizar uma cooperativa

que viria a constituir em Portugal uma das realizações ligadas à macrobiótica com maior

expressividade: a Unimave (Centro Macrobiótico Vegetariano, S.C.A.R.L). Kotzsch

(1985) associa Jacinto Vieira, que se teria curado de doença grave, à constituição dessa

cooperativa. Ainda a propósito de «começos», Francisco Varatojo aponta o ano de 1975

como data de “começo do movimento macrobiótico”81

. Todavia, de acordo com

Kotzsch e alguns dos entrevistados, o início de actividades com ligação à macrobiótica

terá sido anterior a essa data.

Certo é que, numa primeira fase, seria claramente na cidade de Lisboa que se

dinamizariam actividades com vista à divulgação e promoção dos princípios ligados à

macrobiótica. Os restaurantes, a venda de produtos, as palestras, os cursos, as consultas,

a criação de uma cooperativa, são marcos que ocorrem nessa cidade, centro a partir do

qual circularão ideias que defendem que os alimentos afectam a nossa saúde e que a

macrobiótica nos pode levar a uma melhor compreensão e transformação do mundo.

De acordo com dois dos ex-presidentes da Unimave que entrevistei (José

Oliveira e Carlos Campos Ventura82

), uma das figuras de referência para compreender o

aparecimento e divulgação da macrobiótica no nosso país foi José Galamba, um dos

primeiros importadores de produtos macrobióticos. José Galamba terá tido problemas

81Varatojo, Francisco «História da Macrobiótica

http://www.fototelas.com.pt/historia_da_macrobiotica.htm [Acesso em 20/12/06].

82 José Oliveira, na casa dos setenta, é actualmente professor de yoga e terapeuta de shiatsu e Campos

Ventura, na casa dos cinquenta, é naturólogo.

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A Macrobiótica em Portugal

167

de saúde e, ao tomar contacto com a macrobiótica, em Espanha, acabou por adoptar essa

prática alimentar, promovendo a sua divulgação no nosso país. Nos finais dos anos

1960, princípios dos anos 70, trouxe a Portugal um palestrante espanhol, justamente

com a intenção de dar a conhecer este tipo de alimentação. Francisco Varatojo recorda

que “a primeira palestra sobre macrobiótica em Lisboa foi proferida pelo Dr. Vicente

Ser (…) um discípulo de George Ohsawa”83

. Esta palestra terá sido, segundo Campos

Ventura, muito importante, pois terá gerado um movimento de interesse por esta prática

alimentar. A partir de José Galamba, mas também de Abel Trancoso e outros, ter-se-á

constituído um núcleo de pessoas interessadas pela macrobiótica, que procuraram

informar-se mais com vista a seguir essa orientação alimentar e filosófica. A «Cereália»,

empresa que Galamba criara e se dedicou desde logo à distribuição de produtos

alimentares associados à macrobiótica, viria a permitir que alimentos pouco conhecidos

no nosso país - algas, tamari, miso, ameixa umeboshi, etc. - ficassem disponíveis no

mercado português.

Para José Oliveira (ex-presidente da Unimave), os livros foram também um

elemento de grande relevância na divulgação dos princípios macrobióticos. Recorda que

travou conhecimento com a macrobiótica através de um cartaz que falava da

macrobiótica e de um livro de George Ohsawa, que encontrara num centro de yoga:

Um dia estava em casa do [nome], que dava aulas de yoga em casa, fui lá para

me inscrever no yoga e vi lá um cartaz que falava da macrobiótica. Entretanto,

olhei para o lado e vi que tinha lá um livro do George Ohsawa, peguei no livro

e comecei a ler aquilo. O homem falava no todo… todo à esquerda, todo à

direita, yin/yang, e eu até nem liguei àquilo do yin/yang, mas do todo, o que é

que este gajo quer dizer com o todo? Foi aí que despertei para a macrobiótica.

Um marco significativo na divulgação da macrobiótica em Portugal terá sido o

surgimento do restaurante «A Colmeia», na Rua da Emenda, em Lisboa, nos finais dos

anos 1960, rapidamente tornado num lugar onde não só se serviam refeições

macrobióticas, mas também onde as pessoas se reuniam e debatiam assuntos ligados a

esta prática alimentar e seus princípios orientadores84

. Segundo um dos meus

informantes, cozinhava neste restaurante “uma senhora conhecedora da macrobiótica

83Varatojo, Francisco «História da Macrobiótica

http://www.fototelas.com.pt/historia_da_macrobiotica.htm [Acesso em 20/12/06].

84 Kotzsch (1985) não menciona especificamente este restaurante, mas é bem provável que a ele quisesse

aludir quando o referiu como ponto a partir do qual começou a ser divulgada a macrobiótica em Portugal.

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«À Mesa com o Universo»

168

[não lhe ocorreu o nome] que todas as sextas-feiras dava uns jantares onde se discutia e

falava da macrobiótica”. O seu proprietário, Abel Trancoso, juntamente com Nogueira e

Gomes Ribeiro (criou a distribuidora Trigrama) viriam a fundar em 1972 a Unimave,

organização que, como já disse, veio a ter um papel decisivo na expansão da

macrobiótica.

Na verdade, faz até sentido ir mais longe e declarar que a História da

Macrobiótica em Portugal só poderá ser compreendida se nos centrarmos na acção da

Unimave. Esta cooperativa dedicou-se desde cedo a várias e importantes actividades:

produção de produtos hortícolas e arroz integral biológicos; serviço de restaurante,

venda de produtos usados na cozinha macrobiótica, cursos de cozinha; apoio alimentar a

iniciados; seminários; colóquios e actividade editorial. Foi a partir da Unimave que se

gerou, como também já referi, um movimento muito expressivo no sentido da

divulgação da macrobiótica.

A ideia da criação da Unimave - uma cooperativa sem fins lucrativos com

propósitos educacionais e culturais, que defendesse a “causa” macrobiótica - terá

surgido ainda em 1971. Segundo Campos Ventura, a Unimave ter-se-á instalado em

Caxias, na R. de S. Paulo, numas instalações que mais tarde terão ficado para a

«Próvida», empresa do mesmo ramo. Seria depois registada notarialmente, e, em

Fevereiro de 1972, abriria a sua sede em Lisboa, na Rua da Boavista. Posteriormente,

nos finais dos anos 70, a Unimave abriria um novo estabelecimento em Lisboa, na Rua

Mouzinho da Silveira, naquela que é apontada como “uma casa excelente”, e onde se

viria a iniciar a importação directa de produtos alimentares. Importavam-se produtos a

granel (sobretudo do Japão e dos EUA), que eram depois embalados e vendidos a

retalho. Mais tarde surge uma nova “filial” em Lisboa, na avenida Barbosa do Bocage

(Campos Ventura refere que terá fechado portas em 1998). Estes três centros

dedicavam-se essencialmente a actividades como a restauração, venda de produtos,

consultas e divulgação através de cursos e palestras. A abertura destes locais evidencia o

interesse suscitado pela macrobiótica a partir dos anos 70.

Foi já no novo século (2001) que a Unimave, que durante 30 anos marcou a

actividade da macrobiótica em Portugal, foi formalmente extinta. É inevitável atentar no

percurso de três décadas desta cooperativa para melhor percebermos o processo da

afirmação da macrobiótica em Portugal. Tendo começado com umas dezenas de sócios,

cada um deles pagando uma quota de cerca de cem escudos, a Unimave viu crescer

rapidamente o número de associados, atingindo os 7000 no início dos anos 1980, um

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A Macrobiótica em Portugal

169

dos quais o próprio Michio Kushi, figura cimeira da macrobiótica a nível internacional.

A propósito deste desenvolvimento da cooperativa diz-nos Campos Ventura:

A Unimave cresceu logo muito depressa, começou com umas dezenas largas e

chegou a ter uns 7000 sócios.[Esta adesão]deveu-se ao facto de logo em 74, dois

anos e pouco depois de ter sido criada a Unimave, ter ocorrido o 25 de Abril.

Houve um desbloqueio… politicamente, socialmente… Estas coisas começam a

estar na moda, até porque se integram no espírito da ecologia e de uma

revolução cultural e entre 76 e 80 são os anos de ouro da macrobiótica.

Ainda de acordo com Campos Ventura, a vinda regular de Michio Kushi a

Portugal, a partir de meados dos anos 70, constituiria um estímulo significativo para a

adesão à macrobiótica. A palestra de Michio Kushi na «Estufa fria», em 1975, é

efectivamente lembrada como um momento marcante nas actividades ligadas à

macrobiótica. O impulso dado por este promotor da macrobiótica proporcionaria uma

maior abertura a um esquema de orientação que, até então, estava muito centrado em

George Ohsawa. Na verdade, para muitos dos partidários deste tipo de alimentação,

Ohsawa passara, gradualmente, a ser considerado “excessivamente rígido”.Para

Francisco Varatojo “a principal diferença entre Kushi e Ohsawa é que Kushi tentou

traduzir para a cultura ocidental a, às vezes intraduzível, cultura oriental”85

.

Em 1975 esteve cá o Michio, na Estufa Fria, e acho que a partir daí toda a

gente aderiu às suas ideias. As pessoas discutiam muito, porque eram muito

yang, tinham que discutir umas com as outras, comiam ultra yang, sobretudo

arroz integral, miso, muito sal, pouquíssima fruta, ameixa umeboshi, muitas

algas, muito yang. O Ohsawa continuou a ser uma pessoa muito respeitada, mas

o Michio convenceu-nos a todos, vinha cá uma semana por ano. [Campos

Ventura]

A atmosfera de finais dos anos 1970 e as transformações ocorridas após 1974

parecem, na verdade, beneficiar novas propostas, mesmo em termos alimentares. Parece

existir, efectivamente, uma coincidência temporal entre a turbulência social vivida após

o 25 de Abril e o crescimento da actividade ligada à macrobiótica. Por outro lado, como

refere Francisco Varatojo (ibid.):

Os finais dos anos 60 e o início dos anos 70 são um período de enorme

crescimento para o movimento macrobiótico e de produtos naturais nos Estados

85 Varatojo, Francisco «História da Macrobiótica

http://www.fototelas.com.pt/historia_da_macrobiotica.htm [Acesso em 20/12/06].

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«À Mesa com o Universo»

170

Unidos e centenas de estudantes vindos de toda a América juntam-se aos Kushi,

criando as bases para uma autêntica revolução no modo de vida americano.

Esta revolução não terá sido tão autêntica ou pelo menos duradoura, como é

sugerido, mas, efectivamente, parece ter-se gerado a partir dos Estados Unidos e dos

Kushi um movimento cujos ecos serão notados em Portugal86

. Alguns portugueses

deslocar-se-ão aos Estados Unidos para fazerem a sua formação na área da

macrobiótica, sendo esse o caso de Francisco Varatojo e Carlos Campos Ventura.

A Unimave, com os seus períodos “de ouro” e de decadência, parece

acompanhar essas movimentações sociais. De uma situação de muito envolvimento e

activismo nos anos 70, passou-se, porém, para um período de esmorecimento

relativamente à defesa da “causa macrobiótica”, sendo sinal deste abatimento o

encerramento dos estabelecimentos geridos pela Unimave.

Na fase de maior dinamismo, entre 1976 e 1980, a Unimave chegou a possuir

um armazém em Odivelas e terrenos em Almoster, onde cultivava, de forma biológica,

arroz integral, grão-de-bico e feijão azuki, entre outros produtos. “O feijão azuki dava-

se lindamente” refere José Oliveira. “O sr. Vitorino e a família é que tratavam dos

terrenos e nós íamos para Almoster aos fins-de-semana trabalhar, descascar e ensacar

arroz. A máquina de descascar arroz avariava-se muitas vezes, já era velha, aquilo era

uma inquietação… trabalhávamos muito”. A produção de arroz integral, alimento de

referência na alimentação macrobiótica, constituía uma actividade inovadora. É ainda

Campos Ventura, ex-presidente da Unimave, que refere “…dantes era proibida a

comercialização do arroz integral. Havia um decreto qualquer que falava disso”87

. Estes

terrenos de Almoster, propriedade da Unimave, e onde se inovava na produção de

produtos agrícolas associados à macrobiótica, acabaram por ser vendidos mais tarde,

numa altura em que a crise já se instalara.

86 Tal como já foi referido anteriormente, e agora relembro de forma sumariada, a partir de 1951, em

Nova Iorque, Michio Kushi e Aveline Kushi começam a trabalhar juntos em prol da macrobiótica, a eles

se juntando, em 1952, Herman Aihara (também discípulo de George Ohsawa). O casal Kushi e o casal

Aihara (Herman Aihara e Cornelia Aihara) serão apontados como os principais dinamizadores da

macrobiótica na costa Leste dos EUA nos anos 50. Posteriormente, em 1961, o casal Aihara muda-se para a Califórnia, onde funda um centro macrobiótico, e, em 1964, o casal Kushi, insatisfeito com Nova

Iorque, muda-se para Boston, onde funda a East West Foundation, o restaurante Sanae, a primeira

empresa de produtos naturais na América, Erewhon, a revista East West Journal e a distribuidora de

livros Tao Books. Em 1978 é fundado o Instituto Kushi de Boston. Cf. Varatojo, Francisco «História da

Macrobiótica» http://www.fototelas.com.pt/historia_da_macrobiotica.htm [Acesso em 20/12/06]. 87 Este facto aparece também referenciado por Manuel Sá Couto (1946), um diplomado pelo «Macfadden

Institute of Physical Culture» (EUA), que menciona, no conjunto de dados que apresenta sobre nutrição, a

superioridade do arroz integral por relação ao arroz polido e o facto de o arroz integral ser em Portugal

um alimento proibido.

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A Macrobiótica em Portugal

171

A direcção da Unimave era constituída por sete membros, sendo os lugares de

maior responsabilidade atribuídos ao presidente, vice-presidente e tesoureiro. O trabalho

de coordenação na cooperativa exigia algum espírito de entrega, dado que esta

actividade não era remunerada e implicava, habitualmente, a sua conciliação com uma

actividade profissional:

Naquela altura eu era técnico oficial de contas, interessava-me pelo yoga e

pelas corridas [costumava treinar no estádio universitário e fazia maratonas]. Eu

ia para as corridas e era uma inquietação. Saia de casa com uma pasta com os

papéis, outra com a comida... Depois de trabalhar ia correr, e depois ia para a

Unimave (...) Houve muita gente a trabalhar muito na Unimave (…) pessoas

que fizeram muito pela macrobiótica. [José Oliveira]

De acordo com José Oliveira, durante o período em que esteve ligado à direcção

da Unimave havia também uma grande preocupação com a formação dos cozinheiros

que trabalhavam nos restaurantes da cooperativa. Os cozinheiros tinham que estudar

macrobiótica e ter muita sensibilidade para confeccionarem os pratos de acordo com a

pessoa que ia ser servida:

O cozinheiro conhecia de raiz a macrobiótica, conhecia a lei dos opostos. Ao

cliente era dado um prato de acordo com a sua condição. [Para tal] tinha que

haver entendimento da macrobiótica. À mesa, no final das refeições, falávamos

de yin/yang. Isso depois perdeu-se, começaram-se a dar cursos de macrobiótica,

cursos de cozinha…perdeu-se… tem que haver base, tem que haver

entendimento.

Como se pode verificar, parece ter havido na Unimave uma preocupação em

desenvolver uma alimentação direccionada para a saúde e equilíbrio, tendo sido este

atendimento personalizado uma das áreas de acção da cooperativa.

Uma outra área com algum relevo foram as publicações. Campos Ventura

recorda que a Unimave publicou várias revistas - a Aquário ( dois ou três números), a

Vida Maior (em 1989 ou 1988), os Cadernos da Unimave. Editou também alguns

livros, sobretudo de Michio Kushi, que viu ainda editados alguns dos seminários que

proferiu. Algumas das obras editadas resultaram da tradução de publicações da editora

que Michio Kushi tinha em Boston (Tao Books).

Para além das publicações, a Unimave é também referida como o grande centro

de aprendizagem, não só da macrobiótica, mas de outra áreas associadas, como o

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«À Mesa com o Universo»

172

shiatsu, naturologia, etc. Os primeiros cursos de shiatsu em Portugal terão mesmo

surgido na Unimave:

A Unimave foi a grande escola, porque todos os que depois fizeram coisas na

macrobiótica e muitos também fora da macrobiótica, mas nesta base das

naturais, em Portugal, aprenderam na Unimave, porque a Unimave era o

grande centro por onde tudo passava. De facto, foi da Unimave que partiram as

primeiras pessoas para estudar acupunctura nos EUA, foi na Unimave que

nasceu o movimento ecologista, foi na Unimave que houve as primeiras lições

de shiatsu, enfim, passou tudo pela Unimave. Depois essas pessoas fizeram a

sua vida fora da Unimave, mas a Unimave era um centro muito activo onde as

pessoas iam aprender.[Campos Ventura].

Podemos constatar, efectivamente, que da Unimave saíram pessoas com gosto

pelo trabalho ligado aos “produtos naturais” e às terapêuticas não convencionais,

algumas com uma atitude empreendedora, que as levaria à criação de negócios nesta

área. Empresas de distribuição e produção de alimentos, como o caso da Trigrama, da

Ignoramus (surgida em 1976) e da Próvida, entre outras, são exemplo do que se afirma.

A Próvida - Produtos Naturais Lda., fundada em 1984, é uma das empresas portuguesas

de maior relevo na produção e distribuição de bens alimentares usados habitualmente na

macrobiótica. Conta entre os seus sócios fundadores Cesaltina e Alcino Sousa e terá

surgido na sequência de uma situação de doença que levou à opção por uma

alimentação macrobiótica como forma de resolver esse problema de saúde.

Actualmente, no site da empresa não se divulgam os produtos a partir de classificações

como «alimentação macrobiótica», mas antes «alimentação natural», termo menos

específico mas também menos restritivo, facto que, do ponto de vista comercial, pode

ter efeitos positivos, na medida em que pode incluir um número mais alargado de

pessoas. Em todo o caso, a linha específica de «produtos japoneses» (géneros

alimentares e utensílios) divulgada no site dá bem conta do enraizamento na

macrobiótica e de como ela foi importante para promover todo um conjunto de produtos

que hoje já não estão exclusivamente associados à macrobiótica. Como vemos, tal como

sucedeu noutros contextos (ver capítulo 3), é a partir da macrobiótica que muitos dos

produtos associados à «alimentação natural» passarão a circular e a ser promovidos.

Conheci o Alcino na Unimave (…), fazia um pão de grande qualidade. Ele

depois saiu de lá em Agosto [1984] para fundar a Provida. O Alcino fundou a

Provida juntamente com o Ricardo, foi aí, na Provida, que ele começou a fazer

tofu. (..) Foi o primeiro a fazer tofu de qualidade em Portugal. [José Oliveira]

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A Macrobiótica em Portugal

173

Sobre este assunto diz também Campos Ventura:

A Próvida foi fundada por duas pessoas que saem da Unimave (…).É hoje a

grande empresa portuguesa de referência na área da alimentação natural. Entre

as empresas que nasceram sob o impulso da macrobiótica temos a Cereália, a

Ignoramus,a Trigrama, Próvida, nascem sob o impulso da macrobiótica. Quem

fundou a Trigrama foi um grande activista na Unimave, foi director da

Unimave, o Gomes Ribeiro, não sei se foi presidente, mas director foi, editou

livros e por aí fora. Foi também ele que fundou o Chakra [restaurante], agora

não se pode dizer que a Trigrama seja uma empresa macrobiótica

(…)comercializa alguma coisa macrobiótica e outras que não são propriamente

macrobióticas, mas é sob o impulso da macrobiótica que esta empresa surge.

No decurso desta investigação tive oportunidade de conhecer um dos membros

da Unimave e a unidade de produção de tofu e outros derivados de soja por si

produzidos na Beira Interior. O seu percurso evidencia o peso que a adesão a uma

proposta como a macrobiótica pode ter em termos de modo de vida. De um lugar central

como a capital move-se para o campo com a família, como se impelido pelo ideal de

«retorno à natureza». Instala-se numa quinta onde se dedica a actividades «agro-

ecológicas» e vive sobretudo da produção de bens alimentares habitualmente usados

pelos que praticam uma alimentação macrobiótica e/ou vegetariana. A comercialização

deste tipo de produtos encontra-se em expansão, dado que estes alimentos, vistos como

substitutos da proteína de origem animal, começam a figurar, cada vez mais

regularmente, nas mesas comuns.

A sua quinta, de cerca de 50 hectares, é bordejada por uma outra de dimensão

aproximada, ocupada pela associação de Aikido, modalidade que também pratica. Diz-

me que a outra quinta, mais à frente, está ligada a uma associação budista e que ali se

pretende fazer um centro de meditação. A sensação com que se fica é a de que a

instalação naquelas terras de um determinado tipo de agentes acaba por atrair outros que

lhes estão próximos e que parecem ter alguma afinidade do ponto de vista ideológico.

Parece produzir-se assim, e naquele lugar, uma prática de ocupação de terrenos

agrícolas que os distancia do que se observava há poucas décadas atrás.A reconversão

desses terrenos para outras actividades, evidencia, no caso específico deste seguidor da

macrobiótica, como a adesão a uma proposta como a macrobiótica pode influenciar um

modo de vida e tornar-se a principal base de sustento.

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«À Mesa com o Universo»

174

A preocupação da Unimave com a “causa ecológica” faz parte desse mesmo

feixe de ideias que levam a um interesse pelos “produtos naturais”, estando presente, de

resto, no seu próprio projecto enquanto cooperativa. A relação da macrobiótica e, mais

especificamente, da Unimave, com o movimento ecológico é, de facto, clara, tendo a

sede da Unimave chegado a ser local de reunião para o Movimento Ecológico Português

(MEP), tal como refere Afonso Cautela88

num texto de 23/5/1974:

Como disse e muito bem, na noite de quinta-feira, dia 23 de Maio de 1974, o Dr.

João Barreto de Atalayão, o Movimento Ecológico existia, existe e existirá,

antes e depois de nós, quer o queiram ou não os seus amigos e inimigos,

reunidos ou não na cooperativa UNIMAVE, a noite de ontem.89

Mais à frente, neste mesmo texto, a comissão dinamizadora do Movimento

Ecológico Português convoca uma nova reunião, referindo:

Sem a preocupação de conquistar a Lua numa noite, mas no firme propósito de

não consentir mais manobras dilatórias e de distracção, os responsáveis pela

dinamização do Movimento Ecológico Português convocam, para a Cooperativa

UNIMAVE, às 21 horas do próximo dia 30 de Maio, uma reunião informal de

convívio de todas aquelas pessoas que, de boa-fé e de boa vontade, estiverem

efectivamente interessadas em combinar planos de acção. Lisboa, em 24 de

Maio de 1974.

Uma certa consciencialização ecológica, que a Unimave procura promover,

encontra, efectivamente, um bom aliado no MEP90

e na sua luta pela defesa do ambiente

e respeito pela natureza. Este tipo de preocupações não nasceu, bem entendido, neste

período, senão veja-se, por exemplo, a criação da Sociedade Portuguesa de Naturologia

em 1912, entidade que parece remeter para preocupações do mesmo tipo. Todavia,

parecem ter existido, neste período, estímulos significativos para o desenvolvimento de

88 Jornalista, defensor da macrobiótica, foi director da Unimave. Divulga na internet uma quantidade

assinalável de textos dedicados à macrobiótica e ao movimento ecológico. Muitos dos seus textos podem

ser encontrados em http://pwp.netcabo.pt/big-bang/ , uma página que parece ter construído em prol da

“causa ecológica” e também para apresentar contributos para a história do movimento holístico em Portugal. Muitos dos seus textos podem ainda ser encontrados num blogue de Afonso Cautela editado e

“postado” por Abel Campos Artigot http://www.blogger.com/profile/06626323338418825790 [Acesso

em 22-12-11]. 89 Texto disponível em http://pwp.netcabo.pt/big-bang/ecologiaemdialogo/mep-2.htm [Acesso em

11/12/06], aí se refere “Este texto poderá ter sido lido, (no dia a seguir à reunião da Unimave), em

conferência de imprensa, realizada na Casa da Imprensa, de que existe foto da mesa. 90 Nasce a 25 de Abril de 1974, pelo menos a julgar pela referência que lhe é feita no site Big-Bang. Aí se

diz que o 25 de Abril de 2004, será a data em que se celebrará o 30º aniversário do movimento ecológico

em Portugal http://pwp.netcabo.pt/big-bang/ecologiaemdialogo/index.htm [consultado em 17/12/06].

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A Macrobiótica em Portugal

175

uma “consciência ecológica”, sendo a Unimave uma das sedes de discussão de formas

de intervenção.

Através dos dados recolhidos, apercebemo-nos de que a atmosfera que se vivia

na Unimave naquela época, era muito marcada pelo debate político, com vista a uma

intervenção social. Os debates estavam para lá das estritas preocupações alimentares e

frequentemente davam visibilidade a posições políticas. O projecto de entendimento do

mundo e de mudança social proposto pela macrobiótica, que passava pela alimentação

mas também por muitos outros aspectos, parece ter-se conjugado aí com a vontade de

transformação social, associada a causas políticas tão vivas na altura.

(…) aquilo era complicado, era muito complicado, com pessoas sempre a

digladiarem-se, nessa altura ainda esta muito vivo o espírito da esquerda e da

direita, da extrema esquerda…[Campos Ventura]

É de salientar também a estreita conexão que existiu inicialmente entre a

macrobiótica e o vegetarianismo. Muitos dos primeiros praticantes deste tipo de

alimentação terão sido anteriormente vegetarianos. Aparentemente, sobretudo por

razões de saúde, ter-se-ão inclinado para a macrobiótica:

A macrobiótica é divulgada a partir do vegetarianismo e de centros

vegetarianos. Os primeiros macrobióticos portugueses são vegetarianos que

aderem à macrobiótica, mas, depois dos anos 70, a macrobiótica ganhou uma

embalagem tremenda. Na segunda metade dos anos setenta, a macrobiótica

ultrapassou de longe o vegetarianismo. O vegetarianismo nunca pegou muito,

não tinha a expressão que tem agora, neste momento fala-se, está na moda… A

macrobiótica dirigia-se muito à saúde e tinha militantes e activistas muito

activos, muito yang.

[Campos Ventura]

Pelo que nos diz Campos Ventura, uma certa proximidade entre vegetarianismo

e macrobiótica terá existido desde o início. Muito embora cada uma destas formas de

alimentação reivindique uma identidade própria, é possível encontrar alguns pontos de

contacto nestas duas formas de alimentação: os produtos animais são evitados (mesmo

na macrobiótica, que diz não proibir nenhum alimento, evitam-se produtos como a carne

ou os derivados do leite, entre outros); a comida é vista como uma via para a saúde e o

desenvolvimento pessoal e social; têm narrativas muito marcadas pela defesa da

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«À Mesa com o Universo»

176

natureza e do ambiente; são referenciais de alteridade relativamente à alimentação

omnívora e são ainda formas de expressão de distinções sociais.

A alimentação macrobiótica não terá sido, no entanto, sempre do agrado dos

vegetarianos que aderiram à macrobiótica. Foi-me relatado que numa das ocasiões em

que Michio Kushi esteve em Portugal, a sua mulher, Aveline Kushi, terá cozinhado

peixe num dos encontros, o que terá indignado alguns dos vegetarianos que entretanto

tinham aderido à macrobiótica.

De acordo com Campos Ventura as pessoas que nesta altura aderiam à

macrobiótica eram sobretudo pessoas com problemas de saúde, com diversos graus de

instrução e origem social diversificada:

(…) Foi um movimento inter-classista, mais do que agora. Lembro-me que

várias vezes almocei na Unimave com… sei lá, com o António José Saraiva por

exemplo, já o conhecia porque colaborei com ele desde o número zero na

revista Raiz e Utopia, de que ele era director, almocei com ele e a mulher que

na altura vivia com ele.

Havia pessoas ligadas às artes, à cultura, havia muitas pessoas que

trabalhavam nos serviços, bancários, era muito inter-classista. Havia de tudo,

nessa altura acho que havia mais homens do que mulheres. A população que

frequenta estes sítios entretanto mudou, agora são mais mulheres do que

homens. Na altura a faixa etária era superior a 17 anos.

Paralelamente à Unimave, embora sem o relevo que esta teve nos finais dos anos

70, surgiram outros projectos ligados à alimentação macrobiótica. Um deles foi o centro

de divulgação e restaurante Chakra, cujo proprietário foi Gomes Ribeiro e, mais tarde

terá surgido o restaurante Biológica:

O Chakra, não sei se ainda existe como restaurante, nasceu como centro de

divulgação, nasceu para aí em 76 (…) Depois do Chacra abriu uma loja onde é

agora o centro comercial Palladium, que era a Biológica e que chegou a ser o

melhor restaurante. O dono era o Gamito, era alentejano, não sei onde está,

telefonou-me há uns tempos, há uns dois anos. Muitas destas pessoas

espalharam-se pelo país, muitas já não estão ligadas à macrobiótica, mas estão

ligadas à agricultura biológica e coisas assim. Desenvolveu-se muito a

naturopatia, a acupunctura… [Campos Ventura]

Um outro projecto com relevo para a compreensão da alimentação macrobiótica

em Portugal foi a criação da «Espiral – Centro para a Divulgação de Alternativas, em

Setembro de 1978».

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A Macrobiótica em Portugal

177

Com a Espiral procurou-se constituir uma plataforma que pudesse incluir

vegetarianos, macrobióticos, espiritualistas, pessoas ligadas às medicinas

naturais, «Os Amigos da terra», etc. A ideia era fazer um sítio aberto, uma

plataforma de convivência destas alternativas, era um projecto diferente do da

macrobiótica, era mais um centro de alternativas” [Campos Ventura].

Na verdade, muito embora a «Espiral» tenha uma componente forte ligada à

macrobiótica, ela é mais eclética relativamente à clientela que procura atingir. Sendo

também uma cooperativa, é, nas palavras de Campos Ventura, “uma cooperativa

diferente”.

Apesar da abertura deste novo estabelecimento, deve ficar claro que nenhum

outro projecto suplantou a Unimave entre 1975 e 1980:

Eu estive fora [EUA] entre 80 e 86. Quando saí, a Unimave era uma

organização com uma força tremenda, tinha três casas em Lisboa, era muito

forte. Vim cá em 83, uns dez dias, pouco tempo. Houve aqui um seminário do

Professor Michio e só cá vim de passagem e a Unimave continuava a ser uma

casa forte. [Campos Ventura]

A partir de 1977, segundo José Oliveira, foi necessário resolver muitos

problemas de gestão. Havia, na sua opinião, muito descontrolo na Unimave:

Fazia-se uso do dinheiro que era recebido nas caixas nas despesas correntes, de

maneira que nunca se sabia ao certo quanto entrava e quanto saia, foi preciso

resolver esta situação. Muita gente que estava na macrobiótica não se

preocupava com as contas, foi preciso impor alguma disciplina, teve que se

criar um fundo de maneio para as despesas correntes – “Diziam que eu era

muito yang, mas tinha que ser assim, sem rigor não se chega a lado nenhum. Até

me diziam – Ó Oliveira, não sei o que é que tu lhes fazes, mas quando tu chegas

elas [empregadas] escondem logo os pastéis de nata na gaveta.

Sem apoios bancários, mas com uma gestão que o presidente da altura diz ser de

maior rigor, ter-se-á entrado numa fase de maior facturação da Unimave, que terá

permitido uma maior desafogo financeiro, até pelo menos 1980:

Trabalhávamos com dois bancos, o Pinto Sottomayor e o Espírito Santo. No

primeiro só fazia depósitos e, no outro, pagamentos. Ao fim do mês transferia o

dinheiro todo para o Espírito Santo para fazer os pagamentos. O Sottomayor

começou a ver que nós facturávamos bastante e depois até nos ofereceram

outras condições para não levantarmos o dinheiro todo no final do mês. [José

Oliveira]

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«À Mesa com o Universo»

178

Apesar dos esforços de gestão, as dificuldades da Unimave pareciam ser

estruturais, pelo que nos diz um dos ex-empregados da Unimave:

Comecei a trabalhar na Unimave no final de 1980 como fiel de armazém, para

além de ir à praça. Lá, no restaurante do Marquês de Pombal, tinham um

armazém e era tudo embalado lá [referência aos produtos que eram comprados a

granel e depois embalados na Unimave]. Enquanto fui fiel de armazém uma das

discussões que tinha com os empregados era que precisavam de qualquer coisa

e iam directamente ao armazém em vez de fazer encomendas, que era o que

devia ser… Na altura não havia computadores, mas não era nada complicado.

Um dia estava lá e vi o Mário, um dos presos do Linhó, a sair do armazém com

uns pacotes de feijão azuki e olhei para a Fátima, que estava na caixa nessa

altura, e disse-lhe: «Tu vê-lo assim a sair e não dizes nada?» Era assim.

(…) Aquilo era muito desorganizado… os hábitos de trabalho da Unimave eram

assim… despareciam produtos no trajecto do armazém para as lojas e para as

cozinhas… Havia um desleixo completo, muito desperdício, era tudo

desorganizado para se poder roubar à vontade. [António, ajudante de cozinha]91

A partir de 84, são já visíveis os problemas na Unimave, sendo muito provável

que já viessem de anteriores direcções. Um texto da direcção da cooperativa (na altura

com cinco membros), assinado por Artur Morais, Afonso Cautela e Vasco Melo, é

contundente a propósito das dificuldades vividas. Nesse texto, de 1984, retirado do site

de Afonso Cautela, dá-se conta das queixas apresentadas relativamente aos serviços

prestados e das inúmeras dificuldades de gestão. As queixas vão desde o mau serviço de

cozinha prestado, ao entupimento das sanitas, absentismo e insurreição dos

trabalhadores92

.

Concretamente, sobre o serviço prestado nesta Cozinha [restaurante da rua

Mouzinho da Silveira], pede-se aos consócios duas coisas: a) alguma paciência,

no que for possível e razoável ter paciência, a uma hora em que todos

necessitam de ser rapidamente e bem servidos; b) Que chamem o responsável

pela equipa da Cozinha e lhe exponham, sem acrimónia, o problema e, se

possível, acrescentem alguma sugestão para o resolver...

Lembramos ainda:

91 Nomes fictícios. A referência a um dos presos do Linhó deve-se ao facto de ter sido conduzida uma

experiência na área da macrobiótica na cadeia do Linhó, de que mais à frente falarei. 92 A identificação do texto surge da seguinte forma: diário de um consumidor de medicinas – documento

para a história do movimento holístico em Portugal. Pode ser lido em http://pwp.netcabo.pt/big-

bang/ecologiaemdialogo/benvindo.htm [Acesso em 17-12-06].

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A Macrobiótica em Portugal

179

Muitos dos problemas com que actualmente a Unimave se debate foram

herdados de uma situação conhecida de todos e que não tinha por objectivo

final a recuperação da Cooperativa mas sim a sua, a breve prazo, destruição.

Relembrando que o trabalho na Direcção da Unimave não é um trabalho

remunerado, mas de entrega a uma causa e que a Unimave é uma causa exigente, e com

necessidade de pessoal a trabalhar de forma dedicada, referem:

Para que alguns serviços funcionassem de maneira diferente, seria necessário

que os elementos da Direcção, além das horas que dão à Cooperativa,

passassem a permanecer nela as vinte e quatro horas do dia. Lembre-se, a

propósito, que os elementos da Direcção prestam à Cooperativa um serviço

absolutamente gratuito e nenhum deles faz dessa função a sua profissão...como

aliás exige uma cláusula dos estatutos.

(…) Se, como sempre reconhecemos, há trabalhadores cooperantes que

efectivamente têm honrado essa dupla qualidade de trabalhadores e de

cooperantes, também é verdade que outros há cujo propósito de obstrução se

manifesta das mais diversas formas, algumas aliás detectáveis à vista

desarmada pelos próprios consócios que frequentam mais assiduamente a

Cooperativa.

Procurando alijar responsabilidades pela situação difícil que a cooperativa

atravessa e apelando à efectiva participação de todos os cooperantes, escrevem ainda:

(…) Ou todos os consócios - direcção, trabalhadores e comensais - assumem o

odioso papel de "fiscal" do que está a ser mal feito ou de má fé - ou a Direcção,

nesse caso, não poderá ser bode expiatório absoluto nem responder por tudo,

nem, muito menos, armar em polícia que não é nem quer ser.

Quando, por exemplo, se entope sistematicamente a sanita dos lavabos, porque

alguém, por doença ainda não curada,assim entende deteriorar o ambiente da

Cooperativa, não é só à Direcção que incumbe montar vigilância permanente à

retrete - compete a todos vigiar todos, ou então ninguém.

Lamentamos que a doença leve pessoas a tão baixo, mas que podemos fazer

além de lamentar e recomendar a dieta standart?93

A direcção, procurando ainda responder às reclamações e justificar o mau

serviço prestado, aponta o stress de alguns trabalhadores devido ao absentismo de

93 Note-se a expressão “doença não curada”, dando-se a entender que a macrobiótica poderia curar todas

as doenças e ainda a ironia com que se recomenda a dieta standard, que, de acordo com José Oliveira, era

sobretudo sopa de miso e arroz integral com vegetais.

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«À Mesa com o Universo»

180

outros e insinua, num tom algo moralista, a sua falha pelo facto de se encontrarem

doentes:

(…) a má qualidade dos serviços é muitas vezes originada na circunstância de

os trabalhadores presentes se encontrarem em verdadeiro stress, causado pela

ausência sistemática de colegas seus, mais propensos à doença e ao absentismo

incurável.

Procurando responder às queixas, que, pelo que se deixa escrito, têm também a

ver com o tempero da comida, realça-se o facto de nos restaurantes da Unimave a

qualidade não ter a ver com a comida “bem apaladada”. Muito embora um dos

objectivos da cooperativa fosse o de apresentar “refeições mais em conta” (motivo que

talvez ajude a explicar o número de cooperantes), procurava-se assegurar a qualidade

dos produtos usados.

Não devem os consócios esquecer também que os restaurantes na Unimave são

um meio para atingir os fins da Cooperativa, fins que são mais vastos e

importantes do que o prato de arroz. Há que assegurar, evidentemente, a

qualidade mínima da nossa cozinha mas há que não esquecer, no entanto, que

essa qualidade não é o "bem apaladado" do restaurante normal ou outras

exigências de sabor com as quais a Macrobiótica não pode fazer transigências.

Convém também lembrar a vocação mais larga e lata da Unimave, que não é

apenas (embora seja também) um snak-bar rápido para refeições mais em

conta.

Acreditando-se no serviço público prestado pela Unimave e na macrobiótica

como via para uma vida mais saudável, referem:

(…) A Unimave é, em Portugal, o pivô do mais importante movimento mundial

em prol da saúde pública da Humanidade.

Dando-se ainda conta da existência de um pelouro cultural na Unimave, mas

também da sua falta de orientação clara, refere-se:

Têm-se verificado grandes ausências de alguns deles [elementos da direcção],

por motivos da sua vida particular, e os que têm permanecido mais tempo

desdobram-se dentro do que é humanamente possível para atender problemas

que, em princípio, até nem são do seu Pelouro. É o caso do pelouro Cultural,

abordado sobre todos os assuntos menos sobre aqueles que lhe incumbe tratar e

dos quais apresentou detalhado programa que, espera-se, os sócios um dia

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A Macrobiótica em Portugal

181

possam ler e subscrever. Por acaso, os assuntos do Pelouro Cultural até são os

que potencialmente interessam aos seis mil sócios que a Cooperativa tem, aos

outros seis mil sócios que poderia ter e, enfim, a todos os milhares que apenas

esperam o minuto feliz de a maravilhosa Macrobiótica lhes bater à porta.

Fazendo-se, mais uma vez, fé na macrobiótica, e evocando-se a dimensão

espiritual associada a esta proposta, concluem, dizendo que aquilo que os sócios fizerem

pela Unimave:

(…) É para que milhares de portugueses doentes desesperados possam um dia

ter e receber no seu coração a mensagem de esperança e liberdade pela Via

Macrobiótica que eles, sócios habituais da Mouzinho, da Bocage e da Boavista,

já tiveram.

Apelando a um espírito de missão e evocando-se, uma vez mais, a dimensão espiritual:

Pensem também nos que ainda não são nossos consócios. Essa é, no médio

prazo, a Grande Aposta desta Direcção, infelizmente travada no passo pelos

que, em vez de usarem a Macrobiótica para salvação das suas almas e exaustão

dos seus Karmas, estão apenas a remeter-se, de novo, para o Inferno das suas

tenebrosas acções.

Que a Ordem do Universo seja para eles também Magnânima e Misericordiosa.

Como podemos ver, a Unimave debatia-se com sérios problemas de gestão e

congregava sócios com diferentes empenhos e graus de participação, sendo que, para

alguns, a atracção por uma refeição “mais em conta” era mesmo o que importava. De

acordo com um dos meus entrevistados, um dos problemas da Unimave prendeu-se com

o facto de terem ido para a direcção da cooperativa pessoas que não eram

verdadeiramente macrobióticas, pois tinham sobretudo, uma relação oportunista com a

macrobiótica e com a Unimave94

:

94 Num dos casos relatados, um dos elementos da direcção apenas terá entrado para a Unimave porque

“andava de olho fisgado numa rapariga que praticava macrobiótica”. Este aparte, relatado em tom jocoso,

ilustra as divergências internas e as críticas relativamente aos praticantes de alimentação macrobiótica.

Como dizem “havia muitas guerras na Unimave” e, como era uma cooperativa, “mandavam todos e não

mandava ninguém” [Campos Ventura], o que terá encaminhado a organização para a crise e posterior

falência.

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«À Mesa com o Universo»

182

(…) às tantas entendi que tinha que largar aquilo porque apareceram pessoas

inteligentíssimas e hoje a Unimave não existe, faliu. Entretanto, apareceram

umas pessoas inteligente, uns mestres, uns mestres pop, que já começavam a

aparecer naquela altura,e eu, assim que vi, decidi sair (…) Falava-se muitos de

política e a determinada altura apareceu lá um coronel [Artur do Nascimento

Morais] que começou a fazer macrobiótica e disse que queria ir para presidente

da Unimave. Eu então disse – Está bem, fique já aí! O amigo não perca tempo -

Aquilo deu uma série de voltas e depois acabou. [José Oliveira]

De acordo com José Oliveira, na altura em que Campos Ventura assume a

presidência da Unimave é feita uma reunião nela surgindo uma proposta de salvamento

da cooperativa que, na sua opinião, era ilegal. Nela se propõe que apenas possam

continuar a ser “sócios responsáveis” aqueles que entregarem 50 contos à cooperativa.

A gestão de Campos Ventura é classificada por José Oliveira como polémica e como

não tendo sido capaz de retirar a Unimave das dificuldades financeiras. Campos

Ventura faz uma leitura diferente:

Quando voltei[dos EUA], em 1986, a Unimave estava moribunda. Passados um

ou dois meses depois de ter chegado, houve uma assembleia geral em que

estiveram umas dez pessoas para se decidir se a Unimave acabava ou

continuava. Havia à volta de 15 mil contos de dívidas. Se neste momento, 2006,

é muito dinheiro, há 20 anos era muito mais (…). Nessa altura negociou-se com

os credores e os principais credores – a Trigrama, a Próvida e outros

movimentaram-se para que eu fosse para presidente da Unimave. Eu acabei por

aceitar, mas era de facto uma situação muito complicada, e pronto, de facto nós

levámos depois 15 anos para pagar esses 15 mil contos. A Unimave ainda se

revitalizou e teve produtos, consultas e palestras, mas todo o dinheiro foi

canalizado para pagar as dívidas. Foi muito complicado. Em 2001 acabámos de

pagar as dívidas.

(…) Houve uma verdadeira situação de descalabro. Entre 80 e 86 não

estive cá, mas depoisfalei com toda a gente, nem vale a pena falar muita coisa…

mas o que eu retenho como mais importante para esse descalabro é o facto de a

Unimave ser uma cooperativa, portanto, era de todos e não era de ninguém…95

[Campos Ventura]

A acrescentar às dificuldades financeiras terão surgido também dificuldades com

o senhorio, que procurava reaver as instalações que havia arrendado.

95 Este modelo de cooperativa, sem grande sucesso, viria a ser abandonado. Hoje, o Instituto

Macrobiótico de Portugal parece orientar-se por uma lógica bem diferente. Parece ter hoje uma orientação

mais empresarial e ser hoje um projecto pessoal e familiar centrado em Francisco Varatojo e Eugénia

Varatojo.

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A Macrobiótica em Portugal

183

Entretanto houve um processo do senhorio contra nós. O contrato tinha sido só

para restaurante e a casa nunca tinha sido só restaurante. Tinha loja, cursos,

consultas, tinha isso tudo e o senhorio sabia, de modo que foi para tribunal e os

tribunais funcionam como nós sabemos… Aquilo foi andando, durou para aí

uma dúzia de anos até que fechámos. [Campos Ventura]

Quanto aos terrenos em Almoster que eram propriedade da Unimave foram

todos vendidos para pagar as dívidas, como atrás foi referido:

Esses terrenos foram todos vendidos, mais ou menos ao desbarato. É a tal

história … não se podia negociar porque não se estava em boa situação. Os

terrenos foram logo vendidos em 1986, mais ou menos ao desbarato. [Campos

Ventura]

Muitos dos que colaboravam com a Unimave foram também abandonando a

instituição, esvaziando-a de capacidade de acção, contribuindo, desta forma, para a sua

decadência. Os saberes, entretanto adquiridos, seriam canalizados para outros projectos:

(…) Todo o pessoal qualificado tinha desaparecido[1987], só ficaram pessoas

sem capacidade técnica, deixou-se de fazer palestras, consultas, tratamentos, as

lojas estavam vazias, não tinham nada, os centros onde se praticava yoga

precisavam de obras, estavam sujos, sem manutenção, estragados, de modo que

era um verdadeiro pesadelo. (…) A Unimave não conseguiu reter os quadros,

reter esse know how, exactamente porque as pessoas sentiam que era uma

cooperativa, não era de ninguém, e portanto não investiram também na

Unimave. [Campos Ventura]

Quanto à documentação relativa à Unimave (actas, publicações, biblioteca…)

não se lhe conhece o paradeiro, facto que muito intriga José Oliveira, pois considera tais

documentos um acervo importantíssimo para a construção da história da macrobiótica

em Portugal. Campos Ventura, sobre este assunto, refere que a Unimave chegou a ter

uma biblioteca que, pelo que lhe dizem, era boa, mas que quando chegou à direcção da

Unimave esta já estava na ruína, com problemas logísticos e que desapareceram muitas

coisas. Na fase final, a Unimave deixa de ter instalações e perde totalmente o seu papel

enquanto promotora da macrobiótica:

(…) Entrei para presidente da Unimave em 1 de Janeiro de 1987. A Unimave

acabou em Julho de 2001. Durou 30 anos, nasceu em 71, apesar de só ter

aberto as portas em 1972, e acabou em 2001. Deixou de haver instalações…, a

missão que eu me tinha atribuído, que era de pagar as dívidas, estava cumprida,

portanto para a Unimave continuar era preciso instalações e os sócios, vamos

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«À Mesa com o Universo»

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lá ver… isso viu-se logo em 1986… só estavam dez pessoas… Bem… Os sócios

que compareceram à assembleia geral em 1986 foram só dez, quando no papel

eram quase 7000, depois houve umas assembleias gerais que animaram as

coisas, mas a Unimave estava moribunda, nunca mais foi uma coisa muito

participada.

No final eu já estava ligado a uma escola, não estava lá todos os dias, estava lá

só para consultas e cursos e tal, a nível do concreto não estava lá todos os dias,

não havia instalações, não havia nada para investir, a Unimave já só era uma

ideia.

[Campos Ventura]

Em 1984, ainda a Unimave continuava com as portas abertas, surge o Instituto

Kushi de Lisboa. Este projecto foi dinamizado, desde o início, pelo casal Francisco

Varatojo e Eugénia Varatojo, mas não apenas por eles. Estava sediado numa rua perto

da Avenida da Liberdade e, de acordo com Campos Ventura, terá surgido para suprir a

incapacidade da Unimave:

A Unimave deixa de ser capaz de ter esse papel de promotora e divulgadora da

macrobiótica e aparece o Instituto Kushi, que depois se transformou no Instituto

Macrobiótico de Portugal, para aí há uns dez anos [na página do Instituto

Macrobiótico de Portugal faz-se referência a 1985 como data de nascimento

deste instituto]. Neste momento o IMP pode ser identificado como o grande

centro de divulgação e promoção da alimentação macrobiótica em Portugal.

Muitas das pessoas que têm aderido à macrobiótica, têm-no feito sob influência

do Francisco[Varatojo].

Os anos 80, particularmente a segunda metade da década e princípios dos anos

90, representam um período de crise para a macrobiótica em Portugal, pelo menos para

as instituições que defendiam a macrobiótica. Afonso Cautela, no seu estilo cáustico,

refere:

Se o movimento está doente, o mais lógico é começar por fazer o diagnóstico

desse doente. E depois a sua oxigenação. O que até é natural entre terapeutas

que se prezam.

Honra ao Francisco Varatojo que, com a reunião do dia 15 de Fevereiro de

1997, teve a coragem de inverter a marcha para o abismo, iniciando uma era de

crítica e autocrítica internas, uma nova era, portanto, nos anais do movimento

macrobiótico português96

.

96 Afonso Cautela http://pwp.netcabo.pt/big-bang/vidanatural/cfv-2.htm [Acedido em 20/12/06]

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A Macrobiótica em Portugal

185

Aquilo que Afonso Cautela propõe neste texto de 1997 é um exercício reflexivo

sobre o que não correu bem com a macrobiótica em Portugal. Acusando o “movimento

português” de “seguidismo e uma certa subserviência em relação ao movimento

macrobiótico americano (primeiro), europeu depois e, finalmente, suíço” (ibid.),

considera que uma das razões da falta de vitalidade da macrobiótica em Portugal terá a

ver com o “nosso vício ancestral de nos pormos de cócoras perante o estrangeiro” (ibid.)

e de não sermos capazes de criar uma identidade própria. Julga mesmo que, dada esta

dependência, só é possível compreender as razões que levaram à estagnação da

macrobiótica em Portugal, se se reflectir sobre a dissidência ocorrida entre Kushi e a

Suiça, que liderava o movimento europeu (cf. ibid.).

Procurando identificar alguns dos motivos que levaram à estagnação do

“movimento macrobiótico”, assinala:

a) desconhecimento total das particularidades culturais portuguesas

(especialmente dos tesouros do nosso inconsciente colectivo e dos nossos

arquétipos ancestrais)

b) desconhecimento de outros movimentos afins (Arrogância centrada no

próprio umbigo: umbilicalismo)

c) ausência de um alvo, de uma meta que transcenda o espaço e o tempo -

aquilo a que Michio chama o Sonho - e que deverá ser, em 1997, a 3 anos do 3º

Milénio, o sonho de construir a Nova Idade de Ouro.

Ou ainda:

a) Ignorar o paradigma holístico que define a própria macrobiótica como

tecnologia de vanguarda

b) Ignorar o fundamento da dialéctica Yin-yang, descurando os estudos de

ordem filosófica e especialmente hermética que a inspira

c) Ignorar o alerta que foi dado, há 15 anos, por Michio, no sentido de religar a

sabedoria taoísta às fontes herméticas e alquímicas de onde ancestralmente

procede. Isto, apesar de Francisco Varatojo, em 1982, ter editado em português

o opúsculo de Michio «Transmutações Atómicas». (ibid.)

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«À Mesa com o Universo»

186

Face a estes problemas lança um apelo para que se construa uma identidade

macrobiótica portuguesa, capaz de ultrapassar a crise, que reconheça as especificidades

portuguesas e o “movimento macrobiótico” como:

a) movimento adequado e adaptado à conjuntura e às raízes portuguesas;

b) movimento entre outros movimentos holísticos de saúde, par inter pares,

procurando estabelecer pontes, diálogo, plataformas de consenso com esses

outros movimentos

c) movimento de vanguarda que, com outros movimentos de vanguarda, ajudará

a dinâmica de construção de uma Nova Idade de Ouro.(ibid.).

Escusando-me de comentar alguns dos aspectos enunciados relativos à perda de

relevo da macrobiótica, ou aos factores aqui considerados como significativos para a

afirmação de uma identidade macrobiótica portuguesa, e que têm a ver com o

“movimento holístico”, vale a pena dizer que muitas das considerações apresentadas por

Afonso Cautela remetem para a preocupação com a possível ausência de

reconhecimento da macrobiótica enquanto “terapêutica não convencional”. Os aspectos

que procura sistematizar denunciam esse esforço em querer atribuir uma identidade

própria à macrobiótica, de forma a ganhar individualidade no quadro dessas

terapêuticas. O texto de Afonso Cautela parece integrar-se, na verdade, na vasta

discussão sobre as formas de tratamento não convencionais e na expectativa do seu

reconhecimento oficial97

.

Convém referir, em todo o caso, que, apesar do período de crise vivido pela

macrobiótica, ficaram marcas claras da actividade que em torno desta proposta se gerou,

quer nos restaurantes, quer nas publicações, quer na oportunidade de divulgar diferentes

formas de abordagem da doença e saúde. Em 1992, em referência ao caso de cura de

Satillaro (ver capítulo 2), e procurando-se afirmar a doença como algo que é da

responsabilidade do indivíduo, diz-nos Afonso Cautela:

97 É de notar que nessa época (2006/07), com vista a um possível reconhecimento público, se começaram

a notar alterações na forma de organização dos cursos do Instituto Macrobiótico de Portugal. Foi aí

afirmado que passaria a haver dois tipos de diplomas, uns que atribuiriam competências e onde seria feita

avaliação dos alunos e da formação proporcionada, e outros que não exigiriam avaliação nem

obrigatoriedade de presenças e que se destinariam sobretudo ao “desenvolvimento pessoal”. Pelo que tive

oportunidade de observar nos anos seguintes não parece ter havido um trabalho significativo no sentido

de que a macrobiótica pudesse enquadrar as terapêuticas não convencionais

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A Macrobiótica em Portugal

187

Após 8 seminários de Michio Kushi em Lisboa, após 12 restaurantes a

funcionar, só na área de Lisboa, após a publicação em português de duas

dezenas de livros e de um periódico que se chamou «Jornal da Via

Macrobiótica», já ninguém pode hoje dizer que desconhecia e, por isso adoeceu.

Ninguém está inocente das doenças que tem.

(…) Curar é fácil, e prevenir ainda mais. Difícil é vencer a opacidade estúpida e

arrogante, a inércia da asneira, os interesses e monopólios da indústria

alimentar que mata, a fraude publicitária e a mentira dita científica.

A verdade não está só nos livros, nem está principalmente nos livros. Depende

essencialmente dos olhos puros e sem preconceitos que queiramos abrir à

maravilhosa e poderosa Ordem do Universo. Cujas leis teimamos em não

respeitar. Em não respeitar. Em não conhecer. Em ignorar.

Porque sabemos demais das ciências que temos.98

Para além da indicação a um número significativo de restaurantes a funcionar

em Lisboa e da divulgação da macrobiótica através de diferentes tipos de publicação,

estas palavras revelam um tipo de posicionamento recorrente junto dos indivíduos que

contactei. A crença na ideia de que a doença ou a saúde devem ser perspectivadas na

óptica da responsabilidade individual; a convicção na prática da macrobiótica como

forma de evitar doenças; a crítica à indústria alimentar, à ciência e ao conhecimento

livresco; a crença na «Ordem do Universo», entidade oculta, suprema, que deve ser

respeitada, aspecto que sugere a inserção da macrobiótica numa tradição mística e

espiritual.

*

Paralelamente à actividade da Unimave outras experiências de relevo na área da

macrobiótica merecem ser assinaladas, uma delas tem a ver com a confecção de

refeições macrobióticas na cantina da cidade universitária de Lisboa. Numa fase inicial,

no início dos anos 1980, apenas esta cantina universitária servia «refeições

macrobióticas». Mais tarde, este tipo de refeições passaria a estar disponível noutras

cantinas universitárias, o que demonstrava que a experiência na cantina da cidade

universitária havia sido bem-sucedida. Este intrigante sucesso ficou a dever-se, sem

dúvida, ao carácter, determinação e entusiasmo que a responsável desse serviço colocou

na elaboração dessas refeições, mas também a uma gestão de custos que terão

convencido os serviços sociais da universidade.

98 Afonso Cautela «O caso Satillaro em 3 tempos (1988 e 1992)» http://www.catbox.info/big-

bang/gatodasletras/casulo1/SATILLAR.HTM [Acesso em 20-12-11]

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«À Mesa com o Universo»

188

As «refeições macrobióticas» que são servidas na cantina da cidade universitária

revelam uma confecção macrobiótica muito livre, por vezes sugerem uma refeição mais

vegetariana do que macrobiótica. No entanto, a designação ficou, remetendo-nos para

uma experiência com os alimentos que teve um dos seus pontos mais altos no final dos

anos 1970 e princípio dos anos 1980. Nestas «refeições macrobióticas», cuja confecção

foi depois ensinada, a partir da cantina da cidade universitária, a cozinheiros de outras

cantinas universitárias, encontramos, por vezes, ingredientes pouco utilizados na

confecção macrobiótica, como os ovos, o tomate e o acúcar. A sopa de miso (um

clássico da macrobiótica) e as algas (outro ingrediente clássico) não são usadas

habitualmente, no entanto é mantida a classificação macrobiótica.

Em entrevistas realizadas em 2007 e 2008 com a responsável da cantina da

cidade universitária, a justificação dada para este tipo de confecção tinha a ver com uma

rigorosa gestão dos dinheiros disponibilizados e dos gostos dos estudantes. Referia-me

que procurava apresentar pratos com cor, saborosos, mas ao mesmo tempo saudáveis,

para poder cativar os estudantes. Procurava proporcionar-lhes formas alternativas de

alimentação sem comprometer excessivamente aspectos como o gosto. Por outro lado,

não utilizava ingredientes como o miso ou as algas porque tornariam o prato muito

dispendioso e não passível de ser suportado pelos serviços sociais da universidade. O

custo de uma «refeição macrobiótica», dizia-me, podia rondar um euro (em 2008)

enquanto uma refeição comum rondaria um euro e sessenta. Havia assim boas razões

para os serviços sociais incentivarem a produção deste tipo de refeições.

O gosto pela macrobiótica vinha-lhe desde os anos 1970, altura em que vira a

sua irmã confeccionar pratos macrobióticos e ser curada de uma hepatite com arroz

integral e a sopa de miso. No momento da entrevista (2008), estava um pouco

apreensiva por não saber como iria ser dada continuidade à macrobiótica na cantina,

dado que ia fazer 70 anos e tinha que se reformar. Actualmente, já reformada, pode

dizer-se que a sua passagem pela cantina produziu efeitos e criou seguidores, sendo

possível encontrar o mesmo tipo de pratos que dantes eram confeccionados. Mais ainda,

é possível encontrar esse género de pratos também noutras cantinas universitárias onde

há cozinheiros que fizeram formação na sua cantina, no seu «santuário», como diz. Para

muitos estudantes a familiarização com o termo «macrobiótica» deriva, justamente, da

experiência com as refeições servidas nas cantinas universitárias.

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A Macrobiótica em Portugal

189

Uma outra experiência de relevo na área da macrobiótica, e que mereceu até

divulgação internacional, sobretudo nos canais de informação ligados à macrobiótica,

foi a experiência coordenada por Francisco Varatojo junto dos prisioneiros do

estabelecimento prisional do Linhó, em 1979. Esta experiência envolveu 27 reclusos

problemáticos, teve o apoio do director da prisão e do Ministério da Justiça que

disponibilizaram meios para que a experiência pudesse ser realizada (alimentos, cozinha

e outros recursos necessários). Este projecto procurava demonstrar que através da

alimentação era possível alterar padrões de comportamento no quotidiano. Para

concretizar esta experiência foram dadas aulas sobre alimentação e filosofia oriental aos

reclusos e foi disponibilizada uma cozinha para que estes aprendessem a cozinhar e

modificassem a sua alimentação. O resultado obtido parece ter sido positivo, afirmando-

se que estes reclusos ficaram menos agressivos e deprimidos, tendo refeito as suas vidas

após a saída da prisão sem grandes dificuldades.

Outros aspectos, que não apenas a comida, podem ter pesado para que tal

sucesso ocorresse, mas a notícia correu mundo e José Joaquim (o Al Capone português)

passou a ser conhecido como o criminoso que podia ser tratado com a macrobiótica. Se

ele podia muitos outros também o poderiam ser e, assim, este caso terá inspirado um

projecto levado a cabo num centro para delinquentes juvenis no estado americano de

Virgínia, onde, com a adopção de uma alimentação macrobiótica, com eliminação do

consumo de açúcar, redução da proteína animal e de lacticínios se terá conseguido uma

diminuição dos comportamentos anti-sociais e das acções disciplinares99

.A experiência

do Linhó viria ainda a dar lugar a acontecimentos inesperados e a ser “acarinhada” pelos

Kushi. Um dos reclusos, «Tó-Zé», iria estudar macrobiótica para o Instituto Kushi, em

Boston e ensinaria macrobiótica em New Bedford, lugar onde se instalara uma

significativa comunidade de língua portuguesa, antes de regressar a Portugal100

.

A par destas experiências muitos iam fazendo o seu caminho na macrobiótica, com mais

ou menos sucesso, mais ou menos perseverança, mais ou menos rigidez, é ainda um dos

membros da Unimave quem relata:

O Jaime [seguidor da macrobiótica] era enfermeiro, tinha um centro de

enfermagem e um lar de idosos em Lisboa. Um dia chegou ao centro de

99 Este estudo realizado na América surge relatado por Clara Soares no artigo «Diz-me o que comes»

Máxima: http://sub.maxima.xl.pt/0604/soc/100.shtml [acesso em 22-12-11] 100 Ver Kushi Institute Newsletter January 2009 http://www.macrobiotic-way.com/tag/study/ [ acesso em

22-12-11]

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«À Mesa com o Universo»

190

enfermagem e disse «já não dou mais injecções». Toda a gente ficou pasmada a

olhar para ele, mas não deu mais injecções mesmo. Um dia cheguei ao lar para

me ir encontrar com ele, estava lá uma senhora com alguma idade que andava

de um lado para o outro e que dizia que estava com fome. O Jaime virou-se para

ela e disse-lhe «A senhora não come mais nada! OUVIU! Tem que esperar para

voltar a comer». Depois dizia «Tenho de a tratar assim porque senão vai-se

embora». Um dia chegou a casa (vivia com a mulher e já tinha filhos na

universidade), arrancou o esquentador e tirou a televisão de casa. Tinham todos

que tomar banho de água fria! (Risos) Vendeu o centro de enfermagem, o lar e

também quis vender a casa, mas a mulher opôs-se!

Conheci outro que a praticar macrobiótica foi encontrado morto em casa,

enforcado. Outro foi viver para Viseu e traz a família oprimida.Muitas pessoas

que conheci dos anos 70 e que passaram pela macrobiótica estão agora com

problemas graves de saúde.

Este relato é sintomático das repercussões profissionais e familiares que a

macrobiótica poderia ter. É comum nas sessões de formação falar-se da rigidez na

macrobiótica nos anos 1970 e 1980. Por outro lado, é destacada a ideia de que a

macrobiótica, afinal, não é a solução para todas as doenças e de que alguns evitamentos

e regimes que estes praticantes se auto-impunham nem sempre davam bons resultados.

*

Se os anos 80 e 90 foram de crise para a macrobiótica, o mesmo não podemos

dizer da actualidade. Do ponto de vista institucional, a macrobiótica é hoje dinamizada

sobretudo por Francisco Varatojo e Eugénia Varatojo e pelo seu projecto que é o

Instituto Macrobiótico de Portugal (IMP). A acção do IMP é hoje incontornável para

compreender a macrobiótica em Portugal. Localizado em pleno coração da cidade de

Lisboa, na Baixa-Chiado - Rua Anchieta, constitui o principal centro de divulgação e

aprendizagem da macrobiótica, lugar para onde muitos afluem, mesmo

estrangeiros.101

Classificando-se a si próprio como “um centro de referência e uma das

instituições mais conceituadas a nível internacional, no âmbito da Macrobiótica e saúde

natural”102

, tem hoje um modelo empresarial de organização, com um tipo de ofertas

semelhante às do Instituto Kushi, agora a funcionar em Becket – Massachussets

(Berkshire Moutains). O IMP tem, de resto, um protocolo com o Instituto Kushi, que

101 Uma belga frequentou comigo o primeiro ano do curso de macrobiótica Michio Kushi, porque tinha

boas referências do instituto. 102Instituto Macrobiótico de Portugal: http://www.e-macrobiotica.com/imp/historia/cf. http://www.e-

macrobiotica.com/centro.php [Acesso em 20-12-11].

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A Macrobiótica em Portugal

191

surge, portanto, como modelo a seguir. Entre os “produtos” oferecidos pelo IMP

contam-se os cursos de alimentação e culinária macrobiótica, os cursos curriculares

Michio Kushi, os cursos de shiatsu, de feng- shui, aulas de yoga, tai-chi, chi-

kung,seminários, consultas, venda de alimentos, restauração, etc. Num outro ponto do

trabalho voltaremos a esta instituição.

A par do IMP podemos encontrar outros centros dedicados à divulgação e

promoção da macrobiótica como o Instituto Português do Princípio Unificador,

associado ao restaurante «Tao» em Lisboa. Aí se fazem encontros regulares para

discutir assuntos no âmbito da macrobiótica e se procuram difundir os ensinamentos de

Ohsawa e, de forma especial, os de Kikuchi (discípulo de Ohsawa que prosseguiria o

trabalho do mestre no Brasil). Enquanto o IMP surge particularmente associado à figura

de Kushi, o Instituto Português do Princípio Unificador, coordenado por Rui Rato

evidencia uma maior ligação a Kikuchi, visto como discípulo mais fiel de Ohsawa e

como não promovendo um ensino de forma académica como aquele que é empreendido

por Michio Kushi.

*

Os dados aqui apresentados permitem perceber o “movimento macrobiótico”

como expressão específica de algo mais vasto do que um desejo de transformação

social. Tendencialmente de características urbanas, associado a uma multiplicidade de

estruturas complexas, de dimensão e com objectivos variáveis, implicou, desde o

começo, gente muito diversa, entregue a uma mesma causa, facto que não impediu a

eclosão de diversos conflitos. O intenso debate ideológico que atravessou a segunda

metade dos anos 70, fez-se também sentir na Unimave, tendo, aparentemente,

contribuído para acentuar algumas das divergências que caracterizaram esta estrutura.

A importância de uma abordagem de tipo diacrónico, como aquela que aqui foi

ensaiada, permite perceber estas dinâmicas no interior do movimento, bem como

transformações significativas no enquadramento social da macrobiótica. A forma de

gestão dos projectos associados a esta actividade, por exemplo, parece ter sofrido

alterações relevantes, concretamente com a passagem de projectos de cariz mais

colectivo para projectos fortemente individualizados. Nesta transformação parece poder

ver-se uma maior preocupação com a sobrevivência e uma maior orientação para a

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«À Mesa com o Universo»

192

sustentabilidade do projecto, de tal forma que têm vindo a permitir a cada vez mais

gente sobreviver profissionalmente em torno da macrobiótica.

Um outro aspecto importante que se depreende dos dados apresentados é o

carácter internacional da macrobiótica. As redes da macrobiótica são internacionais e

proporcionam contactos intensos e constantes. É comum os principais representantes da

macrobiótica de diversos países conhecerem-se. Convidam-se uns aos outros para

seminários nos centros que dirigem e trocam experiências nesse âmbito. O forte sentido

de unidade que caracteriza esta prática está de acordo com este interconhecimento.

Tudo se passa como se uma corrente de ideias e princípios claros e reconhecidos ligasse

os praticantes, de tal forma que um partidário da macrobiótica em Portugal pode

alimentar-se de forma muito semelhante a um inglês ou americano adepto deste tipo de

alimentação. As receitas e as técnicas culinárias podem ser muito semelhantes, factor

para que contribui fortemente a existência de um conjunto de produtos e ingredientes de

referência.

A macrobiótica coloca a alimentação no centro da procura de uma vida saudável.

Para aqueles que aderem ao movimento, independentemente do grau de adesão, a

macrobiótica define um modelo de relação com o corpo e com o mundo. Em última

instância trata-se de uma questão de poder e de controlo, ou seja, de convicção nas

virtudes de um modo de vida que permite o equilíbrio do corpo e que, simultaneamente,

pelo menos a partir de um certo nível de adesão, permite também a leitura do corpo

alheio, desvendando sinais de saúde ou de doença e prescrevendo como terapia o

reencontro com a vida saudável que a macrobiótica acredita perseguir.

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A Macrobiótica em Portugal

193

4.2 Retrato em Números: Para uma Sociografia da Macrobiótica

Muito embora não se encontrem disponíveis dados estatísticos relativos aos

seguidores da macrobiótica em Portugal, é possível avançar alguns números

relativamente aos que adoptaram o vegetarianismo. De acordo com dados do Centro

Vegetariano (Associação Ambiental para a Promoção do Vegetarianismo), estima-se

que existam em Portugal 30.000 vegetarianos.Este resultado foi obtido em 2007 por

uma empresa de estudos de mercado (Nielsen), contratada pelo Centro Vegetariano para

proceder a esse estudo. Foram feitas 2000 entrevistas a indivíduos entre 15 e 65 anos

numa amostra considerada representativa da população portuguesa, tendo-se chegado

àquele resultado com um intervalo de confiança de 95%. Na definição do critério

“vegetariano” foi considerado o facto de nunca se comer carne nem peixe como

condição para incluir os indivíduos nessa categoria. Um outro dado apontado nesse

estudo referia que 20% da população portuguesa consumia carne apenas

ocasionalmente, o que entendi constituir uma percentagem significativa e a que devia

dar alguma atenção103

.

É possível que, à semelhança do que se verifica noutros países, o número de

vegetarianos, ou de indivíduos que têm outras opções alimentares, esteja a aumentar em

Portugal. Nos EUA, em 1985, o número de vegetarianos era de 6 milhões, tendo

passado a ser, em 1992, de 12,5 milhões (Contreras e Gracia, 2005:181). No Reino

Unido, de acordo com Fiddes (1991), de 1984 para 1990, o número de vegetarianos terá

aumentado em 76% (cf. García, 2002:251). É de crer que o vegetarianismo tenha uma

maior expressividade que a macrobiótica, atendendo à anterioridade desta prática em

relação à macrobiótica, e atendendo também ao facto de se encontrar mais divulgada.

Ainda que a macrobiótica e o vegetarianismo constituam opções diversas, é possível

encontrar, entre os que seguem a macrobiótica, indivíduos que não consomem nem

carne nem peixe e outros que não consomem qualquer produto de origem animal,

podendo, neste caso, e em simultâneo, ser identificados como vegan.

A percepção mais imediata, relativamente à adopção da macrobiótica, é a de que

se trata de um fenómeno marginal, dado o frequente desconhecimento que as pessoas

têm acerca deste fenómeno. Convém, no entanto, destacar alguns aspectos que me

103 Pode ser encontrada referência a este estudo em: http://www.centrovegetariano.org/Article-451-

Portugal%253A%2B30%2B000%2BVegetarianos.htm [Acesso em 20-12-11].

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«À Mesa com o Universo»

194

parecem indiciar um crescente interesse por esta prática, constatação que decorre da

investigação efectuada para este trabalho. Em Braga, nos últimos sete anos, surgiram

dois restaurantes votados à alimentação macrobiótica e à venda de produtos

habitualmente consumidos no interior da prática macrobiótica - o «Centro Macrobiótico

Semente» e o «Alfacinha» - o que faz supor um aumento dos consumos nesta área.

Neste mesmo período, foram surgindo restaurantes a oferecer comida macrobiótica em

localidades próximas de Braga, como Guimarães, Barcelos e Famalicão. Lisboa, ainda

nos anos 1980, foi identificada por Kotzsch (1985) como uma das cidades europeias

com mais oferta de restaurantes macrobióticos. Actualmente, podemos encontrar

restaurantes como o «Espiral», «Tao», «Yin Yang», «Colmeia», «Prazeres Ecológicos»,

«Oriente-Chiado», «Cantina do IMP», «Cantina da Universidade», etc. São espaços

onde pode ser servida uma refeição macrobiótica, ou de inspiração macrobiótica, se se

quiser ser rigoroso.

Face à escassez de dados sobre a adopção da macrobiótica, os elementos que

apresento seguidamente ainda que não permitam uma caracterização rigorosa da

sociedade portuguesa relativamente a esta prática - dado não ter sido adoptada uma

estratégia e um modelo que permitisse a representatividade - tornam possível, pelo

menos, traçar um quadro sociográfico relativo aos alunos que frequentaram os cursos do

Instituto Macrobiótico de Portugal (IMP), na área da macrobiótica, em três anos lectivos

consecutivos: 2005-06; 2006-07 e 2007-2008. É certo que o interesse pela macrobiótica

nem sempre se manifesta na aproximação e interacção com o IMP, mas uma boa parte

da actividade em torno da macrobiótica existente em Portugal situa-se neste instituto, o

que justifica a relevância destes dados. A possibilidade de aceder ao arquivo, com o

registo das fichas de inscrição dos alunos, tornou possível uma informação rigorosa ao

universo de alunos inscritos, possibilitando uma recolha mais sistematizada de dados. O

facto de na ficha de inscrição figurarem questões relativas à idade, à formação e

profissão, bem como questões sobre o interesse pela área da macrobiótica, referência a

doenças existentes, e à utilização de medicamentos, etc., permitiu apresentar um

conjunto de dados que ajudam a melhor definir o conjunto de pessoas que frequenta os

cursos do IMP. Talvez até ajudem a compreender por que motivo o recurso a “estudos

científicos” sobre alimentação e saúde sejam tão recorrentes nas sessões de formação. É

que, antecipo desde já este dado, tendo a maior parte dos participantes uma escolaridade

acima da média, é bem provável que sejam mais facilmente persuadidos com

argumentos afirmados como tendo uma base científica. O facto de haver, por parte de

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A Macrobiótica em Portugal

195

alguns formadores, uma preocupação em demonstrar uma boa parte do que divulgam

através do recurso a este tipo de dados, sugere que, pelo menos do ponto de vista

retórico, também lhes atribuem importância.

O IMP organiza-se em torno de um conjunto de actividades que é comum

encontrar junto dos centros de promoção e divulgação da macrobiótica. Pode mesmo

dizer-se que a tipologia desta actividade podia já ser encontrada, em boa parte, nos

centros dirigidos por Ohsawa, no Japão, e, mais tarde, nos que surgiram na Europa e nos

EUA. A formação dada pelos Kushi, nos EUA, constituiu, sem dúvida, uma forte

influência no modo como o IMP se veio a organizar. É de referir, aliás, que o IMP

começou por se designar Instituto Kushi, tendo sido, inicialmente (1984), uma das

delegações do Instituto Kushi de Boston. Se olharmos para a página na internet do IMP

e para a do Kushi Institute nos EUA, encontramos grandes afinidades no tipo de

programas/palestras/conferências/actividades104

.

O IMP, de acordo com a sua página de apresentação na internet, veio sobretudo

colmatar uma lacuna em termos formativos que existia em Portugal na área da

macrobiótica. Assentando a sua actividade formativa sobretudo em cursos anuais (Curso

Curricular de Macrobiótica, Curso Anual de Culinária Macrobiótica, Curso de Feng-

Shui, Curso de Shiatsu e, mais recentemente, em parceria com a Fundación para la

Salud Geoambiental (Madrid), o Curso de Saúde Geoambiental), proporciona

igualmente cursos breves (sobretudo cursos de culinária, em módulos ou intensivos);

seminários, workshops e palestras. Esta instituição procura ainda complementar a sua

actividade com consultas de orientação alimentar e de estilo de vida, de alimentação

para bebés e crianças, e outras, em áreas como o shiatsu, acupunctura, feng shui, etc. A

confecção de refeições, venda de produtos, serviços de culinária ao domicílio,

organização de programas residenciais e campos de verão são ainda outras áreas de

actuação.

Uma situação comum no IMP é os alunos frequentarem um curso e,

posteriormente, ou até em simultâneo, inscreverem-se num outro curso proposto, como

se se tratasse, efectivamente, de uma formação complementar. Na verdade, como já tive

oportunidade de referir, há uma grande afinidade – ou pelo menos um discurso de

afinidade - entre os diferentes tipos de formação que são propostos. Para proceder à

caracterização dos alunos do IMP na área da macrobiótica, centrei-me sobretudo na

104 IMP: http://www.e-macrobiotica.com/imp/ [Acesso 18-12-2011].

Kushi Institute: http://www.kushiinstitute.org/ [Acesso 18-12-2011].

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«À Mesa com o Universo»

196

frequência do Curso Curricular de Macrobiótica e na frequência do Curso Anual de

Culinária Macrobiótica, dado que eram as formações mais directamente ligadas à

macrobiótica e porque correspondiam, também, a uma formação mais alongada no

tempo. Uma formação adquirida num prazo longo proporcionava mais tempo para que

novas aprendizagens fossem integradas e para que as dificuldades sentidas pudessem ser

trazidas para a sala de aula. Este aspecto pode parecer irrelevante para a caracterização a

que procederei, mas remete para pessoas que foram integrando a macrobiótica nas suas

aprendizagens no decurso de um prazo mais longo e que, por isso, não têm, geralmente,

um encontro meramente pontual e transitório com esta prática. Não pretendo com isto

dizer que as formações mais breves correspondam a abordagens superficiais da

macrobiótica. O grau de envolvimento depende muito do empenho de cada participante,

acontecendo até que aqueles que fazem formações mais breves se inscrevem depois

noutras de duração mais longa. De qualquer forma, pelas razões que evoquei e porque

tinha que fazer opções relativamente à organização dos dados, acabei por privilegiar os

cursos que referi105

.

O IMP é um importante ponto de encontro e de discussão, cruzam-se ali pessoas

com muitas afinidades no que diz respeito a questões como as orientações alimentares,

gosto por formas alternativas de tratamento ou atracção por filosofias e formas de

religiosidade de inspiração oriental. À hora de almoço é possível encontrar pessoas que

se conhecem de há longa data e que regularmente fazem ali as suas refeições. Ouvi-las,

nesse contexto, representa já aprender alguma coisa sobre macrobiótica. Por vezes é

possível encontrar algumas delas nas palestras mensais que aí são realizadas,

constituindo esse momento, uma ocasião para se encontrarem e trocarem impressões.

Todavia, como atrás referi (ver capítulo 2) perspectivar o instituto como comunidade

imaginada (Teixeira, 2006) parece-me uma interpretação inadequada do conceito de

comunidade imaginada. A população do instituto, com excepção de alguns que, por

razões de conveniência, vêm ali fazer regularmente as suas refeições e assistir a algumas

palestras, é muito flutuante. Alguns dos alunos têm relutância em classificar-se como

«macrobióticos», vivem longe do instituto e têm um contacto com a instituição

meramente pontual. Ainda que aí possam desenvolver relações de amizade, não se

referem ao instituto através de vínculos particulares.

105 Esses cursos encontravam-se organizados em sessões de um fim-de-semana por mês, das 10h às 18h,

entre Outubro e Julho, com preços que em 2005-06 e 2006-07 eram de 1200 € e que em 2007-08 se

situavam nos 1400 €.

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A Macrobiótica em Portugal

197

No levantamento que fiz de dados prestei particular atenção às inscrições no

primeiro ano do curso curricular de macrobiótica e no curso anual de culinária. O facto

de o curso curricular de macrobiótica se encontrar organizado em três anos, fazia com

que os registos relativos ao segundo e terceiro anos do mesmo curso se repetissem, dado

que muitos dos alunos que frequentavam esses anos tinham o seu registo desde o

primeiro ano, situação que me levou a optar por só considerar os primeiros anos desse

curso. No total foram 181 os indivíduos considerados, 115 no Curso Curricular de

Macrobiótica e 66 no Curso de Culinária Macrobiótica. À apresentação dos dados

relativos a estes cursos, procurarei adicionar elementos obtidos a partir da minha

experiência enquanto aluna que acompanhou um dos cursos curriculares de

macrobiótica nos seus três níveis, entre 2005 e 2008.

Quadro 4 - Distribuição dos participantes pelos cursos

2005-06 2006-07 2007-08

Cursos Curriculares de

Macrobiótica Nível I

34 40 41 115

Curso Anual de

Culinária

Macrobiótica

19 21 26 66

53 61 67 181

Em 2005-06 encontravam-se inscritos 34 alunos no curso curricular de

macrobiótica e 19 no curso de culinária; em 2006-07, 40 no curso curricular e 21 no de

culinária e em 2007-08, 41 no curso curricular e 26 no de culinária. Como pode

constatar-se, o número de alunos inscritos foi aumentando no decurso destes três anos.

Nestes cursos, algumas das sessões, de carácter mais teórico e introdutório, eram

dirigidas ao conjunto de alunos, havendo depois aulas separadas de acordo com o curso

frequentado. Era comum, durante o período de formação, os alunos de diferentes cursos

encontrarem-se no instituto e aí fazerem refeições em conjunto, o que constituía uma

oportunidade para se conhecerem melhor e trocar experiências, quer com a prática da

macrobiótica, quer a outros níveis.

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«À Mesa com o Universo»

198

Vejamos alguns aspectos relativos à distribuição por sexo de ambos os cursos.

Optei por não apresentar de forma separada os dados relativos a cada curso para que

fosse mais fácil ter uma visão de conjunto e por não se observarem diferenças

significativas que fossem pertinentes para o desenvolvimento deste trabalho. Nos outros

aspectos analisados, procederei do mesmo modo.

Quadro 5 - Distribuição segundo o sexo dos participantes

Masculino Feminino Total

37 – 20% 144 – 80% 181

Como é bem visível, a esmagadora maioria (80%) dos interessados nestes cursos

são mulheres. É um dado relevante, já que em estudo anterior sobre os frequentadores

do IMP (Teixeira, 2006), não se detectava uma grande disparidade entre os dois sexos.

O desequilíbrio observado é consistente em qualquer dos três anos observados,

parecendo traduzir uma tendência estrutural. Que motivos levarão as mulheres a

interessar-se mais por estes cursos do que os homens? Uma maior atenção a aspectos

relacionados com o cuidado do corpo, com a saúde, bem como o facto de habitualmente

serem elas as responsáveis pela preparação das refeições pode ajudar a explicar esta

situação. O facto de as mulheres serem geralmente educadas para serem cuidadoras

pode também contribuir para esclarecer esta situação. Uma das mulheres que conheci

nesse curso (reformada, 60 anos) tinha chegado à macrobiótica sobretudo por causa da

filha que tinha uma doença neuromuscular grave (miastenia gravis) e que estava a

reagir bem ao tratamento sugerido pelo consultor de macrobiótica. Aprender a cuidar de

si, ou dos outros, pode pois ser um bom motivo para aprofundar conhecimentos na área

da macrobiótica.

Quadro 6 - Distribuição segundo a idade dos participantes

Idades 17-25 26-30 31-35 36-40 41-45 46-50 51-60 ≥ 61 Total

28

16%

30

17%

40

23%

22

13%

25

14%

14

8%

10

6%

7

4%

176

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A Macrobiótica em Portugal

199

Cinco alunos não responderam a esta questão, pelo que só foram consideradas

176 respostas. Nos quadros seguintes, quando o número de respostas consideradas não

corresponder a 181, isso significa que não houve resposta às questões em apreço por

parte de alguns alunos, ou as mesmas não foram consideradas válidas, devendo, então,

ser apenas considerado o valor apresentado.

Se atendermos à faixa etária dos alunos, constataremos que é entre os 17 e os 45

anos que a maior parte se situa, sendo a faixa dos 31 aos 35 a mais frequentada, um

período que pode corresponder a uma fase de reequacionamento relativamente a opções

de vida. Verifica-se, ainda assim, alguma dispersão em termos etários, o que faz com

que as aulas sejam espaços onde se cruzam diferentes gerações e diferentes

experiências. Nos casos das pessoas com mais idade, é frequente existirem problemas

de saúde e uma maior preocupação com questões neste âmbito. Pode-se chegar jovem à

macrobiótica, mas esse encontro pode também ocorrer já depois dos 60 anos. Do

mesmo modo, na motivação para a frequência de um curso de macrobiótica, podem

pesar mais razões de relacionamento social e ocupação do tempo do que razões que

remetem estritamente para a proposta macrobiótica.

Quadro 7 - Distribuição segundo o estado civil dos participantes

Solteiro Casado Divorciado União

de facto

Separado Viúvo Total

90

51%

55

31%

27

15%

4

2%

1

0,6%

-- 177

Em termos de estado civil dos participantes, os resultados apontam para um

maior número de pessoas que se encontram solteiras ou divorciadas (117), ou seja, 66%

dos alunos. É possível que alguns, vivendo em união de facto, tivessem respondido que

eram solteiros, dado que apenas eram interrogados relativamente ao estado civil. Em

todo o caso, julgo que tal não terá influenciado decisivamente os resultados. Contudo,

convém notar que para alguns indivíduos que viviam sozinhos estes cursos podiam

intensificar as suas relações sociais, conhecer mais pessoas e fazer amizades a partir de

pontos de interesse convergentes.

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«À Mesa com o Universo»

200

Quadro 8 - Distribuição segundo a naturalidade dos participantes

Açores Alentejo Algarve Centro Lisboa Madeira Norte Outro

país

2

1%

2

1%

6

4%

25

15%

85

52%

4

2%

19

12%

23

14%

163

Este quadro segue a nomenclatura de unidades territoriais para fins estatísticos

(NUTS II), representando, por conseguinte, uma divisão do país de nível intermédio. Há

aqui a destacar o número de indivíduos que nasceram fora do país. É certo que alguns

deles dizem ser naturais de Angola e Moçambique, o que, atendendo a um passado

recente de retorno a Portugal de um número significativo de portugueses que residiam

nas antigas colónias, é relativamente comum. Ainda assim, analisando os dados de

forma mais atenta, constata-se que alguns desses alunos são naturais de países como a

Bélgica, Espanha, Hungria…e que alguns até se deslocaram dos seus países para vir

fazer em Portugal uma formação na área da macrobiótica, o que indicia reconhecimento

do IMP enquanto entidade formadora. Uma das minhas colegas de curso, no primeiro

nível, era belga, tinha feito formação na área da tradução e, então, perto dos 30 anos,

tinha decidido vir frequentar o IMP por lhe reconhecer qualidade ao nível da formação.

No terceiro nível do curso que frequentei, em 2007-08, cinco dos dezassete

alunos eram espanhóis, deslocando-se, quatro deles, mensalmente, de Espanha para

Portugal, expressamente para frequentarem o curso. Vinham de lugares como

Barcelona, Madrid e Lekunberri (Navarra) para obter esta formação, e referiam

claramente que não encontravam em Espanha uma formação de qualidade idêntica.

Alguns já tinham iniciado a formação naquele país e, por isso, puderam ser integrados

no III nível, aspirando a complementar a formação obtida com a frequência do curso

proporcionado pelo IMP. No quadro que se segue, a informação relativa à residência

noutro país apenas surge associada a um indivíduo, mas este quadro reporta-se ao

primeiro ano de formação.

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A Macrobiótica em Portugal

201

Quadro 9 - Distribuição segundo o local de residência dos participantes

Açores Alentejo Algarve Centro Lisboa Madeira Norte Outro

país

-

-

7

4%

21

12%

124

70%

2

1%

22

12%

1

1%

177

Um dos dados mais salientes neste quadro é o número de alunos (124) que reside

em Lisboa (arredores incluídos), facto compreensível dado o funcionamento do IMP em

Lisboa. Se considerarmos, separadamente, cada um dos cursos em análise, verifica-se

que no caso do curso curricular de macrobiótica há mais indivíduos que vêm de outras

regiões do que no caso do Curso de culinária macrobiótica. O interesse por uma

aprendizagem mais aprofundada, de que não podem dispor noutros contextos, pode ser

um dos motivos. Eu própria, bem como alguns dos meus colegas, tivemos oportunidade

de fazer um curso de culinária macrobiótica em Braga, não tendo depois, nesta cidade,

possibilidade de continuar a aprofundar conhecimentos nesta área. O quadro 6 permite

ainda perceber que, fora de Lisboa, é sobretudo a região centro e a região norte que

contribuem com o maior número de alunos. Um certo efeito de “contágio” pode ser

observado relativamente à decisão de frequentar estes cursos. O facto de uma pessoa

decidir frequentar o curso pode constituir incentivo para que outra sua conhecida, o

frequente também. Era comum aproveitar a boleia de alguém conhecido e decidir-se, em

conjunto, sobre o alojamento em Lisboa. A viagem em companhia fazia assim com que

essas viagens fossem menos penosas e onerosas, além de ser, também, uma

oportunidade para partilhar experiências. É de notar ainda, relativamente a este quadro,

a existência de uma pessoa que mensalmente se deslocava do Funchal para Lisboa para

fazer esta formação (professora, 45 anos). Pelo contacto que fui tendo ao longo destes

anos, esta formanda contribuiu de forma significativa para divulgar a macrobiótica na

Madeira. Como vemos, os trânsitos e os fluxos de informação que os acompanham, e

que tão bem tinham caracterizado Ohsawa e discípulos, continuam a verificar-se,

fazendo da macrobiótica um fenómeno transregional e mesmo transnacional.

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«À Mesa com o Universo»

202

Quadro 10 - Distribuição segundo a escolaridade dos participantes

Inferior

4ªclasse

Ciclo

Ciclo

Ciclo

Sec. Curso

Sup.

Mestr. Dout.

- - - 11

6%

61

36%

91

53%

5

3%

3

2%

171

Um outro dado relevante na caracterização dos alunos diz respeito ao grau de

escolaridade. A maior parte deles (99) tem formação concluída de nível superior, uma

percentagem de 58% dos inquiridos. Se tivermos em consideração que muitos dos que

foram incluídos na categoria «Ensino Secundário» (por não terem ainda concluído o

ensino superior) frequentaram ou frequentam o ensino superior sem o concluir, esse

dado assume ainda maior significado. A ideia de que os que adoptam a macrobiótica

tendem a ter níveis de escolaridade acima da média não parece, portanto, ser uma pré-

noção infundada, tal como em trabalho anterior se sugeriu (Teixeira, 2006). A

disposição para acreditar numa proposta como a macrobiótica, tão baseada em critérios

que a ciência não reconhece, não tem uma relação expectável com o nível de

escolaridade – pelo menos considerando que a uma maior formação deveria

corresponder uma maior vigilância relativamente a uma sustentação com base científica.

Todavia, o contacto com muitos destes inquiridos leva-me a acreditar que a sua

disponibilidade para a macrobiótica é favorecida pelo facto de o tipo de discurso que

lhes é apresentado não se afastar muito de esquemas de racionalidade e argumentação

que valorizam e se aproximam da narrativa científica. Uma construção discursiva em

que se deposita fé no indivíduo, se desenvolve uma crítica à ciência e a muitos dos actos

médicos que dela decorrem, se rejeita a industrialização da comida, materialismo das

sociedades actuais e o menosprezo pela natureza, tópicos que parecem seduzir muitos

dos que se encontram na macrobiótica, mesmo aqueles que provêem de formações de

nível superior. Vêem-se e referem-se a si mesmos como estando a aceder a uma

plataforma de conhecimento ou, usando conceitos émicos, a “criar uma consciência” de

que outros ainda estão distantes, como se o efeito de distinção, enunciado por Bourdieu

(1979), tivesse aqui significado. Observo, assim, na maior parte dos inquiridos uma

disponibilidade para reconhecer a importância da espiritualidade que a macrobiótica

procura veicular. Quando, a uma mensagem em que se quer acreditar, se juntam

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A Macrobiótica em Portugal

203

argumentos de natureza científica, como muitos dos que são usados nos cursos de

formação, que parecem confirmar aquilo que se promove, todo o enunciado parece ficar

sólido e consistente, pronto a ser adoptado. Muito do efeito de adesão causado na

macrobiótica, tem assim a ver com a enunciação do discurso e com as lógicas

argumentativas que o sustentam, tal como Foucault (1990 [1971]) referia. Ou então, o

que é outra forma de convergir para um mesmo sentido interpretativo, com um poder

simbólico, tal como Bourdieu (1989) o apresentou, ou seja, uma capacidade de «fazer

crer» e «fazer ver».

Se atendermos à distribuição dos participantes por profissão (é seguida a

classificação portuguesa de profissões – CPP/2010 relativa aos grandes grupos

profissionais)106

, constataremos que elas parecem adequar-se aos níveis de escolaridade

detidos pelos alunos. No número de alunos considerado para apresentar esta distribuição

não foi possível atender ao curso de culinária de 2005-06, dado que na ficha de

inscrição desse ano não figurava nenhum pedido relativo à indicação da profissão, daí o

número de respostas consideradas válidas ser de 138.

106 Ver: Instituto Nacional de Estatística. 2010. Classificação Portuguesa das Profissões 2010. Lisboa:

INE.

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«À Mesa com o Universo»

204

Destaca-se neste quadro uma área profissional onde pode ser colocada a maior

parte dos alunos, a dos «Especialistas das Actividades Intelectuais e Científicas», o que

condiz com os níveis de escolaridade apresentados. Em todo o caso, convém dizer que

este grande grupo inclui profissões muito diversas, quer na área intelectual e científica

quer na área artística. Assim, é possível incluir aqui tanto bailarinos, actores e

enfermeiros, como professores e investigadores. Não procedo a uma apresentação

detalhada dos grupos e subgrupos associados aos grandes grupos identificados neste

quadro, dado que tal não me parece um exercício necessário para o desenvolvimento

deste trabalho, mas convém salientar que uma das profissões mais frequentadas neste

conjunto de participantes é a dos professores. Também surgem arquitectos, psicólogos,

Quadro 11 - Distribuição segundo a profissão dos participantes

0. Profissões das Forças Armadas _

1. Representantes do poder legislativo e de órgãos executivos,

dirigentes, directores e gestores executivos

8 – 6%

2. Especialistas das Actividades Intelectuais e Científicas 64 – 46 %

3. Técnicos e Profissões de Nível Intermédio 16 – 12%

4. Pessoal Administrativo 10 –7%

5. Trabalhadores dos serviços pessoais, de protecção e segurança e

vendedores

11– 8%

6. Agricultores e trabalhadores qualificados da agricultura, da pesca e da

floresta

_

7. Trabalhadores qualificados da indústria, construção e artífices 1 – 0,7%

8. Operadores de instalações e máquinas e trabalhadores da montagem _

9. Trabalhadores não qualificados _

Desempregados 5 – 3,6%

Reformados 6 – 4,3%

Estudantes 12 – 8,7%

Outra situação 5 – 3,6%

138

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A Macrobiótica em Portugal

205

economistas, investigadores, médicos, nutricionistas, cineastas, engenheiros, jornalistas,

advogados, actores e bailarinos, o que evidencia um conjunto significativo de alunos

recrutados em áreas criativas e com elevado nível de formação.

A área dos técnicos e profissões de nível intermédio é a segunda mais

representada. Entre os participantes existem alguns técnicos de saúde, como seja o

técnico de radiologia ou o técnico de cardiopneumografia, mas também terapeutas que

actuam na área das terapêuticas não convencionais, como o shiatsu e a ayurvédica.

Nestes casos, e tal como pude detectar através do contacto com alunos que se

encontravam nesta situação, frequentar um curso de macrobiótica surge como meio de

complementar a sua formação e de alargar o seu campo de acção, tornando possível, por

exemplo, trabalhar no aconselhamento alimentar na área da macrobiótica. Este facto

sugere que a formação em áreas diferenciadas não é vista como incompatível, mas como

podendo ser integrada e utilizada, tanto isoladamente como em complementaridade com

outras terapêuticas. Assim, é possível encontrar quem conjugue o reiki com a

macrobiótica, ou esta com a “massagem ayurvédica”.

Alguns dos participantes destes cursos pertencem também à área dos serviços

administrativos e comércio e outros actuam como técnicos de turismo. Surgem alguns

casos de cozinheiros que, nesta classificação, ficaram adstritos ao grande grupo dos

«Trabalhadores dos Serviços Pessoais, de Protecção e Segurança e Vendedores». No

caso destes participantes, constata-se a conciliação da profissão de cozinheiro com

formações de nível superior, como Tradução, Engenharia Florestal, Engenharia do

Ambiente ou Psicologia. Este aspecto indicia que acabaram por seguir uma trajectória

profissional muito distinta da que seria expectável, dada a formação académica.

Também neste caso, a macrobiótica e, especificamente, a cozinha macrobiótica, pode

surgir como possibilidade profissional ou como forma de complementar conhecimentos

em relação a uma área pela qual estes profissionais nutrem interesse. Há, também, entre

os participantes, alguns estudantes, o que sugere que a macrobiótica tem alguma

capacidade de seduzir os mais jovens. Pesará, nestes casos, a atracção por aspectos de

ordem filosófica e ambientalista, que se encontram implícitos na proposta macrobiótica.

Tal não significa que os outros participantes não manifestem este tipo de interesse, mas

neste grupo essas preocupações são bastante visíveis e afirmadas.

Pela distribuição das profissões apresentadas no quadro é possível constatar que

as mesmas se situam sobretudo na área dos serviços. A maior parte dos profissionais

reside e exerce a sua profissão em contexto urbano e, muito embora alguns demonstrem

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«À Mesa com o Universo»

206

desejo de abandonar a cidade e ir viver para lugares mais tranquilos e menos

humanamente transformados, muitos acabam por não o fazer. A ideia do “retorno à

natureza” permanece assim como recurso que se guarda e que se espera um dia

concretizar.

O confronto dos resultados obtidos a partir desta análise com os dados relativos

aos consumidores «bio» apresentados por Mónica Truninger (2010), de acordo com

inquérito nacional realizado pelo «Observa» em 2000, permite encontrar alguns traços

comuns entre os indivíduos que participam nos cursos de formação promovidos pelo

IMP e os consumidores «bio».107

Diz-nos Truninger (2010:123)

(…) o grupo de compradores de produtos biológicos é caracterizado por

indivíduos com elevado grau de instrução; por jovens e pessoas de meia-idade;

por trabalhadores activos e estudantes; com profissões especializadas (que

incluem especialmente profissionais e técnicos, e profissões associadas); por

pessoas pertencentes à classe média-alta; e por residentes em zonas urbanas. É

também de destacar que pouco menos de metade deste grupo “nunca viveu em

casal”; a maioria tem nacionalidade portuguesa, no entanto, existe uma

percentagem significativa de estrangeiros, e mais de metade não tem filiação

religiosa (são agnósticos ou ateus). A variável género não oferece uma diferença

significativa como já tem vindo a ser assinalado por alguns estudos realizados

sobre a matéria.

A extensão da análise aos membros da «Biocoop» (cooperativa de consumidores

de produtos de origem biológica) permitiria ainda constatar que mais de metade dos

membros se encontrava incluída na categoria dos «Especialistas das Profissões

Intelectuais e Científicas», encontrando-se muitos profissionais que trabalhavam nas

áreas da educação, media e artes, ciências sociais e humanas, arquitectura e engenharia

e que existia uma sobrerepresentação nesta cooperativa de categorias profissionais como

«Escritores, Artistas e Executantes» (15 vezes mais na «Biocoop» face à população de

Lisboa). Constata ainda Truninger que os membros desta cooperativa «vivem sobretudo

numa área urbana e cosmopolita; existe uma proporção significativa de pessoas de

nacionalidade estrangeira (especialmente europeia) e uma distribuição quase paritária

entre homens e mulheres; onde os grupos etários dominantes correspondem aos dos

profissionais activos (entre os 25 e os 49 anos)».

107 Segundo Inquérito Nacional às Representações e Práticas Ambientais dos Portugueses, realizado em

2000 pelo OBSERVA - Observatório de Ambiente e Sociedade. O Observa é um programa de

investigação permanente do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, coordenado por

Luísa Schmidt.

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A Macrobiótica em Portugal

207

O trabalho de terreno por mim efectuado, a partir do IMP e em Braga, permite-

me afirmar que muitos dos que podem ser classificados como consumidores «bio»

seguem também a alimentação macrobiótica. De resto, relativamente aos indivíduos que

seguem os cursos de formação no IMP, verifica-se, de igual modo, uma escolaridade

acima da média e o exercício de profissões no âmbito da categoria «Especialistas das

Actividades Intelectuais e Científicas», observando-se também diversos casos de

indivíduos com profissões ligadas às artes, bem como de estrangeiros. Também estes

indivíduos vivem sobretudo em áreas urbanas. Relativamente à dimensão «ter vivido

em casal», esta dimensão não pôde ser analisada devidamente por mim, tal como referi,

dado que nas fichas apenas surgia referência ao «estado civil», facto que pode ter levado

os indivíduos a responder de acordo com o tipo de situação que surgia no Bilhete de

Identidade. Não foi possível, por conseguinte, avaliar objectivamente a dimensão que

tem a ver com a conjugalidade. Os elementos recolhidos revelaram, contudo, um maior

número de solteiros, divorciados e separados (118 em 177). A única dimensão em que

há uma clara divergência tem a ver com o género. Nos cursos do IMP encontramos

sobretudo mulheres. São sobretudo elas que preparam as refeições, mas os

companheiros participam na tarefa de «fazer as compras», daqui a possibilidade de os

homens terem uma maior visibilidade entre os membros da «Biocoop» por relação aos

alunos do IMP. Relativamente à religião seguida, os contactos por mim efectuados

permitiram-me perceber que muitos não se identificavam com o catolicismo, mas

também não se declaravam como ateus, antes sugeriam uma identificação com uma

religiosidade de carácter sincrético, onde diferentes elementos do cristianismo, budismo

e taoismo podiam ser encontrados. Muito embora este aspecto não tenha sido

aprofundado por mim, o que o contacto no terreno me permitiu depreender foi que o

tema da espiritualidade, que não é um exclusivo da religão, se encontra muito presente.

De resto, se prestarmos atenção à concepção do universo na macrobiótica (ver capítulo

3) constataremos a importância dessa temática.

*

Uma das questões colocada na ficha de inscrição, que tem aqui servido de base

para a apresentação destes elementos, dizia respeito a um aspecto especialmente

pertinente para analisar a adopção da macrobiótica, pois questionava os alunos sobre

problemas de saúde. Sendo veiculada por alguns dos formadores a ideia de que a

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«À Mesa com o Universo»

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adopção da macrobiótica no passado se devia sobretudo à existência deste tipo de

problemas, a resposta a esta questão afigurava-se útil e esclarecedora. Uma primeira

constatação é que muitos dos inquiridos não responderam a esta questão. Daqueles que

responderam, 56 referiram que não tinham problemas de saúde e 36 reconheceram que

sim. A maior percentagem dos que responderam «não» sugere que a existência de

problemas de saúde não tem um peso determinante na decisão de frequentar estas

formações. A minha experiência enquanto aluna num desses cursos, permitiu-me

confrontar as minhas observações com o que se encontrava inscrito nessas fichas, tendo

constatado que muito embora algumas daquelas pessoas não sinalizassem problemas de

saúde na ficha de inscrição, tinham-nos tido anteriormente, e, em alguns casos, esses

problemas tinham sido solucionados ou atenuados através da macrobiótica. Em tais

situações, a frequência daquele curso pode ser vista como consequência do sucesso no

tratamento. Num dos casos, a resposta à questão sobre a toma de medicamentos era a

seguinte: «Não. Há cerca de um ano que evito esse tipo de tratamentos» (Técnica

Profissional de BAD, 26 anos). Tratava-se agora de aprender mais sobre uma forma de

tratamento que tinha dado bons resultados. A maior parte dos problemas declarados não

eram graves, e houve até um caso em que a adopção da macrobiótica aconteceu apenas

porque se seguia uma dieta vegetariana que não estava a produzir os efeitos pretendidos

do ponto de vista energético. Em todo o caso, e apesar de a estatística sugerir sérias

reservas a esta conclusão, os problemas de saúde parecem-me ser efectivamente

relevantes para analisar a adesão à macrobiótica.

É de salientar ainda que muito embora a maior parte dos participantes não

revelasse problemas de saúde, e que 105 referissem que não tomavam medicamentos,

aqueles que o faziam assinalavam, sobretudo, as seguintes doenças: alergias e asma;

doenças cardiovasculares, associadas frequentemente a diabetes; hipertensão e

colesterol. As doenças osteoarticulares (sobretudo problemas de coluna) foram também

referidas diversas vezes. Uma das participantes referia:

Não considero ter problemas específicos mas apenas os gerais e infelizmente tão

comuns da sociedade em que nos inserimos como stress, alergias e outros

potencialmente agravados por uma alimentação menos correcta da minha parte.

(32 anos, sem indicação da profissão).

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A Macrobiótica em Portugal

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Num outro caso, uma senhora respondia que não tomava medicamentos, muito

embora mencionasse alguns problemas de saúde: Um quisto na garganta, ouvidos (ouço

mal de um ouvido), tensão alta, colesterol elevado. (Técnica auxiliar de Serviço Social,

61 anos). A minha percepção relativamente a estas situações é a de que a adesão à

macrobiótica conduz as pessoas a evitarem medicamentos, ainda que em alguns casos

exista uma recomendação médica para que sejam tomados.

Com uma outra questão colocada na ficha procurava aferir-se de que forma se

manifestava o interesse pela macrobiótica. Na resposta a esta questão, os visados

responderam referindo os motivos que os levavam a interessar-se por esta prática.

Assim, de acordo com as respostas dadas, a esta pergunta aberta, foi possível identificar

o seguinte conjunto de significados, por ordem do mais para o menos referido: 1)

Desejo de melhorar os hábitos alimentares e de aprofundar o conhecimento sobre a

alimentação macrobiótica; 2) Interesse pelas filosofias e propostas terapêuticas orientais

bem como por tratamentos naturais; 3) Desenvolvimento pessoal; 4) Razões

profissionais; 5) Razões de saúde; 6) Interesse em mudar o modo de vida. Houve ainda

outros aspectos que foram apontados como razões fortes como a questão da

espiritualidade e a questão ambientalista, mas o número de indivíduos que se

pronunciou sobre estes aspectos foi bem mais reduzido. É de notar que muito embora

tenha procurado aqui individualizar as categorias mencionadas, umas nem sempre

excluem as outras, sendo possível encontrar, numa única resposta, elementos que

podem conduzir a mais de uma categoria. Assim, uma das alunas respondeu:

Tento aplicar a macrobiótica no meu dia-a-dia. Na alimentação, na prática de

métodos de relaxamento e por conseguinte no meu estado de espírito e

abordagem da vida. Tenho grande vontade de aprender e contactar cada vez

mais esta filosofia. (Técnica de BAD, 26 anos).

Facilmente reencontramos aqui preocupações que vão de encontro à categoria 1

mas também à 2, 3 e até à 5. Noutros casos podemos observar ainda a facilidade como

são integrados diferentes princípios filosóficos:

Reconheço na Macrobiótica uma via equilibrada para o bem-estar integral do

ser humano. Como cristã não partilho alguns princípios da filosofia oriental

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«À Mesa com o Universo»

210

mas aceito e vivo segundo alguns conceitos e práticas da sabedoria oriental

(Agente de viagens, 54 anos).

Ou ainda,

Tenho uma preocupação de bem-estar em geral, e é nesta base que o meu

interesse se manifesta, em especial, pela macrobiótica. No entanto gosto de ter

uma postura moderada em relação a “tudo” na vida. Nada de

fundamentalismos. Em termos práticos, não sigo os preceitos macrobióticos à

risca, no entanto, aboli as carnes do meu regime alimentar e o fumo de tabaco

dos meus hábitos (Secretária, 35 anos).

Neste caso, a identificação com uma das categorias é difícil, dado que o que

mais sobressai é a ideia de bem-estar geral. Talvez «Razões de saúde», seja a categoria

mais adequada, mas há na resposta alguma informação que a transcende.

Uma das respostas típicas dadas foi: Pretendo conhecer melhor a macrobiótica e

melhorar substancialmente a minha alimentação tendo conhecimento dos benefícios

que daí podem advir para o meu bem-estar (Enfermeira, 26 anos). Esta resposta dá

conta do desejo de aprofundar uma aprendizagem que se julga que possa vir a ter efeitos

benéficos, quer ao nível da saúde quer a outros níveis, tal como a noção de bem-estar

sugere. As razões de saúde são também evocadas a partir de respostas como: Desde há

um ano e meio que mudei a minha alimentação devido a um problema de saúde, sob

[nome do terapeuta] (economista, 36 anos) ou ainda Há um ano que mudei a

alimentação para a macrobiótica por indicação da minha terapeuta [nome]. Sinto-me

bem e queria aprofundar mais, para além da alimentação. (Professora, 44anos).

O desejo de fazer transformações no modo de vida aparece também explícito em

algumas das respostas, incluindo vários aspectos das outras categorias consideradas:

O meu interesse reside na necessidade que tenho de modificar o meu estilo de

vida, quer na alimentação, quer na saúde, quer na minha espiritualidade.

(Homem de 61 anos, não indica profissão)

Como vemos, a idade parece não constituir um obstáculo a que se procure

modificar o estilo de vida.

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A Macrobiótica em Portugal

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O interesse pela macrobiótica relaciona-se também frequentemente pela simpatia

por terapêuticas não convencionais, onde o tipo de abordagem é tido como mais natural:

O mundo da medicina oriental sempre me fascinou pela abordagem mais

natural (e menos química). A nutrição é outra área de grande interesse para

mim e como tal a macrobiótica apareceu na minha vida. (Assistente de

investigação, licenciada em Bioquímica, 24 anos)

Ou ainda:Tirei o curso de podo-reflexologia e tenho interesse pelas medicinas orientais.

(mulher, 32 anos, não indica a profissão). No caso seguinte é revelado ainda mais

claramente o interesse por algumas práticas orientais:

[Sou] praticante de taichi/chikung há cerca de 6 anos. Reiki essencial nível III.

Praticante de kyodo. Curso básico de Zen Shiatsu na união budista. (mulher, 36

anos, sem indicação de profissão)

Destacando-se ainda a atracção pela medicina oriental podemos encontrar a

seguinte resposta:

Interessa-me a abordagem da saúde feita pela medicina oriental (orientada

para a saúde e não para a doença, pesquisando as causas e não tratando

essencialmente os efeitos). Relativamente à macrobiótica encaro-a

essencialmente como um grande desafio a mim mesmo. (Técnico de radiologia,

24 anos).

A concepção de que a medicina oriental, e também a macrobiótica, estariam

mais orientadas para a saúde do que para a doença, seria frequentemente encontrada no

decorrer do curso, subjazendo a este tipo de discurso uma imagem negativa sobre a

medicina praticada no ocidente. Note-se que, neste caso, esta concepção é apresentada

por um técnico de saúde, o que sugere uma visão crítica relativamente ao conjunto de

procedimentos que observa na sua área profissional. Comentários semelhantes podem

ser observados noutros técnicos de saúde, sendo tal indiciador de algum desconforto no

modo como actuam na área da saúde.

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«À Mesa com o Universo»

212

Sugerindo-se que a frequência do curso de macrobiótica pode também ser uma

forma de complementar uma formação encontramos respostas como esta:

A filosofia oriental tem percorrido os meus maiores interesses ao longo desta

vida. Fiz o 1º ano de shiatsu pela Eides – M. Mariposa; fiz o 1º ano e frequência

do 2º ano de medicina tradicional chinesa na ESMTC [Escola Superior de

Medicina Tradicional Chinesa]; e agora vou experimentar a

alimentação…demasiado importante no nosso dia-a-dia.(Publicitária, 44 anos)

Em alguns casos a orientação para o exercício de uma profissão parece estar já

bem definida:

Quero tirar todos os níveis, incluindo o nível 4 para que possa ser consultor,

ajudar as pessoas a terem uma vida mais saudável e harmoniosa.(Assistente de

cozinha, 21 anos)

«Sim. Quero abrir um restaurante macrobiótico.» (Jornalista, 33 anos)

Por estas respostas é possível detectar diferentes motivações para a decisão de

frequentar estes cursos. Em todo o caso, estas respostas situam-se num conjunto

definido de assuntos, sendo as categorias que enunciei as áreas onde essas motivações

podem ser observadas. Tal como referi, essas categorias, ainda que distintas, podem ser

evocadas em simultâneo pelo mesmo participante, que pode pretender, ao mesmo

tempo, melhorar a sua alimentação, encontrar maior equilíbrio físico e emocional,

transformar o seu modo de vida e até procurar uma nova profissão. Tudo isto através de

uma área pela qual sente atracção, as “filosofias e terapias orientais” que lhe permitem

um “maior desenvolvimento da espiritualidade”.

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A Macrobiótica em Portugal

213

4.3 - Ensino e Aprendizagem da Macrobiótica: Modos de Transmissão de

Conhecimentos

Uma estratégia fundamental para compreender de que forma os indivíduos

desenvolvem a sua aprendizagem da macrobiótica passa, inevitavelmente, por procurar

perceber de que modo o conhecimento relativo a esta proposta de orientação no mundoé

transmitido. Determo-nos nos contextos e formas específicas de divulgação de ideias,

“modos de ver” e “modos de fazer”, permite analisar, efectivamente, o tipo de

informação que é propagado, bem como o modo como é apresentado. A questão da

transmissão de conhecimentos é, na verdade, um aspecto medular para analisar a

permanência, mas também a dinâmica dos modos de conceptualizar o real, dado que é

por via dessa transmissão que se assegura que haja continuidade na aprendizagem dos

saberes associados a qualquer forma de entendimento do mundo108

. Também no caso

que aqui me ocupa, a aprendizagem da macrobiótica, o modo de transmissão de

conhecimentos, sinaliza continuidade e reprodução, mas também recriação e

transformação.

O tipo de conhecimento que é transmitido, bem como a utilização de certos

conceitos, deve ser relacionado com sistemas específicos de pensamento e contextos

particulares de formação. Com efeito, o valor de termos como por exemplo ki (chi), yin

e yang não é sempre exactamente o mesmo em todas as circunstâncias, e a acepção

destas noções é algo divergente consoante estejamos a falar de macrobiótica ou de

medicina tradicional chinesa. Cada um destes sistemas de referência fez a sua própria

interpretação dos conceitos referidos, o que pode gerar alguma ambiguidade, mas ao

mesmo tempo evidencia o dinamismo e singularidade de cada um deles. Elisabeth Hsu,

no seu livro The Transmission of Chinese Medicine(1999), chama precisamente a

atenção para a questão dos contextos de aprendizagem de matérias ligadas à medicina

tradicional chinesa, para frisar que a diferentes contextos e estilos de conhecimento

correspondem diferentes formas de aprendizagem109

. De acordo com o estatuto que cada

108 Uso o termo saberes sobretudo nesse sentido que evoca pluralidade e menor formalização. 109 Na sua pesquisa pôde identificar três modos distintos de transmissão de conhecimentos: secreto,

pessoal e estandardizado. O modo secreto corresponderia a uma aprendizagem desenvolvida numa prática

privada, sob a orientação de um mestre de qigong (chi kung); o modo pessoal a uma prática colectiva,

mas fora das unidades públicas de trabalho, com um mentor de acumoxa e o modo estandardizado à

aprendizagem nos hospitais, clínicas e colégios. Cada uma destas formas de aprendizagem fê-la sentir-se,

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«À Mesa com o Universo»

214

indivíduo tem no contexto em que se move, varia também o modo e o tipo de

informação que lhe é proporcionado. Na pesquisa efectuada, verifiquei também essa

diversidade e pude constatar que nos cursos e seminários certas temáticas eram

abordadas de modo diferente consoante se tratasse de um público mais especializado ou

iniciante. Este tipo de abordagem pode ser considerado comum e revelar bom senso por

parte de quem organiza as sessões, mas deixa também claro que é o contexto e o

conjunto de pessoas que influenciam a natureza do discurso que é apresentado e, através

dele, o padrão de conhecimentos transmitido.

No caso da macrobiótica, podemos identificar essencialmente três formas através

das quais se faz a transmissão de saberes: os livros; a informação veiculada no círculo

de amigos/conhecidos e aquela que é apresentada em cursos e palestras. A primeira

forma tem a ver com a literatura produzida em torno do tema e tem permitido que, de

forma relativamente autónoma, os indivíduos se possam iniciar nesta forma de

alimentação e de orientação. Para alguns dos praticantes que contactei, os textos da

macrobiótica foram efectivamente relevantes e marcaram um rumo relativamente a

novas opções e modos de perspectivar a vida. De forma independente, começaram a

procurar novos ingredientes e a fazer as suas experiências na cozinha. A colocação na

prática do que se lia nos livros terá levado a algum radicalismo e até a situações

extremas, sobretudo quando o livro guia pertencia a autores como Ohsawa, mas segui-lo

evidenciava também empenho profundo. Autores como Ohsawa e Kushi ou Rosa

Calado, para o caso português, foram efectivamente importantes no desenvolvimento de

uma prática ligada à macrobiótica.

Uma segunda forma de transmissão deste tipo de saberes é aquela que se faz entre

pares, no grupo de amigos/conhecidos e que implica interacção/partilha, dúvidas e

interrogações sobre modos de seleccionar alimentos e de os confeccionar. As afinidades

e a confluência em termos de perspectivação do mundo (simpatia pela macrobiótica,

mas também pela causa ecologista e aspiração a um mundo diferente, de maior

responsabilidade individual e social), tornam por vezes este processo de aprendizagem

numa ocasião para consolidar amizades e possibilitar uma visão mais integrada deste

tipo de práticas.

respectivamente, como discípula, aprendiz e estudante, em interacção, designadamente, com mestre,

mentor e professor.

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A Macrobiótica em Portugal

215

Finalmente, uma terceira forma de transmissão de conhecimentos passa pela

organização de cursos/palestras/conferências/encontros com vista à formação nesta área.

É justamente nesta última forma de transmissão de conhecimentos, que podemos

classificar como mais formal, que focalizarei a minha atenção neste ponto do trabalho.

Sem dúvida que estas três modalidades de formação e transmissão de conhecimentos se

articulam e complementam, mas deve ser sublinhado que esta última, na medida em que

sugere mais consistência no desenvolvimento das aprendizagens, constitui um bom

ponto de partida para abordar esta questão de uma forma mais integrada. De facto, a

partir dos cursos, que aliam a prática à teoria, parece-me possível observar de que forma

os diferentes níveis se articulam e fecundam mutuamente.

Transmissão formal - Cursos, Livros, Palestras

Os elementos que apresentarei, de seguida, derivam de cursos e palestras que

frequentei e não correspondem, evidentemente, a uma amostra representativa dos cursos

que se fazem em Portugal. É muito provável que as orientações desses cursos sejam

diversas, ideia, de resto, defendida pelos agentes envolvidos. Não pretendo, por isso,

generalizar os dados e conclusões a que cheguei; mas apenas apresentar os resultados

das minhas observações, que, apesar das referidas ressalvas, julgo serem significativas

para a compreensão deste fenómeno. A convicção da sua relevância decorre, desde

logo, do facto de os cursos que frequentei terem sido promovidos pelo Instituto

Macrobiótico de Portugal (IMP), instituição que é um lugar de referência nesta matéria.

O seu grau de organização e o envolvimento com a “causa macrobiótica” constituem

aspectos queconferem a esta instituição, mais que a qualquer outra, legitimidade para

representar a macrobiótica no nosso país. Por outro lado, a capitalidade do instituto,

nesse sentido preciso que é o de centro a partir do qual se faz a promoção de um estilo

de vida e de alimentação e se divulgam também “novidades” “formas de fazer” e se

apresentam novos intérpretes da macrobiótica, fazem desta instituição um lugar

reconhecido pela generalidade dos praticantes.

Uma das minhas primeiras formas de contacto mais aprofundado com a

macrobiótica ocorreu já em 2001 e, ainda que na altura não estivesse claramente

definido que a minha temática de investigação futura iria incidir sobre esta matéria,

coloquei-me, desde o início, no papel de observadora. As notas que retirei, nessa

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«À Mesa com o Universo»

216

ocasião, parecem-me ainda agora proveitosas para a análise da questão que me

proponho tratar aqui: o papel da transmissão de saberes efectuada de modo mais formal,

quer dizer organizada em cursos e promovida por instituições reconhecidas no meio.

Vale a pena, todavia, efectuar uma breve contextualização. Nesse anode 2001

tive conhecimento de um curso de macrobiótica que se iria realizar em Braga através de

folhetos de divulgação que foram deixados num ginásio que frequentava na altura,

provavelmente pelo professor de yoga. Como já tinha algum interesse pela temática da

alimentação, tal como referi anteriormente, e desejava até desenvolver investigação

nesta área, considerei que a proposta me interpelava e poderia mesmo vir a constituir

um campo de pesquisa convergente com os meus projectos académicos. Claro que já

tinha tido contactos com a macrobiótica, por exemplo na cantina universitária e numa

ou outra refeição pontual, mas nunca tinha tido interesse em passar além desse nível

elementar. Considerei, portanto, que esta era uma boa ocasião para explorar novos

campos. Por outro lado, a sedução relativamente à macrobiótica advinha de um certa

diferença e exotismo associados a esta prática alimentar, o que, enquanto antropóloga,

confesso, acabou também por contar.

Apresentação do Curso

O plano do curso que me foi entregue, e que viria a decorrer em Palmeira

(Braga), era promovido por uma ex-aluna do IMP e contava com o apoio de alguns

nomes relevantes na área da macrobiótica: Francisco Varatojo (director do IMP); Bob

Lloyd (na altura presidente da associação macrobiótica britânica); José Oliveira

(professor de yoga, tai-chi-chuan, terapeuta de shiatsu e orientador de alimentação

macrobiótica) e Sandra Herceg (croata a residir em Amesterdão, apresentada como uma

das “mais conceituadas e experientes cozinheiras macrobióticas europeias”). Como se

pode ver, o curso apresentava um certo grau de internacionalização e prometia contacto,

ainda que indirecto, com outros países e com outras práticas na área da macrobiótica. A

programação apresentada era a programação standard do nível 1 do curso de cozinha do

IMP e prenunciava, portanto, uma formação idêntica – de resto, os diplomas de

formação seriam passados pelo IMP. O curso organizava-se em 108h, divididas por

nove meses (um fim de semana por mês, das 10h às 18h), entre Outubro de 2001 e

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A Macrobiótica em Portugal

217

Junho de 2002 e incluía aulas teóricas e práticas (três fins-de-semana com aulas teóricas

e outros seis com aulas práticas). O anúncio do curso fazia-se nestes termos:

A cozinha macrobiótica é uma arte única que não só satisfaz os sentidos mas tem

a capacidade de criar uma vida mais harmoniosa. Não é uma dieta rígida mas

sim uma abordagem flexível e de senso comum, que difere de acordo com o

clima, a idade, sexo, actividade, condição de saúde, estilo e objectivos de vida

[Brochura de divulgação do curso]

Os termos desta apresentação inicial procuravam desde logo criar a ideia de que

este tipo de cozinha se dirigia a qualquer um e podia, de alguma forma, trazer

transformações no modo de vida e torná-la mais aprazível. Por outro lado, procurava-se

desfazer a ideia da macrobiótica como dieta rígida, de forma a desmentir a imagem que,

de um modo geral, se foi criando deste tipo de alimentação. Como contraponto à rigidez

associada à macrobiótica, sublinhava-se a capacidade de dar resposta a diferentes

públicos e necessidades. A mensagem que ficava era, pois, a de uma proposta de

alimentação destinada a melhorar a qualidade de vida, que se dirigia a todos e que

procurava, ao mesmo tempo, ter em consideração especificidades e necessidades

individuais. Mais à frente, na mesma brochura, enunciavam-se algumas das

características da alimentação macrobiótica:

Baseada em princípios e tradições milenares, consiste em simples mas deliciosos

produtos tais como cereais integrais, vegetais, algas e leguminosas e seus

derivados. Como alimentos complementares inclui também as frutas em estação,

produtos animais opcionais (especialmente peixe), oleaginosas, sementes e uma

variedade de óleos, temperos e condimentos.

Também aqui a estratégia discursiva era idêntica: a ideia de uma proposta

alimentar muito restritiva, associada sobretudo ao arroz integral, era contrariada através

da sugestão de diversidade em termos alimentares. Apelava-se, por outro lado, ao

fascínio e sedução do exótico a que já aludi, mas também à credibilização pela História,

nomeadamente através da evocação dos “princípios e tradições milenares” de que

partiria a macrobiótica. A ideia de uma prática com raízes em tempos ancestrais surgia,

assim, como legado de incontornável valor.

Esta sugestão surge de forma recorrente e, se atentarmos no conteúdo dos

cursos, constataremos que o esforço para encontrar referências históricas para

amacrobiótica é indesmentível. Essas referências podem passar pela Escola Pitagórica e

pela referência à sua preocupação com a alimentação e defesa de um regime de

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«À Mesa com o Universo»

218

alimentação vegetariano, pelo Código de Manu, na Índia, pelo Nei-Ching,na China, por

Hipócrates (a expressão que lhe é atribuída “faz do alimento o teu medicamento” é

constantemente evocada, bem como a dieta de cevada “que ele aconselhava numa

primeira fase a muitos dos doentes que o procuravam”) ou ainda pela Bíblia, sendo o

Livro de Daniel referido como exemplo da importância dos cereais na alimentação:

“Daniel após 10 dias a comer cereais é colocado na jaula dos leões e estes não o

comem”. A interpretação deste episódio, que fez dos cereais um elemento de

incontestável poder – neste caso poder de sobrevivência no mais imediato sentido da

palavra – é naturalmente discutível, todavia é curioso que numa proposta alimentar

como a macrobiótica, em que são tão fortes as referências sino-japonesas, se utilize o

texto bíblico, referência do mundo ocidental por excelência, para fundamentar uma

prática e atribuir valor a determinados consumos. Evidentemente que podemos ver nesta

utilização de referências tão distintas uma tentativa de divulgar uma proposta de

orientação no mundo que, por meros efeitos retóricos, se tenta ligar a um conjunto de

referências familiares aos potenciais candidatos ao curso – ou pelo menos nas quais

estes reconhecessem uma ligação à sua “cultura”.

Justificando a importância da aprendizagem proporcionada pela frequência do

curso referia-se ainda na mesma brochura:

A cozinha macrobiótica adquire cada vez mais sentido nas sociedades

contemporâneas contrabalançando os efeitos da poluição, da fast food, da junk

food e de uma vida sedentária. A crescente ocorrência de doenças degenerativas

e de múltiplos problemas de saúde causados por regimes alimentares agressivos,

pode, deste modo, ser combatida.

Neste último trecho são apontadas as razões fundamentais para aderir a este tipo

de cozinha: a degradação ambiental e os estilos de vida pouco saudáveis que, com

frequência, conduziriam a doenças trágicas. Face a um ambiente hostil, que empurraria

a sociedade contemporânea para o abismo, havia uma tábua de salvação, a

macrobiótica, que ajudaria a contrabalançar os efeitos negativos do desenvolvimento.

Esta imagem de um estado civilizacional negativo e até catastrófico é, efectivamente,

muito recorrente no início da formação nesta área. Parece procurar-se fazer um esforço

de consciencialização que leve a que se mude de rumo, começando por optar por um

outro tipo de alimentação. Para além disto verifica-se que, aqui, como em muitas outras

mensagens sobre alimentação (cf Gracia, 2005), há uma visão da alimentação muito

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A Macrobiótica em Portugal

219

centrada na saúde, já que o poder dos alimentos se manifesta, em larga medida, nos

benefícios para a saúde que deles decorrem.

É de registar também as características específicas da cozinha macrobiótica que

eram apresentadas nesta ocasião:

Para além das propriedades físicas dos alimentos (carbohidratos, proteínas,

vitaminas, etc.) a cozinha macrobiótica considera também o ki ou qualidade

energética dos mesmos. Por isso o curso de cozinha é também um estudo

aprofundado de noções como yin-yang ou cinco transformações que têm

aplicações muito concretas na elaboração e confecção de menus, jogando com os

cinco sabores, as cinco cores e os diferentes estilos culinários.

Conciliando aspectos que costumam ser explorados por áreas ligadas à nutrição

com outros mais esotéricos, propõe-se juntar na cozinha macrobiótica conceitos como

os de proteínas e vitaminas com os de ki e yin-yang, como se entre eles houvesse uma

homologia indiscutível. Presta-se, assim, atenção a um tipo de linguagem que parece ser

incontornável para falar de alimentação (os hidratos de carbono, minerais, vitaminas,

etc.) e que foi desenvolvido pelas Ciências da Nutrição. Por outro lado, usa-se um

conjunto de termos que dão singularidade à proposta de alimentação macrobiótica e que

a aliam a algo mais do que uma dieta: a uma concepção sobre a natureza do mundo.

Percebe-se aqui, mais uma vez, que o recurso a este tipo de argumentos procura conferir

legitimidade e reconhecimento a esta abordagem, aproximando-a, sem a confundir, de

um discurso científico consagrado na tradição intelectual do Ocidente. A estruturação

do discurso sobre alimentação será assim construída sobretudo por referência a questões

de saúde.

Procurando corresponder às necessidade práticas e imediatas dos praticantes que

pretendessem cozinhar para si e para as suas famílias, o curso propunha também uma

incursão por diferentes sabores e tradições culinárias, referindo-se que “Para além da

cozinha macrobiótica e cozinha tradicional medicinal, as aulas práticas constituem uma

viagem pela verdadeira cozinha tradicional portuguesa e pela cozinha étnica ‘Gourmet’

de outras culturas”. Neste plano, o que aqui se sugere é, então, que uma abordagem

fundada na macrobiótica, além de ser capaz de dar resposta a eventuais problemas de

saúde, consegue ainda integrar princípios de outros tipos de cozinha, possibilitando que

não ocorra uma separação radical entre a cozinha macrobiótica e outras, com as quais os

alunos possam estar mais familiarizados e que sejam mais do seu agrado. Este é um

aspecto significativo, já que no decorrer do curso se sublinharia a importância de se

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«À Mesa com o Universo»

220

fazerem mudanças graduais na alimentação como condição de manutenção deste tipo de

prática alimentar. Mudanças radicais eram entendidas como tendo menor potencial de

consolidação, dada a dificuldade em suprimir certos hábitos. A questão é ainda

relevante do ponto de vista dos paradigmas culturais dominantes, pois aquilo que se

procurava dizer é que era possível adoptar alguns dos pratos da “verdadeira cozinha

tradicional portuguesa” e ainda adaptar outros, de forma a satisfazer o desejo e a

memória de certos sabores. Vale a pena destacar o adjectivo“verdadeira”, já que remete

para a presunção de uma forma de abordagem mais autêntica e próxima de uma cozinha

original. A sugestão da aproximação a uma “cozinha étnica ‘gourmet’” procura ainda

transmitir essa ideia de que é possível casar uma “alimentação saudável” com comida

saborosa e requintada de outros países. A aprendizagem da confecção de sushi

constituiria, aliás, um exemplo deste tipo de abordagem.

Para além dos aspectos propriamente culinários, os módulos teóricos do curso

incluiriam ainda “diagnóstico visual da saúde, nutrição e medicina oriental, constituindo

uma introdução a uma nova filosofia e perspectiva sobre a vida em geral”. Nestas

últimas indicações procurava-se alargar os horizontes da macrobiótica, deixando esta de

se cingir unicamente a aspectos que tinham a ver com a cozinha e com a alimentação e

passando a assumir-se como “nova filosofia”, capaz de reorientar os sujeitos no mundo.

Para além de uma renovada visão do mundo, propunha-se ainda uma abordagem do

corpo de acordo com a “medicina oriental”. Este termo, apresentado de forma vaga,

acabaria por remeter para o modo como Ohsawa e Kushi interpretaram e recriaram a

medicina tradicional chinesa nas suas numerosas obras. Partindo da cozinha, abria-se a

aprendizagem para essa dimensão fundamental que tem a ver com a forma de

perspectivar o mundo e ainda para o conhecimento do corpo como parte fundamental de

um projecto de transformação. Neste sentido, a saúde e o equilíbrio surgem como

pontos de crucial atenção, sobre os quais os discursos produzidos a partir da

macrobiótica se organizariam.

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A Macrobiótica em Portugal

221

Contexto de Desenvolvimento do Curso

Após esta incursão pela apresentação do curso, importa fazer referência ao

contexto em que o mesmo se desenvolveu. O curso teve lugar numa casa particular, uma

moradia situada nos arredores de Braga, num bairro recente de vivendas, quase todas

em banda, habitado essencialmente por pessoas de classe média. Contrariamente à

maioria das casas, esta não era geminada e possuía um pequeno jardim à sua volta. O

isolamento relativo permitia-lhe assim um pouco mais de independência e privacidade.

Havia ainda a vantagem de não ter que se prestar contas à administração do condomínio

ou a condóminos sobre as actividades desenvolvidas no interior da casa.

Quanto às aulas, estas decorreram num espaço que tinha sido inicialmente

destinado a uma garagem, mas que havia sido transformado num salão onde era

possível desenvolver diversas actividades. O salão dispunha de três portas que

comunicavam com o exterior, uma que dava acesso, através de uma escada, ao 1º andar

da casa, uma outra envidraçada que dava para o jardim e uma outra, maior, que tinha

sido inicialmente a entrada de automóveis. Já no decurso do curso, esta porta metálica

seria substituída por uma envidraçada, o que permitiu maior entrada de luz e vistas para

o exterior, apagando um certo “ar de garagem”. Junto ao salão ficava ainda uma casa de

banho, que impedia a invasão do espaço privado da casa aquando do funcionamento do

curso. Uma pequena biblioteca, com livros de cozinha macrobiótica e outros

relacionados com terapias não convencionais, tinha também sido montada numa

pequena sala contígua ao salão. Neste tinha-se montado uma bancada com lava-loiças e

dois fogões a gás. Um frigorífico dava também apoio às aulas práticas de cozinha.

Durante estas era colocada uma mesa quadrada grande no centro do salão, à volta da

qual nos sentávamos, enquanto nas aulas teóricas era retirada para que se pudessem

dispor as cadeiras de forma a ficarmos todos de frente para o professor.

Estes pormenores podem parecer irrelevantes, mas ajudam a compreender de

que forma uma “casa de família” é transformada com vista a comportar este tipo de

iniciativas. Diversos cursos de que tive conhecimento e que funcionaram em casa de

particulares tinham condições próximas. Ter uma casa com garagem, com uma cave, ou

com um espaço que se pudesse adaptar para o desenvolvimento de certas actividades,

parece ser condição fundamental para que se tome este tipo de iniciativas.

Efectivamente, o desenvolvimento “profissional” destas actividades implica um espaço

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«À Mesa com o Universo»

222

relativamente acolhedor e disponível para as mesmas. Mais tarde, quando quis

aprofundar alguns aspectos ligados à macrobiótica e fiz um curso de shiatsu, viria a

defrontar-me com o mesmo tipo de espaço, uma zona da casa (o rés do chão) que tinha

sido modificada com vista a tornar possível o desenvolvimento de certas práticas e a

permitir que pessoas estranhas à casa entrassem sem afectar de forma significativa a

privacidade dos seus habitantes. Vemos, assim, a importância da casa, e de um espaço

específico, não só para os que se dedicam a actividades relacionadas com a

macrobiótica, mas também para outros que desenvolvem actividades próximas.

As Sessões do Curso

A sessão inaugural do curso foi uma sessão aberta, em que estiveram presentes

cerca de 20 pessoas. Destas só nove viriam a frequentar o curso, as outras, embora

tivessem pago a 1ª sessão, pelo interesse que tinham em ouvir o professor das primeiras

aulas, não prosseguiriam com o curso. É de notar também que algumas dessas pessoas

aproveitavam a presença do professor em causa para fazerem aí mesmo, na casa onde

iria decorrer o curso, consultas de avaliação do estado de saúde e orientação alimentar

Durante as aulas teóricas a professora de cozinha macrobiótica, organizadorado curso,

procedia à confecção dos almoços.

Quanto à proveniência dos participantes, deve dizer-se que era essencialmente

da região norte: Braga, Guimarães, Barcelos, Porto e Famalicão. Das nove pessoas que

viriam a frequentar o curso, a grande maioria eram mulheres, havendo apenas um

homem; apresentavam elevados níveis de escolaridade, pois sete tinham formação ao

nível da licenciatura ou superior, um frequentava o ensino superior e outro, embora

tivesse frequentado este nível de ensino, não chegara a conclui-lo. As áreas de formação

passavam pela Matemática, Engenharia biológica, Engenharia têxtil, Engenharia civil,

Serviço social, Antropologia, Língua e Literatura Modernas e Economia. Em termos

profissionais, dois trabalhavam como engenheiros em empresas da região, um como

assistente social, dois como professores no ensino superior e um no ensino secundário.

As idades estavam compreendidas entre os 21 e os 40 anos, estando a maioria (sete) na

casa dos 35/37 anos. Seis destas pessoas residiam em Braga e as restantes em

Guimarães, Famalicão e Barcelos.

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A Macrobiótica em Portugal

223

Vemos, assim, que o curso incluía sobretudo residentes em Braga, embora

conseguisse também atrair pessoas de cidades próximas e nas quais não havia nenhuma

formação nesta área. Entretanto, a situação modificou-se e o facto de se terem aberto

restaurantes macrobióticos e vegetarianos em Guimarães, Famalicão e Barcelos, e de aí

se promoverem aulas de cozinha, contribuiu para aumentar a oferta nesta área. Pelo

menos dois dos participantes do curso promovem, actualmente, os seus próprios cursos

de cozinha, tendo começado por fazê-los, também eles nas suas casas. Tal como referi

atrás, ter uma casa que se preste a este tipo de práticas foi, uma vez mais, condição

indispensável para o desenvolvimento deste tipo de actividades.

A Espiral da Criação: Uma Visão Integrada do Mundo

A primeira sessão do curso consistiu numa introdução à macrobiótica e os temas

abordados centraram-se na definição do que é a macrobiótica e na apresentação da

concepção do universo defendida por esta corrente, mas foi também feito apelo a uma

consciencialização e alteração dos modos de vida. Por outro lado, foi feita uma

abordagem da alimentação macrobiótica padrão, com referência aos alimentos que

deveriam ser privilegiados e àqueles que deveriam ser evitados. Abordou-se também,

intensamente, a relação entre saúde, doença e alimentação.

A adopção da macrobiótica foi apresentada, logo de início, como um processo

individual que iria interferir com os estilos de vida, com os “aspectos básicos da vida de

cada um”, dado que implicaria mudanças significativas não apenas nesse gesto essencial

que é o da alimentação, mas também nas atitudes e “modo de estar no mundo”. A este

propósito foi reafirmada a questão da responsabilidade individual e de como é vão

justificar as “frustrações”, “o tipo de vida que se leva”, “a situação em que nos

encontramos“ e “as desgraças”com “os outros” ou com “o sistema”. Defendeu-se que,

em última instância, “somos os responsáveis por tudo o que nos acontece, de bom ou de

mau”, “fomos nós que escolhemos de uma determinada maneira”, “ a decisão final foi

nossa e nessa medida temos responsabilidade naquilo que somos e naquilo que

criamos”, sendo o “mundo um reflexo de nós mesmos”. Este tema da responsabilidade

individual viria a ser abordado frequentemente, verificando-se, efectivamente, uma

centralização no indivíduo. Este é tomado como locus de referência numa argumentação

que procura sinalizar problemas e apontar caminhos para os solucionar, caminhos que

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«À Mesa com o Universo»

224

sugerem um reequacionamento dos modos de vida e reflexão sobre o essencial e o

supérfluo.

Um dos recursos utilizados para familiarizar os ouvintes com a macrobiótica foi

a apresentação da visão macrobiótica do universo. Esta visão foi expressa através da

evocação da espiral da criação/materialização110

. Uma espiral logarítmica com sete

órbitas que, de acordo com o afirmado, se observaria um pouco por todo o lado; a via

láctea seria uma espiral deste género, as correntes dos ventos e dos oceanos possuiriam

o mesmo padrão, bem como a forma das conchas, o fluxo da água nos rios, as

impressões digitais na extremidade dos dedos, a estrutura helicoidal das moléculas de

ADN, etc. A espiral da vida, como também é designada, foi referida como procurando

explicar como surgiu o Homem, prestando atenção aos diferentes níveis de energia que

se verificam nas sete órbitas e que permitem perceber o processo gradual através do

qual a energia se transforma em matéria e, no sentido inverso, a matéria em espírito.

Esse processo revelava uma complexidade crescente, dado que de órbita para órbita se

ia verificando uma maior densidade e elaboração.

Assim, teríamos um sétimo nível, o do absoluto (o tau [tao] para alguns), que

corresponderia ao “Infinito uno”, ou seja, a uma ausência das coordenadas

espaço/tempo e matéria. Neste domínio estar-se-ia já no mundo da unidade, por

superação da dualidade. O sexto nível seria o da polaridade, de yin e de yang, das forças

opostas mas complementares, do Céu (yang) e da Terra (yin), da noite (yin) e do dia

(yang), sendo a constante troca entre yin (força centrífuga) e yang (força centrípeta)

classificada como a origem de todas as espirais que se podem encontrar no universo e,

por extensão, em todos os fenómenos.111

Um quinto nível da espiral da criação seria o

da vibração/energia, que é tido como o início do mundo dos fenómenos e que envolve

energia eléctrica e magnética. Os pólos energéticos yin e yang seriam assim

responsáveis pelo movimento e vibração. O quarto nível seria o das partículas

110 Perspectiva a que já tive oportunidade de fazer referência no capítulo 3, mas a que volto para a

recolocar no contexto específico da formação. 111 Num dos textos de apoio do 1º nível do curso curricular de macrobiótica (2005) no IMP pode ser

encontrada uma visão crítica da ciência actual. Aí se citava e adoptava o texto de uma revista Non Credo em que se referia: “A actual teoria da criação do universo baseia-se numa interpretação pouco correcta da

espiral logarítmica. Porque as galáxias parecem estar a afastar-se umas das outras a uma velocidade

estonteante, os cientistas desenvolveram a teoria do Big Bang. Hoje em dia, o universo continua a

expandir-se em espiral e não começou com uma violenta explosão. Nem acabará com uma. (…) A luz

também se move em espiral e a sua velocidade varia na razão inversa à sua origem, tendendo, portanto,

para uma velocidade infinita. Num futuro não muito distante, quando a ciência “redescobrir ” o princípio

do Yin e Yang, a estrutura do universo será muito melhor compreendida” (IMP, 2005). Por aqui é possível

discernir uma forma de compreensão dogmática, assente nos princípios de yin e de yang, e crítica

relativamente a outras interpretações.

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A Macrobiótica em Portugal

225

subatómicas, que estaria na fronteira entre o visível e o invisível, o material e o

imaterial e que seria o domínio das formas subtis. O terceiro nível pertenceria aos

elementos e ao mundo mineral, seria o domínio dos átomos, da matéria inorgânica, dos

elementos da tabela periódica e das inúmeras formas através das quais as moléculas se

organizam (água, oxigénio, dióxido de carbono, sódio, ferro, etc.). Este é também o

nível em que os cinco sentidos operam e através dos quais é percepcionada a realidade.

O segundo nível é relativo ao mundo vegetal, aí podem ser encontradas todas as plantas

de que diferentes espécies necessitam para sobreviver. Finalmente, no primeiro nível,

dependente de todos os outros, encontrava-se o nível animal, onde o Homem se

situaria112

.

A categoria “formas subtis” é explicitada num dos Cadernos Macro, onde se

refere que a Física actual procura conhecer esta “área subtil”, dominada por partículas

ainda mais pequenas que o átomo, como os neutrinos e os muões. Para que se veja de

que forma se recorre à ciência para tornar mais convincentes certos argumentos, ainda

que se adopte uma postura crítica face à mesma, vale a pena citar a seguinte passagem

“Explica a ciência que (…) todo o espaço à sua volta é atravessado por um número

incalculável de partículas minúsculas que passam pelo espaço vazio existente nas, e

entre as moléculas que constituem toda a matéria. Quando a matéria é vista ao nível

desta escala, numa molécula de água (H2O), por exemplo, existe mais espaço vazio

entre os dois átomos de oxigénio e o átomo de hidrogénio do que espaço ocupado pelos

átomos em si” (Varatojo e Romão, 2005a: 20). Esta constatação, relativa ao facto de se

encontrar cada vez mais espaço vazio, é depois utilizada para evocar a ideia de que o

Homem possui alguma percepção deste domínio, uma percepção extra-sensorial, que

não pode ser explicada com objectividade, mas que tem a ver com um conhecimento

subtil dos acontecimentos (uso um exemplo do texto supra citado: “ninguém avisa que

irá telefonar, mas, quando o telefone toca, sabe-se de ‘forma subtil’ quem está ao

telefone”). A abordagem deste assunto é depois conduzida até à ideia de que a

alimentação afecta estas qualidades de percepção extra-sensorial e que uma dieta muito

yang, excessiva em produtos animais como a carne e os ovos, afectaria essa mesma

percepção. Em contrapartida, uma dieta com mais alimentos do reino vegetal afinaria a

112 Num dos Cadernos Macro podemos ver sintetizada esta visão do Universo: “pode-se dizer que o

Absoluto se diferencia em yin e yang, que originam o mundo relativo por meio de um movimento

centrípeto, em espiral, que se materializa gradualmente ao longo de vários níveis de transformação:

energia, partículas subatómicas, matéria inorgânica, vegetais, animais, do qual os seres humanos são o

último resultado” (Varatojo e Romão, 2005a: 22).

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«À Mesa com o Universo»

226

capacidade intuitiva. Esta ideia sobre o corpo humano como receptor que precisa de

estar devidamente sintonizado para captar a informação é, aliás, recorrente.

As forças yin e yang são vistas como dando expressão, entre outros aspectos, ao

reino vegetal e ao reino animal. A proposta de evolução biológica apresentada socorre-

se do evolucionismo e da teoria da selecção natural das espécies de Darwin, mas

adequa-a aos princípios de yine yang. A perspectiva sobre a evolução das formas de

vida, tal como é vista na macrobiótica, aponta assim para uma evolução sujeita a

alterações climáticas e que vai do meio aquático (cerca de 2,8 biliões de anos) para o

meio terrestre (cerca de 0,4 biliões de anos), passando primeiro pelos animais

invertebrados, depois vertebrados marinhos, anfíbios, répteis e aves e mamíferos, entre

estes os macacos, e depois o Homem. Paralelamente a este desenvolvimento poder-se-ia

observar a seguinte evolução no plano vegetal: musgos marinhos (algas primitivas),

vegetais marinhos (algas), musgos (ervas primitivas), plantas antigas, plantas modernas,

e plantas herbáceas portadoras de sementes. Os cereais seriam, desta forma, uma das

espécies vegetais mais evoluídas (cf. Kushi, 1978: 44).

Como podemos verificar, esta narrativa sobre as origens é construída a partir de

modelos propostos pela ciência e surge como interpretação dessas mesmas propostas.

No âmbito deste trabalho, não interessa fazer uma análise minuciosa da mesma e

evidenciar os seus pontos menos coincidentes e mais falaciosos, interessa antes reter e

sublinhar a instrumentalização que é feita do conhecimento científico, processo que

permite dar consistência à argumentação usada na macrobiótica. Interessa também reter,

a propósito deste esquema de representação, a percepção que é feita de alimentos como

os cereais. Pelo facto de surgirem como ponto máximo da evolução no mundo vegetal

são objecto de uma permanente valorização. No contexto, é mais um argumento, entre

outros, para justificar que os cereais devam ser privilegiados na alimentação.

A referência aos aspectos acima mencionados contribui também para

desenvolver o tema da interligação de todos os fenómenos de acordo com o paradigma

holístico. O facto de os sete níveis se implicarem uns nos outros serve para acentuar a

ideia de interdependência e para dar a entender a unidade dos fenómenos. A ideia que se

procura transmitir é a de que tudo o que existe tem a mesma origem e, nessa medida,

participa da “Infinidade Una”, relativa ao sétimo nível. Esta mensagem remete para o

«Princípio Unificador», ainda que não tenha havido uma explicitação sobre o mesmo

nessa ocasião. O «Princípio Unificador» manifestar-se-ia, por exemplo, na afirmação de

que “o desejo de paz e felicidade estaria relacionado com a memória de um infinito que

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A Macrobiótica em Portugal

227

existe em cada um de nós”. A referência à espiral da criação/materialização surge, desta

forma, como recurso indispensável para abordar a proposta macrobiótica de

interpretação do universo e para focar a atenção num tema que é aqui fundamental: a

ideia que cada indivíduo representa o universo e de que todos os fenómenos se

encontram relacionados. A alusão recorrente ao “bater de asas de uma borboleta no

Japão que tem repercussões em Nova Iorque” é aqui usada precisamente para salientar

que os acontecimentos que têm lugar em contextos distantes não nos são alheios. Iniciar

um curso de cozinha, ainda que macrobiótica, falando destes assuntos, poderia parecer

invulgar para alguém estranho a este sistema alimentar, mas a referência a estes

aspectos surge como fundamental, pois é a partir destes dados, que constituem na

macrobiótica a base de entendimento da vida e do universo, que se julga ser possível

desenvolver uma concepção sobre os alimentos e sobre o modo de os confeccionar. É

assumido desde o começo que o conjunto de preocupações que orientam a alimentação

e a cozinha em geral têm a ver com preocupações de carácter ético.

Tudo é Transformação Contínua

Só após a apresentação destas ideias foi possível falar mais claramente da

macrobiótica e abordá-la na perspectiva da aplicação da ordem da natureza à

alimentação. Defendeu-se que a macrobiótica, de uma forma geral, procura prestar

atenção ao modo como a energia se transforma e que, no caso da alimentação, se

centrava precisamente nos efeitos energéticos dos alimentos, ou seja, no modo como o

tipo de energia característico de cada alimento se transforma no indivíduo. A

importância do estudo das transformações é justificada com a referência a “saberes

milenares” que poderiam ser ilustrados por livros como o Tao Te King de Lao Zi (Lao-

Tzu) e o I Ching ou Livro das Mutações, a que já tive oportunidade de fazer referência

(ver capítulo 3). Muitos dos princípios que orientam a perspectivação do mundo na

macrobiótica, designadamente a atenção aos ciclos da natureza e às transformações que

aí ocorrem, têm efectivamente o seu enraizamento no tauismo [taoismo] e na polaridade

entre yin e yang que se expressa a partir do tau (tao, a via)113

. O tau é um dos símbolos

mais complexos e misteriosos da cultura chinesa, é classificado como:

113 De acordo com Kristofer Schipper (1997) as origens do tauismo [taoismo] são obscuras, dado não se

saber ao certo quem é o fundador, nem em que momento surgiu. Sabe-se, todavia, que o tauismo possui

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«À Mesa com o Universo»

228

O princípio da ordem universal que rege tanto o microcosmo quanto o

macrocosmo, simultaneamente causa primordial, processo do mundo, força

espiritual, essência de vida, idêntica e separável das suas múltiplas criações. (…)

Dele são oriundos todos os seres, a ele retornam todos os seres. (Kielce,1988:

20).

O tau preside, como dizia, a yin e yang, à formação da Terra e do Céu, não como

duas regiões distintas, mas apenas como duas formas diferentes de a energia cósmica se

expressar114

. Da dinâmica dual e cíclica inerente a yin e yang resultariam as

transformações de toda a criação, sendo que o extremo de uma situação classificada

como yang daria lugar a yin, o mesmo acontecendo a yin na sua fase extrema

(transformação em yang). A noite cerrada daria lugar ao dia, a luz intensa à sombra,

“quando yin atinge o seu apogeu, transforma-se em yang e vice-versa” (Schipper,

1997:511), o que levaria a que a alternância fosse considerada uma das primeiras leis

cósmicas. É de notar, ainda a propósito deste assunto, até para enquadrar alguns

elementos que serão apresentados posteriormente, que a acção de yin e de yang se

estende a cinco planetas (Vénus, Júpiter, Mercúrio, Marte e Saturno), tendo cada um

deles correspondência com cinco agentes – água, fogo, madeira, metal e terra. Estes

cinco agentes, ou níveis de transformação da energia, representariam as cinco fases de

um ciclo percorrido sucessivamente por yin e por yang.

uma significativa tradição escrita e erudita (contando o Cânone Tauista de 1442 mil e quinhentas obras) e

que se afirma como uma religião de salvação individual, o que pode ser um factor que ajuda a explicar o

motivo pelo qual os divulgadores da macrobiótica colocam uma ênfase tão particular na questão da

responsabilidade individual. Centra-se também na imortalidade, mas encara-a como o resultado de uma

ciclicidade cósmica, que conduz à mutação e não ao fenecimento, uma imortalidade que se expressa no sentido referido por Schipper (1997) de que aquele que segue os ciclos cósmicos se renova como a

natureza. Os primeiros tauistas terão tido como principal ocupação a observação dos fenómenos naturais.

Estudavam os ciclos do céu e da terra e registavam as suas observações de forma a poderem prever o

futuro. No entanto, diz-nos Schipper (1997: 515) “O seu conhecimento da história ensinava-lhes que,

apesar da sua arte, nada era verdadeiramente previsível: as dinastias mudavam, o usurpador de ontem

tornava-se o herói fundador de hoje, a legitimidade «por mandato do Céu» nada tinha de inquebrantável,

os antepassados reais não eram os antepassados do mundo. Compreenderam assim que o homem ocupa

apenas um lugar insignificante num universo em perpétua mutação onde alto e baixo, grande e pequeno,

anterior e posterior, não passam de noções relativas”. Este processo de mudança que estaria na origem de

todas as coisas teria a ver com o tau. 114 Um dos trechos mais citados para falar de yin e de yang pertence ao cap. 42 do Tão Te King onde se pode ler:

O Tao originou o um.

O um originou o dois.

O dois originou o três.

O três originou todos os seres do mundo. (Lao Tzu, 1997:93).

A interpretação que é considerada mais frequente para estas palavras é a de que Um significa o grande

começo, criado pelo Tau, Dois, o yin e o yang donde tudo procederia, Três, as três energias que

constituiriam o céu, a terra e o Homem e que estariam na origem de todas as formas do mundo (cf. Kielce,

1988:21).

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A Macrobiótica em Portugal

229

A água é o yin perfeito, o fogo o yang perfeito; entre os dois situa-se o metal (o

yin nascente e a madeira (o yang nascente). O elemento terra reúne os outros

quatro e serve de fase intermédia entre cada etapa da revolução do ciclo. Os

Cinco Agentes servem também para classificar os pontos cardinais, as cores, as

notas da escala pentatónica, as vísceras, os sabores, etc. (id.)

A menção a estes aspectos reveste-se de crucial importância já que eles ajudam a

compreender a construção do discurso sobre os alimentos e sobre o mundo que se

observa na macrobiótica. A alusão a estes aspectos numa sessão inicial não foi tão

detalhada como a que agora descrevo (breve, também ela), mas o que foi referido sobre

este assunto constituiu, indubitavelmente, uma âncora necessária, a partir da qual se

compreenderia o tipo de posicionamento e de argumentação defendido na macrobiótica.

Para além destas referências, seria feita, de forma breve, uma alusão à história da

macrobiótica, evocando-se autores como Christopher Von Hufeland, que teria escrito o

livro A macrobiótica ou a arte de prolongar a vida humana, Georges Ohsawa, Alexis

Carrel que escreveria O Homem, esse desconhecido. A propósito de Ohsawa, seria

salientada a sua intenção de criar a paz através de uma revolução pela alimentação. Este

autor considerava que só pela alimentação seria possível transformar os homens e torná-

los mais responsáveis. Teria apreciado particularmente, tal como anteriormente foi

referido, a leitura do livro de Samuel Butler –Erewhon -, uma utopia do séc. XIX que

remete para um lugar imaginário (Erewhon) onde, curiosamente, se enviavam os

doentes para a prisão como forma de repressão da sua enfermidade e de não terem

sabido conservar a sua saúde. Considerava-se que nunca se seria firme se não se gozasse

de perfeita saúde. Pelos vistos, pelo menos a este nível, a ideia da doença como algo de

criminoso pareceu sugestiva a Ohsawa.

Alimentação equilibrada

Compreender o “espírito” da macrobiótica revelava-se um ponto de partida

importante para que se percebesse que a macrobiótica não é apenas alimentação.

Clarificando este ponto, era necessário passar para uma dimensão mais pragmática, que

permitisse aplicar os conceitos de yin e yang na cozinha e que contribuísse para que a

macrobiótica fosse reconhecida como um bem precioso ao nosso dispor. Para tal,

começou por se fazer referência a algumas doenças e à sua relação com os alimentos.

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«À Mesa com o Universo»

230

Assim, a artrite reumatóide e também as artroses foram apontadas como tendo como

causa principal o consumo de ovos e de frango. O tomate, pela sua condição ácida

(ácido oxálico), seria também responsabilizado pela criação de situações inflamatórias

que ajudariam a agravar o problema. Desta forma, foram assim sendo apresentados

alguns alimentos cujo consumo era pouco recomendado, dado que estavam associados a

certas doenças. Entram nesta categoria, de modo geral, alimentos como a carne, os ovos,

o leite e derivados, as batatas e as solanáceas em geral (tomates, beringelas…), os

alimentos refinados, o açúcar, frutos tropicais e outros alimentos vegetais de origem

tropical.

Uma alimentação equilibrada, tal como era entendida na macrobiótica, podia ser

orientada através da «Alimentação Macrobiótica Padrão». Esta forma de alimentação

foi divulgada, primeiro, através de uma roda de alimentos que continha uma fatia de 50

a 60% de cereais integrais; 25 a 30% de vegetais; 10 a 15% de leguminosas e algas e 5 a

10% de sementes, óleos e outros condimentos. O peixe foi também referido como

alimento a incluir semanalmente na alimentação. Consumir peixe duas vezes por

semana foi referido como o ideal para assegurar o aporte de determinados nutrientes,

designadamente vitamina B12, que tendia a ser difícil de encontrar numa alimentação

que não incluísse nenhum produto de origem animal. Por outro lado, o peixe, enquanto

fonte de proteínas, era também importante para evitar algum consumo alimentar

deficiente a este nível. Considerou-se, ainda assim, que a falta de proteínas não era um

problema neste tipo de alimentação e que as leguminosas constituíam uma boa fonte

deste tipo de nutrientes. Foi possível observar, efectivamente, uma preocupação em

assinalar fontes de cálcio, ferro, proteínas para que se pudessem identificar alimentos

que permitissem substituir os ovos, a carne e o leite. Foi através da referência a uma

linguagem científica e com argumentos ancorados na saúde que se procurou afirmar a

superioridade deste tipo de alimentação.

Para os que se iniciavam neste tipo de alimentação, havia uma preocupação

visível com o abandono de certo tipo de alimentos, especialmente lácteos. A questão

que mais colocavam era “onde ir buscar o cálcio”. Face a este tipo de interrogações, foi

defendido que “o leite não era sequer a melhor fonte de cálcio”, porque “embora o leite

fosse rico nesta substância, apenas uma pequena parte do cálcio do leite era absorvido

pelo organismo”. Ou seja, o corpo humano teria dificuldade em absorver o cálcio do

leite e, para além disso, havia pessoas que tinham problemas sérios com a digestão deste

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231

alimento115

. Problemas como a osteoporose tinham a ver com a fixação de cálcio, mas a

verdade é que se podia ingerir cálcio sem conseguir assimilá-lo. Aquilo que se passaria

é que muitas pessoas tinham uma alimentação muito rica em proteínas, o que gerava

grande acidez (sobretudo quando a fonte de proteínas era a carne) e tal implicava um

grande desgaste de minerais, designadamente cálcio, para neutralizar a acidez. A

conclusão foi, pois, a de que “quanto mais proteínas ingerimos mais cálcio perdemos”.

Tanto as proteínas como o açúcar, este último também pela condição ácida que gerava,

contribuíam para desmineralizar e descalcificar. Para além de uma diminuição do

consumo de proteínas era indispensável que se fizesse exercício físico para que o cálcio

se fixasse e que houvesse exposição solar para que a vitamina D, que ajuda também a

fixar o cálcio, pudesse ser produzida. Por outro lado, era importante ainda que se

estimulasse a produção de estrogénios, outro factor importante na fixação do cálcio.

Foram depois apontadas fontes de cálcio em que este nutriente era mais bem

absorvido, como os vegetais de cor verde-escura (couves, brócolos, salsa, etc.). A

ocasião prestou-se logo a que também algumas pessoas falassem das suas experiências

com a ingestão de leite e com o seu abandono. Uma senhora referiu como tinha

melhorado muito de uma colite ao deixar de beber leite e adoptar a alimentação

macrobiótica. Para esta senhora, que tinha tido problemas graves durante muito tempo,

a macrobiótica tinha sido “uma verdadeira bênção”. Uma outra referiu como tinha

melhorado de problemas de alergias com a eliminação do leite e outra ainda como tinha

sentido melhoras dos seus problemas hepáticos. Para além de vários problemas que

foram associados ao consumo excessivo de produtos lácteos (sobretudo aumento de

mucosidades, que originavam problemas respiratórios comuns como a asma, rinite

alérgica, etc.; problemas ginecológicos, como corrimento vaginal, alguns tipos de

cancro, como o da mama e o da próstata e o facto de a lactose ser potenciadora de

diabetes, dado ser um açúcar do leite), o leite foi ainda classificado como “comida para

adultos” que “nos deixava agarrados à infância” e que “nos impedia de crescer”. “Já

viram algum animal adulto que continue a beber leite?” é uma questão frequentemente

colocada nos cursos. As considerações relativamente ao consumo de leite

ultrapassavam, assim, os meros aspectos físicos e nutritivos, ligando-se a aspectos

115Contreras informa-nos sobre a frequência com que se observa esta situação, dizendo que 95% dos

aborígenes americanos e 85% dos árabes apresentam intolerância à lactose (cf. 1993: 19). Neste curso foi

afirmado que 75% da população mundial apresentaria este tipo de intolerância.

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«À Mesa com o Universo»

232

emocionais e comportamentais, enlaçavam-se agora os aspectos nutritivos com os

efeitos em termos de atitude e posicionamento no mundo.

Como podemos constatar, a informação é transmitida através de um tipo de

linguagem que vai buscar às Ciências da Saúde e da Nutrição muitos dos seus termos

usuais e até da sua argumentação. Esta linguagem não é, contudo, de fechamento para

os que não são especializados, antes traduz situações e informação que abordadas com

um tipo de linguagem mais técnica poderiam não ser captadas com tanta facilidade. O

orador efectua, assim, uma interpretação de alguma informação científica e organiza o

seu discurso com recurso a termos científicos que acabam por lhe conferir maior efeito

retórico. Observa-se assim uma mistura entre saberes leigos, saberes ideologicamente

fundados e saberes periciais como forma de construção de um discurso que possa ser

visto como significativo. É possível, efectivamente, observar uma certa

instrumentalização da ciência com o fim de tornar os discursos mais eficazes, indo

assim de encontro a um público que, de modo geral, tem uma escolarização acima da

média. As pessoas que participam nestes cursos parecem exigir esse tipo de linguagem,

como se tal fosse garantia de uma abordagem mais informada, profunda e de

distanciamento face a interpretações “populares”. É-lhes possível interiorizar aquelas

mensagens porque elas parecem emanar de um discurso científico e estar mais próximas

das suas próprias categorias discursivas. Simultaneamente, essas mensagens parecem ir

de encontro a uma visão mais espiritualizada que por vezes procuram. A informação é

apresentada através de termos e conceitos que remetem para um discurso no qual

reconhecem mais seriedade, autoridade, profundidade e por isso lhe atribuem maior

legitimidade. A crítica dirigida a certas ideias sobre alimentação e saúde parece,

portanto, provir do próprio discurso científico, o que torna todos os argumentos mais

convincentes. Surpreendentemente, o que observamos aqui, ainda que por caminhos

ínvios, é o poder da ciência, pois ainda que a crença na ciência seja evocada como um

dos principais mitos dos séculos XX e XXI, nesse entendimento que vê a ciência como

única fonte explicativa legítima, e, nesse sentido, que faz com que um facto desde que

seja explicado cientificamente seja válido, procede-se como se ela fosse a fonte legítima

de autoridade em termos de saber, acabando-se, deste modo, por continuar amarrado a

essa forma discursiva.

A referência à roda dos alimentos defendida na macrobiótica foi também uma

ocasião para falar de como as rodas alimentares que têm sido habitualmente divulgadas

pelas ciências da saúde e da nutrição constituem instrumentos políticos e económicos e

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A Macrobiótica em Portugal

233

são o resultado de muita discussão e negociação. Assim, a parcela tão importante que é

atribuída aos produtos lácteos na roda dos alimentos seria sobretudo o resultado dos

muitos grupos de pressão formados a partir dos grandes produtores e distribuidores de

lacticínios. O mesmo aconteceria com os produtores de ovos e até com os fabricantes de

embalagens para os acondicionar, pois veriam o seu negócio diminuído com a

diminuição do consumo de ovos. A indústria alimentar, e em especial alguns dos seus

sectores, são assim mostrados como agentes que visam apenas o lucro e que são capazes

de condicionar instrumentos aparentemente tão inócuos e imunes a interesses

particulares como a roda dos alimentos. O clima que se cria é o de uma suspeição

generalizada sobre os interesses da indústria alimentar e até sobre as Ciências da

Nutrição que não estariam defendidas desses mesmos interesses.

O facto de a investigação científica ser financiada e orientada, em termos de

assuntos a pesquisar, por essa mesma indústria, seria, de resto, factor indicativo de uma

certa promiscuidade e parcialidade relativamente aos resultados obtidos. Divulgar ou

não uma roda de alimentos, enquanto medida política, foi também apontado como um

acto sujeito a pressões, discussão e negociação. Na verdade, a fatia a destinar a

determinado tipo de alimentos numa roda ou pirâmide alimentar não é sempre

consensual, havendo a este nível diferentes propostas por parte dos nutricionistas, tal

como já foi explorado no capítulo 2. As alterações que têm vindo a ser feitas à roda ou

pirâmide alimentares revelam-nas como objectos plásticos, dependentes de contextos,

intervenientes, entendimentos, medidas políticas. A sua ductilidade sugere bem que são

objecto de negociação; sugere ainda a possibilidade de serem o resultado de uma

ideologia alimentar específica, empreendida por vezes por nutricionistas e identificada

por Scrinis (2002) como nutricionismo.

Mesmo na macrobiótica pode observar-se que houve reelaborações ao nível da

distribuição gráfica de alimentos, senão vejamos:

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234

Figura 14 - Alimentação Macrobiótica Padrão116

De uma roda de alimentos passou-se para uma pirâmide alimentar onde estão

incluídos (numa porção mínima) alimentos como a carne, ovos e produtos lácteos. É

certo que é sugerido que este tipo de consumos seja ocasional e que corresponda a uma

fase de transição, mas eles estão lá, evidenciando uma reorganização em termos

discursivos e algumas cedências face a uma proposta mais ortodoxa que frequentemente

é classificada como rígida117

. Como vemos, estas construções são o resultado de

relações dinâmicas, relações que activam tanto o legado histórico de conhecimentos

relativos à macrobiótica como informações relativas à sua prática. Os diversos

problemas de saúde que caracterizaram alguns dos que seguiram a macrobiótica no

passado (ver capítulo 2) parecem ter ajudado a redefinir a pirâmide macrobiótica. Um

certo paralelismo em relação àquilo que é observado por Cristiana Bastos e Renilda

Barreto, quando afirmam que as substâncias de cura «são também o que delas fazem o

uso, a circulação, o conhecimento localizado, o comércio, as transacções» (2011: 16)

116 Versão portuguesa da pirâmide alimentar elaborada por Michio Kushi e disponibilizada por Lawrence

Kushi et al.(2001). A imagem pode ser encontrada nos cadernos de apoio do Curso Curricular de

Macrobiótica, nível 1, do Intituto Macrobiótico de Portugal (IMP, 2005). 117 Curiosamente, tal como já foi explorado, se compararmos a pirâmide alimentar proposta por Michio

Kushi (2001) com a de Walter Willet (2005) encontraremos significativas coincidências. Na base, uma

parte importante é dedicada aos cereais integrais e para o topo (uso raro) vai a carne.

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A Macrobiótica em Portugal

235

pode aqui ser traçado. Os alimentos usados na macrobiótica, tantas vezes afirmados

como «substâncias de cura», surgem reorganizados nesta pirâmide como resposta a

dificuldades sentidas e como adequação a contextos sociais específicos. Os elementos

recolhidos, tal como atrás apontado, sugerem que estas novas orientações alimentares

tiveram em consideração os problemas de saúde sentidos dentro da prática macrobiótica

e as dificuldades de muitos praticantes em fazerem a transição para a alimentação

macrobiótica. Há assim uma relação dinâmica entre orientações e práticas; entre agentes

a quem é reconhecida autoridade para definir um rumo e agentes anónimos que seguem

ou gerem essas orientações de acordo com a sua subjectividade.

Em contraponto a anteriores orientações na macrobiótica surgem propostas mais

abertas e que admitem certos consumos. É defendido que as fases de transição “não

devem ser excessivamente rígidas”, a não ser que haja algum problema de saúde em

particular, pois podem tornar difícil a adopção de uma nova prática alimentar”. Todavia,

o facto de alguns dos que aderem à macrobiótica ingerirem produtos pouco

recomendados neste sistema indigna muitos dos que aderiram à macrobiótica. Referia-

me um dos meus informantes: “dizem que são macrobióticos, mas não passam sem o

cafezinho, o cigarrinho… não sei que raio de macrobiótica é essa” (formador, 64 anos).

Este posicionamento permite ilustrar alguma da diversidade existente relativamente ao

modo como se considera esta prática entre os que a ela aderem.

Para além do leite, a que já fiz referência, outros alimentos foram objecto de

uma atenção especial, designadamente a carne. O consumo de carne é visto, como

referi, como sendo um factor de desmineralização, dado o efeito de acidificação que

provoca no organismo. O desgaste de minerais é visto, então, como a resposta do

organismo a este efeito nefasto. A carne é caracterizada, portanto, como um alimento

pouco adequado para humanos. Para lá das explicações a que aduzi, um outro factor tem

a ver com o facto de o intestino delgado do Homem ser mais longo (6 a 8 metros) do

que o dos carnívoros em geral. Esta característica faria com que a carne tivesse

dificuldade em fazer o trânsito intestinal, já que este, sendo mais demorado, provocaria

maior afluxo de sangue na zona intestinal. Daqui decorreria um efeito de putrefacção da

carne ingerida, sendo esta, justamente, a causa da acidificação. O organismo procuraria

neutralizar esta condição com o desgaste de minerais. Todavia, apesar destas

considerações, defendeu-se que com muita actividade física e em contextos mais frios,

se justificava o consumo de carne.

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«À Mesa com o Universo»

236

Os efeitos da carne não eram, obviamente, apenas físicos, tendo também

implicações ao nível comportamental. Assim, a carne era um alimento muito yang e, de

acordo com o que foi defendido, “os povos cuja alimentação dependesse essencialmente

de outros animais eram mais territoriais” ou ainda “do ponto de vista físico os povos

yang conquistavam os povos yin e os povos yin conquistavam os outros pela

espiritualidade”. Nesta lógica, os europeus, conquistadores, teriam dominado os outros

povos por terem uma alimentação que favorecia as artes da guerra, mas os outros

acabariam por conquistá-los por essa via mais yin, que é a da espiritualidade. No

Ocidente, a atracção por religiões e terapêuticas de origem oriental seria expressão disso

mesmo. Evidentemente que esta é uma explicação simplista, que esbarra facilmente em

alguns episódios bem conhecidos da História da humanidade, mas esmiuçar estes

aspectos nesta ocasião e demonstrar a sua inconsistência não constitui o objectivo deste

trabalho. O que interessa identificar aqui é o tipo de argumentação utilizado, que, pela

mistura de dados científicos com interpretações bastante lineares e simplificadoras, vai

erigindo um discurso que é reconhecido por muitos como um discurso de verdade,

nesse sentido que Foucault tão bem lhe soube dar.

O tema da saúde e alimentação foi presença constante ao longo de todo o curso e

a referência aos alimentos foi sendo sempre feita tendo em consideração os seus efeitos

em termos físicos e emocionais. Consideraram-se essencialmente dois tipos de doenças,

as doenças de ajustamento e de tipo degenerativo. Na primeira categoria estavam

doenças de pouca gravidade como a gripe, que o corpo resolvia por si mesmo, com o

seu poder curativo, ou seja, com a sua capacidade de se ajustar a novas circunstâncias e

contextos. Na segunda categoria estavam as doenças degenerativas que traduziam uma

incapacidade do corpo em encontrar solução para situações de desequilíbrio e que

implicavam uma degradação de órgãos e tecidos. Uma das principais razões apontadas

para o surgimento de doenças tem a ver com dificuldades de eliminação orgânica. Um

corpo que não elimina bem entraria em desequilíbrio. Seria necessário que a energia (o

ki) circulasse adequadamente para se assegurar um corpo vigoroso. A este propósito foi

então referido que “as mulheres tinham uma vida mais longa porque eliminavam mais”.

Em termos de desequilíbrios físicos, uma das situações mais comuns que foi

assinalada, e que era bastante ignorada, era a hipoglicemia (níveis baixos de açúcar no

sangue). De acordo com o que foi afirmado esta patologia afectaria cerca de 70% das

pessoas. Tratar-se-ia de um distúrbio causador de grande instabilidade emocional,

irritabilidade, fome, ansiedade, sonolência após as refeições, dificuldade de

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A Macrobiótica em Portugal

237

concentração, sensação de confusão, etc. Afirmou-se mesmo que “para Kushi estava na

origem da maior parte dos divórcios” . A causa da hipoglicemia tinha a ver com alguns

consumos frequentes. Em primeiro lugar com o consumo de ovos, frango, peru, atum,

marisco e comida tostada (farinhas no forno – bolachas, biscoitos…) e em segundo

lugar com o consumo de açúcares simples (sacarose, chocolate, batatas, álcool …),

alimentos refinados e café. “Comer batatas é como comer açúcar”, foi referido. Na

verdade, o seu índice glicémico é elevado, recomendando Willett e Skerrett (2005) que

não sejam consumidas com regularidade. Contestou-se, também, a altura do dia em que

costuma ser medido o índice glicémico (pela manhã), procurando-se evidenciar que

após o repouso nocturno o nível de açúcares está mais estabilizado, não sendo, por esta

razão, a altura mais adequada para fazer este tipo de observações. Um pouco depois do

almoço seria a altura ideal para medir o índice glicémico, dado que após o almoço os

sintomas de hipoglicemia costumam ser mais elevados. Dado o vasto número de

alimentos envolvidos, compreende-se que a hipoglicemia fosse vista como afectando

um tão vasto número de pessoas. Uma forma de combater a hipoglicemia consistiria em

evitar os alimentos acima referidos e procurar açúcares complexos (polissacarídeos),

que teriam moléculas mais longas, por essa razão se desdobrando mais lentamente,

sendo por isso absorvidos de forma mais gradual, não provocando os altos e baixos

típicos do consumo de hidratos de carbono simples. Resultaria daqui que os cereais

integrais seriam os melhores alimentos para garantir um nível equilibrado de açúcares

no sangue.

Outros alimentos foram também objecto de considerações pouco abonatórias. Os

ovos afectariam muito o pâncreas e os ovários, sendo defendido que o seu consumo

excessivo seria a principal causa de quistos e de cancros nos ovários. O tomate deveria

também ser evitado, neste caso pela sua acidez e pela sua propensão para ampliar

situações inflamatórias, sendo esta recomendação particularmente importante para

pessoas com problemas nas articulações e artrite. O uso de frutos tropicais num clima

não tropical foi também assinalado como podendo enfraquecer as pessoas, dado o seu

carácter yin. A interrogação sobre a origem de todas estas representações não pode

deixar de ser colocada, mas esta é uma questão a que ainda não podemos responder com

rigor. Apenas pode ser apontada a importância dos precursores da macrobiótica e das

suas concepções para esclarecer um pouco mais este aspecto.

A ingestão de cereais integrais deveria então ser privilegiada, devendo ser dada

preferência a cereais em grão como o arroz integral, millet, cevada, aveia, etc. Os

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«À Mesa com o Universo»

238

vegetais a consumir deveriam ser variados e no prato devia-se procurar incluir alguns

bem cozinhados e outros apenas escaldados. Os vegetais redondos (abóbora, nabo,

cebola, etc.) seriam também muito adequados para tratar órgãos redondos, enquanto as

raízes fortaleceriam os intestinos e os órgãos reprodutores masculinos. Quanto às algas

a recomendação era que fossem usadas diariamente na alimentação, se bem que em

pequenas quantidades. A alga kombu seria adequada, por exemplo, para ajudar a

eliminar mucosidades causadas por lacticínos, enquanto a alga aramé foi apresentada

como útil para problemas no útero e nos ovários. Quanto às bebidas, recomendava-se

sobretudo o «chá 3 anos» (kukicha, bancha), a que é atribuído o poder de tornar o

sangue mais alcalino. Curiosamente, recomendava-se também que não se usasse

granulado de soja (alimento que resultaria do processamento da soja no fabrico de óleo

de soja), considerado um “assassino pancreático” e recomendava-se também um uso

moderado (não diário) do “leite” de soja, já que este também gerava muitas

mucosidades e era de difícil digestão. O peixe recomendado foi sobretudo o peixe

branco em detrimento do peixe vermelho ou peixe azul.

As recomendações de que damos nota têm um carácter prático, parecendo, por

isso, ir de encontro ao que muitos dos participantes do curso desejavam. De algum

modo, criou-se, inicialmente, a ideia de uma situação de alarme em termos alimentares,

apontando-se algumas das doenças graves com que as pessoas podiam ser confrontadas

e que tinham a ver com alimentação. Depois, tentava oferecer-se uma visão sobre o

mundo dos alimentos para se redesenhar uma visão alternativa que poderia representar

mais saúde e mais qualidade de vida. Desta forma, gerava-se um pouco a ideia de se ter

tido acesso a um tipo de conhecimento que não estaria ao dispor de todos e que

constituiria uma visão à qual chegam apenas os que têm “mais discernimento”. A

alimentação surge, assim, como factor de distinção no plano social (Bourdieu, 1979;

Ossipow, 1997). O facto de os conselhos dados serem também muito de natureza prática

e aparentemente fáceis de concretizar era um aspecto que os praticantes consideravam

como positivo e que justificava o investimento que tinham feito. O conhecimento

apreendido traduzia-se também em self empowerment, dado que as aprendizagens

podiam ter repercussões na vida pessoal e constituir um recurso, não só para fazer frente

a situações de enfermidade, mas também para desenvolver uma atitude de maior

confiança face à vida em geral.

Algumas indicações sobre hábitos alimentares a implementar foram divulgadas.

Eram orientações que não se limitavam aos nutrimentos mas que se estendiam a atitudes

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A Macrobiótica em Portugal

239

a adoptar. Assim, em documento elaborado pelo Instituto Macrobiótico de Portugal, era

recomendado:

- Pode comer e beber uma quantidade confortável de acordo com o seu desejo e necessidades

individuais.

- Coma regularmente 2 a 3 vezes por dia, se tiver uma actividade física intensa pode incluir 4

refeições por dia.

- Inclua cereais e produtos à base de cereais em todas as refeições – pequeno-almoço, almoço e

jantar.

- 50% do volume total da sua alimentação diária deve consistir de cereais ou produtos à base de

cereais.

- Inclua pelo menos um acompanhamento de vegetais em cada refeição – pequeno-almoço,

almoço e jantar.

- Coma todos os dias umas duas tigelas de sopa de vegetais temperada com miso, shoyu ou sal

marinho.

- “Snacks” podem ser usados moderadamente, mas não devem substituir uma refeição regular.

- Coma sempre sentado, mesmo que seja um “snack”.

- Evite comer três horas antes de dormir.

- Mastigue muito bem cada garfada – até a comida se liquefazer.

- Cozinhe com amor, cuidado e mente pecífica.

- Tente comer com a família e os amigos.

- Coma com um espírito de gratidão e apreciação pelos outros, pela sociedade, a natureza e o

universo.

Como se pode constatar as recomendações são sensatas e, tirando um ou outro

aspecto, como o número de refeições, facilmente poderiam ser subscritas por

nutricionistas convencionais. Destaca-se deste conjunto a importância dada a aspectos

que não os meramente nutritivos. O último aspecto referido remete claramente para a

dimensão ideológica que caracteriza a macrobiótica. Na parte prática do curso não foi

dado, contudo, um destaque especial a esta dimensão, como se se evitasse dar um ar

dogmático a este tipo de alimentação e ela pudesse, por este motivo, ser

descredibilizada. Critérios que visam uma racionalização do discurso podem assim ser

observados no modo como é conduzida a formação

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«À Mesa com o Universo»

240

Cozinhar, Convocar o Universo para a Mesa

As primeiras aulas práticas de cozinha constituíram uma descoberta fascinante

de novos ingredientes. Alimentos que não costumam ser usados regularmente na

cozinha portuguesa (arroz integral, arroz glutinoso, quinoa, bulgur, millet, trigo

sarraceno, miso, amasake, fu, natto, tempeh, tofu,shoyu, soba, tahin, umeboshi,

gomásio, algas wakame, kombu, aramé, nori… - ver glossário) foram apresentados

como ingredientes com os quais nos iriamos familiarizar, dado que eram ingredientes de

referência na cozinha macrobiótica e iriam ser por nós usados na elaboração de algumas

refeições. Nestas sessões ensinou-se a dar preferência aos alimentos da estação, aos que

são de proveniência biológica e aos que estão mais próximos do ponto de vista

geográfico.

Este aspecto, proximidade geográfica, e evitamento de consumo de alimentos

que estejam para lá do raio de 50 km, é paradoxal, como já tive oportunidade de referir,

dada a quantidade de ingredientes básicos que têm de ser importados de países como o

Japão para que se possam confeccionar alguns dos pratos propostos. O consumo de

algas, um dos produtos importados, não é corrente entre nós. Exceptuando algumas

comunidades costeiras dos Açores que utilizam a Porphyra leucostica, “erva patinha”,

incorporada em sopas, tortas e omeletas ou a “erva malagueta”, que costuma ser

conservada em vinagre e consumida ao longo do ano, ou, ainda, a alga nori, que, por via

do sushi, foi sendo mais popularizada, as outras são praticamente desconhecidas por

aqueles que não praticam uma alimentação macrobiótica. No entanto, de acordo com o

que nos diz Leonel Pereira118

, a costa portuguesa é rica em algas, e abundante em

algumas das que são usadas na macrobiótica, como a kombu, nori, esparguete do mar e

as agarófitas (algas produtoras de agar, ficocolóide que permite dar consistência e

aspecto gelatinoso a muitos pratos, sobretudo sobremesas). As agarófitas são recolhidas

em Portugal e comercializadas por empresas como a «Iberagar», indústria de

ficocolóides que as processa e as destina a usos em microbiologia, cosmética, indústria

alimentar, etc. Todavia, estas algas raramente são usadas sem ser incorporadas em

alimentos que foram processados pela indústria alimentar. Convém ainda dizer que esta

118 Leonel Pereira, «As algas marinhas e respectivas utilidades» documento disponível em

http://br.monografias.com/trabalhos913/algas-marinhas-utilidades/algas-marinhas-utilidades.shtmlnível

[Acesso em 12-11-11]

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A Macrobiótica em Portugal

241

indústria apenas se terá desenvolvido devido à escassez de agar durante a II Guerra

Mundial, até porque esta mercadoria vinha sobretudo do Japão. A primeira fábrica de

agar surgiu em 1946, e Portugal ter-se-á tornado um dos maiores produtores mundiais

deste produto (cf. Pereira, ibid.). Ainda assim, por que motivo as algas, um produto de

elevado valor nutritivo e de baixo valor calórico, não se inscreveram nos consumos

alimentares dos portugueses, pelo menos nos do continente? Talvez uma das razões para

esta situação tenha algumas semelhanças com aquela que explica o facto de os

americanos só terem começados a consumir soja e seus derivados há bem pouco tempo

atrás (Du Bois, 2008). Sabemos que a recolha de algas marinhas e a sua utilização como

fertilizante remonta, pelo menos, ao século XIV, e que a tradicional apanha de sargaços

até foi objecto de investigação etnográfica (Veiga de Oliveira et al., 1990 [1975]).

Apesar disso, a indústria das algas para alimentação (exceptuando as agarófitas) não se

desenvolveu, contrariamente ao que aconteceu, por exemplo, na Galiza, onde a

«Algamar» investiu na extracção, preparação e comercialização de algas. De acordo

com Leonel Pereira, investigador que se especializou no estudo de algas, em Portugal,

mesmo as algas que são utilizadas em cosmética e em talassoterapia são importadas

(ibid.). Parece aqui existir, portanto, um importante recurso a explorar119

.

Na macrobiótica as algas são usadas de diversificadas formas, na alimentação e

em remédios caseiros. Tidas como ajudando a mineralizar e depurar o organismo são

frequentemente vistas como favorecendo os processos de eliminação. O iodo presente

nas algas, pelo facto de activar a tiróide, e, assim, a velocidade das reacções

metabólicas, é visto como impedindo a formação de depósitos de lípidos nas células,

contribuindo, desta forma, para combater a obesidade (Pereira, ibid.). A argumentação

apresentada no curso para justificar a importação de certos produtos, como o miso ou as

algas, incidia sobretudo na sua importância do ponto de vista nutritivo e restaurador,

importância de tal forma elevada que, a sua importação, não nos deveria coibir de os

usar.

Para além de aspectos como a origem geográfica dos alimentos, aprendeu-se a

avaliar se estes são mais ou menos yang, devendo-se para tal prestar atenção à forma e

consistência, devendo-se considerar que vegetais mais pequenos e contraídos são mais

yang e maisvolumosos e compridos mais yin. As raízes foram, nesta lógica,

apresentadas como sendo mais yang e as folhas dos vegetais mais yin. De um equilíbrio

119 Em Castelo do Neiva, o restaurante-marisqueira - «Augusto» - apresenta algumas sugestões onde se

encontram incluídas algas, promovendo assim um recurso local, estas sugestões são, contudo, tímidas.

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«À Mesa com o Universo»

242

entre yin e yang resultaria também uma refeição mais harmoniosa. Devia ser avaliada

adequadamente a situação de cada indivíduo na hora da confecção, pois poderia

necessitar de uma alimentação mais yin ou mais yang de acordo com a sua condição.

Neste contexto foram também ensinadas técnicas de «yanguização» e «yinização» dos

alimentos, ou seja, técnicas através das quais poderíamos atribuir uma qualidade mais

yin ou mais yang a determinados alimentos. Assim, o uso do forno (calor) permitia

«yanguizar» os alimentos enquanto a adição de líquidos aos mesmos os «yinizava». Era

assim possível trabalhar a «energia dos alimentos» e conseguir, quando esse fosse o

objectivo, uma «polaridade» adequada, quer dizer, uma relação equilibrada entre yin e

yang. Aprender a cozinhar de forma verdadeiramente macrobiótica implicava

compreender e aplicar a relação yin-yang, as categorias que designavam todo o mundo

envolvente e através das quais o corpo e as emoções deveriam ser compreendidos. As

situações de doença expressavam-se, também, através de yin e de yang, sendo possível

identificar doenças yin, doenças yang e doenças yin-yang. Um maior esclarecimento

sobre este tipo de classificações ocorreria, contudo, no Curso Curricular de

Macrobiótica.

A este tipo de considerações juntou-se ainda o ensinamento sobre como montar

uma cozinha macrobiótica, fazendo-se referência a ingredientes básicos para temperar

(shoyu, miso, gomásio, óleo de sésamo, azeite, vinagre de ameixa…) e outro tipo de

ingredientes, como a diversidade de cereais, a utensílios específicos (colheres de

madeira, suribachi, faca para vegetais, coador, steamer, escova para limpar vegetais,

prensa para pickles, esteiras de bambu para sushi, panela de pressão…). Insistiu-se

ainda na preferência que deveria ser dada ao fogão a gás em vez de ao fogão eléctrico,

dada a «maior qualidade energética» deste tipo de combustível (presença do fogo) e ao

facto de esta ser transferida para os alimentos cozinhados (uma das minhas colegas no

Curso Curricular de Macrobiótica retiraria a placa para cozinhar em vitrocerâmica da

sua cozinha para a substituir por um fogão a gás). Referia-se ainda a necessidade de

evitar o micro-ondas e outros electrodomésticos, dado que afectariam a qualidade

energética dos alimentos. O alimento surge, assim, não apenas através das suas

qualidades nutritivas mas como tendo uma «carga energética» que se encontra

dependente da forma como é manuseado e até do estado de espírito com que é

cozinhado. Pessoas doentes, deprimidas ou zangadas deviam evitar cozinhar, dado que

transferiam a sua energia para os alimentos. Cozinhar de forma energética implicava

ainda ter atenção ao corte dos vegetais, não apenas para preservar as suas qualidades

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A Macrobiótica em Portugal

243

energéticas, mas também para conseguir uma apresentação mais agradável à vista. A

cebola, por exemplo, deveria ser cortada longitudinalmente, de forma a mais facilmente

representar a totalidade daquele alimento e, igualmente, de forma a mais facilmente

preservar a relação yin e yang. Também os estilos culinários (cozedura simples,

cozinhar na pressão, no vapor, vaporização leve, em nishime [cozedura numa menor

quantidade de água], fritar [habitualmente em tempura], assar, tostar, grelhar…) foram

evocados como forma de «energizar» de diferentes modos os alimentos e de lhes

conferir propriedades yin ou yang.

A estrutura de uma refeição macrobiótica completa incluía uma sopa de

vegetais, um prato principal onde estavam incluídos cereais (a principal fonte de

hidratos de carbono na macrobiótica), proteínas (lentilhas, feijão, grão, seitan, tofu…),

vegetais cozidos, escaldados e por vezes crus, algas, e alguns pickles (vegetais

fermentados, tidos como facilitando a digestão). A refeição costuma ser finalizada com

um doce ou fruta. Por vezes é acompanhada por um chá, como o chá 3 anos,

dispensando-se frequentemente, contudo, a ingestão de bebida. Nas imagens seguintes

dou exemplo dos diversos componentes da refeição. Trata-se de uma refeição comum e

há que considerar que este padrão costuma ser alterado em refeições festivas ou noutras

situações.

Figura 15 - Sopa de Miso

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«À Mesa com o Universo»

244

Figura 16 - Empadão de millet com lentilhas

Fig. 17 - Tarte de maçã

Para além destes pratos, que são exemplo de uma refeição típica, tal como ela

costuma ser ensinada nos cursos de cozinha macrobiótica, e que tende a ser reproduzida,

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A Macrobiótica em Portugal

245

de forma mais ou menos elaborada no espaço doméstico, apresento também uma

fotografia com um pequeno-almoço muito comum entre os que seguem a macrobiótica.

Arroz integral cozinhado até ficar cremoso com malte de cevada. Tal confecção implica

habitualmente o uso de uma maior quantidade de água para cozinhar o arroz. Na

imagem pode ainda ver-se uma chávena de chá 3 anos com uma fatia de pão integral

com tahin (pasta de sésamo).

Figura 18 - Exemplo de um pequeno-almoço típico

A frequência dos diferentes cursos e o contacto de anos com indivíduos que

seguem a macrobiótica, levam-me a entender que é possível fazer uma cozinha

macrobiótica saborosa e equilibrada. Aqui, como em qualquer outra orientação

alimentar, e dependendo dos indivíduos e das suas opções subjectivas, é também

possível fazer-se uma cozinha desequilibrada e com deficiências de alguns nutrimentos.

Questões ligadas à subjectividade de cada um e à sua acção individual, são assim

relevantes para caracterizar esta prática. De qualquer dos modos é importante salientar

que a cozinha macrobiótica, tal como é hoje ensinada via IMP, é uma cozinha muito

diversificada e que a alimentação seguida pelos que praticam hoje a macrobiótica não

deve ser imediatamente identificada com as deficiências do ponto de vista nutritivo que

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«À Mesa com o Universo»

246

foram observadas no passado junto de indivíduos que se integravam no mesmo tipo de

orientação alimentar.

Em trabalho desenvolvido sobre a macrobiótica no quadro da Faculdade de

Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto (Silva, 2008), procura-se

fornecer um documento que possa auxiliar médicos e nutricionistas a orientar

indivíduos que sigam a alimentação macrobiótica, dado não ser defensável o

“imperialismo alimentar”. Parte-se aí de muitas das deficiências nutritivas que foram

detectadas no passado para salientar aspectos para os quais deve ser dada mais atenção

na orientação alimentar. Ora, deve ser salientado que, apesar da importância desta

iniciativa, para além da atenção a esses aspectos do passado, deve ser sobretudo

prestada atenção ao que está a ser promovido no presente, pois é aqui que mais

claramente pode ser identificado um quadro orientador em termos de alimentação e

pode ser detectada alguma deficiência em termos nutritivos. Uma observação de

proximidade, de carácter mais etnográfico, é pois importante para que não se eternize

nas Ciências da Saúde um discurso sobre a macrobiótica a partir das suas deficiências

em termos nutritivos. Na macrobiótica, tem havido, efectivamente, um esforço por

superar alguns dos problemas observados no passado. A macrobiótica não é um sistema

fechado, tem sido objecto de recomposição e de adequação a diferentes contextos.

Encontra-se envolvida em relações dinâmicas que têm conduzido a algumas

transformações nas suas perspectivas, como, aliás, a autora desse trabalho também

salienta ao apresentar a macrobiótica. Neste quadro, podemos constatar que, enquanto

os trabalhos emanados das Ciências da Saúde sobre a macrobiótica, tendem a ser

elaborados a partir das deficiências, em termos nutritivos, que foram reconhecidas nesta

orientação alimentar (ver capítulo 2), estes aspectos tendem a não ser referidos nas

sessões de formação na área da macrobiótica, como se estes ensombrassem essa

proposta alimentar e a tornassem menos atractiva. Diferentes formas de perspectivar um

mesmo problema são assim propostas, sendo o discurso adoptado concordante com o

lugar a partir do qual é produzido.

É de notar ainda, a propósito do tipo de confecções que foi ensinado neste curso

de cozinha, que, muito embora essas confecções estejam enquadradas em termos de

classificação yin e yang, são por vezes apresentadas, noutros contextos mais

mediatizados, como a televisão, apenas por referência às características energéticas e

nutritivas dos alimentos. A menção aos minerais e vitaminas é uma constante para

afirmar o poder desta comida, uma comida que «limpa», «energiza», «cura»,

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A Macrobiótica em Portugal

247

«equilibra» e «sintoniza o Homem com a ordem do universo», como dizem. Assim se

misturam saberes leigos e saberes periciais e se sugere que a familiarização, cada vez

mais recorrente com as características nutritivas dos alimentos, coloca também

exigências de linguagem à macrobiótica, de tal forma que se vê assim impelida a

apresentar os alimentos através de um tipo de discurso que emana da actividade

científica que tanto questiona.

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Sistemas terapêuticos em confronto

249

Capítulo 5

Sistemas Terapêuticos em Confronto: Práticas Marginais e Sistemas

Dominantes

5.1 Macrobiótica: um Sistema Terapêutico

5.1.1 Nas margens do poder biomédico

Parece-me que um dos fenómenos fundamentais do século XIX correspondeu ao

que se poderia classificar como processo de apropriação da vida pelo poder.

Tratou-se, na verdade, de uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser

vivo, uma espécie de estatização do biológico, ou, pelo menos, uma tendência

que conduziria ao que podemos classificar como a estatização do biológico.120

Foucault. (1997: 213 [1976])

Com estas palavras inicia Foucault a sua lição de 17 de Março de 1976 no

Collège de France, uma lição que viria a ser marcante para todas as disciplinas

interessadas em analisar sistemas sociais. Aí seriam abordados temas que serviriam de

inspiração a diversas gerações de investigadores: a apropriação da vida pelo poder, o

biopoder, as áreas de aplicação do biopoder. Estes conceitos, estruturadores de muitos

dos discursos centrados no corpo e nas formas de o regular e disciplinar, continuam hoje

a ser pertinentes e constituem uma das vias através das quais pode ser empreendido um

caminho de desocultação de relações e de discursos tornados verdade, para usar uma

categoria cara a Foucault.

A perspectiva teórica de análise do corpo que a partir de Foucault seria

desenhada, tenderia, assim, a realçar a importância de estruturas através das quais se

estabeleciam relações de dominação/sujeição. Tomadas como indispensáveis à

manutenção da ordem social instituída, essas relações constituíram o foco das atenções

de uma forma de perspectivar as sociedades que tomou o poder e a apropriação da vida

pelo poder como dimensão fundamental para interpretar a vida social. Neste contexto, o

relevo dado às escolhas individuais que não surgiam enquadradas nessas relações de

dominação/subordinação, ou que, de algum modo, não as suportavam, foi escasso. A

prioridade dada às estruturas e às diferentes modalidades de criar constrangimentos

120 Tradução livre.

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«À Mesa com o Universo»

250

sociais, constituiu efectivamente o núcleo essencial de análise nessa perspectiva teórica.

A primazia dada ao peso da estrutura social, retirou, desta forma, importância a aspectos

como a agencialidade, dificultando assim que se atentasse, com a mesma insistência, em

processos e acções que podiam contribuir, ainda que de forma subtil, para a

transformação de sistemas dominantes.

Sem procurar, no contexto deste trabalho, retirar importância às formas mais

institucionalizadas de funcionamento que condicionam a acção social, até porque, como

veremos, elas são efectivas, considero que, na maior parte dos casos específicos que

analiso, as escolhas individuais relativas à saúde e cuidado do corpo se afastam da acção

do Estado e do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Nas tomadas de decisão

relativamente ao corpo, de que darei conta, podemos observar que há situações de

desobediência face àquilo que é recomendado pelos médicos e que há uma procura de

soluções que não se encontra enquadrada no Estado. Deve ser sublinhado, ainda assim,

que essa busca de soluções não significa sempre que os indivíduos se queiram

posicionar à margem daquilo que lhes é proporcionado pelo Estado, mas, antes, que não

encontrando respostas satisfatórias para os seu problemas no leque de possibilidades

que lhes é oferecido pelo SNS, optam por soluções que se afastam da medicina

convencional ou que surgem articuladas com esta. Ao invés de pretenderem manter-se à

margem do Estado, alguns gostariam de poder encontrar dentro do Estado soluções que

permitissem a realização das suas escolhas, tal como é, de resto, proposto por Cunha e

Durand a propósito da vacinação (2011). A discussão que a partir daqui se pode

empreender remete necessariamente para uma discussão em torno das políticas de saúde

e políticas do corpo, dimensão que, face à procura de cuidados de saúde fora do quadro

do SNS, cada vez mais urge debater. É certo que cuidados de saúde fora do âmbito da

acção do SNS existem desde há muito, mas, o facto de ter sido empreendido um

processo de institucionalização das terapêuticas não convencionais pode ser visto como

revelador da importância que esta questão tem vindo a assumir na sociedade portuguesa.

A análise de representações e de práticas situadas nas margens sociais, como as

que surgem associadas à macrobiótica, pode contribuir para evidenciar formas de acção

que não são de total sujeição em relação a orientações dominantes, ainda que com elas

dialoguem. De facto, muitos dos indivíduos que adoptaram a macrobiótica enquadram-

se na acção de diferentes órgãos representativos do poder e não se isentam de participar

em modelos de organização que, todavia, contestam em diversos dos seus aspectos. O

que procuro afirmar é que as representações e práticas que caracterizam muitos dos que

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Sistemas terapêuticos em confronto

251

seguem a macrobiótica os conduzem a fazer opções que são distintas das práticas

dominantes. Mais ainda, essas representações levam-nos, frequentemente, a discursos

de contestação em relação a modelos e orientações estabelecidas, muito embora estes

discursos não se expressem, habitualmente, de forma colectiva e organizada. Esses

discursos de questionamento, sobretudo em relação ao sistema alimentar e em relação

ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), associados a práticas alternativas, acabam por

traduzir formas de experienciar o corpo que, argumento, acabam por ter efeitos, ainda

que subtis, ao nível das orientações e forma de organização dominantes.

Destas práticas de fronteira decorre um tipo de consequências cujo efeito não é

perceptível de forma imediata, mas que acaba por gerar transformações não só nas

concepções, mas também nas formas de acção. Explorei em capítulos anteriores

situações que me pareciam revelar este tipo de efeitos, designadamente o contributo da

macrobiótica para a transformação do mercado alimentar nas sociedades euro-

americanas, através do incentivo ao consumo de certos produtos alimentares - sobretudo

cereais integrais, derivados da soja e produtos biológicos. Procurei ainda apontar que

propostas recentes de pirâmides alimentares, apresentadas no campo das Ciências da

Nutrição, sugeriam que havia um efeito de ressonância por relação ao que se defendia

na macrobiótica (ver capítulo 2). Julgo que ao nível dos sistemas de saúde é possível, do

mesmo modo, observar transformações que derivam de uma procura crescente de

cuidados de saúde habitualmente classificados como alternativos. A integração de

medicinas alternativas em centros onde são disponibilizadas especialidades médicas

«clássicas» (Kaptchuk e Eisenberg, 2001; Franco, 2010), bem como a inclusão de

terapêuticas não convencionais no feixe de consultas apoiadas por algumas seguradoras

implicam um conjunto de serviços disponibilizados distinto do de um passado recente.

Considero que este facto é resultante de um conjunto diversificado de processos, entre

os quais saliento a procura, por parte dos consumidores, deste tipo de serviços. Acredito

que esta procura, associada frequentemente a representações sobre o corpo que escapam

a lógicas dominantes, como é o caso da macrobiótica, contribui, ainda que de uma

forma que não é ainda inteiramente perceptível e passível de ser demonstrada, para uma

transformação dos serviços de saúde, tal como foram concebidos num passado recente,

e que, a prazo, implicarão novas conceptualizações sobre a saúde e novos modelos de

organização deste sector.

Neste sentido, a relação entre terapêuticas convencionais e não convencionais

deve ser vista como dinâmica e não apenas como sendo regida por uma lógica de

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«À Mesa com o Universo»

252

dominação e subordinação. Esta noção - relação dinâmica - inspirada na leitura de

trabalho de Mónica Saavedra (2011) sobre a vacinação, trabalho onde a autora propõe o

conceito de «hegemonia dinâmica» para analisar a vacinação enquanto processo social,

é na verdade relevante no contexto deste trabalho. Permite-nos olhar para as práticas

sociais, mais ou menos institucionalizadas, como actos relacionais que colocam

diferentes agentes numa situação de interacção, podendo a partir daí ocorrer alguma

transformação nessas práticas.

Como é do conhecimento geral, a aceitação social das terapêuticas

convencionais e não convencionais é distinta, não dando lugar tais formas de tratamento

a parceiros com igual peso nos processos de negociação. Ainda assim, por vezes, é a

partir das margens que vão sendo dados sinais para a alteração de modos de pensar e

organizar os serviços de saúde. É certo que as terapêuticas não convencionais não têm

conhecido um sucesso idêntico e que os processos de institucionalização que lhes

assistem também não são exactamente os mesmos (Franco, 2010), mas, no seu

conjunto, julgo que já estão a contribuir, ainda que de forma tímida, para transformar a

organização dos serviços de saúde. As práticas menos integradas no sistema e com um

estatuto de maior marginalidade (marginalidade diferente e relativa, de acordo com a

terapêutica) podem, assim, ser perspectivadas como concorrendo para a erosão de certos

modelos instituídos, contribuindo, desta forma, para o seu desaparecimento, pelo menos

tal como os conhecíamos no passado. Tal não coloca em perigo, necessariamente, os

sistemas sociais, mas vai realçando as suas fragilidades e assinalando caminhos através

dos quais pode ser ensaiada a mudança. Nesta medida, podemos perspectivar as práticas

alternativas como inputs dados ao sistema no sentido da sua transformação. Estes

inputs, sublinho uma vez mais, não significam o seu desmantelamento, mas podem ser

vistos como promovendo discussões e decisões em termos de políticas do corpo, que

poderão conduzir a transformações, e, no limite, à reconfiguração de certos serviços,

como o SNS.

Assim, como foi destacado, em sistemas marginais, como a macrobiótica,

podemos reconhecer essa capacidade de influenciar actividades que cada vez mais

ocupam um lugar central, como a comercialização de produtos biológicos. Porém, da

mesma forma, foi também reconhecido que a macrobiótica se tem transformado em

virtude do modo como foi sendo apropriada e questionada em diferentes contextos. O

efeito de transformação que apontei, e que alarguei a diversas práticas, não deve assim

ser visto apenas numa direcção unívoca, estabelecida a partir de sistemas marginais e

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Sistemas terapêuticos em confronto

253

com efeitos sobre sistemas dominantes, mas através de uma visão relacional e dinâmica,

que nem sempre está claramente estabelecida mas que vai fazendo o seu caminho.

Retornando às palavras de Foucault, e à ideia de apropriação da vida pelo poder,

mote para este capítulo, é necessário dizer que muito embora algumas das terapêuticas

não convencionais estejam a ser integradas em sistemas e modos de funcionamento que

participam daquele que é o modelo preponderante, há outras, como a macrobiótica, que

se têm mantido mais à margem desses processos e que revelam, justamente, um

conjunto de procedimentos menos integrado e que pode ser conflituante com

procedimentos estabelecidos e apoiados pelo Estado. O que procurarei evidenciar ao

longo deste capítulo não serão as transformações específicas nos serviços de saúde, que

podem ser associadas a práticas e concepções sobre o corpo de expressão mais residual,

mas, sobretudo, apresentar uma forma de abordagem do corpo, da saúde e da doença

que, na sua expressão marginal, não corresponde exactamente a uma visão estatizada

sobre o corpo. Tal como procuro argumentar, esta forma de abordagem, juntamente com

outras práticas, contribui para repensar as formas de conceber e organizar os serviços de

saúde.

Os indivíduos que adoptam processos de tratamento no âmbito da macrobiótica

colocam-se em diversas situações à margem dos serviços disponibilizados pelo Estado,

porque não acreditam nos processos terapêuticos propostos e se consideram alertados

para alguns dos perigos que podem correr nesses processos. Assim, tendo em

consideração os seus problemas específicos, procuram solucioná-los por recurso

exclusivo à macrobiótica ou, caso considerem essa opção relevante, em associação com

outras orientações terapêuticas. Estabelecem assim, frequentemente, relações

estratégicas com o SNS, pelo menos nas situações em que o acompanhamento médico

convencional é tido como imprescindível. Neste jogo, entre formas de conceber e

proceder, que por vezes são conflituantes, observa-se frequentemente a dificuldade em

fugir a um modelo estatizado de intervenção sobre o corpo, mas também se revela

agencialidade e tomadas de decisão sobre si que constituem uma renúncia aos serviços

disponibilizados pelo Estado. Envoltos numa teia de relações, que os faz balançar entre

diferentes perspectivas de abordar o corpo, a saúde e a doença, os indivíduos nem

sempre deixam que o seu corpo seja totalmente estatizado, antes mergulham, tanto

quanto possível, numa estratégia de conciliação entre diferentes universos de tratamento

- estratégia essa por vezes sugerida pelo próprio consultor na área da macrobiótica.

Interagem dessa forma com o poder biomédico e procuram manipulá-lo a partir das

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«À Mesa com o Universo»

254

margens em que se situam. Estamos, pois, nessa área que é a da interacção das margens

com o centro, aqui representado pelo poder biomédico.

*

Perspectivo aqui a macrobiótica como sistema terapêutico, dada a forma

organizada, conjugada e interdependente como um conjunto de crenças e concepções

sobre o corpo se alia a um conjunto específico de procedimentos que visam a cura.

Essas concepções, organizadas sobretudo por Ohsawa e por Kushi, ensinam a ler o

corpo e a interpretá-lo, e têm a si associados discursos que ensinam como fazer

diagnósticos e utilizar procedimentos específicos de cura. O processo de cura na

macrobiótica encontra-se muito ancorado na alimentação - promoção e restrição de

certos alimentos (jejum em alguns casos), com recomendação de uso de remédios

específicos feito a partir da combinação de alimentos. Esse processo encontra-se

igualmente associado a um conjunto de formas de tratamento que não implicam

directamente o consumo de alimentos. O uso de compressas de gengibre, emplastros

específicos para certos problemas, técnicas para estimular a circulação sanguínea e

linfática, banhos, técnicas de do-in (auto-massagem), meditação, cânticos, promoção de

estilos de vida considerados mais saudáveis, etc. fazem parte de uma ampla panóplia de

formas de intervir e cuidar do corpo. Não terei oportunidade, no contexto deste trabalho,

de dar conta de muitos dos ensinamentos específicos que são feitos nos cursos de

formação, convém salientar, contudo, e desde já, que esses ensinamentos se apoiam em

teorias cosmológicas relativas ao que entendem ser a «Ordem do Universo», na energia

ki, nas concepções sobre yin e yang, na teoria das cinco transformações e no diagnóstico

visual, tal como foi sendo promovido por Ohsawa e Kushi, na tradição do fisionomista

japonês Mizuno Namboku (ver capítulo 3). Diagnósticos através do aspecto geral do

corpo, do rosto, dos olhos, da observação e palpação de mãos e antebraços foram

também aí abordados. A maior parte das orientações de tratamento no âmbito da

macrobiótica, acontecem no contexto de uma consulta, promovida por consultores nesta

área, que fazem dessa actividade profissão, havendo assim um encontro entre diferentes

agentes (consultor e consulente) com vista à promoção de um processo terapêutico121

.

121 O termo paciente pareceu-me desajustado, dado ser característico de uma linguagem utilizada no

âmbito das práticas médicas convencionais, Termos alternativos, como doentes, utentes, clientes, não me

pareceram opções mais adequadas.

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Sistemas terapêuticos em confronto

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O corpo na macrobiótica surge como um continuum em relação ao mundo

envolvente, existindo entre a dimensão corpórea, mental e espiritual esse mesmo

continuum (Kotzsch, 1981). Esta ideia de continuidade é reencontrável noutros

sistemas, designadamente na medicina ayurvedica, onde pode ser encontrada a ideia de

corpo e pessoa como entidades fluídas e penetráveis, em intercâmbio entre o meio social

e natural (cf. Langford, 2002). A espiral de materialização e de dissolução desenhada na

macrobiótica, encontra-se, de resto, em consonância com uma visão holística do

universo em que tudo se encontra interligado, conectado. Se, no passado, Ohsawa

chegou a defender a alimentação como única via através da qual deviam ser explicadas

as situações de doença e aquilo que de bom ou mau acontecia ao homem, numa fase

posterior da sua vida viria a afirmar a importância da atitude, integridade e

discernimento. A consideração das emoções e dos estados mentais foram referidos nos

cursos de formação como aspecto fundamental a considerar para que pudessem ser

empreendidos processos de cura. Neste capítulo, procurarei dar conta de concepções e

significados específicos em torno do corpo, saúde e doença, procurando evidenciar

práticas e discursos em torno deste sistema terapêutico que constituam formas de

distanciamento em relação a esquemas de cuidado do corpo mais estatizados. Teremos

oportunidade de observar que esta terapêutica não convencional se sustenta num

discurso de demarcação face à ciência e à biomedicina, mas que, paradoxalmente,

recorre com frequência a estudos científicos para afirmar certas orientações e

posicionamentos. Teremos ainda ocasião para analisar a forma estratégica como muitos

indivíduos se relacionam com o poder biomédico a partir da macrobiótica.

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«À Mesa com o Universo»

256

5.1.2 Macrobiótica, Corpo, Saúde e Doença122

Apresento, seguidamente, concepções e orientações relativas ao corpo, saúde e

doença, tal como as pude captar em acções de formação e junto dos que têm a

macrobiótica como referencial de orientação. Identificar e problematizar essas

concepções e orientações implicará dedicar alguma atenção a processos discursivos de

demarcação face a outras formas de abordagem do corpo, particularmente aquelas que

costumam ser identificadas com a biomedicina e que orientam o Serviço Nacional de

Saúde (SNS). Os discursos de demarcação a que aludo parecem-me verdadeiramente

significativos, na medida em que consubstanciam uma retórica própria, justificadora e

legitimadora de um conjunto de saberes e de práticas. Esta retórica contribui para

“redireccionar” os indivíduos, facultando-lhes recursos de percepção e interpretação da

realidade. O posicionamento face aos cuidados de saúde é, portanto, elaborado através

de uma estratégia de demarcação que, em diferentes momentos, remete para

temas/situações como os que agora enuncio: dramatização do estado actual de saúde da

população em geral; medo difuso; responsabilidade individual, autonomia e, na linha de

Illich (1975), crítica da biomedicina, (actos médicos pouco humanizados, desatentos ao

indivíduo e à sua singularidade, abordagem alopática, técnicas invasivas, medicalização

excessiva dada a orientação para lucros de laboratórios e empresas farmacêuticas, etc.).

A análise destes aspectos será uma oportunidade para reflectir sobre a falta de

enquadramento que os partidários da macrobiótica encontram no SNS, dada a fraca

abertura deste para abordagens do corpo menos convencionais. Referido em contexto de

formação como tendo uma postura monolítica e de ignorância da pluralidade da

estrutura social e das representações culturais, este serviço é acusado de não satisfazer

muitos dos que reconhecem noutras formas de abordagem do corpo uma resposta mais

adequada às suas necessidades. Estes, entrados nessa zona de esquecimento ou mesmo

negação, fora da área de controlo e intervenção das políticas instituídas, manifestam um

sentimento de distanciamento e de desprotecção, denunciado tanto no que diz respeito

às comparticipações na aquisição de bens de saúde, como no que remete para o nível do

acompanhamento e vigilância dos cuidados atribuídos ao SNS. Entre os que aderem à

macrobiótica e adoptam outras formas de se tratar que não as convencionais, verifica-se,

122 Esta parte do trabalho foi apresentada no âmbito do seminário de estudos pós-graduados do ICS, em

2008. Beneficiou aí dos comentários de João Guerra.

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Sistemas terapêuticos em confronto

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assim, que se vêem frequentemente como contribuintes de um sistema de que pouco

beneficiam, pois apenas o usam de forma muito crítica e selectiva. Face a este cenário,

alterações nas políticas do corpo que acolhessem de forma mais adequada o pluralismo

terapêutico são, geralmente, vistas com bons olhos.

*

Tal como já foi antecipado, na macrobiótica, as doenças surgem de uma

ausência ou excesso de energia, de um desequilíbrio entre yin ou yang. Yin

corresponderia a uma natureza mais branda, mais expansiva, mais fria, mais negativa,

mais feminina, enquanto yang corresponderia a uma natureza mais activa, mais

contraída, mais quente, mais positiva, mais masculina. A água seria o yin perfeito e o

fogo o yang perfeito. Nesta óptica, um corpo são é visto como o resultado de um

equilíbrio energético entre yin e yang, algo que só pode ser conseguido através de uma

incorporação adequada de certos alimentos. Se a concepção da doença através das

categorias yin/yang nos remete imediatamente para a medicina tradicional chinesa, é de

assinalar, todavia, que a interpretação que se faz na macrobiótica dos princípios yin e

yang não é sempre inteiramente coincidente com a que podemos observar na medicina

tradicional chinesa ou no shiatsu123

.

Muito embora nos cursos de macrobiótica sejam dadas orientações relativas a

estas formas de classificação, transmite-se também a ideia de que os conceitos de yin e

de yang não são conceitos inteiramente racionais. São antes conceitos intuitivos, que

nem sempre correspondem aos esquemas distintivos fornecidos, pois, de acordo com a

situação e o tipo de efeito, um aspecto yang pode ser interpretado como yin. Assim, em

contexto de formação e em conversa com colegas, foi-me referido que o café, enquanto

bebida, pode ser considerado yin, mas, nos seus efeitos mais imediatos, pode ser visto

123 A frequência de um curso de shiatsu (técnica de harmonização da energia ki, também referida qi ou

chi, através de pressão digital ou palma da mão em diferentes pontos dos meridianos) - ao longo de 304h,

entre 2002 e 2004 - decorreu do interesse pela macrobiótica e viria a permitir-me constatar que as classificações em termos de yin e de yang não são inteiramente concordantes na macrobiótica e em

sistemas que concebem o corpo humano como sendo percorrido por meridianos. Órgãos que na

macrobiótica surgem classificados como yin (por exemplo, intestino grosso e estômago) vêem os

respectivos meridianos ser classificados nesses sistemas como yang. Uma das explicações que me foi

facultada por um dos formadores foi a de que Ohsawa teria modificado estas formas de entendimento

devido ao facto de usar a Terra e não o Sol como sistema de referência para a aplicação dos conceitos de

yin e de yang (!). De qualquer das formas, este problema parece ter sido resolvido na macrobiótica através

da distinção que se efectuou entre estrutura de um órgão e fluxo electromagnético desse órgão (ki) nos

meridianos. Assim, o coração terá uma estrutura yang, mas o respectivo fluxo no meridiano é yin.

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como yang, dado que é conotado com maior actividade. Por outro lado, os alimentos, ou

aspectos observados, que são yin ou yang, não são yin e yang exactamente da mesma

forma ou no mesmo grau. O sal, pela forma contraída que apresenta, é yang, mais yang

do que os ovos, que também são muito contraídos, mas estes são mais yang do que a

carne e esta mais yang que o peixe. A água enquanto líquido é yin, mas se estiver

solidificada, ainda que mais fria (aspecto yin), é mais yang, porque mais contraída (ver

tabela de classificação de alimentos no final). Como se pode ver a fronteira entre estas

categorias nem sempre é clara, e a sua aprendizagem implica, como constantemente é

referido em contexto de formação, treino, aprendizagem e desenvolvimento da

capacidade intuitiva. Vemos também aqui que este esquema à primeira vista dualista de

interpretação do mundo oferece muitos cambiantes e gradações, gerando por vezes uma

confortável ductilidade e ambiguidade. Vejamos, de seguida, algumas das concepções

sobre saúde e doença, bem como as respostas específicas dadas no âmbito da

macrobiótica124

.

*

Uma das concepções que vigora entre muitos dos seguidores da macrobiótica

que contactei, e que deriva das sessões de formação a que assistiram, é a de que a saúde

não é um estado mas um processo, um processo que implica atenção contínua e

interacção adequada com o ambiente. “A saúde e a doença são relativas e mudam

constantemente de uma para outra”, foi afirmado por um dos formadores. De acordo

com esta perspectiva, não existe ninguém absolutamente saudável, pois há sempre

necessidade de “fazer certos ajustamentos”. A saúde, entendida como tendo a ver com a

“capacidade de alinhamento” num processo de doença, estaria relacionada, como

referem, “com a capacidade de nos adaptarmos à vida, sem entrarmos em stress e sem

necessitarmos de um grande esforço”. Assim, quanto mais fácil fosse a “adaptação a

condições internas e externas” mais saudáveis seríamos e mais claramente se revelaria o

nosso equilíbrio energético em termos de yin e de yang. Num dos documentos que me

124 Não parto aqui da ideia de que a saúde e a doença sejam factos inteiramente objectivos e constato que

mesmo na macrobiótica por vezes é difícil referir com clareza o que é a saúde. Conforme nota Gadamer, a

saúde é mais “um facto psicológico-moral do que um facto demonstrável pelas ciências

naturais”.(1997:28) e “a doença, a perda do equilíbrio não é apenas um facto médico-biológico, mas

também um processo relacionado com a história da vida do indivíduo e com a sociedade” (op. cit: 48). É

no sentido da afirmação da doença como tendo uma inequívoca dimensão cultural que se expressam

autores como Kleinman (1980) ou Janzen (1982).

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foi fornecido no Curso Curricular de Macrobiótica, podia ler-se: a saúde é “um processo

onde é permitida à base biológica da nossa existência um funcionamento com o mínimo

de tensão, permitindo um máximo de exploração e interacção com o mundo à nossa

volta”125

.

Em contrapartida, as doenças surgiriam como diminuição nessa capacidade de

interacção. Seriam frequentemente o resultado de um desrespeito pela natureza e

revelariam ausência de sintonia com o meio envolvente. São vistas como “uma

capacidade decrescente de interagir com o ambiente de forma produtiva para o

desenvolvimento do nosso próprio potencial, conduzindo a um isolamento cada vez

maior” (idem). Recomenda-se, no entanto, que não se encare a doença como um

acontecimento inteiramente negativo. Ela pode surgir como oportunidade para “prestar

atenção à alimentação”, “recuperar a harmonia” e promover o “desenvolvimento

pessoal”. Por vezes surge como sinal de que devem ser feitas alterações no estilo de

vida126

. Há assim uma visão da doença como experiência transformadora. Foi

justamente nesse sentido que se expressou uma das mulheres que contactei:

Trabalhava até mais não, esquecia-me de mim e só pensava nos outros e no

trabalho, até que tive que abrandar quando me foi diagnosticado um cancro de

mama, devia mesmo ter parado durante mais tempo. Este período de tratamento

tem-me feito olhar para as coisas de outra maneira. [professora, 36 anos]

Numa outra situação, uma mulher [educadora de infância, 45 anos] com um caso

sério de urticária, mononucleose e outros desarranjos, só ao ter um acidente com um pé,

que a obrigou a ficar em casa, é que começou a constatar que estava a melhorar dos

problemas e que isto se devia ao descanso, pois os seus problemas de saúde pareciam

ter a ver com excesso de actividade. Acontecimentos como estes podem ser relatados

pelos mais diversos tipos de pessoas, facto que não constitui, evidentemente, uma

especificidade dos simpatizantes da macrobiótica. O que interessa salientar é que na

macrobiótica é desenvolvida uma forma de perspectivar estes problemas que salienta a

dimensão de ensinamento que a doença pode ter. Incentiva-se, por isso, aqueles que se

vêem afectados a procurar compreender os sinais que a própria doença lhes envia, sendo

125 Instituto Macrobiótico de Portugal, Textos de Apoio, Curso Curricular de Macrobiótica, Nível 1, 2005. 126 A este propósito, vale a pena referir que alguma literatura costuma ser recomendada para promover

outra forma de ver a realidade. Um dos livros que me foi apontado como significativo para aprender a ver

a doença de outra maneira foi um livro de Dethlefsen e Dahlke, A doença como caminho, Cascais,

Pergaminho, 2002.Texto publicado numa editora que se direcciona para os livros de auto-ajuda e

desenvolvimento pessoal.

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que esses sinais assumem muitas vezes a forma de “mensagens espirituais”. Então, é a

visão particular do mundo que a macrobiótica apresenta que ajuda, como referem, a

“abrir os canais de cura”.

Num discurso de demarcação relativamente à medicina convencional foi-me

referido que na macrobiótica podem ser considerados três tipos de medicina: a medicina

superior, que trataria a Humanidade; a medicina média que trataria as causas e a

medicina inferior que trataria os sintomas. A medicina convencional é claramente vista

como procurando, sobretudo, eliminar os sintomas e, nessa medida, qualificada de

inferior, uma vez que não prestaria atenção ao Homem como um todo, antes o dividindo

em partes, esquecendo assim a relação entre diferentes órgãos e entre corpo, mente e

espírito.

Neste âmbito, foi-me referido:

Em situações diversas como por exemplo uma amigdalite ou uma apendicite, o

que se costuma fazer em muitos casos é retirar estas partes do corpo humano,

sem procurar compreender porque surgiu o problema. Actuam como se esses

órgãos não fizessem falta para nada. Ora, as amígdalas e o apêndice são muito

importantes enquanto elementos de alarme. São sinalizadores de yin ou de yang

excessivo na alimentação. Quando há uma situação de amigdalite isso é sinal de

que se está numa condição muito yin (muitos líquidos, doces, comidas que

arrefecem o corpo…). E quando há uma situação de apendicite isso significa que

a condição é muito yang, com consumo excessivo de carne e poucos ou nenhuns

vegetais. A maior parte das vezes as pessoas retiram estes órgãos e não

modificam nada na alimentação, o que está mal. A doença deveria ser um sinal

para fazer mudanças, pois o corpo procura mostrar que está a ressentir-se das

condições a que está a ser exposto. [Professor na área da macrobiótica]

Face a este tipo de práticas a macrobiótica procura, como referi, distanciamento

crítico. Afirmando-se como estando mais próxima de uma medicina que pretende tratar

a humanidade, dirigida a cada um de forma particular, procura realçar a ideia de que só

tratando o indivíduo é possível alterar o todo social.

O modo como na macrobiótica se procura o bem-estar centra-se, numa primeira

fase, na alimentação e no estilo de vida, tal como já foi referido. Só depois de esgotadas

as possibilidades de tratamento através desta via é que se recomenda que se façam

abordagens que exijam o conhecimento de especialistas. Assim, dever-se-á começar por

prestar atenção à alimentação e adoptar um “estilo de vida natural”, usando remédios

caseiros caso seja necessário, praticando exercício, procurando estar em contacto com a

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natureza, usando técnicas respiratórias, fazendo chi-kung127

, meditação, cantando,

fazendo auto-massagens, etc. Só quando não se conseguem resolver os problemas

através deste tipo de práticas é que se devem procurar técnicos de “ajustamento natural

da energia”, que pratiquem, por exemplo, shiatsu, acupunctura, moxa ou outras técnicas

de manipulação do chi (ki, qi, energia vital). Caso este tipo de técnicas não venha a dar

resultado, podem então ser procuradas outras formas de tratamento como a homeopatia,

a ayurvédica ou outros “tratamentos populares”. Nesta fase, e caso não tenham sido

obtidos resultados significativos, é ainda possível recorrer a suplementos alimentares e

vitamínicos, a hidroterapia, a tratamentos electromagnéticos ou a consultas na área da

psicologia. Só quando estas possibilidades de cura se esgotarem é que se deve recorrer

aos medicamentos e a outros tratamentos ainda mais invasivos como a cirurgia,

quimioterapia, radiologia, etc. Esta é entendida como a “ordem natural” através da qual

se deve procurar o bem-estar. Porém, costumam referir os formadores:

Começa tudo ao contrário. Em vez de se procurarem soluções com menos

efeitos secundários, começa-se logo a tomar medicamentos e a intoxicar o

corpo. Há medicamentos de que o corpo nunca se livra e outros que demoram

anos a ser eliminados. São estes os resultados de muitas práticas médicas.

Como vemos aqui, o acesso aos cuidados de saúde prestados pela medicina

convencional, não constitui um interdito. Muitos dos que praticam alimentação

macrobiótica referem que em situações de acidente ou em casos específicos como uma

crise de apendicite, o melhor é recorrer aos hospitais e aos médicos que neles trabalham,

mas em muitos outros casos, e sobretudo em doenças crónicas, considera-se preferível

procurar outro tipo de abordagem. Ou seja, é também pelo quadro de impotência na

medicina convencional face ao tratamento de doenças como as doenças crónicas,

degenerativas e debilitantes que se externalizam estes cuidados de saúde e se admitem

outras vias de tratamento (Clamote, 2006). Defendem os seguidores da macrobiótica

que o que é realmente mais adequado é procurarmos uma alimentação capaz de evitar

muitos problemas. Como se percebe, não há propriamente uma recusa absoluta dos

cuidados de saúde, mas antes um uso selectivo, que evidencia estratégias específicas de

relação com o poder biomédico.

Num quadro como este, facilmente surgem problemas quando necessitam de

recorrer a profissionais ligados às terapêuticas não convencionais e não encontram

127 O Chi-Kung consiste em exercícios e meditação como forma de activar a energia Chi. Apoia-se nos

princípios de yin e de yang.

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enquadramento legal ou qualquer tipo de comparticipação por parte do Estado. Por

exemplo, quando necessitam de faltar ao trabalho por estarem doentes, continuam a ter

que recorrer ao médico para obterem o certificado comprovativo do seu estado, ainda

que frequentemente ignorem as prescrições que lhes são feitas. O facto do grupo

profissional dos médicos deter o monopólio sobre a comprovação legal do estado de

doença é algo que gostariam de ver alterado, pois entendem que “a medicina

convencional” nem sempre é a resposta mais adequada aos seus problemas.

Na macrobiótica, um dos passos fundamentais para que as pessoas se sintam

mais saudáveis tem a ver com mudanças na alimentação. A comida, enquanto forma de

incorporação do ambiente no indivíduo, deve ser seleccionada de forma criteriosa, para

permitir níveis energéticos mais adequados, dado que uma alimentação deficiente,

excessiva ou desequilibrada origina doenças. Na perspectiva da macrobiótica, a

“alimentação moderna” e o “uso indiscriminado e exagerado que se faz de fármacos”

são vistos como razões que ajudam a explicar o “declínio geral das funções imunitárias

naturais”. A alimentação deve ser adaptada, tal como já foi referido, ao contexto

geográfico, ao clima, estações do ano e às necessidades específicas individuais. Deve

ainda dirigir-se, maioritariamente, para os cereais integrais e outros vegetais128

.

A alimentação é vista também como sendo responsável pelos estados

emocionais, de tal forma que “afecta o modo de pensar”.

Os alimentos ingeridos são processados pelo organismo de forma a produzir o

sangue, que alimenta os diversos tecidos do corpo, e o cérebro é também,

evidentemente, alimentado pelo sangue, dependendo assim o seu desempenho e

até a qualidade das nossas ideias do tipo de alimentos ingeridos [Formador na

área da macrobiótica]

Salienta-se ainda nas sessões de formação que muito embora os efeitos da transferência

da alimentação para o corpo sejam em alguns casos muito subtis, esses efeitos ocorrem

sempre. Alimentos mais yang produziriam uma energia mais yang (rápida,

concentrada…) e alimentos mais yin produziriam uma energia mais yin (suave,

expansiva…). Neste contexto, defendeu o formador:

128 Como referi, a pirâmide com a dieta alimentar padrão, proposta por Kushi (cf. Varatojo e Romão,

2005b:24) para um clima temperado, inclui diariamente, 40 a 60%, em peso, de cereais integrais; 20 a

30%, em peso, de vegetais (inclui pickles), 5 a 10%, em peso, de leguminosas e derivados, bem como de

algas (devem ser usadas em pequenas quantidades); temperos e condimentos, bem como óleo vegetal.

Semanalmente, e de forma ocasional, podem ser utilizados frutos, sementes, oleaginosas, adoçantes

(nunca açúcar refinado) e peixe. Mensalmente, opcionalmente, ou numa fase de transição de tipo de

alimentação, é admitido, ainda que não incentivado, o consumo de lacticínios, ovos e carne.

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Quando as pessoas querem ficar mais concentradas devem comer mais yang,

usar mais miso e arroz integral. Se quiserem ficar mais yin, devem consumir

mais vegetais aéreos e menos raízes. Devem evitar consumir fritos, porque os

fritos, pelo seu tipo de energia, provocam dispersão mental.

Por este tipo de concepções se pode perceber um aspecto fundamental desta proposta de

orientação no mundo, que tem a ver com a compreensão dos alimentos como sendo

fundamentalmente energia, melhor dizendo, uma forma de transformação da energia

disponível no universo (energia ki). Cada alimento tem as suas características próprias

do ponto de vista energético, características que são transferidas para o corpo quando o

alimento é incorporado. Na relação com o mundo e com os outros, cada um libertaria

esse tipo de energia, uma energia que na macrobiótica tem um peso considerável na

compreensão das formas de acção.

É neste quadro que se divulgam as linhas principais para avaliar sobre uma

“condição equilibrada” e que foram definidas por Ohsawa (1976) como as sete

condições da saúde e da felicidade. São elas:1) a ausência de fadiga; 2) bom apetite; 3)

sono profundo; 4) boa memória; 5) bom humor e mente calma, vendo as dificuldades

como desafios; 6) rapidez e dinamismo de raciocínio e de execução; 7) sentido de

justiça. A esta última condição, Ohsawa juntaria, mais tarde, a importância da

honestidade e integridade129. A gratidão pela vida permeia cada uma destas condições.

Verificamos assim que o entendimento sobre o que é um corpo equilibrado ou saudável

procura ir de encontro ao paradigma holístico que defendem, na medida em que procura

integrar na concepção de saúde critérios abrangentes e relativos ao indivíduo enquanto

todo. Aspectos físicos e avaliações de carácter moralista são assinalados como devendo

pesar na análise sobre o modo como as pessoas se encontram. Alguns dos factores mais

relevantes para garantir a saúde passariam, sublinho uma vez mais, pela alimentação e

estilo de vida, pela actividade física, por uma vida emocional e social equilibrada e pela

auto-reflexão. Este último aspecto é bastante significativo, porque se encontra associado

à ideia de responsabilidade individual. Na macrobiótica é frequentemente reiterada a

ideia de que a doença e a saúde são da responsabilidade de cada indivíduo.

Independentemente do contexto em que viva, do sistema social em que esteja integrado,

o indivíduo é perspectivado como sendo o responsável pelo que lhe sucede. Esta

perspectiva, na medida em que isenta os sistemas sociais de responsabilidades, pode,

129 Dados recolhidos em cursos de formação sobre macrobiótica.

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naturalmente, favorecer uma abordagem neoliberal dos serviços públicos de saúde. Mais

adiante retomarei esta questão.

Se os sinais referidos acima servem para avaliar sobre o estado de saúde, outros

podem ser classificados como sintoma de doença e ser apresentados como sequência

comum em situações de enfermidade. Um dos primeiros sintomas apontado é o cansaço

e falta de vitalidade, que afectaria numa primeira fase os intestinos, que ficariam

sobrecarregados, a que se seguiriam os rins, numa fase em que o cansaço se teria

tornado crónico. Um segundo sintoma seriam as dores e falta de flexibilidade, que

revelariam localização de toxinas nas zonas articulares. Neste caso, seriam o fígado e a

vesícula que evidenciariam dificuldades de eliminação. Um terceiro sintoma, revelador

de uma situação mais grave, seria a toxicidade do sangue, frequentemente associada a

problemas de pele (eliminações através da pele). O quarto, corresponderia a tensão e a

libertação emocional. O quinto sinal de doença corresponderia já a desordens

degenerativas e incapacidade do corpo fazer ajustamentos. O sexto nível teria a ver com

a degeneração do sistema nervoso e o sétimo com arrogância e isolamento. Este último

aspecto remete, assim, para a questão da atitude, domínio que é considerado

fundamental no processo de cura. Quando se chega à “arrogância e ao isolamento” isso

significa que a doença não foi uma oportunidade de desenvolvimento pessoal.

Um dos factores que é realçado na macrobiótica como condição de saúde, tem a

ver com o modo como o nosso corpo elimina. Se houver boa eliminação (intestinos que

funcionam bem, ausência de retenção de líquidos, etc.) não se entrará nos três últimos

estádios referidos anteriormente. De acordo com esta perspectiva, as mulheres teriam

uma esperança de vida maior porque eliminavam mais que os homens (a menstruação e

até o facto de “falarem mais que os homens” são apontados como exemplo dessa maior

capacidade de eliminação). Algumas doenças são mesmo vistas como formas

patológicas de eliminação e ajustamento. Diabetes, hipertensão e colesterol elevado,

seriam vistos como manifestações resultantes de dificuldades de eliminação e, numa

primeira fase, poderiam ser classificadas como “doenças de ajustamento”. O sarampo é

também visto como forma de eliminação, “eliminação do yang acumulado durante a

gravidez”! Por esta razão, a vacinação das crianças contra esta doença traduzir-se-ia na

afectação dos processos de eliminação e na fragilização do sistema imunitário. Acredita-

se mesmo que a “medicina moderna” bloqueia os processos de eliminação que estão

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ligados às doenças, pois impede que estas se manifestem, contribuindo, dessa forma,

para a referida fragilização do sistema imunitário130

.

Numa das sessões de formação que frequentei, defendeu o formador que as

formas de tratamento deviam ser naturais, pois, de acordo com Hipócrates, “todas as

doenças tinham causas naturais e, por tal razão, a cura também devia ser natural”. O

pressuposto de que se parte é o de que o ser humano, enquanto elemento do mundo

natural, participaria de uma certa ordem e tendência para o equilíbrio, sendo toda a

intervenção médica uma tentativa de restaurar o equilíbrio alterado. Esta concepção

adequa-se à ideia grega de natureza onde o todo é concebido “como uma ordem em que

os processos naturais se repetem e decorrem dentro de ciclos fixos (…) a natureza é

algo que se mantém a si mesma e por si mesma nos seus próprios carris” (Gadamer,

1993: 43), tal como acontece na concepção da natureza associada à teoria das cinco

transformações, e na macrobiótica em geral, a natureza é uma entidade harmoniosa com

a qual os humanos devem estar em consonância, devendo seguir os seus ritmos fixos.

Aprender a observá-los e interpretá-los, procurando uma adequação aos mesmos,

constitui, já por si, um factor de saúde. Associando a macrobiótica a outras propostas no

âmbito da naturopatia, e procedendo-se como se os conselhos a dar tivessem igualmente

relevo na macrobiótica, procurou-se criar a ideia de uma raiz comum nestas formas de

tratamento - concepção que é, de resto, também sugerida por Needham (1996) -, que

permitiria que certos conselhos fossem adoptados por todos e que se misturassem

conhecimentos relativos a diferentes formas de abordagem do corpo. Partindo desta

ideia, o formador referiu aquilo que considerava serem os “pilares da saúde natural” e

que deveriam acompanhar qualquer conselheiro no âmbito da macrobiótica.

Um dos primeiros aspectos referidos recomendava que se prestasse atenção ao

hara (centro físico situado na zona abdominal, imediatamente abaixo do umbigo), pois

era aí que se encontrava a força vital. Uma zona muito tensa ou muito frouxa poderia

denunciar uma condição mais yang ou mais yin. Em segundo lugar, deveria promover-

se um “certo higienismo”. Na medida em que as doenças são consideradas geralmente

como externas, factores como a alimentação, o sítio onde se vive, a casa que se habita, o

exercício físico, a cama onde se dorme, ou o tipo de roupas que se usa, devem ser

130 Num outro trabalho, desenvolvido no âmbito do projecto “A vacinação. Sociedade e administração do

corpo: abordagens antropológicas” PTDC/HAH/71637/2006, coordenado por Manuela Ivone Cunha,

analiso a questão da vacinação entre os que seguem a macrobiótica, procurando aí evidenciar como as

concepções sobre a saúde e doença podem conduzir à recusa da vacinação (Calado, 2011).

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considerados factores relevantes. Em terceiro lugar, devia-se ter em conta que “a doença

é geral e não local”:

Nunca afecta somente um órgão ou uma parte do corpo, mas deve ser

relacionada com o todo que é o corpo (se uma borbulha aparece no rosto, deve-

se prestar atenção ao meridiano ou órgão que está representado nessa parte do

rosto 131

)”. [Formador na área da naturologia]

Em quarto lugar deveria ver-se qualquer doença como sendo sempre “uma manifestação

de auto-cura” e forma de “controlo dos danos”. “Quando o corpo canaliza para um

determinado lugar um certo número de toxinas, está a impedir que estas causem maiores

danos”. Em quinto lugar, e tal como já referi, a doença deveria ser considerada como

forma de autoconhecimento, “devemos aproveitar cada percalço para nos conhecermos

melhor”. Em sexto lugar foi apontada a importância de “prestar atenção aos principais

canais de eliminação (rins, intestinos, pele e pulmões)”. Em reforço desta ideia apontou-

se o facto de em várias escolas de saúde, de diferentes contextos, se começar sempre

pelos intestinos para observar a condição da pessoa.

É justamente nesse sentido que se expressa Ellen Salkeld (2005), ao desenvolver

análise etnográfica numa clínica de “medicina holística” nos EUA sobre a noção de

risco nos discursos de médicos que aí exerciam132

. Ora, para que os intestinos

funcionassem bem era essencial o consumo diário de fibras, sendo ainda conveniente o

uso de produtos fermentados como o miso, shoyu, pickles caseiros, etc. Os rins,

enquanto órgãos de filtragem, são vistos também como importantes canais de

eliminação. A pele e os pulmões, enquanto órgãos de respiração, consideram-se

intimamente ligados. Dada esta ligação, quando se combatem problemas de pele através

do uso de cortisona, em lugar de se permitir que “o lixo absorvido” venha para o

exterior através da pele, estaria a promover-se a sua acumulação nos pulmões. Em

sétimo e último lugar, foi destacada a importância da boa disposição e optimismo na

resolução dos problemas. Como vemos, misturam-se aqui, uma vez mais, aspectos

fisiológicos com outros que têm a ver com questões ambientais, comportamentais e com

131 Remete-se aqui para o diagnóstico visual, tema ensinado nos cursos de formação. O rosto é uma parte

do corpo a partir da qual podem ser observados os principais órgãos do corpo humano. 132 Uma das pacientes que entrevistara relatara-lhe que o médico lhe teria dito que apesar de o sistema

imunitário dizer respeito a todo o corpo, 65% dessa imunidade residiria no intestino. Uma alimentação

inadequada sobrecarregaria as glândulas supra-renais e levaria a uma diminuição da actividade da tiróide.

Quando tal acontecia o fígado começava a libertar toxinas para o corpo em vez de promover a sua

excreção (cf. Salkeld, 2005: 326).

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Sistemas terapêuticos em confronto

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atitudes. Este cruzamento, caracteriza algumas das abordagens naturalistas, mas dá

conteúdo também à macrobiótica.

A origem da maior parte das doenças é vista na macrobiótica como estando

relacionada com um sistema imunitário fraco. Afirma-se que quando as defesas do

ponto de vista imunitário são fortes, as bactérias e vírus não têm oportunidade de causar

danos, já que não encontram um ambiente adequado para se desenvolver133

. Assim, a

atenção não deve dirigir-se para agentes patogénicos e forma de os debelar, mas mais

para o corpo e para o reforço do seu sistema imunitário. Este posicionamento, não é, de

forma alguma, uma novidade na abordagem das questões de saúde, é apenas mais uma

evidência de que como a noção de sistema imunitário tem invadido as teorias sobre as

doenças. Emily Martin (2000) refere a este propósito que a arena da saúde se encontra

saturada de referências ao sistema imunitário e que este conceito adquiriu hoje uma

importante centralidade nos debates sobre saúde e doença (cf. Martin, 2000: 125).

A abordagem da macrobiótica a doenças como o cancro expressa, justamente, a

importância do sistema imunitário e da alimentação. Só quando as células encarregues

de eliminar aquelas que se tornaram cancerígenas não se “encontram em boa forma” é

que “as outras podem avançar”. Esta debilidade teria a ver, sobretudo, com alimentação

e estilo de vida. De acordo com o que me foi referido, a genética apenas ajudaria a

explicar uma pequena percentagem de cancros.

Quando numa mesma família aparece ao longo de várias gerações o mesmo tipo

de doença, tal tem mais a ver com o padrão de alimentação que é mantido de

geração para geração do que com razões de carácter genético. [Formador na

área da macrobiótica]

Nesta óptica, um determinado padrão de alimentação levaria a acumulações nocivas, o

que significa dizer, uma vez mais, que o cancro surge como resultado de uma

dificuldade de eliminação.

Numa das sequências que me foi apresentada como conduzindo à formação de

tumores, pode observar-se a seguinte evolução: quando o corpo está em equilíbrio (1ª

fase) há uma eliminação normal; numa 2ª fase começa a observar-se uma eliminação

133 Alguns dos seguidores da macrobiótica, sobretudo formadores, referem que Pasteur, com a sua luta

anti bacteriológica, é exemplo dos “maus caminhos da ciência”, enquanto Claude Bernard, pela atenção

que deu ao «meio interno», ao conjunto físico-químico que banha todos os tecidos do corpo, é visto como

cientista notável a quem não foi dada a visibilidade merecida.

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anormal; numa 3ª fase começa a haver eliminação crónica através da pele134

; numa 4ª

fase ocorre acumulação, podendo observar-se gordura em torno de órgãos vitais; numa

5ª fase dá-se o armazenamento; na 6ª fase começa a haver degeneração do sangue e da

linfa e, por fim, na 7ª fase, surgem os tumores. De acordo com o que me foi relatado “a

maioria das pessoas tem uma condição pré-cancerosa”. Torna-se necessário, por isso,

dedicar atenção à alimentação, pois os tumores desenvolver-se-iam sempre num

ambiente de grande acidez e, à partida, tudo o que alcalinizasse mais o sangue

combateria o cancro.135

Outros factores são também referidos como catalisadores do cancro,

designadamente factores ambientais (poluição, radiação, stress) e emocionais, mas

também a utilização de medicamentos e produtos químicos presentes na alimentação136

.

Um tipo de cancro que derivaria, de forma clara, do uso de produtos químicos é o

cancro da bexiga. Um outro exemplo seria o do cancro do pulmão, que surge associado

ao consumo excessivo de carne, conjugado com álcool. A causa principal do cancro do

cólon, por seu turno, seria o consumo de carnes vermelhas.

De acordo com os princípios de yin e de yang, alguns destes cancros são

classificados como yin, outros como yang, outros ainda como sendo simultaneamente

yin e yang. Este tipo de classificação depende da localização do tumor no corpo

(superior/exterior - yin – inferior/interior – yang); tipo de órgão afectado e rapidez de

desenvolvimento. É ainda de acordo com esta classificação que devem ser definidas as

respostas para combater a doença. De uma forma geral, deve-se reduzir o consumo de

gorduras, açúcares e em alguns casos eliminar os óleos. Diversos formadores referiram

ter-se constatado que em indivíduos que tinham cancro, a eliminação de gorduras e

134 A pele não deve estar seca, se o estiver não permite a eliminação. A causa de uma pele seca teria a ver

com o facto de os poros estarem “entupidos com gordura”. A manteiga, o queijo e as natas seriam

exemplos de alimentos responsáveis por esta situação e o uso de cremes ainda ajudaria mais a “entupir os

poros”. A resposta dada para superar este tipo de problemas passa pela restrição relativamente ao

consumo desses alimentos, sendo ainda recomendado que se esfregue a pele com uma toalha quente e

húmida, de forma a abrir os poros e estimular a circulação. Este conselho foi seguido com tanto fervor por

uma senhora que tinha sido aconselhada a este tratamento no âmbito de uma consulta de orientação

alimentar, que a sua pele ficou “em carne viva” de tanto se esfregar. 135 Na macrobiótica defende-se que o sangue deve ser tendencialmente alcalino, devendo haver uma relação adequada entre sódio e potássio, tal como defendido por um dos precursores da macrobiótica,

Sagen Ishizuka (ver capítulo 2). Uma condição ácida, gerada por alimentos provocadores deste efeito

(carne, açúcar…), constituiria um ambiente propício ao desenvolvimento de doenças. As células

cancerosas são também referidas como consumindo muito açúcar, razão pela qual pessoas que fossem

afectadas por tal doença deveriam suprimir os açúcares simples. 136 Para cada tipo de doença existiria um padrão emocional próprio. Assim, no caso específico do cancro

da mama, o padrão seria “tomar conta dos outros e não tomar conta de si”. A mama, por estar associada à

nutrição, estaria ligada a entrega, surgindo a doença como indício de entrega excessiva.

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Sistemas terapêuticos em confronto

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abaixamento de peso conduziram a uma regressão dos tumores. Julga- se que quando se

diminui significativamente a quantidade de alimentos, as células cancerígenas têm

menos possibilidade de se desenvolver. Este modelo de classificação permite que a cada

tipo de cancro seja recomendada uma dieta específica. Por outro lado, para além dos

cuidados com a alimentação, os indivíduos doentes devem procurar tomar conta de si e

rever situações ligadas ao trabalho e às emoções.

Relativamente a situações de cancro, realça-se que no caso de as pessoas estarem

a fazer tratamentos de quimioterapia/radioterapia ou outros, se procurarem conjugar

uma alimentação adequada com esses tratamentos, os efeitos secundários não serão tão

indesejáveis. A quimioterapia é vista como alterando significativamente a flora

intestinal e como diminuindo o número de glóbulos brancos. Nestes casos poderia ser

recomendada uma maior frescura nos alimentos consumidos, bem como tofu frito, que

“ajudaria a subir os glóbulos brancos”. Já quem tenha cancro dos ossos deverá ter o

cuidado de não se esquecer de consumir um pouco de óleo com vegetais, para ajudar a

fixar os minerais. O caldo de vegetais doces é considerado particularmente

recomendado para situações de quimioterapia e sempre que seja necessário equilibrar os

níveis de açúcar no sangue137

.

Para que melhor se aceda às concepções sobre a saúde/doença e tipo de respostas

encontradas, vale a pena procurar ilustrar essas concepções através de mais um

exemplo, neste caso a abordagem que na macrobiótica se faz da hipoglicemia. Para

além da enorme expressão demográfica que lhe é atribuída - calcula-se que este

problema afecte cerca de 2/3 da população ocidental – a hipoglicemia é relevante pela

seguinte razão “quando os níveis de açúcar baixam, as funções cerebrais tendem a ser

básicas” (Varatojo e Romão, 2006: 19). Os sintomas de hipoglicemia são numerosos:

sonolência, irritabilidade, instabilidade emocional, ansiedade intensa, sono após as

refeições, bocejos, dificuldade de concentração, fome - “pessoas que passam o dia a

depenicar”, “que não conseguem fazer nada pela manhã sem tomar o pequeno-almoço”

- entre outros sintomas. Uma das formas de avaliar esta condição seria observar o tempo

que as pessoas conseguem passar sem ingerir alimentos. Se conseguirem passar muito

tempo sem comer e ainda assim se sentirem com energia e boa disposição, isso é visto

137 O caldo de vegetais doces, um dos remédios caseiros mais recomendados na macrobiótica, terá sido

inventado por Kushi para combater sobretudo a hipoglicemia (níveis crónicos baixos de açúcar no

sangue). Prepara-se cozendo quantidades idênticas de vegetais doces (cebolas, cenouras, couve lombarda

e abóbora) no triplo do volume de água. Após uma cocção de 20m, côa-se o preparado e bebe-se uma

chávena quente ou morna. A frequência com que se bebe este caldo deve depender do estado em que se

encontra a pessoa (ver Varatojo e Romão, 2006: 19-20).

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270

como sinal de que não são hipoglicémicos. Na macrobiótica, esta condição tem um

estatuto intrigante, ela não apenas afectaria a maior parte da população ocidental, como

seria uma das principais causas de divórcio, segundo defendeu Kushi. A culpa ficaria a

dever-se à instabilidade emocional e irritabilidade que a hipoglicemia provoca138

. Um

factor que ajuda a explicar por que razão muitos dos pacientes não têm uma noção clara

do problema teria a ver com a prática frequente de efectuar análises ao sangue em

jejum, ou seja, numa altura em que a energia seria ascendente e os níveis de açúcar se

encontrariam mais altos – deveria ter-se presente que, após o repouso, a energia subiria.

*

Uma questão que não pode deixar de ser colocada relativamente a estes

entendimentos, tem a ver com os fundamentos e processos de legitimação em que se

apoiam. Dizem-me decorrer de muitos anos de observação e também de estudos

científicos que apoiam estas concepções. Constato que, por uma questão de eficácia

discursiva e de legitimação de uma prática de cura, é feito uso de estudos científicos que

apoiam estas posições. Michio Kushi parece ter constatado, desde muito cedo, a

importância dos estudos científicos como forma de legitimação da macrobiótica fora do

círculo estrito dos seguidores deste tipo de orientação. Numa das suas obras mais

conhecidas - The Book of Macrobiotics (1989) -, procura dar conta, justamente, dos

estudos científicos efectuados que evidenciariam os benefícios da adopção da

macrobiótica, importando aqui dizer que não dá igual destaque àqueles que apontaram

as deficiências, do ponto de vista nutritivo, na adopção desta dieta (ver capítulo 2). Em

contexto de formação, ainda que não seja afirmado, de forma explícita, que o

reconhecimento e legitimação externos da macrobiótica - quer enquanto sistema

alimentar quer enquanto sistema terapêutico – dependem da legitimação de carácter

científico, pressente-se que a recorrência a esse discurso e o seu uso selectivo concorre

para esse efeito que é de busca de legitimação.

A macrobiótica revela-se bem em sintonia com a ambiguidade e com o carácter

interceptivo que caracterizam muitos dos fenómenos e movimentos da

contemporaneidade. Não dispensa o conhecimento científico, mas mantém com ele uma

relação tensa, que incorpora processos de legitimação e de crítica. Se por um lado, se

138 Conferência proferida em Lisboa em 2002.

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Sistemas terapêuticos em confronto

271

afasta de uma experiência do mundo suportada por argumentos racionais e científicos,

questionando-os e descredibilizando-os com regularidade, por outro, faz uso dos

trabalhos científicos que corroboram as posições defendidas na macrobiótica,

encontrando em tais argumentos razões de legitimação. Mais que isso, adopta por vezes

uma linguagem mais técnica e conforme à actividade científica, procurando, através deste

procedimento, tornar a proposta macrobiótica numa proposta mais rigorosa e credível. Na

verdade, este tipo de linguagem parece produzir entre os mais escolarizados um certo

efeito de familiaridade e reconhecimento, levando-nos a pensar que desta forma aderem

com mais facilidade às mensagens apresentadas.

Nesta paradoxal articulação entre uma vertente que procura sustentar-se em

argumentos científicos e racionais e outra mais de ordem espiritual, afinal de contas entre

ciência e ideologia (aspectos assumidamente inconciliáveis no discurso da modernidade),

observa-se todo um uso da tradição e trabalho de recomposição da mesma. Resulta daqui

uma proposta de orientação no mundo passível de maior aceitação, sobretudo de uma

proposta capaz de produzir sentido e gerar adesão junto de indivíduos urbanos e

escolarizados. Constata-se, neste cenário, que a legitimação da macrobiótica parece

implicar um trabalho de conciliação/articulação entre ciência e ideologia, como condição

necessária para legitimar a visão do mundo apresentada.

Numa sessão de formação sobre alimentação macrobiótica, podemos facilmente

passar de uma caracterização dos alimentos em termos de qualidade energética, quer

dizer, em termos de yin e de yang, para uma apresentação de gráficos com dados

obtidos a partir do The Nurses Health Study 1980-1992139

ou o The Honolulu Heart

Health Program 1965-1986140

; da energia ki para revistas científicas, como o American

Journal of epidemiology ou o Archives of Internal Medicine. O consumo de leite, não

recomendado na macrobiótica, como sabemos, costuma ser um dos pretextos para a

apresentação de dados científicos que poem em causa alguns dos benefícios

habitualmente atribuídos ao leite. Um estudo apresentado numa dessas sessões,

Feskanich et al (1997), no American Journal of Public Health, dava-nos, justamente a

indicação, através do The Nurses Health Study 1989-1992, de que um consumo elevado

de leite e de cálcio não produzia qualquer efeito em termos de protecção contra fracturas

ósseas; outros dados, a partir do Iowa Women’s health Study 1986-1995 (Kushi et al.,

139 Estudo de grande alcance que foi estabelecido em 1976 por Frank Speizer e em 1989 por Walter

Willett. Resulta de questionários aplicados a mais de 100.000 enfermeiras de diferentes estados dos EUA.

Sublinha-se que se trata de um estudo em que são considerados 12 anos na apresentação dos resultados 140 Trata-se igualmente de um estudo que envolve milhares de americanos.

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«À Mesa com o Universo»

272

1999), foram apresentados como evidenciando um aumento de risco de cancro no

ovário associado ao aumento do consumo de leite e ovos.

*

De acordo com os princípios defendidos na macrobiótica, a forma como a

energia se movimenta ao longo do dia é um aspecto a ter em atenção quando se quer

cuidar do corpo. Os fluxos energéticos teriam a ver com a teoria das cinco

transformações (teoria dos cinco elementos), desenvolvida na China, depois no Japão, e

mais tarde trabalhada na macrobiótica, sobretudo por Kushi. A ideia subjacente a esta

teoria é a de que ao longo do dia e ao longo do ano podemos observar diferentes formas

de energia, mais contractivas ou mais expansivas, mais yin ou mais yang. Nesta

mudança existiria uma ordem (tal como na concepção grega de natureza) que era

necessário entender. As diferentes estações do ano e os diferentes períodos do dia

revelariam qualidades energéticas extremamente relevantes no cuidado de certos órgãos.

Assim, e de forma muito simplificada, a Primavera revelaria uma energia ascendente,

em expansão, energia árvore, a que estariam ligados órgãos como o fígado e a vesícula

biliar. O Verão representaria uma energia mais activa, dispersa, no seu momento de

maior expansão, a energia fogo, associada ao coração e intestino delgado. O fim do

Verão corresponderia a uma energia descendente, de condensação, energia solo,

associada ao estômago, baço e pâncreas. O Outono corresponderia a uma energia de

reunião, à solidificação, à energia metal e estaria sobretudo ligada aos pulmões e

intestino grosso. Por fim, no Inverno, o elemento predominante seria a água, a energia

seria flutuante e os órgãos associados são os rins e a bexiga. Cada período do ano

activaria de forma particular os órgãos que lhe estão associados, devendo ser dirigida

para eles uma atenção particular. Ao longo do dia podem também observar-se períodos

em que certos órgãos estariam mais activos. Assim, pela manhã, a energia seria

ascendente, energia árvore, como referi. Ao meio-dia estaria no seu momento de maior

actividade e expansão (energia fogo). No final da tarde seria uma energia descendente,

estabilizante (energia solo). No fim do dia seria já uma energia contractiva, densa

(energia metal). Pela noite, a energia iniciaria o movimento de expansão, sendo nessa

altura uma energia flutuante (energia água). Da mesma forma que era possível observar

estes ciclos energéticos no decurso do dia e do ano, era também possível trabalhar com

a energia específica dos alimentos, uma energia que adviria da sua afinidade com as

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Sistemas terapêuticos em confronto

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estações do ano e com os cinco elementos, e que poderia ser direccionada para trabalhar

os órgãos do corpo humano. Os alimentos são assim pensados não apenas a partir das

suas qualidades nutritivas mas também a partir das suas características energéticas,

aspecto que, neste caso, nada tem a ver com calorias 141

.

Voltando ao caso da hipoglicemia, ela é apresentada como devendo ser tratada

sobretudo à tarde, altura em que a energia solo, relacionada com o baço e pâncreas,

estaria mais activa. A hipoglicemia é encarada como envolvendo essencialmente o

pâncreas (que segrega insulina e anti-insulina) e o fígado (que acumula açúcar sob a

forma de glicogénio e que o envia para o organismo quando necessário). As causas mais

profundas da hipoglicemia são vistas como derivando do consumo de alimentos como o

frango, os ovos, atum e alimentos fumados. As causas são yang e estes alimentos

provocam uma grande contracção do pâncreas. Já as causas secundárias teriam a ver

com o consumo de açúcar, chocolates, café, álcool, batatas e alimentos refinados.

Segue-se a estes considerandos um conjunto de recomendações para tratar a

hipoglicemia, que passam por evitar os alimentos que a provocam e por fazer refeições

a horas regulares, com cereais integrais e vegetais a todas as refeições. Os alimentos

devem ser soltos e os vegetais levemente cozinhados, de forma a descontrair o pâncreas.

É recomendado o consumo de caldo de vegetais doces, sendo os banhos quentes e as

massagens vistos como ajudando no processo de descontracção, tendo igual relevo uma

atitude perante a vida mais descontraída (emoções ligadas ao território e à

competitividade são associadas à hipoglicemia). Por tudo isto, podemos constatar que o

leque de respostas é amplo. Dirige-se prioritariamente para a alimentação, mas abarca

outros aspectos, procurando encontrar soluções que combinem uma dimensão física,

emocional e espiritual. Em última instância, e uma vez mais, será sempre o indivíduo,

com a sua subjectividade, comportamento e atitude, o responsável pelo estado em que

se encontra.

Distúrbios comuns, como constipações, gripes, estados febris, são tratados na

macrobiótica através de uma prática alimentar comum, como a alimentação

macrobiótica padrão, e ainda com recurso a tratamentos caseiros. A lista dos

tratamentos inclui pratos medicinais, infusões, compressas, banhos, etc142

. O que

141 A descrição da teoria das cinco transformações encontra-se na verdade muito simplificada. Muitos

aspectos são aqui omitidos, por não serem tomados como indispensáveis para compreender o tipo de

concepções inerentes à saúde e doença. 142 Mais informação sobre este assunto pode ser vista no livro Remédios Caseiros de Francisco Varatojo e

Pedro Romão (2006)

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274

interessa aqui realçar não é a composição nem a forma específica de cada um destes

tratamentos, mas mais o modo como eles procuram ser uma resposta estruturada a

problemas comuns. Uma resposta através da qual se procura demonstrar que a utilização

de fármacos para este tipo de desequilíbrios é totalmente desnecessária e até

contraproducente “já que, por um lado vai criar obstáculos à regeneração do organismo

e, por outro, expor todo o ambiente sanguíneo e celular a uma série de produtos

químicos raramente destituídos de efeitos colaterais” (Varatojo e Romão, 2006:5). O

que deriva daqui, defendem, é que há uma espécie de camuflagem da doença, cujos

efeitos serão graves, porque não se permitiu ao organismo o desencadeamento de todos

os processos para a resolução do problema, facto a que se atribui notória gravidade.

Consideram ainda os autores que este tipo de abordagem não se limita à medicina

alopática, podendo observar-se noutras “medicinas não convencionais”. Verificamos

assim, uma vez mais, a procura de distanciamento face a outras práticas, acompanhado

da afirmação de um conjunto de técnicas específicas, com uso de produtos bastante

particulares, muitos deles de origem oriental como o shoyu,ameixa umeboshi, tekka, raiz

de lótus, etc.

Muitos outros aspectos poderiam ser aqui referidos para ilustrar formas de

tratamento e concepções sobre a saúde e a doença, mas esse seria, pelo menos nesta

ocasião, um exercício exaustivo e desnecessário. O que pode ser salientado, numa

primeira síntese, relativamente a concepções sobre a saúde, doença e tipos de respostas

encontradas, é que a natureza e a observação dos seus ritmos, constituem, pelo menos

do ponto de vista discursivo, dimensões de importância maior no universo de

significados que caracterizam a macrobiótica. A relevância de conceitos como energia

ou equilíbrio/desequilíbrio para falar de saúde e doença; a visão holística do corpo; a

espiritualidade-religiosidade que impregna as atitudes e posições (muito embora

defendam o non credo e adoptem a máxima “sê o teu próprio mestre”); a enfatização na

questão da responsabilidade individual, das mudanças a efectuar no quotidiano e a

procura de uma identidade específica através da enunciação de critérios de alteridade

relativos a outras práticas, como as que se ligam à biomedicina, são, efectivamente,

pontos essenciais para compreendermos o conjunto de concepções que caracteriza a

macrobiótica.

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Sistemas terapêuticos em confronto

275

5.1 3 Traçar fronteiras, persuadir, direccionar, consciencializar

As sessões de formação na área da macrobiótica visam, naturalmente, como

outras áreas e outras propostas, apresentar uma perspectiva credível de abordagem do

universo, do ser humano e da realidade social mais imediata. Nesta medida, verifica-se,

inevitavelmente, um esforço de promoção e divulgação de um modo de ver o mundo

que procura ser convincente e produzir efeitos junto de potenciais seguidores. Um certo

proselitismo ou, pelo menos, intenção de “criar consciência” pode assim ser associado

às sessões de divulgação. Isto não significa que aqueles que se dedicam a estas

actividades procurem de forma persuasiva ludibriar os que os ouvem. Não me parece ser

esse o caso. Muitas das pessoas que ouvi pareciam seguir e acreditar genuinamente no

conjunto de concepções que defendem. Revelavam preocupações de ordem social que

os levava a divulgar as concepções que entendiam ser significativas e que podiam levar

a uma “transformação da humanidade”, mas também evidenciavam o empenho de quem

transformara a macrobiótica num modo de vida. O que interessa aqui destacar, porém, é

que nesse desejo de difundir uma forma particular de entender o mundo, é seguida uma

estratégia discursiva onde são recorrentes certos temas, produzindo-se uma retórica que

procura produzir os efeitos atrás mencionados. Identificar e analisar essas estratégias

discursivas ajuda-nos a situar o modo como se constrói uma argumentação e,

simultaneamente, esclarece-nos sobre o modo como é marcada a diferença face a outras

propostas. Pelo que fui enunciando, foi já possível destacar elementos de diferenciação

entre as concepções sobre a saúde e a doença na macrobiótica e na medicina

convencional. Vejamos agora que estratégias específicas são utilizadas para reforçar a

proposta apresentada e conduzir à sua adesão.

Um dos recursos discursivos fundamentais utilizados consiste em dramatizar a

actual situação em termos de saúde da população em geral. O cenário apresentado é

sombrio e procura-se descrever uma sociedade pouco autónoma, excessivamente

medicalizada e que perdeu consciência relativamente à responsabilidade que tem na

situação que ela própria criou. O modo de vida ocidental é visto como estando a gerar

verdadeiras epidemias, como a obesidade, hipertensão, diabetes, entre outros, devendo-

se tal situação a uma alimentação de má qualidade e a um modo de vida que se afastaria

cada vez mais dos ritmos e equilíbrios naturais.

Um exemplo do modo como se procura lançar o alarme sobre a actualidade,

pode ser evidenciado através da forma como se iniciou uma das sessões de formação

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«À Mesa com o Universo»

276

que frequentei. O mote para a apresentação da aula era dado por um texto atribuído a

Collin Campbell (2006), professor de bioquímica nutricional na universidade de

Cornell, autor frequentemente referido no IMP e a que já fiz referência no cap. 2. Diz-se

nesse texto:

Estamos a levar a nossa juventude para o caminho da doença em idades cada vez

mais jovens. Um terço das crianças neste país [EUA] tem um excesso de peso ou

está em risco de ter excesso de peso. Os nossos miúdos começam a ser vítimas

de um tipo de diabetes que só afectava adultos e agora as crianças tomam mais

medicamentos que nunca.

Estes problemas têm a ver com três actos diários: pequeno-almoço, almoço e

jantar.

Seguia-se a este texto a apresentação de uma sequência histórica de mapas que revelava

a forma assustadora como a obesidade tem aumentado nos EUA. A sequência era na

verdade preocupante, mas, não pretendendo aqui subestimar o problema, importa notar

a eficácia retórica que alcançava. As imagens traduziam o drama social de uma

população decadente, vítima do fast food e incapaz de adoptar “hábitos alimentares

correctos”. Face a estas imagens, a macrobiótica, enquanto via que privilegia a

alimentação, foi apresentada como resposta adequada. Este exemplo, por entre outros

que poderiam ser dados, evidencia o modo como se utiliza informação objectiva sobre

problemas actuais de saúde, de forma a justificar a opção por outros modos de vida e de

alimentação. Há recurso a dados científicos disponíveis, num uso que por vezes é

meramente instrumental, no sentido de reforçar as opções tomadas na macrobiótica143

.

A referência às “epidemias” dos séculos XX e XXI é, sem dúvida, um bom

ponto de partida para evidenciar os riscos da fraca qualidade da “alimentação moderna”,

uma alimentação “subjugada ao sector agro-industrial e aos seus múltiplos interesses

económicos”. Um sector que estaria mais interessado no processamento de produtos e

na sua venda do que com o bem-estar dos consumidores. O apelo ao consumo regular

de leite, por exemplo, seria estimulado pelas empresas produtoras de leite e até a sua

importância na pirâmide ou roda dos alimentos teria sido objecto de negociação com as

empresas leiteiras. A este propósito, foi referido numa das sessões, que anúncios

recentes em que se “incentivavam os alunos do ensino básico a beber leite para

enfrentarem o matulão da turma ao lado” se deviam apenas a uma diminuição das

vendas de leite, daí a agressividade da campanha. Os alimentos excessivamente

143 É esse o caso da referência a cientistas como Campbell (2006) e Walter Willet (2005).

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Sistemas terapêuticos em confronto

277

processados, distantes dos cereais integrais que tanto defendem, são também alvo de

crítica e uma manifestação do afastamento relativamente a uma forma de alimentação

mais próxima da natureza. O uso de pesticidas na agricultura, o recurso a antibióticos na

criação de animais, a promoção da utilização de organismos geneticamente modificados

(OGMs), os problemas causados por medicalização desadequada ou excessiva, do

mesmo modo que os que surgiriam na sequência da vacinação, são aspectos evocados,

entre outros, para chamar a atenção para os riscos da nossa sociedade e dramatizar,

assim, a situação actual. Uma dramatização que é necessária para iniciarem um processo

a que chamam “consciencialização” – “para as pessoas mudarem é preciso criar

consciência”, defendem.

Salkeld (2005), na pesquisa que desenvolveu numa clínica de medicina holística

nos EUA, destaca, justamente, o modo como é usada a noção de risco na relação do

médico com o paciente para produzir inflexões nos hábitos alimentares. Uma das

principais preocupações dos médicos consistia, justamente, em alertar os pacientes para

os riscos relativos a certas práticas alimentares. Explorando a noção de risco à luz de

autores como Beck (2008 [1986] e Giddens (1992), o que está em causa é evidenciar o

uso que esses médicos faziam de mensagens mediáticas sobre riscos alimentares (vacas

loucas, mercúrio no peixe…) para persuadirem os pacientes a mudarem de alimentação.

Para esses médicos (formados na medicina convencional, mas especializados em

abordagens holísticas) a alimentação e a digestão eram processos essenciais,

responsáveis por uma grande variedade de doenças, razão pela qual se focavam

sobretudo na alimentação e se esforçavam por informar os pacientes sobre a necessidade

de usar produtos de boa qualidade, confeccionados de forma saudável. O uso de

produtos biológicos, a diminuição do consumo de açúcar, carne e produtos lácteos, era

também aí recomendado, o que acaba por ser coincidente com conselhos dados na

macrobiótica e fazer pensar nas relações dinâmicas que se estabelecem entre diferentes

sistemas terapêuticos.

Salkeld, ao referir que a atenção dos media às crises alimentares e aos estudos

que evidenciam correlações entre alimentação e cancro (ou outras doenças), influencia a

percepção sócio-cultural do risco da classe média americana, procura demonstrar que é

partindo dessa compreensão cultural do risco para a saúde que os “médicos holísticos”

incorporam nos seus discursos a relação entre risco, confiança e responsabilidade

individual no alcance da saúde. Explorando a percepção de risco do cidadão comum da

classe média, esses médicos evocariam nos encontros terapêuticos com os pacientes

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«À Mesa com o Universo»

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argumentos inerentes a essa percepção, procurando convence-los a mudar de

comportamento e a combater, por essa via, os efeitos negativos dos riscos ambientais. O

esforço destes clínicos é, de acordo com Salkeld, um verdadeiro esforço de educação e

formação para uma vida quotidiana constantemente marcada pelo risco. Neste contexto,

tal como se defende na macrobiótica, a resposta mais adequada para fazer face a uma

situação de risco seria a acção individual (cf. 2005: 329-330). A alteração individual de

comportamentos e crenças alimentares, resultado de uma educação em que se procura

ver o paciente como agente activo no processo de cura, seria uma forma de responder

aos riscos intrínsecos à vida social. Vale a pena dizer, que a concepção de risco que aqui

se expressa não coincide com a noção epidemiológica desse conceito, segundo o qual as

doenças podiam alastrar de forma descontrolada por toda a população, estando antes

focada na redução do risco como capacidade individual. É através dos aspectos da vida

quotidiana que podem ser alterados e que dependem apenas de decisões individuais e do

sentido de responsabilidade individual, tais como a escolha dos alimentos a ingerir, que

se deve procurar a redução dos riscos.

Muito embora a questão do risco não constitua o tema central desta análise, a

referência a esta dimensão justifica-se, na medida em que ela vai de encontro a uma

retórica de afirmação da macrobiótica face a outras formas de abordagem do corpo. Um

dos aspectos dessa retórica prende-se precisamente, como já salientei, com a

dramatização em torno das questões da saúde e com o risco em que incorremos ao

seguirmos “a alimentação moderna” , “um estilo de vida stressante” e ao “consultarmos

a maior parte dos médicos”. Como se não bastasse um ambiente desregulado, fruto de

uma “acção humana inconsciente”, gerador de riscos difíceis de controlar a partir do

indivíduo, os estilos de vida poderiam contribuir ainda mais para aumentar os riscos e

degradar ainda mais esse ambiente144

. Na perspectiva de muitos dos que seguem a

macrobiótica, a sociedade actual, dominada pela ideologia do progresso e por uma

ciência de matriz tecnológica e materialista, ignoraria que a vida é uma oportunidade de

“criar consciência” e de “desenvolver a espiritualidade”. A ideia de que a civilização

moderna, dominada por essa matriz, está a colocar em perigo a saúde humana e

concomitantemente, o planeta, é frequentemente reiterada. Neste âmbito, do que se trata

144 A ideia de “ambiente desregulado” parece paradoxal. Como agir de acordo com os “ritmos da

natureza”, quando essa natureza parece escapar à ideia de regularidade e de equilíbrio, tal como a

defendiam os gregos e algumas filosofias orientais? A ideia de ausência de regulação surge aqui mais

para alarmar e dramatizar a do que por qualquer outro motivo. Partir do pressuposto da falta de regulação

da natureza seria contrariar os próprios princípios da macrobiótica.

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Sistemas terapêuticos em confronto

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é de alertar, dramatizando se necessário, para o carácter urgente da recuperação dos

valores fundamentais da humanidade, projecto só possível se tiver como ponto de

partida a alimentação145

.

Pelo que acabei de enunciar, verifica-se que a evocação do risco, com vista a

uma consciencialização que leve à mudança de hábitos, vai mais longe do que procurar

apenas uma mera inflexão, traduzindo uma apreciação de carácter ético e moral, através

da qual se veicula e defende um modo de vida e se critica a sociedade actual. Por outro

lado, se o risco tem uma dimensão de construção sócio- cultural e pode ser visto como

lugar a partir do qual se defendem certas propostas ideológicas, pode também ser visto

como forma de monitorização do indivíduo e do seu corpo (cf. Lupton, 2000: 206-207).

É pela noção de risco que os indivíduos vão encontrando relações entre o seu corpo e o

ambiente, desenvolvendo modos de percepção. A noção de risco permite, como refere

Lupton (2000), uma acção disciplinadora e controladora do corpo e obriga à vigilância

do mesmo para impedir julgamentos relativamente a estilos de vida desregrados e nos

quais há falta de auto-disciplina. Essas seriam características individuais que os corpos

obesos, por exemplo, revelariam.

Depois de dado o alarme, a estratégia discursiva que se segue é a interrogação

relativamente à manutenção de um certo estado de coisas: “Por que não alteramos este

modo de estar?”; “Por que insistimos em manter um estilo de vida tão pouco

saudável?”; “A maior parte das pessoas sente-se infeliz com a sua forma de vida, por

que não muda?” Exploradas estas questões, a temática que é desenvolvida a seguir é a

do medo, pois o medo é visto como o principal responsável pela inacção, pela inércia:

As pessoas têm medo de tudo e mais alguma coisa, não dão passos em frente

porque estão sempre a pensar em eventuais perdas e não encaram a

possibilidade de ganhos. As vidas que têm foram eles que as escolheram, são

responsáveis por isso. [Formador na área da macrobiótica].

O medo é ainda identificado com o tipo de alimentação que as pessoas levam e que faz

com que os rins fiquem sobrecarregados. Ora, na macrobiótica, os rins são identificados

145 Tanto Ohsawa como Kushi (autores de referência na macrobiótica, como foi referido) procuram alertar

para a ideia de que a paz no mundo e a reconstrução da humanidade só seria possível a partir de uma

transformação na alimentação. Aliás, nos textos produzidos por estes autores, avulta a ideia (cf. Kushi,

2000:5) de que esta degradação decorre de uma alimentação desequilibrada. A alimentação macrobiótica

surge, assim, como proposta de regeneração da humanidade. Ela é condição indispensável para um corpo

e uma mente sãos, sem eles não é possível o auto-conhecimento e o aperfeiçoamento individual exigidos

para salvar o planeta.

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«À Mesa com o Universo»

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como órgãos que governam precisamente emoções como o medo. As pessoas não

modificariam os seus hábitos básicos, o seu quotidiano com trabalhos pouco

estimulantes, porque sentiriam “medo de não ter todas as comodidades a que estão

habituadas”. E, no entanto, tudo depende delas, já que são consideradas responsáveis

pelas situações que elas próprias criaram.

O tema da responsabilidade individual é o tema que se segue nessa estratégia

discursiva que procura dar sentido à macrobiótica enquanto proposta a adoptar. A

doença e “aquilo que fazemos com a nossa vida é da nossa inteira responsabilidade,

“nós somos capazes de mudar a nossa vida”, são frases que podem ser ouvidas com

regularidade e que procuram transmitir confiança às pessoas para que iniciem as

mudanças que consideram fundamentais. Trata-se, de alguma forma, de procurar levar

as pessoas a acreditar que têm poder de decisão e que podem ser mais autónomas. Ao

iniciarem a aprendizagem da macrobiótica e adquirirem capacidade de controlar melhor

alguns problemas de saúde, alguns dos que aderiram a este sistema de alimentação

sentem na verdade ser acrescido o seu poder sobre o corpo e sentem-se a “comandar

mais as suas vidas”. Algumas das pessoas que contactei deixaram empregos

razoavelmente remunerados e estáveis para se dedicarem a outras actividades, foi esse o

caso, por exemplo, de uma professora universitária, uma oficial de justiça e uma

professora do ensino básico. Há, efectivamente, uma insistência na ideia de que os

processos individuais são o factor realmente essencial e que são esses que, em última

instância, conduzem à transformação da vida social. Os gestos básicos do dia-a-dia que

constituem o quotidiano, são os que podem transformar o mundo.

Uma outra dimensão fundamental, que suporta uma retórica discursiva de

demarcação face às formas de abordagem do corpo mais convencionais, tem a ver com

as críticas ao serviço nacional de saúde e à biomedicina. Algumas destas críticas foram

já evocadas, até porque a definição de concepções sobre a saúde e doença é apresentada

tendo sempre como contraponto a medicina convencional. Os médicos são, desde logo,

vistos como tendo grandes lacunas na sua formação, dado terem, “quando têm” (diz-me

um dos formadores), um reduzido número de horas de formação sobre nutrição. “Não é

com 30 horas de aulas sobre alimentação num curso de medicina que se conseguem

formar bons médicos”, dizem-me. Tendo em consideração que muitas doenças têm a ver

com problemas alimentares, esta situação é para os seguidores da macrobiótica muito

grave e não abona a favor da ideia de uma formação adequada. Por outro lado, faz parte

da retórica discursiva acusar a medicina convencional de se dirigir pouco para o

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Sistemas terapêuticos em confronto

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paciente enquanto indivíduo e não prestar atenção ao Homem enquanto todo. Como já

vimos, excessiva medicalização, mas também os interesses dos laboratórios que a

sustentam, são alvo de crítica. Os laboratórios incentivariam o crescimento da indústria

de medicamentos ao financiarem pesquisas que teriam na mira a criação de mais

medicamentos. Face a esta agressividade, era pois necessário estar atento, olhando

criticamente os actos médicos e procurando evitar o consumo de produtos químicos.

Resumindo, vemos assim, que noções como risco, medo, responsabilidade

individual e necessidade de autonomia, jogam um papel fundamental numa estratégia

discursiva que procura a consciencialização do ser humano. Só a partir desta

consciencialização parece ser possível, para os que defendem a macrobiótica,

desenvolver a espiritualidade, aspecto de importância maior nesta proposta de

orientação no mundo e que evidencia que esta proposta está longe de ser meramente

uma orientação em termos alimentares. Por outro lado, e voltando à questão do

enquadramento inicial necessário para a apresentação e justificação da macrobiótica

enquanto proposta a seguir, devem ainda ser salientadas as críticas relativamente à

industrialização e suas consequências, ao estado de saúde actual, factor associado aos

cuidados médicos convencionais e indústrias que os suportam. Estes parecem-me ser,

efectivamente, os principais eixos a partir dos quais se sugere a necessidade de um

modo de vida alternativo.

*

Com os aspectos que enunciei, procurei dar conta de algumas estratégias

discursivas, utilizadas para sublinhar a importância da macrobiótica enquanto proposta

de orientação no mundo. A referência a esses aspectos pareceu-me relevante, na medida

em que permitia perceber de que forma se faz o enquadramento para a apresentação

dessa proposta e são justificadas as suas sugestões. No que foi referido sobre este

assunto, acrescido do que foi evocado a propósito das concepções sobre a saúde/doença

e respostas dadas no âmbito da macrobiótica, sobressaem alguns temas e perspectivas

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«À Mesa com o Universo»

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que merecem uma discussão mais aprofundada. O que procurarei fazer, de seguida, é

retomar e apontar alguns desses tópicos de discussão146

.

Um dos primeiros aspectos que destaco dessa discussão tem a ver com a relação

entre o Estado e os cuidados de saúde. A utilização da macrobiótica, enquanto sistema

terapêutico, tal como outras terapêuticas não convencionais, revela que o corpo

biológico não é algo que esteja inteiramente sobre a alçada do Estado. Esta situação é

perspectivada como favorável por alguns dos indivíduos que contactei, dado que não

implica controlo e permite uma maior autonomia, embora seja vista também como

gerando algumas dificuldades. Para muitos dos que contactei, a actual política de

Estado, em termos de saúde, ao ignorar formas alternativas de tratamento, não vai de

encontro ao que sentem como necessidade, dado que, na maior parte dos casos, não têm

qualquer tipo de comparticipação nesses gastos.

Os seguidores da macrobiótica fazem, de um modo geral, um consumo restrito,

crítico e selectivo dos cuidados de saúde no SNS. São frequentes os casos de indivíduos

que passam anos sem consultar o médico e, que, quando o fazem, é sobretudo para

realizar análises e exames de rotina de forma a certificarem-se de que não têm qualquer

problema de saúde. Costumam ser também muito resistentes à toma de medicamentos e

até à vacinação.

Em Braga, e no período em que decorreu esta investigação, quatro mulheres com

quem contactei, no âmbito desta pesquisa, optaram por fazer o parto em casa (todas elas

tinham formação de nível superior e profissões concordantes com o grau académico).

Esta é uma solução bastante mais onerosa e geralmente afirmada como arriscada, mas

que essas mulheres, ainda assim, entenderam adequada. Entre os motivos que as

levaram a fazer esta opção destacava-se o desejo de não se submeterem ao ambiente do

hospital, com o receio relativo ao tipo de intervenção que aí pudesse ocorrer - uma

cesariana ou vacinação de recém-nascidos, são alguns dos aspectos assinalados -, bem

como perda de autonomia. Esta prática, a do nascimento em casa, que julgo ter

aumentado em Portugal nos últimos anos, é incentivada no âmbito dos cursos de

formação na área da macrobiótica.

Há assim um conjunto de práticas que vão ficando fora do controle do Estado e

que revelam brechas na ideia da estatização do biológico. Tal não quer dizer, todavia,

pelo menos em relação a estas mulheres, que a sua opção as tenha colocado fora do

146 Não será ainda, seguramente, uma reflexão inteiramente informada e final sobre o que foi apresentado,

mas os elementos iniciais de uma análise mais aprofundada, a fazer noutra ocasião.

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Sistemas terapêuticos em confronto

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poder biomédico. Quem acompanhou esses partos, para além de doulas147

, foram

profissionais de saúde, médicos ou enfermeiros obstetras. Convém ainda dizer, em

relação a estas práticas, que há informação que circula no meio sobre experiências

semelhantes, acontecendo ser o mesmo enfermeiro obstetra a seguir estes casos pela

imagem de credibilidade que conseguiu alcançar. É esta confiança que foi adquirindo

que lhe garante o acompanhamento de mais mulheres em situações futuras.

Ainda a propósito de relação estratégica com o poder biomédico, um dos meus

informantes, já na casa dos setenta anos de idade, começou a sentir-se muito cansado e

resolveu consultar o médico para fazer análises. Foi-lhe detectada uma anemia grave e

um nível extremamente baixo de vitamina B12 (problemas que costumam ser associados

a dietas pouco cuidadas, onde não há ingestão de qualquer produto de origem animal), a

tal ponto que a médica que o atendeu, quando tomou conhecimento do resultados dos

exames, lhe telefonou para o internar no hospital para lhe ser feita uma transfusão

sanguínea. Ele, todavia, pediu à médica para não o fazer, e para lhe dar apenas mais um

ou dois dias para começar a resolver o seu problema. A médica acedeu renitentemente,

facto de que este paciente se congratulou, pois entende que a médica foi “muito

compreensiva”. Passou então a dedicar mais atenção á sua doença e às suas refeições,

consultou um naturopata e começou a tomar suplementos alimentares. Ao fim de alguns

dias começou a sentir-se melhor e os níveis de hemoglobina e de B12 ficaram próximos

do normal. No seu entendimento, com o excesso de trabalho e com as mudanças que

tinham ocorrido recentemente na sua vida, não prestara a devida atenção à alimentação

e acabara por se ressentir disso, mas “conseguira safar-se de ir parar ao hospital”.

Declara nem imaginar o que lhe sucederia se tal lhe acontecesse, mas acredita que “seria

uma tragédia”. Já numa fase posterior, e dados os problemas renais com que se ia

confrontando, acabou, contudo, por seguir o tratamento médico que lhe tinha sido

recomendado, procurando sempre ter cuidado com a alimentação.

Estes exemplos revelam a recusa de cuidados médicos ou, pelo menos, o seu uso

selectivo. Estes indivíduos revelam, frequentemente, comportamentos que evidenciam

uma quase ausência de relação com o Estado e os serviços que este disponibiliza em

termos de cuidados de saúde. No caso referido anteriormente, há uma consulta a um

“médico convencional” e depois opta-se pelo naturopata, voltando-se mais tarde ao

147 Mulheres que se especializam no acompanhamento de famílias e na experiência da gravidez, parto e

maternidade. Existe em Portugal uma associação de doulas que promove formação específica nesta

área.Ver: http://www.doulasdeportugal.org/index.php?target=pt/finder&district=&language=&go=Buscar

[Acesso 12-11-11].

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«À Mesa com o Universo»

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“médico convencional” para fazer análises, o que evidencia também uma relação

estratégica com os cuidados de saúde. Neste caso específico, o facto de o naturopata não

poder prescrever a realização de análises, que depois seriam comparticipadas pelo

Estado, poderá ser uma justificação para este tipo de opção. Por outro lado, o susto com

o problema talvez tenha sido tão grande que este indivíduo decidiu continuar a manter

contacto com o “médico convencional”. De qualquer forma, é revelador de que muitos

dos que seguem a macrobiótica nem sempre encontram o enquadramento que

desejariam, nem o tipo de respostas que mais se lhes ajustariam. Existem ainda outras

dificuldades, nomeadamente com aspectos como baixas médicas e comparticipações de

outros produtos de saúde. Esta hegemonia da biomedicina que faz com que os “médicos

convencionais” tenham o monopólio do diagnóstico e da prescrição, pelo menos na

maior parte dos serviços de saúde comparticipados, remete, inevitavelmente, para as

questões do biopoder com que iniciei este capítulo. No entanto, o que encontramos nos

actos acima referidos, não são formas conscientes e activas de resistência à hegemonia

da biomedicina, mas apenas opções relativamente ao que entendem ser a resposta mais

adequada aos seus problemas, opções que revelam a forma estratégica como as margens

podem dialogar com o poder biomédico.

O problema acima evidenciado não pode deixar de ser relacionado com aquilo

que se costuma designar como pluralismo médico. Em Portugal, apesar dos avanços

feitos na criação de legislação sobre terapêuticas não convencionais (Franco, 2010),

estas ainda não se encontram regulamentadas, o que faz com que não haja ainda

enquadramento legal para o seu funcionamento. A regulamentação desta actividade

poderia eventualmente ir de encontro às necessidades daqueles que recorrem a este tipo

de terapêuticas, mas vale a pena ver o que sucedeu noutros países com as “medicinas

não convencionais” para reflectir sobre o tipo de solução que foi adoptada. Em países

como os EUA, onde estas medicinas estão mais bem enquadradas e regulamentadas,

tem-se verificado um interesse crescente pelas “medicinas não convencionais”148

. A

história conflituosa que no passado terá oposto a medicina convencional a outras formas

de medicina parece ter-se atenuado, dando lugar ao início de uma espécie de

reconciliação. Kaptchuk e Eisenberg referem que há um interesse cada vez maior em

integrar este tipo de medicinas nos centros médicos e hospitalares e que mesmo nos

148 Refiro regulamentadas porque pluralismo médico existe desde há muito nos EUA com uma presença

persistente e poderosa, como referem Kaptchuk e Eisenberg (2001), bem como noutros contextos (cf.

Janzen, 1982).

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Sistemas terapêuticos em confronto

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cursos de medicina surgem cada vez mais disciplinas relativas às “medicinas não

convencionais”. Até as farmácias complementam a sua oferta com linhas de produtos

feitos com plantas medicinais, tendo crescido também a investigação nesta área (cf.

Kaptchuk e Eisenberg, 2001: 193).

Esta situação permite reconhecer que as terapêuticas não convencionais se

transformaram num produto económico de elevado interesse e, muito provavelmente

por este motivo, estão a ser integradas em unidades de saúde convencionais, havendo

mesmo situações de partenariado entre a biomedicina e as “medicinas não

convencionais”. É esta situação que leva Kaptchuk e Eisenberg a perguntarem se esta

integração não significará a eliminação do pluralismo médico que tanto é defendido (cf.

2001: 193). É também nesse sentido que se expressa Baer (2003), ao defender que as

medicinas holísticas estão a ser biomedicalizadas e que são os profissionais tradicionais

de saúde que estão a colocar estas medicinas sob a sua alçada. Curiosamente, o texto de

Salkeld (2005) sobre a noção de risco no discurso dos médicos de uma clínica médica

holística, faz pensar o inverso, pois aí, pelo que Salkeld nos refere, os médicos (com

formação na medicina convencional e depois na holística) fazem um tipo de abordagem

que se distancia da medicina convencional. O mais certo é que os fluxos de informação

se façam nos dois sentidos e que haja efectivamente uma relação dinâmica entre eles.

Costumam ser acentuadas, porém, as concepções hegemónicas ligadas à biomedicina,

dada a sua associação com ciência e poder. Ter em consideração o caso dos EUA, entre

outros, pode ser relevante para decidir sobre a regulamentação das terapêuticas não

convencionais no nosso país

Um outro aspecto que gostaria de mencionar a partir dos dados que recolhi,

prende-se com a focalização no corpo e na saúde, como se vivêssemos sob o regime da

“somatocracia”, para usar uma expressão de Foucault (2001: 43) e recuperar um tema

que preocupou Illich (1975). Na verdade, não apenas o Estado evidenciaria a sua

finalidade de cuidar do corpo e nele intervir, mas também os comportamentos

individuais, mesmo os que são relativamente marginais ao Estado, como os que

podemos observar na macrobiótica, se revelariam muito concentrados no corpo e na

qualidade da sua energia. Alguns dos partidários da macrobiótica submetem-se a dietas

purificadoras e a cuidados corporais que são muito exigentes, quer em termos de

disciplina individual quer em termos de tempo disponível para todos esses cuidados,

cientes que estão da importância de tais procedimentos para garantir um corpo saudável.

A dieta número sete, prescrita por Ohsawa, que implica passar dez dias a comer arroz

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«À Mesa com o Universo»

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integral, é um dos exemplos de dietas que alguns indivíduos usam para “limpar o corpo”

e para se “purificarem”. Outros, pelo menos numa fase inicial, despendem uma boa

parte do seu tempo em assuntos que têm a ver com a aquisição de alimentos e com a sua

confecção. A procura dos produtos com a melhor qualidade leva-os, por vezes, a

percorrer diferentes estabelecimentos comerciais até encontrarem o que procuram. Num

dos casos que me foi relatado [estudante, 23 anos], entre a aquisição, a confecção, a

refeição e o arrumar da cozinha, despendiam-se umas cinco ou seis horas por dia.

Noutros casos, é ainda necessário levantarem-se pelas cinco, seis horas da manhã, para

prepararem o almoço que levam para o trabalho. Esta disciplina a que se obrigam

evidencia bem o quanto o corpo e a saúde é importante para eles. Não se trata aqui de

procurar um corpo adequado aos cânones de beleza dominantes, mas mais de estar

saudável, evidenciando o que entendem ser uma boa qualidade do ponto de vista

energético. Tanto num caso como no outro é a focalização no corpo que se afirma como

gesto significativo. Tão significativo que pode ser visto como prejudicial. Verifica-se,

desta forma, uma estruturação dos discursos em torno do corpo (quer no que diz

respeito à alimentação, quer no que diz respeito ao vigor do mesmo), que é sobretudo

colocada em termos de saúde, sendo o Homem perspectivado, sobretudo, como alguém

que tem de prevenir doenças ou que tem doenças a tratar, mesmo na macrobiótica.

É nesse sentido que se expressa Ivan Illich (2005 [1994]). Depois de ter criticado

severamente a medicina, os médicos, o modo como se organizavam e os efeitos dos

actos médicos (Illich, 1975), passa a considerar que o maior agente patogénico da

actualidade é a focalização na saúde, a tal ponto que a busca da saúde se tornou

consubstancial com a experiência do corpo (cf. Illich, 2005: 928). Dito de outra forma, a

sua opinião é que a experiência do corpo e do eu se tornou o resultado das concepções

médicas e dos cuidados de saúde, transformando-se, por isso, de acordo com a

terminologia que usara anteriormente (cf. Illich: 1975), numa doença iatrogénica (cf.

idem: 929). Considera, no entanto, que a influência da medicina institucionalizada já

não tem o poder que tinha anteriormente e que a sua importância relativa no sector da

saúde se encontra em recuo, dando lugar a práticas de autocuidado, juntas com um

entusiasmo ingénuo por tecnologias sofisticadas, fitoterapias e outros149

.

149 Como Illich refere: «O recurso exclusivo a técnicas de automedicação, bem como o deslumbramento

naif por toda uma sofisticação tecnológica, tornam o esforço dos médicos e o seu investimento pessoal

num trabalho cada vez mais frustrante. Parece-me que a participação da medicina naquilo que é a busca

patológica da saúde não tem hoje senão um papel menor.» (2005:928). Ou ainda: «Uma mistura confusa

de tecnologia avançada com fitoterapia, de biotecnologia com autocuidado, está actualmente a ser

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Sistemas terapêuticos em confronto

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O facto de uma boa parte das imagens da publicidade evocarem a qualquer título

a saúde, seria apenas mais um exemplo de como o tema se tornou invasivo. A questão

da diminuição da influência da medicina institucionalizada é discutível. No entanto, é

impossível não reconhecer que são múltiplas as mensagens que remetem para a saúde e

para diferentes terapias, ao ponto de o tema se tornar obsessivo. A macrobiótica é

também um exemplo de como o cuidado de si, com alguma autonomia e a procura do

equilíbrio, revelam algo de obsessivo. Do ponto de vista teórico, defende-se na

macrobiótica que se procura tornar o indivíduo mais livre e autónomo. Verifica-se, na

prática, pelo menos em alguns casos, o contrário. Sucede assim com os indivíduos que

evitam viajar por receio de não poderem fazer “refeições equilibradas”, ou que vão

limitando o seu círculo de amigos por não se enquadrarem nos seus padrões de

alimentação. Pode-se sempre argumentar que estes indivíduos ainda não perceberam “o

espírito da macrobiótica”, como por vezes se defende, mas o certo é que se encontra

com alguma frequência, e para lá dos exemplos fornecidos, uma conduta

excessivamente centrada em questões que têm a ver com o corpo, com a saúde e com a

alimentação. A tal ponto que parecem fazer sentido as palavras radicais de Illich «Pela

sua redução à vida, o sujeito é lançado num vazio que o esgota. Para falar de saúde em

1999 (…) é necessário compreendê-la numa liturgia societária ao serviço de um ídolo

que anula o sujeito».150

.

Longe de considerar o corpo como facto natural, independente do contexto

sócio-histórico, como reconhece tê-lo feito (idem: 932), Illich, em Dans le Mirroir du

passé (1994), fazendo eco de Foucault, defende que os corpos nunca existiram senão em

função de um contexto. No caso do “corpo ocidental”, o corpo corresponderia a uma

materialização progressiva do eu, a algo através do qual a pessoa se produz e objectiva.

As pessoas já não se refeririam ao corpo como “o meu corpo”, mas antes como o “corpo

que sou”, facto que via com apreensão e como indicativo de uma matriz epistemológica

em formação, na qual os indivíduos se apreenderiam a si mesmos como elementos de

um programa informático complexo (cf. Illich: 2005: 934). O que neste ponto

preocupava o autor, era a natureza artificial da noção de vida e o esvaziamento da noção

de pessoa associado a um culto compulsivo do corpo.

colocada em acção para representar a realidade, incluindo essa realidade que é o corpo vivido»

(2005:934). [Tradução livre]. 150 Illich, Ivan. 1999. “Un Facteur Pathogène Prédominant, l’obsession de la santé parfaite”

http://www.monde-diplomatique.fr/1999/03/ILLICH/11802.html [Acedido em 21-2-08].

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«À Mesa com o Universo»

288

A saúde como responsabilidade individual é outro tema criticado por Illich

(1990) que vale a pena aqui mencionar. Illich vê a responsabilização em termos de

saúde como uma ilusão e perversão da sociedade actual, sobretudo considerando as

circunstâncias de vida actuais (industrialização, desenvolvimento tecnológico com

prejuízos para o ambiente e vida social, formas de organização do trabalho, etc.). Ser

responsável com a saúde, num contexto como este, onde os modos de trabalhar e de

viver são doentios, é, para Illich, algo paradoxal, e pode ser visto como privilégio de

poucos «“ser saudável” é uma condição que se reduz à possibilidade de usufruir da

combinação entre técnicas, protecção ambiental e adequação às consequências das

técnicas, três aspectos que são, claramente, privilégios» (Illich, 1990:2)151

. Face a uma

época descarnada, como entendeu aquela em que viveu, na qual os gastos com cuidados

de saúde não paravam de crescer, considerava que a forma mais decente de viver era

renunciar à saúde como responsabilidade, acto que constituiria um verdadeiro ponto de

partida para uma conduta ética. Para Illich, era certo que nunca conseguiríamos eliminar

o sofrimento e curar todas as doenças. Sendo a morte uma certeza, não se justificava

uma tão grande focalização na saúde. Defendia também maior liberdade e autonomia

relativamente à saúde; liberdade para se declarar doente; para recusar qualquer tipo de

tratamento ou para aceitar os medicamentos e tratamento que entendesse. Liberdade

ainda para ser tratado por uma pessoa à sua escolha (homeopata, médico, acupunctor,

astrólogo ou qualquer outro), liberdade, finalmente, para morrer sem diagnóstico (cf

Illich, 1990).

Como vemos, esta defesa da liberdade individual parece estar distante da noção

de risco e do seu uso como elemento moral de responsabilização. Sugere, ao contrário,

que noções como a de risco e responsabilidade pessoal sejam hoje instrumentos de

controlo do corpo, que conduzem à procura da saúde de forma compulsiva. Coloca de

novo a questão do pluralismo terapêutico e da liberdade de escolha, da relação entre

Estado e indivíduo, propondo a renúncia e uma via mais ascética como resposta de

maior conteúdo ético. Proposta que é certamente radical, como de resto o foram muitas

das posições de Illich sobre a sociedade em que viveu, mas que por isso suscita maior

debate, permitindo o confronto de diversos olhares.

No contexto desta discussão vale a pena retomar a noção de responsabilidade

individual e equacioná-la na perspectiva das políticas do corpo. A questão da saúde

151 Tradução livre.

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Sistemas terapêuticos em confronto

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como responsabilidade individual pode, na verdade, ter efeitos perversos, como

mencionava Illich. Ao remeter-se para o indivíduo a inteira responsabilidade pelo que

lhe sucede, constrói-se um tipo de argumentação que pode isentar o Estado e os

sistemas sociais dessas mesmas responsabilidades, levando-os a desinvestir na saúde.

Nesta medida, essa perspectiva favorece claramente uma ideologia e uma política

neoliberais obstinadas em transformar também a saúde num mercado de livre escolhas,

onde cada «paciente-consumidor» (Briggs e Hallin, 2007), enquanto sujeito racional,

poderia ser responsabilizado por essas mesmas escolhas. Neste modelo, o do «paciente-

consumidor», o indivíduo é alguém que dispões de diferentes canais de informação

(internet, grupos de suporte, media, livros...), que acede a um modelo de

biocomunicabilidade - modo como circulam actos discursivos e práticas centrados na

saúde (ibid. 45) e que pode, por isso, teoricamente, fazer escolhas racionais, livres,

sendo as suas opções uma questão de responsabilidade individual.

Convém, todavia, não confundir a liberdade que Illich defendia, que vai de

encontro a uma ética de respeito por cada um enquanto pessoa e ser espiritual, e uma

lógica neoliberal onde a saúde é sobretudo um mercado aberto à livre concorrência,

onde os indivíduos podem escolher de forma supostamente livre o que melhor entendem

servi-los. A destrinça entre estas duas formas de exercício da liberdade, pode, para

alguns, não ser óbvia, dado que em última instância o que se defende é o respeito pela

liberdade individual, mas as lógicas que suportam estes diferentes posicionamentos

julgo que não são coincidentes Enquanto para Illich a focalização na saúde e a

diversificação dos produtos associados à saúde esgotava o sujeito, transformando-o

sobretudo num consumidor compulsivo e obcecado com a sua saúde - situação de que

ele deveria libertar-se e que via com apreensão -, na lógica neoliberal a saúde é mais um

mercado onde supostamente agentes informados e racionais escolhem. Para um

mercado ávido por satisfazer e criar necessidades de consumo ao nível da saúde (quer

sob a forma de prevenção, quer sob a forma de tratamento), a livre escolha (ou ilusão de

livre escolha) e a transformação da saúde num assunto de responsabilidade individual

não são, seguramente, aspectos menores em termos de racionalidade económica.

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«À Mesa com o Universo»

290

5.2 Macrobiótica e Biomedicina: Instersecção e Confronto

5.2.1 Da Biomedicina à Macrobiótica: Experiências e Narrativas

O encontro com a macrobiótica é um acontecimento que frequentemente decorre

de uma situação de doença. Como poderemos constatar, através dos casos que serão

apresentados, é essa situação específica que conduz a uma busca de soluções que sejam

mais satisfatórias do que as propostas pela biomedicina. Esta circunstância, a de ser a

partir da doença que se desencadeia todo um processo de busca de soluções alternativas,

faz parte, de resto, da própria história da macrobiótica, representando amiudadamente

um novo direccionamento para a vida. Se atentarmos em algumas das figuras

proeminentes dessa história, como Itshisuka e Ohsawa (ver capítulo 3), verificaremos

que tal aconteceu. Foi a partir da impossibilidade, quer de um quer de outro, em resolver

os seus problemas de saúde (problemas renais e de tuberculose, respectivamente),

através da medicina convencional, que enveredaram por uma pesquisa de outras

soluções. O sucesso obtido com as respostas que encontraram (alterações na

alimentação) foi tão significativo que as suas vidas acabaram por ficar marcadas por

essa experiência de transformação dos hábitos alimentares, tendo dedicado a sua

existência à promoção de práticas alimentares que entendiam ser mais saudáveis.

Também em um dos casos que apresento (Raquel), a macrobiótica foi de tal modo

importante que decidiu dedicar uma parte da sua vida à divulgação e ensino da

macrobiótica.

A experiência da doença como forma de redireccionamento na vida é de facto

comum, podendo-se, com a consciência das devidas distâncias, estabelecer algum

paralelismo entre a experiência xamânica e aquela que ocorre em indivíduos como

Ohsawa. Tal como acontece entre alguns xamãs, há, no caso de Ohsawa, uma história

de sofrimento, de doença que resiste aos tratamentos habitualmente adoptados, e que

acaba por significar um chamamento para que se tome uma nova direcção na vida.

Ohsawa, com a sua história pessoal de dor, a que se soma uma história familiar marcada

pela doença (morte da mãe e irmãos), parece acumular sinais de repetição que têm a ver

não apenas com o sofrimento inevitável deste mundo, mas com um mundo menos

tangível, como se a doença viesse do mundo dos espíritos para o colocar num caminho

de salvação pessoal e social. Num certo sentido, é como se essa experiência o

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Sistemas terapêuticos em confronto

291

iluminasse e tornasse mais apto enquanto intermediário entre o mundo terreno e o

mundo espiritual. Assim, ao convocar o universo para a mesa, Ohsawa pode ser visto

como alguém particularmente competente para mediar dimensões que são vistas como

conectadas mas que têm formas de expressão distintas.

Ainda que as experiências dos alunos que frequentam os cursos de macrobiótica

no IMP não possam ser claramente identificadas como experiências de tipo xamânico,e

ainda que nas respostas aos questionários do IMP (ver cap.4) a maior parte dos alunos

não refira problemas de saúde específicos, a verdade é que, entre os contactos que

efectuei, uma situação de doença frequentemente precede a adopção da macrobiótica.

Diversos relatos dão-nos conta dessa situação estruturando um modelo narrativo que

procura evidenciar os benefícios da macrobiótica. A própria trajectória de afirmação da

macrobiótica na Europa e na América foi sendo desenhada por recurso a argumentos

que salientavam os benefícios para a saúde que poderiam advir da prática deste tipo de

alimentação. A possibilidade de a macrobiótica poder curar os mais diversificados

males do corpo, incluindo o cancro, foi até importante para que esta proposta de

orientação no mundo adquirisse projecção social. A associação da macrobiótica a

problemas de saúde não é, portanto, uma associação vaga e acessória, antes está na base

da sua projecção. Assim, se olharmos para o conjunto de actividades profissionais

ligadas à macrobiótica, verificaremos que a parte destinada ao aconselhamento em

termos de cuidados de saúde é significativa. O aconselhamento individualizado ocorre

sobretudo em contexto de consultório, sendo essa a ocasião para um encontro clássico, o

encontro entre terapeuta e paciente, melhor dizendo, entre consultor e consulente.

Este é um encontro clássico, mas apenas no que respeita a forma, dado que nem

a formação do terapeuta é clássica nem o tipo de orientação que ocorre no consultório o

é. Convém dizer, desde logo, que a própria designação “terapeuta”, não costuma ser

adoptada quando se faz referência ao aconselhamento e acompanhamento, antes se

preferindo o termo consultor e, mais recentemente, health coach. Na verdade, o termo

consultor é um termo mais descomprometido, colocando essencialmente nas mãos

daquele que procura a consulta a possibilidade de se tratar. É também um termo mais

desresponzabilizante e defensivo, na medida em que sugere apenas orientações,

recomendações, conselhos e não prescrições152

.

152 Antes da consulta, pede-se àqueles a que a ela se dirigem que preencham uma ficha onde se pode ler

“os nossos conselhos não são conselhos médicos profissionais. Se procura conselhos médicos, por favor

visite um médico mais apropriado para o seu problema específico”. E ainda “Não prometemos garantir

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«À Mesa com o Universo»

292

Por outro lado, o termo “paciente” também não costuma ser utilizado para fazer

referência a este tipo de aconselhamento, dado que sugere sobretudo o acompanhamento

clínico exercido no âmbito da medicina convencional. Termos como utente e cliente

também me pareceram desajustados, dada a habitual remissão do primeiro termo para a

utilização de serviços e, no segundo caso, dada a lógica comercial para que a noção de

cliente remete. Acabei por optar pelo termo “consulente”, dada a sua menor vinculação

às situações que acabei de referir. É certo que o termo é pouco utilizado na linguagem

comum e se adequa a diversos ramos de actividade, não se encontrando particularmente

relacionado com os cuidados de saúde, mas comporta essa dimensão de busca de

conselhos e de orientação que me pareceu justificar o seu uso.

Como venho procurando defender ao longo deste capítulo, os processos

terapêuticos, que decorrem no âmbito da macrobiótica, revelam opções que se

encontram distantes da tutela do Estado e que, por vezes, contrariam orientações dadas

no âmbito da medicina convencional. Estas opções evidenciam que os indivíduos não se

encontram completamente submetidos ao poder biomédico e que tomam decisões em

relação ao seu corpo que não se encontram sob a alçada deste sistema. Como também

venho defendendo, tal não significa que recusem, em todas as ocasiões, as orientações

dadas no âmbito da medicina convencional, antes procurando relacionar-se com ela de

forma estratégica. A necessidade de meios complementares de diagnóstico, que

permitam um acompanhamento mais objectivo de uma determinada situação, ou de

outros apoios facultados pelos Serviço Nacional de Saúde, implicam frequentemente

que os indivíduos se movam entre diferentes sistemas terapêuticos e se relacionem de

forma dinâmica com ambos. É esse o caso de Teresa, espanhola, professora, com cerca

de 50 anos que se debateu com um cancro de mama.

Antes de apresentar o seu caso, impõe-se que refira algo a propósito da sua

nacionalidade. Convém dizer que conheci diversos casos de espanhóis que procuraram

Portugal tanto para obter formação na área da macrobiótica como para virem a consultas

por causa de desordens que os preocupavam. Dizia-se mesmo, em contexto de

formação, que a macrobiótica era das poucas coisas que Portugal exportava para

Espanha e em que estava em verdadeira vantagem relativamente a este país. O facto de

em Portugal existir uma figura carismática associada à macrobiótica, com

nada no que diz respeito à eliminação dos seus problemas, mas, se desejar aprender como apreciar e

beneficiar da Alimentação Macrobiótica, teremos o maior prazer em o(a) assistir”. Sugerindo-se, em

simultâneo os benefícios da macrobiótica afirmava-se aí “A alimentação macrobiótica é um método

alimentar que tem provado ser eficaz na correcção de muitas desordens”.

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Sistemas terapêuticos em confronto

293

reconhecimento a nível internacional, Francisco Varatojo, associado à existência de uma

instituição - Instituto Macrobiótico de Portugal – que sob a direcção de Francisco e

Eugénia Varatojo, se apresenta como estrutura dinâmica e organizada, constituem,

provavelmente, uma das razões desta vantagem. Devo dizer ainda que, neste processo,

tive oportunidade de ter como colegas de curso alguns espanhóis que viriam a criar

centros de macrobiótica em importantes cidades espanholas como Sevilha e Barcelona,

o que, confirma a importância do IMP enquanto pólo de formação, tal como referido no

capítulo 4.

Vejamos agora o relato de Teresa a propósito da situação de cancro por que

passou. Nele poderemos detectar a recusa de um tipo de tratamento, aquele que é

proposto pela medicina convencional e, ao mesmo tempo, a relação que vai continuando

a manter com o poder biomédico.

Há quase dois anos, mais especificamente, há 20 meses, foi-me

diagnosticado um cancro de mama. Há um ano que me andava a apalpar e

observar, mas não estava muito preparada para enfrentar problemas e não fui

logo ao médico. Apesar disso, todas as noites me apalpava para ver se os

nódulos ainda lá estavam. Andei meio alterada nesse período. Comecei a ficar

preocupada em saber se o que tinha era bom ou mau. Fui ao ginecologista, a

um ginecologista privado. Não sei porquê, senti no momento que aquilo era

algo sério. O médico mandou-me fazer todos os exames e viu-se que tinha um

cancro na mama, na mesma mama onde sentia os nódulos. Disse-me que as

células observadas eram cancerígenas. A indicação médica que me foi dada foi

a de que tinha de fazer uma mastectomia, com toda a correspondência que isso

tinha em termos de tratamento e alteração do corpo. Desde o primeiro

momento, não sei explicar como, entendi e senti que podia fazer algo de

diferente e que ao menos devia tentar algo antes de me submeter à medicina

oficial. Decidi pôr-me em contacto com [consultor na área da macrobiótica].

Bom… as casualidades não existem. Já tinha feito um curso de cozinha

macrobiótica e procurei saber se alguém me podia ajudar e disseram-me que se

alguém me podia ajudar com conhecimento de causa era o [consultor]. Pus-me

em contacto e ele, sem me assegurar nada, disse-me que se estivesse disposta

podia fazer uma experiência [com a macrobiótica]. Ao mesmo tempo, fiz todos

os exames para ter conhecimento de causa da minha situação (…). A mim, e

tendo em consideração o que sentia dentro de mim, isto animou-me, ainda que

em muitas alturas tivesse muitas dúvidas e ficasse assustada. As pessoas

normalmente indicam-nos outras vias e perguntam-nos porque vamos fazer

aquilo, mas uma outra força levava-me a seguir outro caminho. Tive vivências

internas muito profundas e passei mal, mas aquilo fazia parte do processo de

cura. Na altura tive que recorrer a um psicólogo. Levei-me a sério e comecei a

fazer uma dieta rigorosa (…). Nas férias da Páscoa vim ao Monte Mariposa e

aqui animaram-me muito. Deram-me muita força.

No momento em que comecei com a dieta aquilo era uma loucura. Tinha

que me levantar cedo e escrever o que faltava e o que ia comer neste e naquele

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«À Mesa com o Universo»

294

dia. Segui com a minha determinação e é o que é...é tão importante o processo

prático como o processo interior. Aos poucos, senti que precisava de exames e

que tinha necessidade de suporte médico para ver a evolução, nunca abandonei

o caminho médico oficial. Quando renunciei ao que os médicos me propunham,

tive reacções de grande dramatismo, alguns médicos deram-me um ano e outros

quase me enviaram directamente para o cemitério. Recorri a um centro para ter

ajuda psicológica e algum suporte médico. Uma das primeiras coisas que ouvi

tinha a ver com a soberania em relação à minha saúde, eles aceitaram

acompanhar-me. Disseram-me para voltar dali a uns seis meses para fazer

exames e ver qual era a evolução. Alarguei mais o prazo, não estava preparada

para uma frustração e sentia que tinha havido uma mudança nos nódulos e que

tinham diminuído. Não me importava se eram dois ou três milímetros. Só vim ao

fim de uns oito meses. A radiologista ficou muito surpreendida, pois não

encontrava nada na ecografia. Ao princípio não me felicitou e disse-me que

devia ter feito algo diferente… não sabia se na homeopatia se na macrobiótica.

Disse-lhe que estava a fazer macrobiótica. Disse-me para ir para casa

tranquilamente, que não tinha nada… Disse-me para fazer uma ressonância

magnética e disse-me que, dos sete nódulos, quatro tinham desaparecido, não

havia nenhum rasto, e três tinham diminuído consideravelmente de tamanho.

Saí, pulei, fui para o monte e soltei toda a tensão acumulada

(…) Comparei as ressonâncias de um e outro período e estavam muito

diferentes (…) Em Março passado fiz exames e na ressonância magnética não se

encontrava nada. Os médicos perguntaram-me o que tomava, se era algum

tratamento hormonal e adoptaram uma outra postura comigo.

Necessitei de me agarrar a alguém para seguir este caminho. Acho que a

dieta é fundamental, mas também é necessário ver a enfermidade como o

caminho da salvação. Em um ano vi-me livre de sete nódulos, quando queriam

mastectomizar-me. A componente emocional da enfermidade também é muito

importante.153

[Teresa]

Como vemos, este caso representou uma tomada de decisão difícil. Constituiu

uma desobediência à recomendação que havia sido feita pelo médico. Nestas ocasiões, a

pressão de familiares e amigos sobre estas decisões costumam pesar, dado o receios

relativamente a opções sobre as quais não se encontram informados e cuja eficácia não

se encontra devidamente comprovada. Alguns dos doentes que se vêm nestas

circunstâncias, como Teresa, referem a importância de poderem contar com apoio

médico apesar das suas opções. O que estes indivíduos procuram, e de acordo com a

situação em que se encontram, é uma solução conjugada e consentida entre diferentes

sistemas terapêuticos. Para compreender estas opções tem de ser tomado em

consideração o tipo de representações que estes indivíduos fazem sobre a doença e os

modos de a tratar. Se a tomam como uma aprendizagem espiritual ou um «caminho para

a salvação» e se dão importância ao modo como «sentem» que deve ser feito o processo

153 Tradução livre a partir do castelhano.

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Sistemas terapêuticos em confronto

295

terapêutico, as suas opções, mais à margem do poder biomédico, são as únicas a que

podem atribuir um significado positivo, aspecto importante num processo de cura.

Vejamos um outro caso, relatado por uma mulher que frequentou o Curso

Curricular de Macrobiótica do IMP e cuja descrição de uma situação de doença dizia

respeito à sua filha que pretendia ajudar através da macrobiótica

Cheguei à macrobiótica através de um programa de rádio sobre

desenvolvimento pessoal que passava à noite. Nesse programa havia a

possibilidade de apresentar casos de doença e era depois sugerida uma

orientação, em termos alimentares, para resolver esse problema (…) A minha

filha [Professora de Informática no ensino secundário] adoeceu gravemente,

tinha muita dificuldade em falar e sentia um enorme cansaço. (…) Ela andou

por muitas consultas, mas inicialmente os médicos não conseguiram detectar o

que ela tinha. Estava muito preocupada e com vontade de a ajudar e comecei a

pesquisar informação na internet sobre macrobiótica. Encontrei o site do

Instituto Macrobiótico de Portugal. Contactei o IMP e disseram-me que, em

Agosto, o Francisco estaria no Monte Mariposa. Decidi ir ao Monte Mariposa

com a minha filha para ter uma consulta com o Francisco. A minha filha foi

diagnosticada inicialmente como tendo paralisia facial, mas eu tinha uma

intuição de que era algo de mais grave, tinha sinais de que era uma doença

mais grave. Depois de muitas consultas a médicos foi diagnosticada com

miastenia gravis, uma doença que implica a produção de anticorpos que

interferem com neurotransmissores e que debilitam a troca de informação entre

sistema nervoso e músculos. Ela tinha alturas em que se sentia tão cansada que

não conseguia rodar a chave do carro para ir trabalhar. Decidi cuidar dela ao

longo de um ano, preparando-lhe refeições macrobióticas de forma muito

rigorosa e sempre à mesma hora. Fiz o tratamento com ela, com uma grande

entrega, emagrecia ela e emagrecia eu. Houve uma altura em que ela deixou de

ter menstruação. Quando voltou a ter menstruação, eu, que já tinha entrado na

menopausa, tive ao mesmo tempo um corrimento com sangue. Quando ela está

pior sinto dores na garganta. Enquanto cuidava dela andei sempre à procura de

mais informação e lia muitos livros que achava que nos podiam ajudar. Um dia

uma senhora com quase nunca costumo falar disse-me que tinha sonhado com a

minha filha e que no sonho ela melhorava (…) Frequentei aulas de

macrobiótica em Madrid com a minha filha na «Escuela de Vida» e encontrava-

me aí com o Francisco, depois decidi vir fazer o curso de macrobiótica a

Lisboa. Decidi que se a macrobiótica resultasse com a minha filha iria abrir um

centro. Passava manhãs na cozinha e às vezes quase todo o dia a tentar fazer

refeições que fossem atraentes e saborosas (…).

A minha filha já consultou três médicos e os dois primeiros queriam que ela

tirasse o timo, coisa que ela não quer fazer porque já contactou várias pessoas

que dizem que não melhoraram e que até ficaram pior. Esta recusa tem-lhe

causado alguns problemas, porque os médicos dizem que não lhe podem

continuar a dar baixa e vir a reforma-la se ela não fizer aquilo que eles lhe

indicam e que retirar o timo é uma das operações que costuma ser recomendada

a pessoas que têm esta doença.

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«À Mesa com o Universo»

296

(…) Da parte da família por vezes sinto alguma pressão porque têm receio de

que a situação piore caso não haja intervenção cirúrgica.154

[Marta, espanhola, reformada, 60 anos]

Este caso foi tornado público e aparece contado na primeira pessoa por Raquel,

encontra-se disponível num sítio da internet que entretanto Raquel criou para apresentar

e divulgar a macrobiótica.155

Não tive oportunidade de a conhecer, mas o seu relato dá

bem conta de uma forma de tratamento em que se procura uma solução que não aquela

inicialmente apontada pelo médico. Face à ausência de efeito de muitos dos

medicamentos que tomara inicialmente e insatisfeita com o diagnóstico dos primeiros

médicos que consultara, procura outros e decide começar a experimentar outras vias,

que não a medicina convencional, com a ajuda da mãe. Esta ajuda seria, na verdade,

preciosa, dado o relato de sucesso que Raquel nos conta. Raquel ainda não resolveu

totalmente o seu problema, mas encontra-se melhor e não retirou o timo. Como ela

própria reconhece, não é um sucesso que apenas se fique a dever à macrobiótica, mas a

uma conjugação de vários contributos que foram importantes: o último médico que

consultou e que a apoiou na sua decisão de continuar a utilizar formas complementares

de tratamento; os fármacos que se encontram disponíveis; a acupunctura; a meditação,

as visualizações positivas; as massagens e as modificações no estilo de vida

(cf.testemunho no referido site). Neste caso, foi através de uma estreita articulação entre

diferentes tipos de tratamento que terá sido desencadeado o processo que a levou a

melhorar a sua condição. É importante notar, tendo em conta a relevância das decisões

individuais, que essa combinação terapêutica foi, em grande medida, definida por ela

com a ajuda de sua mãe. Não se colocando fora da alçada da medicina convencional,

Raquel seleccionou nela aquilo que poderia ser importante para se tratar. A

possibilidade de poder contar com o apoio do médico neste tipo de tratamento foi

fundamental. Como se pode facilmente depreender, esta solução conjugada é onerosa e

exige uma grande disponibilidade em termos de tempo. Recorrer a terapêuticas não

convencionais de forma tão regular como Raquel o fazia não se encontra ao alcance de

todos. Por outro lado, no conjunto de terapêuticas a que recorreu para se tratar, é difícil

perceber o peso específico de cada um destes contributos, mas é destacada de forma

particular a importância da alimentação. Depois de ter sentido uma dificuldade inicial

em alterar a sua alimentação habitual para a alimentação macrobiótica, diz-nos Raquel:

154 Tradução livre a partir do castelhano. 155 Aprendiendo Macrobiótica http://aprendiendo-macrobiotica.blogspot.com/2007/11/presentacin.html

[Acesso em 21-12-11]

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Sistemas terapêuticos em confronto

297

O meu corpo tornou-se mais sensível a tudo, comecei a ser mais intuitiva e a

sentir os efeitos energéticos dos alimentos e dos estilos de cozinhar. Que

descoberta incrível! Dou um exemplo: antes de praticar esta dieta nunca comia

raízes de vegetais, quando comecei a sentir os seus efeitos, senti que me

concentrava com mais facilidade, que ficava mais capaz de me organizar e de

me focar em como melhorar a minha saúde, sentia-me mais enraizada na vida e

na natureza. Isto que senti através da minha experiência, li mais tarde em livros

sobre macrobiótica, tinha a ver com as qualidades energéticas das raízes! Sinto

muita gratidão por tudo isto.156

[Raquel, Professora de Informática, 36 anos]

Detecta-se neste relato, como nos anteriores, a importância dada à intuição. Esta é uma

característica a que se dá importância na macrobiótica e que é relacionada com a

natureza espiritual dos humanos. Ser mais intuitivo seria uma forma de evidenciar essa

espiritualidade, sendo esta uma qualidade passível de ser apurada também, por exemplo,

pela alimentação. É ainda dada atenção às qualidades energéticas dos alimentos, uma

energia interpretada de acordo com as categorias yin/yang e com a Teoria dos cinco

elementos. As raízes costumam ser apontadas como contendo uma energia de

concentração dado o facto de se desenvolverem no interior da terra, serem mais

contraídas e, por isso, mais yang. A importância que Raquel atribui à alimentação pode

também ser percebida quando nos diz:

Demorei mais de 8 meses a começar a sentir melhoras na minha condição. É

tudo muito lento, mas vou-me dando conta de que ganhei muito. Sabíeis que a

cada 4 meses o nosso sangue se renova completamente? Ou que a cada 18-36

meses muda a musculatura profunda e o sistema nervoso periférico? E que a

cada 3-5 anos se renovam todas as células dos nossos órgãos? Sabíeis que a

cada 7 anos se renova completamente o nosso sistema nervoso central,

incluindo o nosso cérebro? O nosso corpo está constantemente a renovar-se e,

se lhe dermos as condições de nutrição adequadas, permitimos que aquilo que

estava estagnado, que já não funcionava ou tinha problemas, seja limpo. A

alimentação é uma poderosíssima ferramenta para a saúde que está ao alcance

das nossas mãos.(id.)

O relato que apresento seguidamente, não dá conta da procura de soluções

conjugadas com a biomedicina, tratando-se de uma experiência de adopção da

macrobiótica a partir de uma situação de alergia:

156 Tradução livre.Ver Aprendiendo Macrobiótica

http://aprendiendomacrobiotica.blogspot.com/2009/07/raquel-vida-actual-y-tratamientos.html [Acesso em

21-12-11]

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«À Mesa com o Universo»

298

Tomava anti-histamínicos, pois tinha imensa alergia ao pólen e melhorei imenso

com a macrobiótica. Lembro-me que a Rita dizia «ah, isso da alergia é dos

lacticínios». E eu pensava «esta é maluquinha, como é que isto dos lacticínios

tem a ver com a alergia! Tenho alergia ao pólen, não tenho alergia aos

lacticínios!» E ela dizia «ah, é que os lacticínios potenciam». E eu pensei «por

que não experimentar?» Decidi ir a uma consulta de orientação alimentar

macrobiótica. Foi uma revolução na minha vida…Quando ele [consultor] me

disse que deixando os lacticínios podia melhorar muito e viu que comia muita

fruta, disse-me que bastava comer duas ou três peças de fruta. Eu perguntei

«como é que é? Por dia?», «Não, por semana» disse-me ele!

Agora já como mais fruta, sinto que posso comer mais. Deixei de tomar anti-

histamínicos, o que é muito bom. Agora quando ando a espirrar já penso «o que

é que andei a comer?» Passei uma fase em que era muito restritiva na

alimentação e me tornei até bastante rígida. Aquilo estava a resultar tanto

comigo que queria que também resultasse com os outros. Nunca mais fiz um

pequeno-almoço como fazia antes. Percebi que melhorava quando deixava de

comer pão. Melhorei da prisão de ventre, das insónias…

Durante uma fase da minha vida comi de uma forma tão limpa, tão limpa, que

perdi a menstruação, o organismo não tinha nada para eliminar. O consultor

disse-me que isso era normal. Bem, nessa altura também deixei de tomar a

pílula e o consultor disse-me «ah! Agora é que começaste verdadeiramente a

fazer macrobiótica».

[Claúdia, Professora do 3º ciclo do ensino básico, 35 anos]

Este caso, que não se reveste da mesma gravidade do anterior, e que se terá resolvido

sem que fosse necessário recorrer a algum apoio no âmbito da biomedicina, exemplifica

o modo como algumas pessoas vão resolvendo os seus problemas através da

macrobiótica. Porém, como já se viu, nem sempre é exclusivamente por esta via que se

encontram as soluções e nem sequer todas as doenças são tratáveis através da

macrobiótica, como Ohsawa chegou a pensar. Ainda assim, há casos efectivos de

pessoas que se curaram através da macrobiótica, muito embora tais casos não pareçam

suficientes para que esta prática seja reconhecida enquanto sistema terapêutico, pelo

menos externamente. Também a forma de apresentação e divulgação da macrobiótica

leva a crer que necessita da legitimação da ciência para adquirir maior reconhecimento.

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Sistemas terapêuticos em confronto

299

*

Nem sempre a escolha de modos de vida e de tratamento alternativos decorre

sem que haja interferências por parte das autoridades que representam o Estado. Se é

certo que há agencialidade, há também situações de clara apropriação da vida por parte

do Estado. Foi esse o caso relativo a um processo judicial que analisei, processo que

implicou a retirada aos pais de seis filhos menores, com idades entre os 7 meses e os 14

anos, por suspeita de incompetência parental.157

Este processo decorreu entre 2004 e

2006 e foi iniciado a partir de uma situação de abandono escolar por parte de crianças

que se encontravam a frequentar o ensino básico. A situação de abandono escolar

resultou de objecções colocadas na escola relativamente ao facto de as crianças não

serem vacinadas. Este facto não terá sido gerido da melhor forma, e a pressão exercida

pela escola conduziu à decisão de abandono escolar. A opção pela não vacinação, tal

como é possível depreender através da análise do processo, decorreu da adopção da

macrobiótica.158

Acusado de incompetência parental, e de educar as crianças como se fosse “um

guru pertencente a uma seita”, o pai destas crianças (Fernando) é submetido a avaliação

psiquiátrica após internamento compulsivo num hospital psiquiátrico. A acusação de

que foi alvo foi a seguinte: “Exercício abusivo do poder paternal, com subtracção dos

filhos à escolaridade e aos cuidados médicos preventivos obrigatórios (Consultas de

medicina Familiar, Calendário Vacinal)” (Processo Judicial: 412). 159

A mãe foi

igualmente submetida a avaliação técnica das competências parentais. Antecipo desde já

que este foi um caso moroso, que implicou retirada das crianças e o seu acolhimento por

diferentes instituições de solidariedade social, dada a impossibilidade de encontrar uma

única que reunisse condições para acolher seis crianças com diferentes faixas etárias. Os

relatórios periciais acabariam por concluir a inexistência de incompetência parental,

tanto do pai como da mãe, referindo-se aí, em relação ao pai, que não era por

condicionantes de natureza psiquiátrica que o examinado pensava e agia como agia, mas

apenas por razões ideológicas, dizendo-se explicitamente:

157 Processo Promoção e Protecção 298/04.5 TMCBR. 158 Abordei noutro lugar a questão da vacinação entre os indivíduos que adoptaram a macrobiótica

(Calado, 2011). 159 É de notar, desde já, que esta acusação parte de argumentos que não correspondem à verdade. Em

Portugal não é obrigatória a vacinação nem a comparência em consultas médicas como forma de

prevenção de doenças. Muito embora, em termos institucionais, se aja em relação à vacinação como se

esta fosse obrigatória, ela não o é efectivamente (cf. Cunha e Durand, 2011).

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«À Mesa com o Universo»

300

Do ponto de vista psicométrico, o examinado apresenta um Quociente de

Inteligência Superior à Média e uma Personalidade Equilibrada e Estável,

incompatível com Quadros Paranóides, Delirantes ou Maniformes Crónicos

(Processo Judicial: 423)

É ainda o responsável pelo exame psiquiátrico que refere

O Estado de Direito Democrático aplicou neste caso toda a panóplia de meios e

de exclusão ao seu dispor, com a finalidade de, com o Poder que lhe assiste,

impor a norma social e excluir a dissidência (Processo Judicial: 421)

É bem visível nesta afirmação a forma abusiva como todo o processo foi conduzido,

evidenciando-se claramente que as situações menos integradas podem conhecer

desfechos trágicos. É ainda o relator do exame clínico, numa linguagem que é

claramente a da apropriação da vida pelo Estado, quem escreve:

O examinado mostra genuína vontade de submeter-se às regras do Estado,

designadamente a de fazer vacinar os filhos e, consequentemente, de os

submeter à Escolaridade Obrigatória, sem prejuízo de manter, no essencial, as

suas convicções fundamentais. (Processo Judicial: 424)

Seria ainda Fernando que frisaria a forma abusiva como sentira a invasão do estado na

sua vida;

Tirar os meus filhos da Escola foi uma decisão difícil. A pressão é enorme de

todos os lados. Somos discriminados. Isto é uma questão de poder. O Poder tem

sempre razão”.

“A Escola é obrigatória porque é a expressão da vontade do Estado, que, por

sua vez, é a vontade do Povo, quer dizer, da Maioria. Se a Escola não fosse

obrigatória, nada disto tinha acontecido comigo. Mas o Poder está em

discriminar quem não cumpre as normas impostas pela Maioria”. Tirei os meus

filhos da Escola por uma questão ideológica relacionada com as vacinas e a

alimentação, coisa que eu entendo não ser conveniente em termos sociais. Mas

em termos de base, eu até estava certo porque não podem obrigar os meus filhos

a vacinar-se. Eu sigo a Medicina Natural, trabalho com produtos naturais, não

era de esperar que eu aceitasse facilmente uma coisa dessas [sublinhado no

processo] (Processo Judicial: 420)

Como pode ser constatado, se a desobediência à norma foi, em algumas das situações

apresentadas, uma saída feliz para uma situação difícil, neste caso específico, em

virtude de vicissitudes diversas, tal não aconteceu, sendo assim um bom exemplo de

exercício autoritário do poder estatal sobre a vida.

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Sistemas terapêuticos em confronto

301

Também neste caso, pelo menos por parte da mãe, houve uma situação de

doença que a conduziu à adopção da macrobiótica:

A macrobiótica começou para mim quando eu era pequena. Por volta dos 6-7

anos foi-me diagnosticada uma epilepsia e a minha mãe, ao fim de muitos

tratamentos sem solução, optou por mudar para uma alimentação macrobiótica

e a partir daí nunca mais tive problema nenhum. A macrobiótica implica não

tomar medicamentos nem fazer vacinas. Não implica não ir à Escola; o

problema é que ir à Escola implica vacinas. [sublinhado pelo relator] Vacinas só

em caso de epidemia ou de risco grave, agora como estão a ser feitas, em bebés,

é que eu não acho correcto. (Processo Judicial: 415)

Já no caso de Fernando, a adopção da macrobiótica resultaria de uma circunstância

distinta:

(…) tudo começou na Tropa (na Marinha), sob a influência de um colega seu

conterrâneo, que lhe pôs nas mãos um livro sobre a Macrobiótica. Aderiu de

imediato àquela filosofia e levou muito à risca os seus ensinamentos, a ponto de

passar dias e dias, durante várias semanas, a comer só arroz. (Processo

Judicial: 414).

Circunstância que terá levado a que apurasse uma sensibilidade e intuição que dantes

não lhe eram conhecidas. Um dos intervenientes neste processo afirma:

(…) [terá] adquirido poderes especiais, pois que, por mais de uma vez, lhe

demonstrou saber de factos pessoais íntimos seus que nunca lhe havia

confidenciado nem tinha possibilidade de saber por meios normais. E que, além

disso, parecia ficar de repente possuidor de conhecimentos e capacidades que

não tinha antes. (Processo judicial: 414)

A menção que é feita a este aspecto merece uma nota, já que, também em relatos

anteriores (Teresa, Marta), e junto de outros indivíduos por mim contactados, é

atribuída importância a “forças ocultas”, “sinais”, “mensagens” “intuições” que

poderiam ser melhor captadas se se apurasse a intuição, sendo esta competência vista

como podendo ser aprimorada com a alimentação. A forma como Fernando é descrito

pelo relator do exame psiquiátrico revela a impressão que o mesmo causou.

Está escudado num constructo ideológico muito elaborado, assente em

formulações filosófico-ideológicas de raiz asiática oriental, com aportes

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«À Mesa com o Universo»

302

platónicos, hinduístas, budistas, taoistas e de tradição japonesa, formando um

conjunto a que poderíamos chamar de um naturalismo paradisíaco inocente,

ingénuo e ascético. E, sob este ponto de vista, estamos na presença de alguém

que não é um mero seguidor acrítico das ideias de outrem mas, antes, de alguém

que supera essas ideias e se assume como um guru – para utilizar a linguagem

oriental.[sublinhado do relator] (Processo Judicial: 419)

O sincretismo que nesta transcrição é atribuído a Fernando não é algo de surpreendente

em alguém que adopta a macrobiótica e se centra nos seus princípios filosóficos.

Evidencia que Fernando foi um bom leitor de Ohsawa, e que se terá identificado com a

sua proposta de orientação no mundo.

Este processo, pelas suas especificidades, expressa-se num sentido que é o de

evidenciar a existência de agencialidade e de actuação à margem das orientações

dominantes, mas revela também o modo como este tipo de conduta pode, quando sujeito

ao olhar vigilante do Estado, ter consequências trágicas e significar efectivamente

apropriação da vida pelo Estado. Este caso reenvia-nos, como refiro noutro lugar

(Calado, 2011), para os limites entre autonomia individual e responsabilidade colectiva,

para os constrangimentos institucionais a que o corpo e o indivíduo podem ficar sujeitos

quando caídos nas teias dos processos judiciais. Aquilo que cada indivíduo pode encarar

como sendo o mais adequado para si mesmo e para a sua família, pode afinal significar

uma afronta ao que é pensado como sendo o interesse colectivo.

O exemplo abordado poderá ser qualificado como caso isolado e, por isso, digno

de pouca relevância para classificar um modo geral de funcionamento. A sua

singularidade não obsta, porém, ao valor ilustrativo que encerra. Ele mostra-nos, no

limite, como um conjunto de procedimentos banalizados e pouco vigiados, associados a

alguma incompetência técnica e ligeireza (essa que conduz à retirada dos filhos ao

cuidado dos pais) podem ter consequências dramáticas. A fronteira entre a liberdade

individual e o bem comum podem assim ser facilmente ultrapassados, ainda que essa

violação esteja ancorada na melhor das intenções. Tomar o corpo como território de

decisões individuais pode incluir, assim, tanto uma possibilidade de experimentação e

de descoberta do mesmo que o singulariza como uma possibilidade efectiva de

apropriação e normatização da vida

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Sistemas terapêuticos em confronto

303

5.2.2 No Consultório: Cruzamentos entre Sistemas Terapêuticos

Um outro cenário onde podemos observar a interacção entre margens e sistema

biomédico é no consultório de orientação alimentar e estilo de vida. Espaço de encontro

entre consultor e consulente, permite-nos aceder ao universo de pessoas que recorrem a

este tipo de serviços. Os dados em que me apoio têm como base empírica as

observações por mim efectuadas num consultório de orientação alimentar macrobiótica,

situado na cidade de Lisboa. As observações foram realizadas entre Junho e Outubro de

2008, ao longo de 50 consultas, cada uma delas com a duração média de 1h160

. Procurei

observar, especificamente, que pessoas acorriam àquelas consultas, que tipo de encontro

é o que ocorria entre consultor e consulente e como se posicionavam os indivíduos que

vinham à consulta em relação às propostas apresentadas pela macrobiótica e aos

tratamentos no Serviço Nacional de Saúde. Era meu objectivo, neste ponto, observar as

possíveis articulações entre a medicina convencional e tratamentos na área da

macrobiótica.

O que procurarei evidenciar aqui é a existência de uma atitude activa por parte

dos indivíduos que acorrem ao consultório relativamente aos problemas que os afectam.

Nos casos observados define-se um padrão: o SNS foi visto como incapaz de dar

respostas satisfatórias e os pacientes não se resignaram com os tratamentos que aí lhes

foram prescritos. Revelando capacidade de avaliação e decisão sobre o seu corpo,

procuraram outro tipo de abordagens e outras formas de perspectivar os seus problemas.

Quer isto dizer que nem sempre foram seguidas prescrições dos médicos do SNS, nuns

casos não as acatando de todo, noutras procurando soluções que integrassem quer

orientações médicas, quer orientações ao nível da macrobiótica ou outras. Os

consulentes revelavam, assim, flexibilidade na sua relação com o SNS e com a

macrobiótica, uma flexibilidade que se expressou numa abertura a uma pluralidade de

orientações em termos de tratamento e na conciliação possível entre eles, sendo essa

conciliação por vezes incentivada pelo próprio consultor de macrobiótica. Apesar das

fronteiras conceptuais entre a biomedicina e a macrobiótica, em termos de abordagem

do corpo, é observável, mesmo em contexto de consultório, a procura de soluções

concertadas entre estes diferentes sistemas, havendo frequentemente permeabilidade por

160 A possibilidade de observar estas consultas e de estar nelas como assistente decorreu do facto de ter

frequentado o curso curricular de macrobiótica do Instituto Macrobiótico de Portugal.

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«À Mesa com o Universo»

304

parte do consultor de macrobiótica a conceitos e formas de abordagem que, à partida, se

julgaria não poderem ser integrados neste tipo de propostas terapêuticas.

Algum paralelismo pode ser estabelecido entre a permeabilidade que é possível

detectar entre a macrobiótica a outros sistemas terapêuticos e a fluidez que Jean

Langford (2002) observa a propósito da relação entre a medicina ayurvedica e a

biomedicina na Índia. A “modernização” da ayurvedica terá levado a que os curricula

contemporâneos relativos ao ensino deste sistema terapêutico integrassem muitas das

disciplinas que faziam parte dos clássicos cursos no âmbito da biomedicina,

observando-se, desta forma, uma acomodação de conhecimentos que dantes não

integravam este sistema médico. No século XX, como forma de obter um maior

reconhecimento social, a ayurvedica teve não apenas que se “abrir” à biomedicina mas

também de ser “limpa” do seu cariz esotérico, das suas contradições e espíritos

(Langford, 2002:17). Revelou-se assim uma capacidade de integração de aspectos

relativos a outros sistemas médicos e à promoção do diálogo com eles, que terá levado a

uma reinvenção da ayurvedica, sugerindo-se que é através de contactos,

interpenetrações, fluxos de informações que diferentes sistemas se vão reorganizando.

No consultório de orientação alimentar macrobiótica, onde a “medicação” é feita

sobretudo através da alimentação, encontramos também estes cruzamentos entre

diferentes sistemas e uma busca de articulações entre eles.

A sala do consultório, situada na cidade de Lisboa, é ampla, luminosa e

acolhedora. O cuidado na decoração procura imprimir tranquilidade ao espaço e tornar

favoráveis as situações de interacção. Aqui, as minhas observações foram efectuadas na

qualidade de assistente do consultor de macrobiótica em exercício. De acordo com o

estatuto que aí detinha, podia facilmente ser identificada pelo consulente como alguém

que estava em aprendizagem e que prestava apoio na consulta, fazendo o registo

informático dos dados pessoais daqueles que procuravam a consulta, bem como dos

elementos significativos relativos a cada situação descrita. Por outro lado, era também

apresentada como assistente do consulente, ou seja, como pessoa que este poderia

contactar com facilidade caso tivesse alguma dúvida relativamente a produtos utilizados

na macrobiótica ou ao modo de confecção de alguma das receitas que lhe havia sido

recomendada. No consultório, nesse contexto particular de interacção, o meu papel era

assim pouco interventivo, apenas me limitando a observar, escutar e a introduzir no

computador os dados que diferentes indivíduos haviam registado numa ficha acabada de

preencher e onde constavam elementos como a identificação pessoal, a patologia que

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Sistemas terapêuticos em confronto

305

apresentavam (caso ela tivesse sido detectada) e questões relativas ao estado de saúde.

Para além disso, anotava as recomendações que iam sendo feitas e que no final da

consulta seriam impressas e entregues aos consultados para que estes facilmente

pudessem relembrar as recomendações que lhes eram feitas. Este documento, entregue no

final da consulta, incluía um conjunto de orientações gerais relativas à alimentação e ao

estilo de vida, um conjunto de recomendações específicas, bem como elementos de

contacto do assistente.

Cada uma das consultas foi ocasião para serem trocadas palavras circunstanciais,

mas também para revelar aspectos íntimos da vida pessoal, medos e obsessões de alguns

dos consultados. De intensidade variável do ponto de vista emocional, o encontro

terapêutico procurava conduzir o consulente a uma reflexão sobre o seu modo de vida,

alterações a efectuar e, por vezes, ao encarar da hipótese de definição de novos projectos

de vida. Foi esse o caso de uma jovem mulher, operária numa fábrica de produção de

acessórios para automóveis, onde trabalhava por turnos e que apresentava uma doença

pouco comum (doença de Behçet). O facto de trabalhar com frequência em regime

nocturno e de se obrigar a sucessivos ajustamentos do ponto de vista biológico, de acordo

com a variação de turnos, foi visto como aspecto que não a beneficiava no tratamento da

doença, devendo tal prática ser modificada. O consultor sugeriu-lhe mesmo que mudasse

de profissão, caso não conseguisse um horário de trabalho mais adequado. Confrontados

com doenças de que tinham tido recentemente conhecimento, ou com retrocessos noutras

que procuravam encarar de forma positiva, os consulentes traziam assim para a consulta

alguns dos aspectos mais dramáticos da vida humana, justamente esses que os

confrontam com a doença e por vezes a iminência da morte.

Os dados sociográficos que pude recolher ao longo das 50 consultas resultaram

em grande medida da informação que constava das fichas individuais de consulta.

Algumas ressalvas devem, contudo, ser feitas antes de apresentar esses dados. Alguns

aspectos concretos, como a profissão, nem sempre puderam ser por mim bem

esclarecidos, dado que não estava previsto interagir com o paciente. Por exemplo, nas

situações em que os consultados se apresentavam como reformados, nem sempre

referiam a actividade a que se tinham dedicado, acabando assim por se criar uma certa

homogeneidade neste grupo que, evidentemente, não corresponde à realidade. As

diferenças neste grupo, em termos de pertença social, puderam, todavia, ser detectadas

através da própria situação de interacção ocorrida no consultório. Aspectos como a

verbalização de alguns elementos relativos à actividade profissional, aparência,

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«À Mesa com o Universo»

306

linguagem utilizada e temas abordados, denunciaram, frequentemente, diferenças em

termos de estatuto sócio-profissional. As fichas não faziam referência aos níveis de

escolaridade possuídos pelos consulentes, pelo que não faço um levantamento

quantitativo desse dado. No entanto, o facto de em algumas das profissões detidas se

exigir níveis específicos de formação, permite, em alguns casos, perceber o nível de

escolaridade dos pacientes.

Entre os 50 consulentes trinta e cinco eram do sexo feminino e quinze do sexo

masculino, o que evidencia uma clara presença de um maior número de mulheres nestas

consultas, tendência que julgo ser extensível ao universo dos consulentes e que é

compaginável com a forte presença de mulheres nos cursos de macrobiótica que são

leccionados no IMP (ver capítulo 4). A forte feminização que se observa, quer nas

consultas, quer na frequência de actividades ligadas à macrobiótica, sugere um maior

interesse por parte das mulheres relativamente a uma linguagem (a da macrobiótica) que

elege o corpo e a saúde como temas centrais. Este facto não invalida, porém, que os

principais divulgadores e promotores da macrobiótica sejam predominantemente homens.

A distribuição em termos de grupos de idade era a seguinte:

Quadro 12 - Distribuição etária

Idades 0-20 21-40 41-60 61-80 81-100

4 15 19 11 1 50

É entre os 41 e os 60 anos que se situa a maior parte dos indivíduos (19). Podendo

constatar-se assim que o recurso a este tipo de consulta foi feito sobretudo por pessoas de

meia-idade (essencialmente mulheres). Nestas consultas, como por certo noutras, a idade

é sem dúvida um factor significativo, já que os problemas de saúde tendem, naturalmente,

a agravar-se com os anos, crescendo assim a probabilidade de pessoas com idade superior

a 40 anos acorrerem mais a este tipo de consultas. Convém notar, contudo, que um

número significativo de consultados (15) se situa entre os 21 e 40 anos, o que revela bom

acolhimento desta proposta terapêutica entre camadas mais jovens, sugerindo que o

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Sistemas terapêuticos em confronto

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interesse pela macrobiótica não se verifica apenas entre aqueles que têm mais idade, mas

também entre os mais jovens161

.

Relativamente à área de residência dos consultados é de salientar que a maioria

(30) reside em Lisboa e na Grande Lisboa. Tal justificar-se-á pelo facto de o consultório

se situar nesta cidade, pois o critério da proximidade e facilidade de contacto não pode

deixar de ser aqui relevante. O facto de aqui se encontrar mais disponível informação

relativamente ao tipo de abordagem proposto pela macrobiótica é também um aspecto

que julgo ser relevante. Apesar do maior peso nas consultas de indivíduos que residem

em Lisboa ou grande Lisboa, é, ainda assim, significativa a presença no consultório de

pessoas provenientes de outras zonas:

Quadro 13 - Distribuição de acordo com a residência

Açores Alentejo Algarve Centro Lisboa Madeira Norte Outro

país

- - - 12 30 - 3 6 50

Efectivamente, o peso dos que vêm de outras áreas que não Lisboa ou Grande Lisboa é

relevante – 20 indivíduos. A distribuição dos consulentes pelo resto do país apresenta

alguma expressão na região centro, sobretudo Coimbra e Leiria (12), pouco significado

no Norte (3) e nenhum no sul. Aspecto significativo é o facto de seis dos pacientes

residirem no estrangeiro, dois na Alemanha, um no Brasil e três em Espanha. Os que

residem na Alemanha são portugueses aí a trabalhar, mas, nos outros casos, trata-se

efectivamente de estrangeiros que procuram estas consultas para resolver problemas

pessoais. O facto de serem os espanhóis aqueles que em maior número se apresentaram

nestas consultas, deve-se tanto à proximidade geográfica, com facilidade nas deslocações,

quanto a uma certa falta de oferta de consultas deste tipo em Espanha - pelo menos de

consultas consideradas de qualidade162

. Por outro lado, o facto de haver contactos

frequentes entre as escolas espanholas de macrobiótica e o IMP, facilita este contacto. É

também frequente a deslocação de alguns professores portugueses de macrobiótica a

161 Este dado é, de resto, congruente com dados relativos aos alunos que frequentam os cursos de

macrobiótica no IMP. Também aí é possível observar um significativo número de pessoas com idade

inferior a 30 anos. 162 Pude ouvir esta opinião relativamente às consultas a alguns alunos espanhóis que frequentaram o curso

curricular de macrobiótica em 2008.

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«À Mesa com o Universo»

308

Espanha, o que evidencia recepção positiva aos mesmos e, possivelmente, uma menor

expressão da macrobiótica em Espanha por relação a Portugal, pelo menos no que diz

respeito à formação. Os casos de sucesso na superação de certas doenças verificados em

Espanha e que se tornaram conhecidos por aqueles que se interessaram pela macrobiótica,

funcionaram também como estímulo para que outros vissem na macrobiótica uma

possibilidade de resolução dos seus problemas.

Um outro dado a salientar tem a ver com a origem urbana da maioria dos

inquiridos. Apenas dois dos consulentes revelavam relação com o mundo rural e, mesmo

nestes casos, tratava-se de indivíduos que mantinham actividades fora desse contexto163

.

Relativamente às profissões dos consulentes é possível observar uma predominância

numa área que inclui as profissões científicas técnicas e artísticas.

163 Refiro-me aqui ao mundo rural num sentido muito tradicional do termo, justamente aquele que tem a

ver com uma ligação forte à agricultura e organização do quotidiano em função das actividades agrícolas.

É evidente que as transformações ocorridas no mundo rural nos últimos tempos desfiguraram

completamente a imagem de dependência da agricultura. Os novos modos de vida nestes contextos

articulam ainda várias actividades, sendo a agricultura uma fonte de rendimentos secundária.

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Sistemas terapêuticos em confronto

309

Como atrás referi, a prevalência na categoria 2 (Especialistas das Actividades

Intelectuais e Científicas) é bem visível neste quadro, evidenciando que aqueles que

recorrem a estas consultas têm, em geral, um nível de instrução acima da média, facto

que apoia a ideia de que se trata de pessoas relativamente bem informadas, sendo

expectável a existência de capacidade de avaliação relativamente a diferentes propostas

de tratamento. Por outro lado, é de salientar que muito embora acorram a estas consultas

sobretudo pessoas com profissões que exigem habilitações académicas de nível superior,

encontramos também alguns operários e trabalhadores da construção civil, profissões sem

grandes exigências ao nível da formação escolar. Esta presença cria, por vezes, a ideia de

uma certa heterogeneidade entre os consultados, mas ao analisarmos os dados podemos

comprovar que a sua expressão é diminuta.

A categoria «Técnicos e Profissões de Nível Intermédio», bem como a categoria

«Pessoal Administrativo», ocupam também um lugar com algum significado (6 e 3

indivíduos respectivamente), revelando uma afluência às consultas de pessoas ligadas,

Quadro 14 - Distribuição segundo a profissão

0. Profissões das Forças Armadas -

1. Representantes do poder legislativo e de órgãos executivos,

dirigentes, directores e gestores executivos 1

2. Especialistas das Actividades Intelectuais e Científicas 20

3. Técnicos e Profissões de Nível Intermédio 6

4. Pessoal Administrativo 3

5. Trabalhadores dos serviços pessoais, de protecção e segurança e

vendedores 1

6. Agricultores e trabalhadores qualificados da agricultura, da pesca e da

floresta -

7. Trabalhadores qualificados da indústria, construção e artífices 4

8. Operadores de instalações e máquinas e trabalhadores da montagem -

9. Trabalhadores não qualificados -

Desempregados 1

Reformados 10

Estudantes 3

Outra situação 1

50

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«À Mesa com o Universo»

310

sobretudo, à área dos serviços. O número de reformados é também muito significativo.164

Entre os 10 reformados que se apresentaram no consultório, pelo menos três haviam

exercido profissões que podemos incluir na categoria 2 (Especialistas das Actividades

Intelectuais e Científicas), designadamente, professora e jornalista, músico e funcionário

de embaixada na área da cultura.

Se para muitos dos que vêm à consulta a macrobiótica já é uma prática conhecida,

vista como podendo proporcionar alguns benefícios em termos de saúde, para outros a

consulta constitui uma revelação relativamente a novos produtos alimentares, receitas e

técnicas para os confeccionar. Dos 50 indivíduos que vieram às consultas, 27 já

conheciam a macrobiótica e tinham tido algum tipo de contacto com esta prática

alimentar, tendo sido de sua própria iniciativa a decisão de recorrer a este tipo de

consulta. Quanto aos restantes (23), ainda assim um valor bastante expressivo, vieram

porque foram aconselhados por pessoa conhecida ou, nos casos de menores, porque

foram trazidos pelos pais. Constata-se, portanto, que é muito significativa a influência de

pessoas próximas na tomada de decisão de recorrer a um consultor na área da

macrobiótica. Este facto não é uma novidade, já que, relativamente a outro tipo de

consultas este tipo de indicação ocorre frequentemente. Julgamos importante sublinhar,

de acordo com estes dados, que o recurso à consulta de macrobiótica é feito por um

número significativo de pessoas com poucos ou nenhuns conhecimentos nesta área. Este

aspecto, tendo em consideração o valor monetário relativamente avultado da consulta

(cerca de 100€ em 2008), evidencia disponibilidade mental para ouvir, e, em alguns

casos, seguir uma proposta terapêutica bem distinta das abordagens mais convencionais.

Das 50 pessoas que vieram à consulta, 21 revelaram ter já muitos conhecimentos

na área da macrobiótica, dado que já seguiam o regime alimentar a ela associado e, em

alguns casos, tinham vindo a consultas anteriores. Outros 17 consulentes revelavam

também alguns conhecimentos na área da macrobiótica, mas desconhecimento

relativamente a certos produtos específicos. Por outro lado, 12 dos consulentes não

tinham qualquer tipo de conhecimento relativamente à macrobiótica, sendo para eles as

indicações dadas no consultório de carácter inteiramente novo.

Os motivos que trouxeram estes indivíduos ao consultório foram extremamente

variados. Dos distúrbios apresentados há a destacar os cancros (curados e sob vigilância

164 Como referi atrás, nem sempre foi possível registar as profissões desempenhadas anteriormente pelas

pessoas deste grupo. Desta forma, as diferenças entre elas foram essencialmente detectadas a partir da

situação de interacção e de verbalizações relativamente a actividades exercidas

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Sistemas terapêuticos em confronto

311

ou em tratamento), sobretudo cancros de mama (sete entre as onze situações de cancro

eram cancros de mama); os problemas digestivos; cansaço e falta de energia, problemas

renais e de tensão arterial e problemas de coluna e dos ossos. No quadro que se segue

apresento as principais patologias apresentadas. As categorias utilizadas não se excluem

mutuamente, dadas as diferentes implicações de certas doenças, mas foram consideradas,

ainda assim, uma das formas mais plausíveis de arrumar a diversidade encontrada:

Quadro 15 - Problemas de saúde

Problemas apresentados

Cancros 11

Problemas digestivos 10

Problemas renais e de tensão arterial 6

Cansaço, falta de energia 5

Problemas de ossos e coluna 4

Doenças auto-imunes 3

Peso em excesso 2

Problemas ginecológicos 2

Problemas dermatológicos 1

Problemas de sangue 1

Problemas na tiróide 1

Problemas cardio-vasculares 1

Inespecífica 3

Esta é pois uma primeira caracterização que podemos fazer do conjunto de indivíduos

que se dirigiram a esta consulta e que ajuda a enquadrar os dados relativos ao encontro

entre consultor e consulente.

A relação consultor/consulente que se estabelece no consultório caracteriza-se

pela cordialidade e pela escuta atenta dos problemas apresentados. Muito embora a

relação entre ambos seja uma relação assimétrica, na medida em que um dos elementos se

encontra numa posição mais vulnerável (a do que procura aconselhamento) e outro na

posição mais protegida (a de conselheiro), é procurada uma proximidade com o paciente

que atenua a distância existente. Como os encontros têm uma duração média de 1 hora,

torna-se possível uma exposição detalhada dos problemas e uma orientação

pormenorizada. A assimetria a que aludo não tem os contornos sugeridos por Parsons

(1951), ou seja, a distância em termos sociais entre o consultor e consulente não é um dos

factos mais relevantes. Por outro lado, o paciente não é visto como sujeito passivo, tal

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como ocorria no modelo funcionalista (Bury, 1997), mas como alguém que tem nas suas

próprias mãos o processo de cura e a quem se pede explicitamente uma atitude activa,

uma atitude que pode significar uma mudança no estilo de vida.

O tipo de interacção que ocorre no consultório decorre sobretudo de aspectos

verbais e não-verbais da dimensão comunicacional. A abertura face ao outro, quer da

parte do consultor quer do consulente, parece ser condição indispensável na definição de

um processo de tratamento, um processo que exige alguma negociação e o reequacionar

de diversos aspectos relativos ao estilo de vida. Foi possível detectar que havia por parte

do consultor uma notável capacidade para perceber se as pessoas iriam ou não ser

capazes de introduzir mudanças nas suas vidas. Um exemplo do que se afirma pode ser

dado pelo caso de um homem, próximo da idade de reforma, que viera ao consultório

acompanhado da mulher por motivos que tinham a ver com a pressão arterial. Pelo

diálogo estabelecido e pelo tipo de reacção da mulher face a sugestões nas mudanças

alimentares, facilmente se percebeu que iria ser difícil produzir alterações significativas,

pois era a mulher que iria fazer as compras e cozinhar. A fraca receptividade demonstrada

pela mulher denunciava, desde logo, uma dificuldade acrescida de seguir uma

alimentação de orientação macrobiótica. De acordo com a percepção das circunstâncias

que envolviam diferentes indivíduos, o consultor procurava então adaptar as orientações a

diferentes casos, procurando observar as alterações que as pessoas podiam efectuar. A

ideia de uma alteração radical dos hábitos alimentares nem sempre foi sugerida,

promovendo-se antes uma mudança gradual e que criasse menos ansiedade. Como

vemos, a busca de níveis de entendimento é procurada pelo consultor, mas é necessária

também alguma motivação e receptividade por parte dos consultados. Receptividade para

acolher novas linguagens, novos campos semânticos, e motivação para alterar gestos do

quotidiano.

Dimensão relevante no processo comunicacional é a forma como a palavra é aí

gerida. É possível verificar que nos minutos iniciais é estabelecido um pequeno diálogo

entre consultor e consulente, destinado à apresentação e em que são abordadas questões

do quotidiano que são meramente introdutórias, nada têm a ver com os problemas que

motivaram a consulta (locais de residência, trabalho, eventuais amigos em comum, etc.),

mas que são importantes, na medida em que desencadeiam envolvimento emocional e

aproximam consulente e consultor. O uso da palavra, por não estar ainda centrado em

nenhum dos interlocutores, aumenta a empatia, de tal forma que aquele que acorre à

consulta se sente mais familiarizado, não só com o terapeuta, mas também com o

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ambiente do consultório. Só após a apresentação é disponibilizado tempo ao paciente para

fazer uso da palavra. A enunciação que o paciente faz de si e dos seus problemas, bem

como o modo como gere a palavra, são reveladores, como nota por exemplo Fainzang

(2001), das suas pertenças em termos sociais e culturais. No caso vertente, os indivíduos

menos escolarizados tendiam a usar menos a palavra e a destacar a autoridade do

consultor, acentuando o carácter hierárquico da relação. Muito embora o consultor não

fosse médico, era tratado habitualmente com deferência, sendo comum a expressão

“senhor doutor”. Uma certa relação de submissão face a uma autoridade associada ao

consultório é assim visível, sendo de alguma forma comparável com a relação de

submissão dos católicos face aos médicos, constatada por Fainzang (2001:134). Para esta

autora, essa submissão seria construída através da relação que se teriam habituado a ter

com a autoridade religiosa, no caso a religião católica, o mesmo não se passando com

protestantes e judeus. As diferentes condutas face à autoridade do médico (de resistência,

submissão ou negociação), estariam assim ligadas ao modo pelo qual os indivíduos

aprenderam a posicionar-se face à autoridade, estando esta aprendizagem estreitamente

ligada com as pertenças religiosas. Nos casos que observei, não me centrei em pertenças

do ponto de vista religioso, dado que este aspecto raramente foi evocado. O que pude

observar, efectivamente, foram diferenças em termos de postura e de gestão da palavra

que derivavam sobretudo da idade, da formação das pessoas e das profissões que

exerciam ou tinham exercido.

Na parte final da consulta o uso da palavra cabe mais ao terapeuta, e é feita no

sentido de esclarecer o paciente sobre os produtos e as formas de cozinhar na

macrobiótica, dando-se conselhos e fazendo-se recomendações sobre tratamentos

específicos. A passagem desta informação é feita com a ajuda de um dossier sobre

macrobiótica que é dado a cada paciente na primeira consulta – dada a afluência de

pacientes espanhóis, foi também elaborado um dossier em castelhano. Sem esta

orientação escrita, seria difícil para os que estão menos familiarizados com a

macrobiótica seguirem as recomendações que lhes são feitas. Nesse dossier encontramos

um glossário de termos, recomendações relativas a estilos culinários, informações sobre a

alimentação macrobiótica padrão, sobre alimentos que devem ser usados regularmente,

ocasionalmente ou que devem ser evitados, receitas diversas de sopas, pequenos-almoços,

pratos principais, remédios caseiros, etc. Efectivamente, as mudanças a operar em termos

de alimentação podem ser tantas que este tipo de documentos se torna indispensável. Na

parte final da consulta, o paciente é sobretudo um ouvinte atento. Muito embora sejam

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314

frequentes os casos de pessoas que não seguem as recomendações que lhes são dadas, tal

como me foi referido pelo consultor, estas são sempre ouvidas com atenção.

O modelo de relação consultor/consulente que aqui se encontra não é um modelo

fundado numa autoridade em termos de conhecimentos científicos; a autoridade do

consultor advém, sobretudo, da sua experiência e dos muitos casos de sucesso no

tratamento de doenças que não foi possível sanar através da medicina convencional. Por

outro lado, neste modelo de relação o consulente não é encarado apenas do ponto de vista

biológico, mas tendo em consideração aspectos psíquicos e sociais. Procura fundar-se na

confiança, franqueza e sinceridade, de forma a criar uma relação mais humanizada do que

aquela que é possível encontrar em muitos consultórios médicos. A relação procurada,

ainda que não seja decalcada de um modelo teórico a seguir, vai assim de encontro a

alguns dos aspectos defendidos por vários autores que aspiram a um modelo do encontro

terapêutico mais humanizado (Cassel,1991; Hahn,1995). Idealmente deve derivar mais de

uma intensa interacção e processo de negociação do que da imposição de um tratamento

(Goffman, 1971). Não sendo autoritária, a relação consultor/consulente identifica-se

pouco, como referi, com o modelo proposto por Parsons (1951), modelo onde o carácter

assimétrico da relação era um dos aspectos mais significativos e estava na base da

obtenção de um consenso capaz de reabilitar o doente para o sistema social. O que

encontramos é uma solução que parece resultar da interacção e da negociação, mas onde

a persuasão e os argumentos utilizados procuram atribuir uma posição de força aos

tratamentos preconizados pela macrobiótica, assentes sobretudo na alimentação, em

detrimento dos tratamentos propostos pela biomedicina que são desvalorizados, ainda que

por vezes sejam considerados inevitáveis. Assim, embora a solução encontrada resulte da

interacção e da negociação, não deixa de salientar, de forma subtil, a autoridade da

proposta macrobiótica em relação a outras formas de tratamento, como se houvesse um

campo ideológico a defender. No aconselhamento não se procura esperançar os pacientes

para o tratamento de doenças que se sabe, à partida, não terem cura. Faz-se referência,

isso sim, a indivíduos com problemas semelhantes que conseguiram melhorar, ou seja,

projectando de forma subtil a possibilidade de cura ao paciente que se encontra no

consultório. De facto, o exemplo de outros casos, tantas vezes evocado, possui um efeito

retórico notável e deixa no paciente a ideia de que se outros se puderam curar, esse pode

também ser o seu caso.

Os indivíduos que aparecem no consultório evidenciam, de uma forma geral,

uma atitude activa no tratamento das suas doenças, não se cingindo apenas às

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Sistemas terapêuticos em confronto

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prescrições médicas que lhe são apresentadas, antes procurando outras soluções.

Tomam o corpo como território para decisões individuais (decisões condicionada,

evidentemente, por informação diversa) e não se satisfazem com a orientação dada pela

medicina convencional. Surgem como agentes que se vêem como responsáveis pela sua

própria saúde, não se sujeitando acriticamente às prescrições médicas. Por vezes

ignoram mesmo essas prescrições médicas ou conjugam-nas com outras vias

terapêuticas que consideram adequadas para resolver os seus problemas.

No consultório, ainda que com frequência sejam desenvolvidas críticas à

biomedicina e às suas propostas mais invasivas, bem como ao recurso excessivo a

medicamentos, são frequentemente levados em conta os meios de diagnóstico a ela

associados, bem como algumas das suas prescrições em termos de tratamento. Verifica-

se uma certa fluidez em termos de abordagem do corpo, que leva a que a biomedicina

possa ser integrada nas respostas dadas pela macrobiótica. O caso de Francisca (nome

fictício), reformada, com 67 anos, é ilustrativo do que se afirma. Conhecia o consultor

desde os seus 40 anos e acreditava nele porque há muitos anos tinha tido problemas de

saúde que não conseguira resolver com a medicina convencional mas que superara com

a ajuda da macrobiótica. Vinha agora ao consultório porque dizia ter uma infecção

pulmonar que não passava, “andando sempre com catarro”. Queixava-se também de

flacidez na pele, dizendo que “a sua pele estava a cair aos bocados”, bem como de

problemas nas suas relações familiares. Pelo que me foi referido pelo consultor,

posteriormente, tratava-se de uma mulher que tinha sido muito atraente e que não estaria

a aceitar bem o envelhecimento. O seu estado era de desequilíbrio, tendo trazido

relatório médico em que era classificada pelo psiquiatra como portadora de doença

bipolar. Não reconhecia, no entanto, a origem psíquica dos seus problemas, centrando-

se no detalhe minucioso de incómodos físicos diversos. A orientação que pretendia era

sobretudo para esses incómodos, não dando importância alguma ao tratamento de

aspectos psicológicos. Foi-lhe então recomendado que seguisse a alimentação

macrobiótica padrão, bem como algumas recomendações específicas, que incluíam

tomar os medicamentos receitados pelo médico e beber um copo de vinho de vez em

quando para descontrair. Como é bom de ver, estas não são as recomendações que mais

esperaríamos num consultor de macrobiótica, mas são um bom exemplo de como se

procuram soluções conjugadas e de que nem sempre são desprezadas as orientações

dadas por médicos convencionais. Para certas situações elas são mesmo a melhor

solução.

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«À Mesa com o Universo»

316

O papel do consultor a este propósito é relevante. O seu posicionamento nunca é

o de desaconselhar o recurso à consulta médica – é provável que seja também para se

proteger que utiliza esta estratégia defensiva – mas o de apresentar outras possibilidades

de tratamento que, em alguns casos, permitem ignorar totalmente as prescrições

médicas, enquanto noutras exigem essa solução conjugada. Sempre que é trazida

informação médica para o consultório ela é analisada com atenção, pois constitui

informação importante para a identificação de problemas, ainda que estes possam ser

situados de forma diferente pelo terapeuta. Por exemplo, um cancro na mama direita

revela também, de acordo com o consultor, uma afecção do fígado (órgão árvore), que

precisa assim de ser tratado, enquanto um cancro na mama esquerda é revelador de

desequilíbrios ao nível do baço e pâncreas (órgãos solo). Em casos de cancro, a

informação trazida pelo consulente relativamente aos marcadores tumorais é uma boa

indicação sobre a evolução da doença e do tipo de intervenção que deve ser feita. Os

indivíduos que se vêem afectados por este tipo de doenças sentem assim necessidade de

se mover entre universos terapêuticos distintos mas complementares.

O caso de Julieta (44 anos, licenciada em economia, administrativa) é ilustrativo

de uma forma activa de gestão da doença e também de como as políticas de saúde não

têm sido definidas no sentido de acolher ou enquadrar outras opções em termos de

tratamento. Praticante de macrobiótica há alguns anos, após um divórcio é-lhe detectado

um cancro na mama esquerda. Decide tratar-se com recurso à macrobiótica, optando por

escolher uma ginecologista que sabe concordar com as suas escolhas e dar-lhe a

orientação necessária. Orientação para que se possa sentir mais suportada nas suas

opções e para se mover no SNS com menos dificuldades. A ginecologista representa, na

verdade, alguém dentro do sistema a quem é reconhecida autoridade em termos

médicos, o que permite a Julieta, por exemplo, ir realizando os exames necessários, sem

ser lançada nos habituais tratamentos para as situações de cancro de mama traçados no

âmbito da biomedicina e que implicam frequentemente tratamentos agressivos como a

quimioterapia, radioterapia e mastectomia. Vale a pena notar, de resto, a propósito da

escolha de certos médicos, que entre os praticantes de alimentação macrobiótica circula

informação relativa a médicos que se sabe serem mais receptivos a modos de tratamento

menos convencionais.

Julieta decide agir sobre o seu corpo através da recusa do tipo de tratamentos

que se encontram estabelecidos para casos como o seu e adopta uma atitude activa na

busca das soluções que lhe parecem mais acertadas. Em vez de se submeter ao

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Sistemas terapêuticos em confronto

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tratamento que o SNS lhe oferece, acredita na possibilidade de vencer a doença através

de outros recursos. Estimulada pelos casos de cura de que ouviu falar a alguns dos

praticantes de macrobiótica e em que não houve recurso a tratamentos como a

radioterapia e a quimioterapia, decide-se por seguir a macrobiótica. A sua opção não é

fácil e refere a dificuldade que sentiu no centro de saúde a que se dirigiu para pedir uma

baixa médica. A doença deixava-a muito debilitada, pelo que não se sentia capaz de

trabalhar e teve, por este motivo, que se dirigir ao centro de saúde para pedir ao seu

médico de família um atestado médico que lhe permitisse faltar ao trabalho e assim

descansar. A sua médica de família acabou por tomar conhecimento dos resultados de

exames que efectuara e ficou alarmada com o facto de Julieta ainda não se encontrar em

tratamento com os resultados que apresentava, tendo mesmo ponderado a possibilidade

de a enviar para o Instituto Português de Oncologia. Considerando uma loucura a

negação do tratamento habitual, contactou mesmo o ex-marido para o colocar a par da

situação, já que era a única pessoa mais próxima de quem tinha o contacto.

Julieta, que não revelara as suas decisões em termos de tratamento, por saber que

não iriam ser bem interpretadas, vira-se assim numa situação em que se sentia alvo de

reprimendas médicas e sem alternativa que lhe permitisse justificar as faltas ao trabalho.

Esta é, pois, uma situação em que a paciente sentiu que havia, por parte do médico, uma

dificuldade em acolher a sua decisão relativa doença, e que, por isso, implicou a

omissão do tipo de tratamento por onde pretendia enveredar. Este caso coloca também

em discussão a questão da soberania sobre o corpo, evidenciando o quanto esta questão

pode ser melindrosa quando atitudes diversas face à doença se confrontam.

Relativamente a este caso, não é possível sequer analisar a reacção do médico face a um

tratamento no âmbito da macrobiótica, porque tal nem chegou a ser revelado, com

receio de que essa via fosse ridicularizada e tida como ineficaz. Conhece-se apenas a

forma alarmada como o médico reagiu face à suposta passividade da paciente perante a

doença. Uma reacção compreensível dado o conhecimento da médica sobre a doença e a

sua possível evolução e dados os imperativos de carácter deontológico que

possivelmente a guiavam.

Uma falta de abertura perante outras vias de tratamento foi assim detectada por

Julieta, que lamenta que apenas os serviços médicos convencionais possam atestar o

estado de doença dos indivíduos. Este facto sugere, na sua opinião, desrespeito por

decisões individuais e beliscaria concepções como as da soberania do indivíduo sobre o

seu corpo. Deparamo-nos aqui com procedimentos específicos, suportados pelo Estado,

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«À Mesa com o Universo»

318

para avaliar o estado de saúde, e deparamo-nos com o poder inequívoco da biomedicina

enquanto única forma plenamente legítima de avaliação desse estado. Este facto

reenvia-nos, inevitavelmente, para a ideia de estatização do corpo e para a dificuldade

em agir fora do quadro de acção do Estado. No entanto, é de realçar, que, apesar dessa

dificuldade, tomadas de decisão como as de Julieta revelam a possibilidade de excluir o

corpo biológico da inteira subordinação ao Estado. Revelam também uma forma

estratégica de relação com a biomedicina, que conduziu Julieta a procurar uma

ginecologista que desse o necessário suporte às decisões que decidiu tomar. Tanto este

caso como o de Teresa, casos em muito similares, não revelam na verdade uma rejeição

da biomedicina no seu todo, mas apenas de algumas práticas que consideram ser mais

invasivas e agressivas e que procuram evitar. O que o testemunho de ambas deixa

entender é que buscam uma solução de articulação entre a biomedicina e um processo

terapêutico não convencional.

Este tipo de casos torna importante a discussão em termos de deontologia

médica. Como trabalhar com pacientes que não estão dispostos a acatar todas as

orientações dadas, mas apenas algumas? Como acompanhar um doente que apenas está

disposto a fazer exames de diagnóstico? Como referi, não analiso neste trabalho o modo

como o poder biomédico se relaciona com as margens, mas, sobretudo, como a partir

das margens se procuram articulações com a biomedicina. Pelos casos aqui

apresentados, a qualidade dessa relação parece ser um assunto que depende de cada

médico. Alguns estão disponíveis para um acompanhamento que ultrapassa o quadro da

biomedicina e promovem formas de articulação com outros sistemas terapêuticos,

enquanto outros não demonstram qualquer abertura para esse tipo de situações. Em todo

o caso, este debate não pode deixar de remeter para as políticas do corpo e para o modo

como deve ser pensada a circunstância da articulação entre diferentes sistemas

terapêuticos. Como referem Faizang (2011) e Cunha e Durand (2011), é enquanto

sujeitos políticos que estes indivíduos, que querem soluções distintas, devem ser

pensados. Assim, tal como Cunha e Durand observam a propósito de decisões dos pais

relativamente à não vacinação dos filhos, «Aquilo a que se aspira é (…) mais espaço

para a escolha, participação e agencialidade individual dentro dos âmbitos regulados

pelo Estado» (2011:225). O que desta forma se constata é que, muito embora exista um

corpo, uma pessoa, um sujeito, que tem existência fora do quadro do Estado, há um

desejo de que a partir dele se defina um mais amplo espaço de escolhas e possibilidades

de articulação. Argumento, neste contexto, que o trabalho nas margens é já um trabalho

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Sistemas terapêuticos em confronto

319

de erosão feito em torno daquele que é o sistema hegemónico, e pode constituir, como

tenho vindo a afirmar, um input para a sua transformação.

Julieta seguiu um conjunto de recomendações alimentares que passaram numa

fase inicial, pela supressão de óleo/azeite (é de referir que no caso de cancro de mama e

também de outros tipos de cancro os óleos são vistos como factor de disseminação das

células cancerosas), em busca de um tipo de alimentação que não contribuísse para

nutrir este tipo de células e que reforçasse o sistema imunitário. A perspectiva sobre o

cancro na macrobiótica é a de que é possível diminuir o número de células cancerosas

se forem eliminados os produtos que mais as nutram, como os óleos e o açúcar. Ter

como referência a alimentação padrão macrobiótica é importante, mas mesmo dentro

desta há algumas restrições a fazer, como o consumo de leite de soja ou de tofu,

alimentos associados a uma maior produção de estrogénios, e que são vistos como

alimentos a evitar em casos de cancros sensíveis a estas hormonas.

Desde a última consulta que efectuara, os nódulos que tinha na mama tinham

reduzido para metade. Em contrapartida, apresentava uma ligeira anemia, para o que lhe

foi recomendado soba (massa feita a partir de trigo sarraceno) com shoyu (molho de

soja) e mochi (preparado feito a partir de arroz glutinoso socado). Para equilibrar o baço

foi-lhe ainda recomendado que ingerisse suco de couve e de cenoura. A alimentação

deveria ser, nesta fase, um pouco mais diversificada e elaborada, recorrendo a diferentes

técnicas culinárias. A actividade física e a actividade criativa foram também vistas

como muito importantes na superação da doença. Escutar o corpo e divertir-se, foram

algumas das recomendações feitas. O estado emocional é visto como sendo muito

importante no tratamento das doenças, tendo o consultor “receitado”, neste caso

concreto, que a paciente arranjasse um namorado. A zona do chakra do coração teria,

no seu entender, a ver com os afectos, pelo que era importante resolver problemas a este

nível. O recurso a conceitos ligados a outros sistemas conceptuais que não a

macrobiótica, como o de chakra (vórtice de energia vital), evidencia também a

permeabilidade a outras narrativas e conceptualizações sobre o corpo, ainda que os

elementos estruturadores do discurso sobre o corpo sejam basicamente outros.

Através do caso de Julieta, e também do que considerámos anteriormente, vemos

que a solução para os problemas é concertada e que a macrobiótica não dispensa sempre

os exames médicos. Sempre que estes são apresentados constituem uma importante

indicação para o tratamento a seguir e em alguns casos as pessoas continuam a tomar os

medicamentos que lhes foram receitados, ainda que diminuindo a quantidade dos

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«À Mesa com o Universo»

320

mesmos. Foi esse o caso de uma rapariga de 15 anos, seguida há algum tempo no

consultório e que padecia da doença de Crohn. Embora não tivesse deixado a

medicação, assegurava, ter melhorado imenso com a alimentação macrobiótica.

Também um orquestrador, que tinha tido um aumento brutal do número de plaquetas no

sangue, conseguira a sua diminuição combinando a alimentação macrobiótica com a

medicação. No caso de Joana, 24 anos, professora de dança, a solução proposta seria

mesmo combinar uma prática alimentar macrobiótica com a hemodiálise. Descobrira,

acidentalmente, havia uma semana, que os seus rins não funcionavam bem. Ao medir a

tensão constatou que a mesma estava muito elevada (13/17), tendo-se dirigido para o

hospital, onde a tensão máxima subiria para 19. Ao fazer exames clínicos constatou-se

que os seus rins eram muito pequenos; não se tinham desenvolvido convenientemente,

pelo que teria que fazer hemodiálise até conseguir a doação de um rim. Os pais, que a

acompanhavam na consulta, estavam dispostos a tal, mas estavam também cientes de

que as práticas alimentares eram importantes. A mãe tivera contactos com a

macrobiótica na sua juventude e considerava-a importante no tratamento da filha, que

apenas temia ter que deixar de dançar.

Por estes breves exemplos podemos constatar que em várias situações é

necessária uma solução de conciliação entre diferentes sistemas de cura e que por vezes

não é possível deixar de recorrer às respostas da medicina convencional. Todavia, ainda

que se opte por fazer quimioterapia ou outros tipos de tratamento mais invasivos, a

adopção de uma prática alimentar macrobiótica costuma dar, segundo o consultor, bons

resultados. Foi esse o caso de António, reformado, 68 anos, com um cancro na garganta.

Fez quimioterapia mas também macrobiótica sob influência do filho. Antes de começar

com a alimentação macrobiótica tomava medicamentos para baixar os níveis de

colesterol, para a tensão e para o ácido úrico. Na altura da consulta a que pude assistir,

já não tomava nenhum desses medicamentos e o seu problema de cancro estava a

evoluir de forma muito positiva. Evidentemente que nem todos os casos terão este

sucesso, mas a verdade é que muitos dos que vieram ao consultório, e que seguiram as

orientações que lhes foram dadas, melhoraram bastante. Quanto àqueles que

apresentavam, especificamente, situações de cancro, conseguiram ver baixar de forma

significativa os valores relativos aos indicadores tumorais.

A interpretação que é feita aos resultados obtidos com a macrobiótica depende

muito do tipo de adesão do paciente a esta prática. Se as orientações dadas forem

seguidas com rigor – o que acontece em menos de metade dos casos dos que acorrem ao

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Sistemas terapêuticos em confronto

321

consultório, segundo informação do consultor – acredita-se que a perspectiva de

melhoria da condição do paciente é significativa. Um dos problemas detectados, é que a

adesão aos princípios alimentares da macrobiótica se encontra dependente, ainda de

acordo com o terapeuta, de vários factores: da gravidade do problema apresentado, da

crença que o paciente deposite neste sistema de cura, da sua persistência e da sua

disciplina. Referia o consultor a propósito de situações graves que tinham sido

ultrapassadas:

As pessoas que conheço com este tipo de problemas, e que os conseguem

resolver, revelam todas esta capacidade de andar para a frente, de ir mesmo

para a frente, sem vacilar (…). Têm todas mais ou menos o mesmo estilo, o

estilo de ir para a frente. Há aquelas pessoas que eu e os meus colegas dizemos

que andam naquilo que nós chamamos na gíria o «consultation shopping», vão

à homeopatia, à quiroprática, à macrobiótica…ervas para aqui, ervas para

acolá… numa desorientação tão grande e sem determinação que é difícil de

conseguir.

Estar disposto a mudar de alimentação é, desde logo, apontado como um importante

indicador da obtenção de sucesso no tratamento. Deve notar-se que esta mudança

implica, geralmente, uma outra e mais profunda: no estilo de vida, na atitude perante o

corpo, a doença e a vida. Se se considerar, tal como o consultor em exercício

considerava, que as atitudes mentais e emocionais são fundamentais para explicar a

doença e para encontrar um processo de cura, tornar-se-á facilmente perceptível a

importância destes aspectos. Remetem para dimensões simbólicas, para múltiplos

processos intangíveis que orientam a acção humana e também para emoções que,

sempre de acordo com o terapeuta, encontram nas doenças diversas formas de se

materializar.

Os diversos casos apresentados ao longo deste capítulo remetem-nos para

confrontos entre sistemas marginais e sistemas hegemónicos; remetem-nos para práticas

que interceptam uns e outros sistemas, revelando-se nessa intersecção, na maior parte

dos casos, uma fluidez que permite soluções concertadas entre a biomedicina e a

macrobiótica. As soluções encontradas são, na maioria dos casos, soluções de

articulação que evidenciam indivíduos com flexibilidade suficiente para integrarem, dos

diferentes sistemas terapêuticos com que se cruzam, o que consideram ser mais

adequado para si. Estas escolhas e adequações nem sempre partem exclusivamente

destes indivíduos, mas antes surgem a partir de orientações que lhes vão sendo dadas,

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«À Mesa com o Universo»

322

em diferentes consultórios, pelos respectivos terapeutas, o que evidencia que muito

embora não existam relações formais entre diferentes sistemas terapêuticos, e sejam até

traçadas fronteiras claras entre uns e outros, existe uma relação informal através das

quais se procuram soluções conjugadas. Há assim um dinamismo entre diferentes níveis

que coloca em discussão a necessidade de o tipo de articulações não ocorrer apenas de

modo informal mas de modo mais explícito, de maneira a que não fique dificultado o

recurso a este tipo de práticas. É, portanto, uma discussão ao nível das políticas do

corpo que este tipo de práticas parece exigir.

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Considerações finais

323

Considerações Finais

Esta pesquisa procurou dar conta do processo social que levou à criação e

promoção de um produto social que tem vindo a adquirir uma expressividade crescente

na sociedade portuguesa: a macrobiótica. Que processo foi esse que permitiu que um

produto de clara inspiração japonesa transpusesse as fronteiras do lugar onde nasceu e

fosse adoptado e apropriado na Europa e na América, foi um dos aspectos que esta

pesquisa procurou esclarecer. Um dos pontos fundamentais deste trabalho prendeu-se,

assim, com a circulação e difusão de um produto, a macrobiótica, e o modo como ele foi

sendo promovido e incorporado no mundo ocidental - tanto no plano das representações

que o suportam quanto das práticas que gera. Múltiplos agentes concorreram para esse

processo, alguns enquanto ideólogos e divulgadores, outros como seguidores e

consumidores, outros ainda como observadores críticos.

Para que este processo pudesse verificar-se foi essencial a existência de uma

configuração histórica social e económica particular, a do período pós II Grande Guerra,

com o crescimento económico que se verificou por essa altura e com o retorno gradual a

um cosmopolitismo que a Grande Depressão suspendera. A ideologia do progresso, o

industrialismo e o materialismo que então imperavam, provocaram inevitáveis reacções

pessimistas a um modelo de desenvolvimento onde os indivíduos eram sobretudo

pensados a partir do que podiam consumir, onde o pensamento se tinha tornado,

também ele, numa mercadoria, sendo a linguagem perspectivada como mero

instrumento para a sua publicidade, pelo menos assim julgaram autores como

Horkheimer, Adorno e mais tarde Marcuse (cf. Tar, 1977). A reacção ao materialismo e

à tecnocracia, encarnada por alguns dos movimentos de finais dos anos 50, como a

«Beat Generation»; a atracção pelo Oriente e pelas «experiências espirituais», por parte

de alguns intelectuais e escritores, como Kerouac; os movimentos de contracultura que

teriam o seu auge na década de 1960; a consciência ecológica e o desejo de uma vida

em harmonia com a natureza, foram aspectos que contribuíram para a criação de um

ambiente social que favoreceu a introdução e disseminação da macrobiótica.

Nas críticas dirigidas à modernidade, ao progresso e ao industrialismo, aspectos

que tanto se afastavam do «viver em harmonia com a natureza», ia-se desenvolvendo

uma «consciência ecológica» que exigia outros estilos de vida e outros consumos. Neste

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«À Mesa com o Universo»

324

contexto, a macrobiótica surge como proposta convergente com muitos desses

interesses, sendo adoptada como orientação no mundo por alguns deles. A macrobiótica

propunha não apenas uma vida em harmonia com a natureza, mas também um conjunto

de práticas alimentares que foram tomadas como ajudando a proteger o ambiente. Essas

meiopráticas não apenas contribuíam para essa preservação como também tinham a

vantagem de ter qualidades energéticas e espirituais que contribuíam para um adequado

desenvolvimento humano. Juntava-se às características do tipo de alimentação

proporcionado pela macrobiótica um conjunto de princípios orientadores que na sua

amálgama de conteúdos do taoismo, budismo, xintoísmo e confucionismo

proporcionavam uma visão exótica do mundo. Face a uma modernidade deslumbrada

com as realizações técnicas e científicas, mas ao mesmo tempo descarnada e sem

espírito, a via que a macrobiótica propunha era uma via de reencantamento do mundo,

através da qual cada indivíduo se podia celebrar a si mesmo, ser o seu próprio mestre. A

explicação da «ordem do universo», com toda a sua dimensão simbólica (ver capítulo

3), concorreriam para a formação de um imaginário social onde homens e espíritos

surgiam como formas distintas de manifestação da energia.

Desta forma, é através de uma visão mais espiritualizada do mundo que se vão

desenhando importantes projectos de transformação, individuais e sociais. O

redireccionamento do olhar para um mundo que era mais do que matéria visível,

associado a um discurso de responsabilidade individual, colocariam o indivíduo como

agente fundamental de um processo de transformação social, concretizado primeiro

através de si próprio, através do seu corpo e daquilo de que ele se alimentava, mas que

logo teria repercussões sociais. O corpo surgia, por conseguinte, como lugar de

experiência do mundo que podia proporcionar a realização de transformações

individuais e sociais.

A adopção da macrobiótica na Europa e na América deve ser pensada como

opção feita por indivíduos que vivem em sociedades caracterizadas pela abundância

alimentar. A discussão não se situa aqui em termos de disponibilidade de alimentos e de

ansiedade face à sua escassez, mas sim nos problemas criados pela própria riqueza e

abundância. Neste contexto, a insegurança alimentar não deriva da falta de alimentos,

mas sim dos procedimentos adoptados para os produzir e transformar. As crises

alimentares recentemente ocorridas, «crise das vacas loucas», «frangos belgas com

dioxinas», «gripe das aves», «pepinos contaminados pela bactéria Escherichia coli»

seriam precisamente a expressão dos riscos associados à alimentação e às políticas de

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Considerações finais

325

desregulação ligadas ao sector agro-industrial (cf. Gonçalves, 2007). Ainda que estas

crises específicas não tivessem sido conhecidas por Ohsawa, o fundador da

macrobiótica moderna alertava já para os perigos da industrialização excessiva dos

alimentos e para o modo como estes modificavam as suas qualidades energéticas (em

termos de yin e de yang) nesse processo. Actualmente é também esse espaço alimentar

de produção rápida e excessiva, de elevado processamento e refinamento dos alimentos,

que serve de mote à macrobiótica para desenvolver um discurso sobre o risco de

consumir certos alimentos. Julgo poder dizer-se que a sociedade da abundância

alimentar, com todas as suas vicissitudes e perplexidades, acabou assim por possibilitar

a afirmação da macrobiótica. Os riscos associados ao consumo de alimentos cuja forma

de produção se afastava de uma relação harmoniosa com a natureza, passaram a ser,

desta forma, um bom argumento a partir do qual esta proposta procurou afirmar a sua

visão do mundo e as vantagens de uma alimentação macrobiótica.

Uma cosmovisão particular, como aquela que é proposta pela macrobiótica,

surge impregnada de um conjunto de representações, crenças, ideias e valores que

acabam por orientar as atitudes face aos alimentos e face a um modo de entendimento

do mundo, consubstanciando, dessa forma, um quadro ideológico particular. A análise

das opções feitas no âmbito da prática da macrobiótica, exige, nessa medida, uma

ancoragem nesse recurso orientador das acções que é o fundo ideológico. Dito de outro

modo, é à luz de princípios específicos de orientação que foram divulgados por Ohsawa

e por Kushi, e que têm sido ampliados por diversos formadores no âmbito da

macrobiótica, que devemos procurar compreender práticas e representações. Desta

forma, e tal como foi referido, é compatível com esse quadro ideológico uma visão

holística do universo, em que todos os fenómenos são perspectivados como estando

conectados, afirmando-se um desejo de harmonização entre mundo social e mundo

natural, bem como uma crítica à modernidade, à ciência, ao progresso, à tecnocracia, ao

industrialismo e ao materialismo.

Apesar das incongruências que por vezes possamos observar entre a prática da

macrobiótica e estes princípios, eles são a matriz indispensável a partir do qual devem

ser compreendidas as escolhas em termos alimentares, em termos de cuidados de saúde

e até em termos de estilo de vida. Assim, a opção pelo consumo de produtos alimentares

produzidos em áreas próximas do contexto geográfico em que se reside, próprios da

estação, biológicos e pouco processados, as também por tratamentos supostamente mais

naturais e ainda por formas de viver que se julga serem mais expressivas da

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«À Mesa com o Universo»

326

“consciência ecológica”, como a decisão de construir uma casa com biomateriais (tal

como sucedeu com um casal com que contactei no âmbito deste projecto), devem ser

observadas à luz desse quadro ideológico particular.

A existência de uma visão do mundo, com um conjunto de princípios

orientadores que são comuns a diferentes sujeitos, facilmente nos conduz à ideia de

grupo, de comunidade ou até «novas tribos» como propõe Maffesoli (2000). As minhas

observações conduziram-me à ideia de que a experiência da macrobiótica cria um certo

nível de identidade entre estes indivíduos e permite a criação de redes, trocas de

conhecimento, grupos de afinidade e de interesses que ajudam a sustentar a própria

prática macrobiótica. Pelo facto de terem referências e experiências comuns, pelo

menos as ligadas a uma prática alimentar, estes indivíduos partilham também diversos

consumos, sendo assim possível detectar identidades a este nível. O mesmo se passa

noutros planos, como a frequência dos mesmos locais para fazer compras, a ida aos

mesmos restaurantes, a palestras, cursos de formação, campos de verão, programas

residenciais e até no mesmo consultório. O facto de ter desenvolvido trabalho de terreno

em Braga e Lisboa permitiu-me detectar a existência de uma rede de conhecimentos

pessoais estabelecida a partir da frequência de lugares como IMP ou aulas de yoga.

Uma rede que é facilmente suportada pela internet e pelos muitos blogues e sítios sobre

a macrobiótica que nela existem. Ainda que a ligação entre alguns dos indivíduos que

frequentaram os cursos do IMP possa ter sido intensa num determinado momento e

posteriormente se tenha diluído, apenas surgindo vagamente através de redes

informáticas, ela permanece como referencial de uma experiência comum que

aproximou indivíduos num determinado momento. Há assim diversos aspectos que

apontam para a ideia de comunidade, uma comunidade porosa, instável e aberta, é certo,

mas ainda assim comunidade.

Um outro elemento que me permite enfatizar a ideia de existência de uma

comunidade decorre ainda da minha experiência num encontro internacional de

professores e profissionais na área da macrobiótica em Novembro de 2008. Esse

encontro decorreria em Lisboa (IMP) ao longo de três intensivos dias e nele se

reuniriam cerca de 30 indivíduos de diversos países europeus e de diferentes estados dos

EUA para discutir “o movimento macrobiótico” e os rumos para a macrobiótica. A

referência regular que nesse encontro se fez ao “movimento macrobiótico”, pressupunha

a interiorização da ideia da existência de uma comunidade macrobiótica. Nesse encontro

foi possível observar entre os participantes o desenvolvimento de projectos

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Considerações finais

327

profissionais, e de vida, comuns em diversos aspectos. Muitos destes participantes

dirigiam um centro de macrobiótica no lugar onde viviam e desenvolviam o tipo de

actividades que é típico destes centros (cursos de formação, aulas de cozinha, venda de

produtos alimentares, confecção de refeições e consultas), conheciam-se de outros

encontros e mantinham-se conectados através da internet, veículo de comunicação que

os aproximava e que contribuía para dar conteúdo à ideia de comunidade.

Deve notar-se, no entanto, que o facto de existir um conjunto de interesses que é

comum entre os que seguem a macrobiótica, e de se fazer referência ao “movimento

macrobiótico”, não significa que exista efectivamente uma acção concertada e visível

relativamente a qualquer tipo de reivindicação social - o movimento, se assim lhe

podemos chamar, tem-se mantido silencioso e sem intervenção política significativa.

Ainda assim, nesse encontro internacional a que aludi, havia posições divergentes

relativamente a uma acção social conduzida pelo “movimento macrobiótico”,

permanecendo presente a ideia de que o trabalho a realizar devia ser, sobretudo, um

trabalho individual, orientado para aqueles que procuravam a macrobiótica. Sem agenda

claramente definida, sem outra liderança que não a representada por figuras históricas

como Michio Kushi, sem acção concertada clara, sem mobilização prévia, reconheço

que se poderia até colocar em dúvida a existência de um “movimento macrobiótico”. No

entanto, na correspondência electrónica que recebo de alguns dos participantes que

organizam esses encontros internacionais, esta noção parece ter sido interiorizada, sendo

usada habitualmente para fazer referência a acções desenvolvidas pela comunidade

macrobiótica.

Nem todos os que adoptam uma alimentação macrobiótica são conhecedores dos

seus “princípios filosóficos”, nem agem a partir da apropriação de uma base ideológica

particular. Dos 50 indivíduos que pude observar em contexto de consultório, 23 deles

não tinha tido contacto anteriormente com a macrobiótica. É assim possível seguir um

conjunto de orientações alimentares macrobióticas de forma circunstancial, sem ter a

noção dos significados que lhes subjazem. Acredito que com o decorrer da prática essas

noções possam ser interiorizadas, mas numa fase inicial é efectivamente possível que

esses fundamentos não sejam conhecidos. As razões para adoptar um tipo específico de

alimentação expressam-se de acordo com um conjunto muito vasto de variáveis,

podendo ter a ver apenas com uma condição pontual em termos de saúde e não espelhar

valores nem representações específicas. Podemos assim encontrar indivíduos que

seguem a macrobiótica como se seguissem uma prescrição médica, sem cuidar de saber

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«À Mesa com o Universo»

328

dos pressupostos em que ela se apoia. Resulta daqui a sugestão de que o “movimento

macrobiótico” é um movimento difuso, aberto, de livre adesão, que permite vários

níveis de participação. Para alguns dos que contactei e que fazem uma análise mais

profunda da questão, sobretudo formadores, a prática de uma alimentação macrobiótica

não é, contudo, suficiente para identificar um indivíduo como seguidor da macrobiótica.

Ao conduzir os indivíduos a novos hábitos alimentares, a macrobiótica contribui

para uma alteração no estilo de vida, tal como defendia Ossipow (1997), sendo essa

alteração particularmente visível nos consumos. Esta circunstância não significa,

contudo, que se observem sempre mudanças radicais. Muitos dos indivíduos por mim

contactados continuam a manter as suas profissões, os seus círculos de amigos e as

formas e ritmos de convívio. As minhas observações ao longo de três anos, enquanto

aluna de um curso de formação na área da macrobiótica, não me permitiram detectar

mudanças radicais generalizadas em termos de modo de vida. A maior parte desses

indivíduos manteve as suas profissões e, nessa medida, podemos dizer que manteve

uma parte significativa do seu modo de vida, dada a actual centralidade do trabalho na

estruturação do quotidiano e dos estilos de vida. Em todo o caso, deve ser salientado

que alguns indivíduos empreenderam mudanças significativas neste campo, tendo-se

concentrado em novas actividades profissionais. Para estes, a macrobiótica constituiu

um estímulo para transformarem as suas vidas e para arriscarem novas soluções, como,

por exemplo, a de iniciarem um negócio na área da macrobiótica. Foi esse o caso do

«Semente de Luz - Centro Macrobiótico de Braga», local onde se preparam refeições

macrobióticas, são dados cursos de cozinha, consultas de orientação alimentar e de

shiatsu. O discurso da responsabilidade individual em relação ao modo de vida que cada

um constrói para si, parece ter tido, junto dos que abraçaram novos projectos, uma

particular ressonância, resultando num poder emancipatório capaz de conduzir a novas

realizações.

Iniciei esta pesquisa sinalizando a importância de estudar as margens e concluo

reafirmando essa importância. O sentido que no decurso deste trabalho atribuí às

margens, foi o de áreas menos representativas da sociedade portuguesa e de expressão

residual. Perspectivei estas áreas considerando-as merecedoras de análise, porque

questionavam sistemas dominantes e ofereciam alternativas existenciais face a práticas

hegemónicas. De que modo se contribuía a partir das margens para uma transformação

na sociedade, foi um dos aspectos que guiou esta pesquisa. Pelo caminho percorrido,

considero ser relevante ter em conta o contributo dado pela macrobiótica para uma

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Considerações finais

329

maior pluralidade de práticas na sociedade portuguesa, práticas associadas aos

consumos alimentares mas também a outro tipo de consumos, como a aquisição de

produtos considerados mais ecológicos (roupa, produtos de higiene e cuidados diários,

escolha da habitação…) ou os consumos relacionados com os cuidados de saúde.

Um olhar historicamente situado, que acompanhe os trânsitos da macrobiótica e

os produtos e conhecimentos que são transaccionados, permite detectar o modo como a

introdução e a circulação deste produto social contribuíram claramente para a

transformação do mercado alimentar. Todo um conjunto de produtos derivados da

transformação da soja, mas não apenas estes, foram sendo promovidos pelos que

seguiam a macrobiótica e defendidos como alimentos a integrar na alimentação

quotidiana. No capítulo 3 deste trabalho procurei evidenciar como a criação de

importantes cadeias de distribuição alimentar como a «Erewhon» nos EUA ou a

«Lima», na Bélgica, derivaram da actividade ligada à macrobiótica. Também em

Portugal, o mercado de “alimentos naturais” conseguiu um grande impulso através de

empresas como a «Próvida», «Trigrama» e «Ignoramus», empresas dirigidas por

indivíduos associados à macrobiótica. A soja, analisada por Du Bois (2008) e Mintz

(2008), como produto que até há bem pouco tempo não era reconhecido como

comestível (ver cap. 3), passou a ser um dos principais produtos agrícolas de exportação

de países como os EUA e o Brasil, e passou a integrar as prateleiras dos supermercados

das mais diversificadas formas. É certo que a maior parte da produção de soja se destina

à alimentação animal e utilização industrial, em todo o caso, o lugar cada vez mais

visível que os produtos alimentares derivados da soja têm vindo a ocupar é sintomático

das transformações alimentares que têm ocorrido. No caso específico deste tipo de

produtos, mas também na valorização dos cereais integrais, dos produtos biológicos,

dos alimentos não refinados e pouco processados os indivíduos que desenvolveram

actividades ligadas à macrobiótica tiveram um papel relevante.

As margens podem efectivamente contribuir de forma criativa e inovadora para

transformar a realidade social, pois transportam em si uma visão alternativa face a

tendências que são hegemónicas e, nessa medida, oferecem caminhos singulares para a

concretização de novos projectos. São ainda marcadas por um desejo de experimentação

que convém não desconsiderar, pelo menos ao nível da análise social. A experiência das

refeições macrobióticas nas cantinas universitárias portuguesas, da alimentação

macrobiótica no estabelecimento prisional do Linhó (ver capítulo 4), da criação de

unidades de produção de alimentos como o tofu, seitan, enchidos de soja, revela esse

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«À Mesa com o Universo»

330

desejo de corresponder aos pedidos dos consumidores e também de colocar novos

produtos no mercado.

Mesmo ao nível dos cuidados de saúde é possível observar processos que são

inovadores ainda que por vezes constituam reelaborações de práticas de um passado

recente. A promoção que na macrobiótica se faz do nascimento em casa, desde que não

haja condições específicas de saúde a salvaguardar, desencadeia uma nova forma de

olhar para essa experiência e leva a que diversas mulheres a considerem como

possibilidade. A organização deste acontecimento implica inovação e redes sociais de

apoio, de que fazem parte as doulas, mas também outras mulheres da rede social ligada

à macrobiótica que tiveram experiências similares. Tomando o corpo como campo de

experimentação, ou porque se recusa a vacinação ou porque se recusam os tratamentos

médicos que por vezes são prescritos, optando-se por fazer dos alimentos

medicamentos, estes indivíduos têm experiências com o corpo que, quando bem-

sucedidas, constituem exemplo para os que lhes estão próximos.

A macrobiótica não é um sistema fechado, antes intercepta outros discursos,

estabelecendo conexões com eles. É o que sucede com o movimento da agricultura

biológica, em relação ao qual foi possível estabelecer afinidades (ver capítulo 4). Outros

movimentos, como o da defesa dos animais, são também integrados por alguns dos que

aderem à macrobiótica, observando-se, do mesmo modo, uma proximidade com

discursos associados à defesa do vegetarianismo. Em relação a este último caso,

acrescente-se que é comum encontrar, entre os seguidores da macrobiótica, indivíduos

que anteriormente haviam adoptado uma alimentação vegetariana.

A macrobiótica, enquanto proposta alimentar, deve ser integrada numa vasta

literatura dedicada à relação entre saúde e alimentação, facto que procurei evidenciar no

início do capítulo 3. De Hipócrates (séc. V A.C.), a Alviso Cornaro (séc. XVI), Von

Hufeland (séculos XVIII-XIX) ou John Kellogg (séc. XX), encontramos uma

preocupação comum e fundamental: a de procurar saúde e energia através da

alimentação, buscando melhor fórmula para um corpo vigoroso e longevo. A comida é

usada desde há muito como instrumento moralizador da acção social, não sendo rara a

associação entre um programa de disciplina alimentar e um programa de disciplina

social. Também a macrobiótica com o seu conjunto de preceitos, princípios de

entendimento do universo, representações sobre a comida e orientações (ver capítulo 3)

revela essa dimensão. «Estar à mesa com o universo» significa a incorporação dessas

orientações bem como a tradução das mesmas na acção social.

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Considerações finais

331

A macrobiótica não intercepta apenas discursos a que podemos reconhecer

associação directa, usa também o conhecimento científico, ou pelo menos os fragmentos

que são congruentes com as suas posições. Assim, o modo como a ciência é convocada

nas sessões de formação na área da macrobiótica oscila entre a sua demonização e a sua

instrumentalização. Se, por um lado, a ciência representa a incapacidade para uma visão

holística e é entendida como actividade que dá suporte à desregulação do mundo, por

outro ela é utilizada para sustentar os argumentos que são defendidos na macrobiótica,

como se existisse a necessidade de os credibilizar por essa via. Uma das explicações

para esta situação pode prender-se com o facto de o público que assiste às sessões de

formação ter uma escolaridade acima da média e, por isso, existir a probabilidade de ser

mais receptivo a um discurso que resulta da informação relativa a factos científicos.

Uma outra explicação passará pelo facto de se ver na ciência a única possibilidade de

validação e legitimação externa de uma proposta como a macrobiótica, sendo assim

feito um uso selectivo da informação científica.

Como vimos, a macrobiótica, enquanto produto social, não é imutável, não o

seria nunca, tratando-se de um produto social, mas neste caso uma eventual

cristalização contrariaria os seus próprios princípios. Encontra-se aberta a fenómenos de

recomposição e introduz alterações nas suas concepções e práticas, não sendo de todo

insensível aos discursos de natureza científica, ainda que estes lhe apontem problemas.

Os diversos casos de deficiências do ponto de vista nutritivo que foram apontados à

macrobiótica (ver capítulo 2) parecem ter tido efeito no tipo de recomendações

alimentares feitas. Por exemplo, na ênfase dada à necessidade de consumir peixe, ou na

criação no âmbito da macrobiótica, de uma pirâmide menos restritiva do que as

recomendações alimentares elaboradas por Ohsawa. Uma relação dinâmica entre

diferentes sistemas de conhecimento deve ser assim sugerida.

Neste contexto, convém também dizer que se houve alterações no conjunto de

orientações alimentares propostas pela macrobiótica, também ao nível das pirâmides

elaboradas em departamentos de nutrição, como o Departamento de Nutrição da

Universidade de Harvard, houve modificações que as aproximaram da pirâmide

macrobiótica (ver capítulo 2), como se práticas alimentares mais associadas ao consumo

de cereais integrais e a um menor consumo de carne e lacticínios tivessem ganho

relevância e reconhecimento também num âmbito mais mainstream. O que estes

exemplos sugerem, assim, é a existência de relações dinâmicas entre diferentes níveis,

narrativas e processos operativos, ainda que essa relação nem sempre esteja explícita.

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«À Mesa com o Universo»

332

Resulta deste tipo de fenómenos um conjunto de contribuições que conduz à

transformação de diferentes propostas e que ajuda a operar processos de recomposição.

Nancy Chen (2009: 60) refere, em relação às dietas alimentares, que elas

deixaram de ser pensadas a partir de dimensões como a moralidade, para serem

pensadas sobretudo a partir de conhecimentos com origem na biomedicina e nas

Ciências da Nutrição. Neste sentido, a ciência e a medicina seriam cada vez mais

estruturadoras dos significados em relação às prescrições dietéticas. Se nos centrarmos

na macrobiótica enquanto proposta alimentar, veremos que este argumento também aí é

válido. Ainda que os significados atribuídos aos alimentos sejam referidos a partir de

uma construção simbólica particular, em termos de yin e de yang, a linguagem das

proteínas, vitaminas, hidratos de carbono, açúcares simples e açúcares complexos

atravessa regularmente os discursos sobre alimentação, fornecendo um quadro

orientador relativamente ao modo como devem ser seleccionados os alimentos.

Misturam-se assim saberes que provêm do discurso científico com outros que são

leigos, tornando-se a linguagem científica numa linguagem comum, empregue de forma

corrente no meio. Muitos dos indivíduos que contactei evidenciavam conhecimentos

sobre aspectos nutricionais acima da média e recorriam mais a esta linguagem para

fazer referência à alimentação do que a tópicos como o gosto.

Como procurei evidenciar (cf. cap. 5), a macrobiótica, para além de um sistema

alimentar, é também um sistema terapêutico. Assim, a existência de um conjunto

organizado de concepções sobre o corpo, a doença e a saúde; de formas específicas de

diagnóstico; de procedimentos de cura e também de profissionais que orientam esses

procedimentos terapêuticos, constituem alguns dos aspectos fundamentais que permitem

classificar a macrobiótica como sistema terapêutico. Ainda que na abordagem

quotidiana os alimentos sejam, eles próprios, pensados a partir de categorias como

equilíbrio, saúde e efeitos energéticos, tal não dispensa, em alguns casos, um

aconselhamento individualizado e indicações específicas sobre como adequar a

alimentação a diferentes problemas de saúde. Trata-se, nestas situações, de usar os

alimentos como medicamentos, utilização que reforça o entendimento da macrobiótica

também como sistema terapêutico.

No decurso desta pesquisa tive oportunidade de contactar com indivíduos que

por razões de saúde, alguns deles afectados por doenças graves, recorreram aos

conselhos especializados de consultores de orientação alimentar. A observação deste

tipo de práticas sugeriu-me a utilidade de confrontar diferentes sistemas terapêuticos,

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Considerações finais

333

um associado à biomedicina, outro à macrobiótica. Foi possível observar, nesse

confronto, agentes que, insatisfeitos com as orientações que lhes tinham sido dadas

pelos médicos em relação aos seus problemas de saúde, procuraram outras formas de

tratamento, rejeitando, pontualmente, partes fundamentais do tipo de intervenção que

lhes tinha sido proposto. Neste tipo de atitudes é possível perceber agencialidade

suficiente para se tomar o corpo como território de decisões individuais e para o

submeter a um processo de experimentação. Tais decisões, ainda que amparadas por

alguém que orienta o processo de cura, representam uma não sujeição aos tratamentos

convencionais e a busca de soluções alternativas que, nos casos específicos que analisei,

são encontradas em sistemas marginais ao Serviço Nacional de Saúde, como é o caso da

macrobiótica. Foi o posicionamento destes indivíduos, nas margens do sistema mas em

posição móvel dentro dele, que permitiu perceber como se relacionam com a

biomedicina e com o poder biomédico, apesar do distanciamento com que os encaram.

Como procurei sublinhar, observam-se, a partir das margens, comportamentos

que são mais de relação estratégica que de rejeição do poder biomédico. Recorre-se ao

Serviço Nacional de Saúde na medida em que ele proporcione os meios de diagnóstico

considerados necessários; documentos que atestem o estado de doença ou, ainda, em

alguns casos, os medicamentos de que não se pode prescindir. Uma solução de

articulação é, assim, frequentemente procurada, evidenciando um envolvimento activo

do indivíduo no seu processo de cura - situação que, em parte, contraria a ideia de

apropriação da vida por parte do Estado, tal como apresentada por Foucault (1997). Esta

solução, articuladora e dinâmica, não parte apenas do indivíduo que se vê doente, mas

também do consultor que o acompanha e que, frequentemente, orienta o indivíduo na

sua alimentação e estilo de vida, tendo em linha de conta os exames (biomédicos) que

observa. Vemos assim ser possível uma solução de articulação entre diferentes

universos terapêuticos, o que evidencia dinamismo e fluidez, tal como observado por

Langford (2002) a propósito da medicina ayurvedica.

As dificuldades sentidas por aqueles que procuram soluções terapêuticas que não

as exclusivamente proporcionadas pelo Serviço Nacional de Saúde, remetem-nos, de

facto, para a questão das políticas do corpo e para o modo como pode (ou deve…) ser

perspectivado o pluralismo terapêutico. O Estado deverá permitir a livre escolha de

cuidados de saúde dos indivíduos e proporcionar-lhes apoio nessas escolhas,

respeitando assim a livre escolha? Deverá ignorar práticas alternativas porque a sua

eficácia não se encontra devidamente reconhecida nem validada? Deverá promover a

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«À Mesa com o Universo»

334

integração destas práticas no Serviço Nacional de Saúde e regular estas actividades?

Questões que importa serem analisadas e debatidas, que interessa observar por vários

ângulos e não apenas por aquele que permite conter custos na saúde. Entre os

testemunhos que recolhi predominava a ideia da importância de soluções articuladas e,

portanto, estes indivíduos apreciariam a possibilidade de “dentro do Estado”, tal como

referido por Cunha e Durand (2011), poderem fazer as suas opções.

Nem sempre nestes casos a expressão de agencialidade é bem-sucedida e um

caso judicial que tive oportunidade de analisar (cf. cap. 5), em que filhos menores foram

retirados a seus pais, constitui um exemplo disso mesmo. Provavelmente teve tanto de

bem-intencionada quanto de precipitada, mas a intervenção judicial, de que falo,

produziu um tal efeito de devassa da vida privada que configurou uma verdadeira

apropriação da vida por parte do Estado, numa expressiva ilustração dos argumentos de

Foucault relativamente ao poder do Estado sobre o corpo. Não se tratou apenas da

separação de uma família, mas de perceber a impotência a que o poder do Estado pode

reduzir aqueles que buscam as margens procurando um modo de vida alternativo. Nem

sempre é assim, bem entendido. Usei as primeiras linhas da “Introdução” para evocar

um exemplo oposto a este, e entre esses dois pólos, que acidentalmente balizam a

topografia deste trabalho, inscreve-se a realidade, não apenas da macrobiótica mas

também de outras práticas, que ora cruzam (e fecundam) as que se revelam

hegemónicas, ora as confrontam e desafiam. Perceber a dinâmica dessa mistura e

confronto, é, talvez, uma ambição excessiva. Pela minha parte, tentei dar um contributo

sério e empenhado nesse percurso, sabendo que entre o que ficou dito e o que ficou por

dizer se avoluma um novelo que importa ainda deslaçar.

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Apêndices

335

Apêndice 1 – Carta de agradecimento do Museu Nacional de História Americana à

família Kushi pelo acervo relativo à macrobiótica165.

165 Disponível em: http://www.michiokushi.org/honors.php [Acesso em 22-11-2011].

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Apêndices

337

Apêndice 2 - Tabela de classificação dos alimentos de yin a yang190

Os alimentos yin produzem efeitos de expansão.

Os alimentos yang produzem efeitos de contracção.

Medicamentos: Terapia de cobalto e outras.

Drogas :alucinogéneos; heroína, anfetaminas; drogas vegetais.

Medicamentos: Quase todos os tipos desde a cortisona à aspirina.

Alimentos quimicalizados: Bebidas industriais gasosas e açucaradas; alimentos

tratados com conservantes e corantes; óleo produzido industrialmente.

Bebidas muito alcoólicas: álcool com açúcar; whisky; vodka; aguardente.

Alimentos açucarados: Açúcar branco; gelados; chocolate; bolos.

Álcool: vinho; saké (vinho de arroz); cerveja sem açúcar

Bebidas estimulantes e aromáticas: Café; chá com corantes.

Especiarias: Pimenta; colorau; caril; gengibre.

Natas

Óleo de pressão a frio: azeite, girassol; milho; sésamo; sésamo tostado.

Frutos tropicais: manga; banana; ananás.

Frutos de clima temperado: Pêra; pêssego; maçã; morango; castanha.

Iogurte

Leite

Queijo fresco sem sal: requeijão; queijo fresco.

Vegetais de origem tropical: tomates; beringela; pimentos; batatas; espargos;

courgettes.

Bebidas saudáveis: chá três anos; chá mú.

Tofu

Sementes e oleaginosas: Nozes; amendoins; amêndoas; sementes de abóbora; sementes

de girassol; sementes de sésamo.

Vegetais de folha verde: couve portuguesa; rama de nabo; agrião.

Vegetais redondos: brócolos; couve-flor; couve lombarda; abóbora.

Raízes: Pastisnaga; nabo; rabanete; daikon; cenoura; bardana.

190 Tabela elaborada a partir de documento similar fornecido no âmbito de um curso de cozinha

promovido pelo Instituto Macrobiótico de Portugal. Os alimentos são apresentados do mais yin para o

mais yang.

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338

Algas marinhas: nori; dulse; aramé; wakame; kombu; hiziki.

Cereais refinados

Natto

Tempeh

Leguminosas: favas; diferentes feijões; grão de bico; lentilhas; feijãi; azuki.

Derivados dos cereais integrais: fu; seitan; massa integral; couscous.

Farinhas

Flocos

Cereais integrais: milho; aveia; cevada; centeio; trigo

Linha de equilíbrio ▬▬▬▬▬▬▬▬▬▬ arroz

millet; trigo sarraceno.

Moluscos e frutos do mar: mexilhão amêijoas; lulas; ostras; gambas.

Peixe: Carpa; truta; pescada; linguado; peixe-espada; sardinha.

Anfíbios: rã; caracol.

Peixe de carne vermelha: salmão; atum; caviar.

Aves: pato; peru; frango; perdiz.

Queijos duros e salgados

Carne de mamífero: porco; vaca; vitela; cavalo; selvagem.

Ovos

Tamari

Miso

Sal

Os alimentos yang produzem efeitos de contracção.

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Apêndices

339

Apêndice 3 - Glossário

Glossário191

Agar-agar: Substância extraída de algas marinhas que se apresenta em flocos ou em

barra. É utilizada na confecção de gelatinas doces e salgadas. É também conhecida por

kanten.

Amasaké: Bebida ou pudim doce, produzido a partir de arroz glutinoso fermentado.

Aramé: Alga marinha muito fina e de cor negra.

Araruta: Planta cuja raiz tem uma fécula branca a partir da qual se faz a farinha de

araruta. É utilizada para engrossar molhos, estufados ou sobremesas.

Arroz Integral: Arroz completo, não polido. Há três variedades principais: de grão

curto, de grão médio e de grão longo.

Arroz Glutinoso: Variedade de arroz de grão curto. Depois de cozido, apresenta uma

goma que o torna pegajoso.

Arroz Selvagem: Gramínea designada popularmente por arroz selvagem. É oriundo da

América do Norte e da China.

Azuki: Feijão pequeno de cor vermelha.

Bancha: Chá feito a partir das folhas e talos da planta do chá. Também é conhecido por

«Kukicha» ou «Chá de Três Anos». É conhecido por conter menos teína.

Bardana: Planta selvagem, conhecida pelas suas qualidades fortalecedoras. A raiz de

bardana é muito utilizada na cozinha japonesa em refogados e sopas.

Bulgur: Uma forma de trigo integral que foi partido, parcialmente fervido e seco.

Cevada: Cereal em grão, base da alimentação do Médio Oriente e de alguns países da

Europa.

Cevada Perolada: Ver Hato mugi.

Chá de Cevada: Chá feito a partir de cevada tostada.

Chá Mu: Chá produzido a partir de 16 ervas diferentes. É um chá medicinal. Costuma

ser apresentado como ajudando a aquecer o corpo e fortalecer os órgãos sexuais

femininos.

Chirimen Iriko: Peixe pequeno e seco.

Chucrute: Couve retalhada e prensada com sal.

Condimento: Tempero utilizado sobre os alimentos, à mesa

191 Elaborado a partir de glossário distribuído no curso de cozinha promovido pelo IMP e a partir do livro

Macro Apetite, de Eugénia Varatojo (1998).

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«À Mesa com o Universo»

340

Couscous: Trigo partido, parcialmente refinado, alimento tradicional do Norte de

África

Daikon: Rábano branco comprido. Podem-se utilizar como substitutos rábano vermelho

ou nabo

Daikon Seco: Daikon que foi retalhado e seco

Dentie: Pó preto, para lavar os dentes, preparado com sal e beringela torrada.

Difusor de calor: Um disco de metal redondo que se coloca sob os tachos ou panela de

pressão para distribuir uniformemente o calor e evitar que a comida se queime.

Dulse: Alga marinha de cor púrpura

Faca de vegetais: Faca oriental com ponta quadrada e recorte duplo.

Fu: Gluten de trigo seco e tufado. Demolha-se e cozinha-se em sopas, pratos de

vegetais e de leguminosas.

Gengibre: Raiz picante com propriedades medicinais, utiliza-se na cozinha.

Gomásio: Um condimento feito a partir de sementes de sésamo tostadas e sal marinho.

Hatcho Miso: Miso produzido a partir de feijão de soja, sal e água e fermentado sob

pressão durante pelo menos 18 meses.

Hato Mugi: Erva selvagem, pequena e redonda, que tem sido consumida

tradicionalmente como um cereal. Também conhecida como «Cevada perolada»,

«Lágrimas de Job» e «Cevada selvagem».

Hiziki: Uma alga comprida e estreita de sabor forte.

Kanten: Ver agar-agar.

Kasha: Ver trigo-sarraceno.

Kimpira: Prato de vegetais salteado e cozinhado em chama baixa.

Kinako: Feijão de soja torrado e moído, a partir do qual se faz farinha de soja.

Koji: É um cereal inoculado com o mesmo tipo de bactéria usada para a fermentação de

alimentos, como o miso, shoyu, tamari, amasake e sake.

Kombu: alga seca e larga

Kuzu: Raiz selvagem a partir da qual se produz um amido branco com propriedades

medicinais

Malte De Cevada: Um adoçante natural, produzido através de cevada germinada.

Mel de arroz: Um adoçante natural produzido a partir de arroz integral maltado.

Millet: Cereal redondo, amarelo e pequeno. Alimento tradicional na China e em África.

Mirin: Vinho doce, utilizado para cozinhar.

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Apêndices

341

Miso: Pasta produzida com feijão de soja, sal e uma variedade de cereais, fermentada

com uma enzima especial.

Mochi: Um bolo feito a partir de arroz glutinoso socado.

Mugi Cha: Chá de cevada tostada

Mugi Miso: Miso produzido a partir de feijão de soja, cevada, sal e água. É envelhecido

durante 2 a 3 anos, sendo preferível que não seja pasteurizado.

Natto: Feijão de soja fermentado.

Natto Miso: Condimento picante, feito a partir de cevada, miso, malte de cevada e

gengibre.

Nishime: Estilo culinário em que os vegetais são cozinhados bastante tempo no vapor

com kombu e uma pequena quantidade de água.

Nori: Alga que depois de seca e processada se apresenta em folhas largas e finas ou. É

habitualmente utilizada no sushi.

Nuka: Farelo de arroz.

Ohagi: Arroz glutinoso socado e com a forma de bolas, que é envolvido com sementes,

oleaginosas ou condimentos.

Pasta De Umeboshi: Ameixa em pasta, utilizado para cozinhar e para molhos.

Prensa Para Pickles: Pequeno contentor de vidro ou outro material, com uma rosca

ajustável utilizado para fazer pickles ou salada prensada.

Raiz de Lótus: Raiz aquática com propriedades medicinais

Ramen: Massa chinesa

Sal Marinho: Sal produzido a partir de água do mar, rico em oligoelementos. É um sal

integral que não foi refinado e ao qual não foi adicionado qualquer produto químico.

Seitan: Gluten de trigo, cozinhado em água, shoyu; alga kombu e gengibre. É utilizado

como substituto de carne em sopas, pratos de vegetais, de leguminosas e de cereais. É

muito proteico.

Shitake: Um cogumelo japonês que costuma ser usado seco. Tem efeitos medicinais.

Shiso: Folhas das ameixas umeboshi. Podem-se comprar inteiras ou sob a forma de

condimento.

Shio-kombu: Condimento de alga kombu, água, shoyu e gengibre.

Shio-nori: Condimento de alga nori, água, molho de soja e gengibre.

Shoyu: Molho de soja produzido naturalmente, feito com feijão de soja, trigo, água e

sal. Fermentado naturalmente e envelhecido pelo menos 18 meses. Utilizado como

tempero.

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342

Soba: Massas japonesas (do tipo da esparguete) feitas a partir de farinha de trigo-

sarraceno e farinha de trigo. C

Somen: Massas japonesas muito finas.

Steamer: Utensílio usado para cozinhar alimentos no vapor ou para aquecer comida já

confeccionada.

Suribachi: Utensílio de cerâmica com ranhuras que serve para esmagar alimentos,

cumprindo uma função idêntica à do almofariz.

Surikoji: Pilão de pedra.

Sushi Mar: Pequena esteira de bambu, utilizada para enrolar sushi e cobrir a comida

para a manter quente.

Tahin: Pasta pasta macia feita a partir de sementes de sésamo cruas e descascadas.

Takuan: Pickle de daikon.

Tamari: Molho de soja tradicional, feito segundo métodos naturais. O tamari original é

preparado durante o processo de fabricão do miso. O líquido que vem à superfície é

chamado de tamari.

Tawashi: Pequena escova utilizada para lavar os vegetais sem lhes estragar a pele.

Tekka: Condimento feito a partir de raízes salteadas e miso.

Tempeh: Produto à base de feijão soja. É tradicional da Indonésia. Feito com feijão de

soja partido, água e uma bactéria especial.

Tofu: Queijo de soja, produzido com feijão de soja, água e nigari (coagulante extraído

do sal marinho) ou sumo de limão.

Tofu Seco: Tofu que foi seco, tem uma cor beige e é muito leve.

Trigo Integral: Cereal em grão utilizado tradicionalmente em muitas partes da Europa.

Trigo Sarraceno: É também conhecido como «Trigo Mouro». Os seus grãos são

parecidos com os dos cereais. É consumido tradicionalmente sob a forma de kasha

(papa usada na cozinha russa ou polaca) ou massa soba no Japão.

Udon: Massa japonesa de trigo

Umeboshi: Pickles de ameixas pequenas salgadas. Tem propriedades medicinas e é

utilizado como tempero e condimento.

Vinagre De Arroz: Um vinagre fermentado naturalmente a partir do arroz integral e

usado como tempero e condimento.

Vinagre De Umeboshi: O liquido onde as umeboshi são envelhecidas.

Wakame: Alga de folhas grandes verdes que se utiliza em sopas, condimentos, saladas,

com vegetais, etc.

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Apêndices

343

Wasabi: Mostarda japonesa

Yannoh: Café feito a partir de 5 cereais e leguminosas que são moídos ate obter um pó

fino

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