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A metaficção e a carnavalização presentes na obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago Bruna Padilha (UNIOESTE) 1 Tonie Maria Gregory dos Santos (UNIOESTE) 2 Resumo: Neste artigo buscar-se-á, à priori, comentar sobre O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, analisando aspectos da metaficção historiográfica e da carnavalização. Será destacada, além das características da obra, a repercussão perante a sociedade Portuguesa, sendo sua maioria de cunho Católica, no período em que o texto foi publicado (1991). Pretende-se durante a análise estabelecer relações da obra de Saramago em conjunto à obra primária da história contada, a Bíblia levando-se em conta as características das obras de Saramago a respeito da desmitificação de histórias e personagens. A análise partirá do pressuposto de detectar trechos dos quais as figuras religiosas da história bíblica sejam conduzidas por um viés humanizado. Utilizando de teóricos será explicado brevemente no que consiste a metaficção historiográfica e a carnavalização, para que assim se compreenda de forma mais explanada os pretextos de determinadas colocações e comparações com personagens reais e humanos na obra de Saramago, que busca descontruir com dogmas religiosos relacionados a textos bíblicos. Palavras-chave: Metaficção historiográfica; Carnavalização; O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Resumen: En este artículo se buscará, a priori, comentar sobre El Evangelio según Jesucristo, de José Saramago, analizando aspectos de la metaficción historiográfica y de la carnavalización. Se destacará, además de las características de la obra, la repercusión ante la sociedad portuguesa, siendo su mayoría de cuño católico, en el período en que el texto fue publicado (1991). Se pretende durante el análisis establecer relaciones de la obra de Saramago en conjunto a la obra primaria de la historia contada, la Biblia tomando en cuenta las características de las obras de Saramago acerca de la desmitificación de historias y personajes. El análisis partirá del supuesto de detectar fragmentos de los cuales las figuras religiosas de la historia bíblica sean conducidas por un sesgo humanizado. Utilizando de teóricos será explicado brevemente en lo que consiste la metaficción historiográfica y la carnavalización, para que así se comprenda de forma más explicada los pretextos de determinadas colocaciones y comparaciones con personajes reales y humanos en la obra de Saramago, que busca descontruir con dogmas religiosos relacionados los textos bíblicos. Palabras-clave: Metaficción historiográfica; Carnavalización; El Evangelio Según Jesucristo. Considerações iniciais O Evangelho segundo Jesus Cristo é um romance do escritor português José Saramago reconhecido por valer-se de um viés humanizado ao recontar a história da vida e da passagem 1 Graduada em Letras, com habilitação em língua Espanhola pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

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A metaficção e a carnavalização presentes na obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo,

de José Saramago

Bruna Padilha (UNIOESTE) 1

Tonie Maria Gregory dos Santos (UNIOESTE)2

Resumo: Neste artigo buscar-se-á, à priori, comentar sobre O Evangelho Segundo Jesus

Cristo, de José Saramago, analisando aspectos da metaficção historiográfica e da

carnavalização. Será destacada, além das características da obra, a repercussão perante a

sociedade Portuguesa, sendo sua maioria de cunho Católica, no período em que o texto foi

publicado (1991). Pretende-se durante a análise estabelecer relações da obra de Saramago em

conjunto à obra primária da história contada, a Bíblia levando-se em conta as características

das obras de Saramago a respeito da desmitificação de histórias e personagens. A análise partirá

do pressuposto de detectar trechos dos quais as figuras religiosas da história bíblica sejam

conduzidas por um viés humanizado. Utilizando de teóricos será explicado brevemente no que

consiste a metaficção historiográfica e a carnavalização, para que assim se compreenda de

forma mais explanada os pretextos de determinadas colocações e comparações com

personagens reais e humanos na obra de Saramago, que busca descontruir com dogmas

religiosos relacionados a textos bíblicos.

Palavras-chave: Metaficção historiográfica; Carnavalização; O Evangelho Segundo Jesus

Cristo.

Resumen: En este artículo se buscará, a priori, comentar sobre El Evangelio según Jesucristo,

de José Saramago, analizando aspectos de la metaficción historiográfica y de la

carnavalización. Se destacará, además de las características de la obra, la repercusión ante la

sociedad portuguesa, siendo su mayoría de cuño católico, en el período en que el texto fue

publicado (1991). Se pretende durante el análisis establecer relaciones de la obra de Saramago

en conjunto a la obra primaria de la historia contada, la Biblia tomando en cuenta las

características de las obras de Saramago acerca de la desmitificación de historias y personajes.

El análisis partirá del supuesto de detectar fragmentos de los cuales las figuras religiosas de la

historia bíblica sean conducidas por un sesgo humanizado. Utilizando de teóricos será

explicado brevemente en lo que consiste la metaficción historiográfica y la carnavalización,

para que así se comprenda de forma más explicada los pretextos de determinadas colocaciones

y comparaciones con personajes reales y humanos en la obra de Saramago, que busca

descontruir con dogmas religiosos relacionados los textos bíblicos.

Palabras-clave: Metaficción historiográfica; Carnavalización; El Evangelio Según Jesucristo.

Considerações iniciais

O Evangelho segundo Jesus Cristo é um romance do escritor português José Saramago

reconhecido por valer-se de um viés humanizado ao recontar a história da vida e da passagem

1 Graduada em Letras, com habilitação em língua Espanhola pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. 2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

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de Jesus na terra. Exemplo disso é que, durante o enredo, se reconhece uma possível relação

carnal da personagem principal com Maria Madalena, uma vez que, conforme disposto no

livro, foi com esta mulher que Jesus "conheceu o amor da carne e nele se reconheceu homem"

(SARAMAGO, 2005, p. 242).

Publicado pela primeira vez no ano de 1991, O Evangelho segundo Jesus Cristo exigiu,

de certa forma, que se repensasse – ou, pelo menos, que se analisasse novamente – os

comportamentos de alguns conhecidos personagens dos dogmas do Cristianismo, como é o

caso de Maria, que, ao ser re-conhecida através dos postulados de Saramago, enseja uma

intertextualidade com a história bíblica.

Atualmente, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a professora Salma

Ferraz, uma estudiosa do escritor português, se baseia no fato de o autor (ainda que ateu

convicto) ter nascido no ocidente cristão explica a utilização frequente de temas religiosos e

sobre a divindade em suas obras, e destes ocuparem um lugar privilegiado nos textos do autor.

Ferraz afirma que “se Deus não existe na vida do Saramago homem, pelo menos está bem

presente na obra do escritor José Saramago” (FERRAZ, 2003, p. 16).

Conhecendo as crenças do autor, ou paradoxalmente a falta delas, há que se abandonar

posicionamentos tradicionais e compreender que, de fato, independentemente dos argumentos

católicos, a obra O Evangelho segundo Jesus Cristo é uma obra crítica, e que os apontamentos

pejorativos direcionados a Saramago não se pautavam em resquícios além do senso comum.

Ao contar os fatos ocorridos na vida de Jesus Cristo, Saramago faz uma reinterpretação

de uma história que é conhecida pela maioria das pessoas, principalmente, no catolicismo. O

autor apresenta personagens, fazendo uma constante desmistificação dos mesmos, mostrando

que eles também possuem falhas e medos, ou seja, deixa transparecer um lado mais humano,

em que os sentimentos estão latentes. Saramago também faz críticas em forma de ironia,

proporcionando ao leitor uma reflexão.

As peculiaridades do autor se fazem presentes no texto. Aquele que conta está ligado

diretamente com a história, não há distanciamento. Isto pode ser percebido pela posição que

assume como ateu. Assim sendo, nota-se que a subjetividade está introduzida em todo

transcorrer da obra.

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Quem foi José Saramago?

Na ilha por vezes habitada

Na ilha por vezes habitada do que somos, há

noites,

manhãs e madrugadas em que não

precisamos de

morrer.

Então sabemos tudo do que foi e será.

O mundo aparece explicado definitivamente e

entra

em nós uma grande serenidade, e dizem-se as

palavras que a significam.

Levantamos um punhado de terra e

apertamo-la nas

mãos.

Com doçura.

Aí se contém toda a verdade suportável: o

contorno, a

vontade e os limites.

Podemos então dizer que somos livres, com a

paz e o

sorriso de quem se reconhece e viajou à roda

do

mundo infatigável, porque mordeu a alma até

aos

ossos dela.

Libertemos devagar a terra onde acontecem

milagres

como a água, a pedra e a raiz.

Cada um de nós é por enquanto a vida.

Isso nos baste.

- José Saramago -

Antes de adentrar na obra, torna-se relevante apresentar um pouco da biografia do

escritor literário, haja vista que, ela explicará e mostrará a relação da vida pessoal do autor com

o livro publicado. José Saramago nasceu no dia 16 de novembro de 1922, na aldeia de

Azinhaga, província do Ribatejo. No entanto, a família emigrou para Lisboa antes mesmo de

Saramago completar dois anos.

Fonte: Fundação José Saramago

Fonte: Fundação

José Saramago1

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Outrora, José Saramago teve seu primeiro emprego como serralheiro mecânico. Depois,

exerceu atividades de funcionário da saúde, tradutor, desenhador, editor e jornalista. Já como

escritor, publicou o seu primeiro livro em 1947, que se caracterizou como um romance,

intitulado Terra do Pecado. Posteriormente, o autor ficou um vasto tempo sem publicar.

Realizou atividades de direção literária e produção em uma editora durante 12 anos.

Além disso, foi crítico literário na revista Seara Nova. Fez parte, ainda, da redação do Jornal

Diário de Lisboa, exercendo a função de comentador político, bem como, coordenador do

suplemento cultural do mesmo jornal.

José Saramago esteve na primeira direção da Associação Portuguesa de Escritores e foi

também presidente da Assembleia Geral da Sociedade Portuguesa de Autores. Em 1975,

assumiu o cargo de diretor-adjunto do jornal Diário de Notícias. No ano seguinte, as suas

atividades foram voltadas exclusivamente ao seu trabalho literário, como tradutor,

primeiramente e, após, como autor.

Em 1988, o escritor casou-se com Pilar del Río. Uma década depois, foi-lhe conferido

o Prêmio Nobel de Literatura. José Saramago faleceu no dia 18 de junho de 2010, deixando ao

público 17 romances, cinco peças teatrais, três contos, três poemas e quatro crônicas. Dentre

estes, os considerados mais relevantes são “O Evangelho segundo Jesus Cristo” (1991), o qual

será trabalhado neste artigo, “Ensaio sobre a cegueira” (1995), “A jangada de pedra” (1986)

e “A viagem do elefante” (2008).

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A obra e sua repercussão

A obra é minunciosamente carregada de descrições de lugares, situações, personagens,

enfim, em todo desenrolar da história há marcas dos detalhes que o autor traz. Isto pode ser

observado na passagem:

Por baixo do sol vemos um homem nu atado a um tronco de árvore, cingidos

os rins por um pano que lhe cobre as partes a que chamamos pudendas ou

vergonhosas, e os pés tem-nos assentes no que resta de um ramo lateral

cortado, porém, por maior firmeza, para que não resvalem desse suporte

natural, dois pregos os mantêm, cravados fundo (SARAMAGO, 1991, p. 13).

Pode-se, verificar ainda, que a trajetória de que se fundamenta Cristo, na obra, o torna

um paradoxo aos olhos dos leitores. Isto é, ao mesmo tempo que aparenta ser simples,

demonstra uma maior complexidade e visa esclarecer eventuais dramas do cotidiano da

existência humana. Nesse contexto, o próprio Saramago entende que “as circunstâncias, as

situações concretas em que nos encontramos num determinado momento são as que,

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muitíssimas vezes, decidem que se abram uma porta que até então estava fechada”

(SARAMAGO, 1998, p. 41). Há que se reconhecer, portanto, que

Algumas teorias da crítica contemporânea afirmam que uma única leitura

confiável de um livro é uma leitura equivocada, que a existência de um texto

é dada pela cadeia de respostas que evoca e que [...] um texto é apenas um

piquenique onde o autor entra em contato com as palavras e os leitores com

sentido (ECO, 2005, p. 28).

Considera-se, nesse viés, a perspectiva da leitura da Bíblia com vistas à formulação do

entendimento, por parte do autor, o que faz com que texto bíblico e literário sejam aproximados.

Frye (2006), nessa perspectiva, compreende que

Isto levaria a um estudo integrado deste Livro da Bíblia, talvez de toda a

Bíblia, como a que se conhece hoje, tendo como êmulo a pergunta sobre por

que essa Bíblia emergiu com essa forma particular e não outra. Com toda a

miscelânea de seu conteúdo, a Bíblia não parece ter ganho existência através

de uma serie improvável de acasos; conquanto seja o produto final de um

processo editorial muito longo e complexo, esse produto deve ser examinado

à luz de sua própria existência (FRYE, 2006, p. 16).

Insta-nos a compreender que, em consequência deste e de outros motivos apresentados

pelo autor durante a obra, o contexto em que O Evangelho segundo Jesus Cristo foi lançado

careceu de compreensões mais humanizadas, partindo da comparação com o viés da própria

humanização proposta pelo livro. Nesse sentido, O Globo publicou, em 17 de Outubro de 2009,

uma entrevista feita com o romancista, na qual esse afirma que, "no fundo, o problema não é

um Deus que não existe, mas a religião que o proclama. Denuncio as religiões, todas as

religiões, por nocivas à Humanidade. São palavras duras, mas há que dizê-las".

Esse posicionamento do autor, que se reflete integralmente no livro, fez com que a obra

fosse considerada de cunho ofensiva, principalmente pela elite do comando da Igreja Católica

e, por isso, o contexto de publicação é marcado pela perseguição religiosa a que foi submetido

Saramago, em Portugal. Foi a partir das pressões ministradas por parte da Igreja frente ao

governo do Estado que Sousa Lara, o Subsecretário de Estado da Cultura de Portugal, à época,

que o livro foi vetado da lista dos indicados, pela categoria de romances portugueses, ao Prémio

Aristeion3, sob o argumento de que a obra atentava contra a moral cristã.

3 Prémio Europeu de Literatura Aristeion foi criado pela Comissão Europeia em 1990 e atribuído no período de

1990-1999.

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Há ainda que se considerar que, devido ao seu processo de formação, Portugal

configura-se como um país predominantemente, e quase que totalmente, católico. Sendo esta

religião seguidora fiel dos “ensinamentos” bíblicos; houve também por parte da população e

de toda a igreja uma conturbação quanto ao viés que Saramago expusera as figuras religiosas

em sua obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo.

Segundo a Fundação José Saramago, a reação do consagrado autor frente à

arbitrariedade do governo português, calcada em pressões do comando religioso, ao ter

considerado que o livro era atentatório, foi a de abandonar Portugal. Ao fazê-lo, Saramago se

mudou para Lanzarote, nas Ilhas Canárias, e este foi o local em que se manteve até a sua morte.

O autor morreu de leucemia crônica em 18 de junho de 2010, aos 87 anos de idade.

Devido ao próprio caráter polêmico que a obra assumiu após o pronunciamento do

Subsecretário de Estado da Cultura de Portugal e da consequente mudança de Saramago de

Portugal, é imaginável a soma de críticas feitas a respeito do livro.

Ainda no âmbito da repercussão que a obra teve, nota-se o posicionamento de Santos e

Salles (2009) a respeito da temática:

Numa primeira leitura, a obra ficcional de Saramago nos causa certo repúdio

ao indagar as verdades fundamentais da fé cristã. Todavia, ao ler seu texto

somos necessariamente levados a acreditar num Deus sádico, tirano, juiz [...];

Acreditamos que ele quer atingir não a religião, por si só, mas as imagens que

a Tradição cristã formou de Deus ao longo dos séculos. Um Deus sacrificial,

dominador que castiga e sente prazer em condenar os homens ao inferno

(SANTOS; SALLES, 2009, p. 4).

Em contra partida, verifica-se que, entre as reações mais expansivas dos católicos,

encontra-se a do arcebispo da cidade de Braga, Dom Eurico Dias de Nogueira, que segundo a

revista Veja de 1992, alguns meses após a publicação, passou a afirmar publicamente que o

escritor, ateu confesso, elaborou uma “delirante vida de Cristo”, com vistas ao prestígio de sua

ideologia e em detrimento dos parâmetros religiosos. Ainda, para o religioso, “a apregoada

beleza literária, a existir nesta obra, longe de atenuante e muito menos dirimente, constitui

circunstância agravante da culpabilidade do réu, seu autor”.

Vale ressaltar que inúmeros críticos ressaltavam o fato de José Saramago ser ateu e que,

segundo eles, por esta causa o autor não deveria ter a ousadia de discutir assuntos da seara

religiosa.

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[...] O Evangelho segundo Jesus Cristo teve grande repercussão no mundo da

literatura, da crítica e da religião. Ao assumir a tarefa de escrever sobre uma

história contada há dois mil anos, Saramago conseguiu não ser óbvio e

repetitivo sobre as narrativas religiosas fundantes, apontando para dimensões

profundas da própria religião. Ele pretende questionar o dogma e a tradição

dogmática ao transformar personagens centrais dos textos fundantes em

periféricos e marginais em centrais (SANTOS; SALLES, 2009, p.4 – grifos

dos autores).

Nesse ínterim, vale dar atenção à prerrogativa de que, já que Jesus Cristo é, dentre

inúmeras outras especulações, um personagem de cunho histórico e, historicamente falando,

portanto, não há fontes autorizadas que comprovem as efetivas circunstancias de milagres e

ressureição, exceto pelo relato bíblico, que descreve alguns fatos de sua vida na infância e na

juventude e, em seguida, apresenta-o na fase adulta. Dessa maneira, ainda que haja a fragilidade

com relação às considerações lógicas sobre seus feitos, é inegável que sua “participação

mundana” foi marcante. Ao mesmo tempo, essa participação é marcada de tantas dúvidas que

há a abertura a vários questionamentos.

Metaficção e carnavalização na obra

A metaficção historiográfica, segundo Azevedo (2010) consiste em um método de

elaboração artística, do qual se reconstrói ou se reescreve por meio à outra configuração e

arranjo. Designa-se a um processo de recontagem de um texto, já conhecido historicamente,

por um viés distinto. A autora relata que a metaficção é habitualmente realizada quando há, de

certo modo, a presença da desconfiança em relação à verdade histórica presente na obra

antecedente.

A metaficção patente em O Evangelho Segundo Jesus Cristo está estritamente atrelada

à humanização realizada pelo autor no que concerne a obra originária da história contada, neste

caso a Bíblia Sagrada, a qual é tida como efetiva e autêntica para o consciente coletivo mundial,

sendo o estudo que predomina nas religiões quanto a explicações da eflorescência do mundo e

o funcionamento do mesmo, assim é almejado como texto “sagrado”.

O texto bíblico é o texto norteador de inúmeras religiões, pois, algumas delas, como o

Catolicismo, por exemplo, surge com o intuito de seguir a história (real para os praticantes)

contada na Bíblia. Neste texto, além do “aclarar” a respeito da eclosão do mundo e da

humanidade, se fazem presentes leis as quais devem ser aderidas e praticadas pelos crentes na

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história relatada. Dentre essas características da história bíblica, há a presença de personagens

glorificados, como Deus, Jesus Cristo e o Diabo, buscando impor aos leitores posturas do bom

e do mau.

Nesse contexto encontra-se que a principal das críticas realizadas à obra de Saramago,

que interpretou livremente textos sagrados e, ao fazê-lo, assumiu uma linha muito diversa da

esperada pelos dogmas religiosos, desvirtuando os Evangelhos. Esse argumento, todavia, só

encontra fundamento no ponto de vista do Catolicismo, e não no Cristianismo em geral, haja

vista que inclusive os protestantes defendem a interpretação privada dos textos bíblicos e, por

isso, não condenam a obra com base no mesmo ordenamento que dispõem os católicos.

Saramago em sua produção artística buscará aludir na metaficção fatores

desconstrutivos a respeito da religião, humanizando a história propagada, apresentando os

personagens não como seres santificados e inalcançáveis, mas como pessoas comuns, as quais

cometem atos comuns, fálicos. Destaca-se esta ânsia de Saramago em dissertar sobre este tema

por sua desvinculação com qualquer crença religiosa. No trecho a seguir, retirado da obra, é

possível a percepção do modo que Saramago descreve o ato após a crucificação de Jesus,

comparando-o com um fantoche

Maria tentou reduzir os lastimáveis ângulos das pernas de José, que, tendo-

lhe ficado a túnica, ao descerem-no da cruz, um pouco arregaçada, lhe davam

o aspecto grotesco de um fantoche partido nos engonços (SARAMAGO,

1991, p. 98).

Este trecho nos revela a metaficção efetuada na cena, a recontagem da história, não só

nesse trecho, mas ao longo de toda obra, apresentando aspectos contemporâneos, utilizando

comparações e, situando meados as cenas, comentários que empregam palavras e objetos

cotidianos e inexistentes no texto bíblico.

Destaca-se que, do mesmo modo que os textos apresentam (aparentemente) a mesma

história, cada um tem seu objetivo perante os relatos, cada qual possui a sua significação.

Almeida (2005) explana ideias sobre a obra de Saramago surgir como uma

desconstrução em relação ao existencialismo de divindades. O autor coloca ainda que, segundo

o próprio Saramago, a existência do humano já nega a existência de um Deus. Tendo

conhecimento disso, a metaficção presente em toda obra consistem em desmascarar e

desvalorizar os personagens religiosos. Esses preceitos vão se dando ao decorrer da obra, desde

ao relatar a relação afetiva e carnal de Jesus com Maria Madalena ao da presença do Diabo

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como personagem humanizado. Maria Madalena é ainda comparada a uma figura feminina

“contemporânea” tendo inclusive os cabelos “louros”, como percebemos no trecho

Mostra os longos cabelos soltos, caídos pelas costas, mas estes têm todo o ar

de serem louros [...]. Com tais razões não pretendemos afirmar que Maria

Madalena tivesse sido, de facto, loura, apenas nos estamos conformando com

a corrente de opinião maioritária que insiste em ver nas louras, tanto as de

natureza como as de tinta, os mais eficazes instrumentos de pecado e perdição

(SARAMAGO, 1991, p. 4-5).

Conforme os exemplos citados anteriormente, destaca-se obviamente, a figura de Jesus

na obra. Este ser que por Saramago é descrito como um humano, contido de problemáticas,

estas que surgem primeiramente ao fato de lhe fazer filho de Deus e por esse Deus, posto como

um imperador perante sociedade judaica, pois as suas vontades eram as que deveriam ser

seguidas e seus feitos eram punitivos.

O retrato de Deus para Saramago é, deste modo, descrito, pois, como um Deus tão

bondoso e misericordioso poderia matar seu próprio filho? Não há como desatrelar as

ressignificações de Saramago quanto aos personagens.

Para desenvolver mais a respeito sobre a figura de Jesus na obra, passemos da

metaficção para a carnavalização, ambas vão de encontro a uma ressignificação da obra, a

metaficção como já vimos de modo mais geral e a carnavalização veremos em relação à figura

de Jesus Cristo.

A carnavalização consiste em uma inversão de valores e poderes provocados pelo

inusitado, pelo ridículo, pelo excepcional, ou mesmo pelo grotesco e cômico, se baseia em

cessar com os princípios ideológicos já postos em algum texto.

Desta forma, apresentamos a figura de Jesus pelo Evangelho como

Jesus, mas ele ainda não pode saber que é este o seu nome, por enquanto não

passa de um pequeno ser natural, como o pinto duma galinha, o cachorro

duma cadela, o cordeiro duma ovelha (SARAMAGO, 1991, p. 49).

Nesta passagem, pode-se notar como Saramago retrata a figura de Jesus agregando-o a

qualquer figura mundana, como um ser qualquer, desprovido das diversas atribuições

santificadas contidas no personagem bíblico. Desta forma, capta-se também algumas das

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intenções de Saramago, ao redigir estes termos, como lança dúvidas e questionamentos ao

leitor, transparecendo a sua obra de forma mais real do que a já contada.

Esta desmistificação de Jesus é realizada não somente em relação a sua figura que deixa

de ser santificada, mas também ao seu psíquico, aos pensamentos e ações cometidas pelo

personagem, fatores os quais contribuíram para a humanização deste personagem. A sua

relação com Maria Madalena, por exemplo, é retratada de forma estritamente carnal na obra de

Saramago, forma a qual o “Jesus” da Bíblia não reagiria. Essa relação de Jesus com Maria

Madalena é descrita por Saramago, apresentando Jesus como envolvido e satisfeito com a

situação carnal e afetiva entre os personagens, como no trecho

[...] então sentiu que uma parte do seu corpo, essa, se sumira no corpo dela,

que um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que um estremecimento o

sacudia por dentro, como um peixe agitando-se, e que de súbito se escapava

gritando, impossível, não pode ser, os peixes não gritam, ele, sim, era ele

quem gritava, ao mesmo tempo que Maria, gemendo, deixava descair o seu

corpo sobre o dele, indo beber-lhe da boca o grito, num sôfrego e ansioso

beijo que desencadeou no corpo de Jesus um segundo e interminável frémito

(SARAMAGO, 1991, p. 166-167).

Esta carnavalização do personagem épico de Jesus Cristo é feita por Saramago, sem

censura e pudor, o homem é de fato retratado da forma mais humana possível, mostrando seus

receios, pecados e defeitos. Do mesmo modo em que a figura de Deus aparece como um ser

não tão bondoso como aparentava ser na bíblia e o diabo como não tão fora do comum,

humanizado e real.

Considerações finais

A obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo surge como um pretexto a Saramago para

desconstruir os dogmas religiosos impostos à sociedade durante séculos. Além do Evangelho,

Saramago também apresenta em outras obras como O Ensaio sobre a Cegueira e as

Intermitências da Morte, por exemplo, histórias que serão recontadas pelo seu viés humanitário

e desmistificado.

A metaficção historiográfica e a carnavalização não estão presentes apenas no

Evangelho, porém se dão fortemente e repercutem de tal forma pelo fato da história a ser

desmoralizada há milênios é herdada como real, autêntica e com base neste texto bíblico que

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houve o surgimento de inúmeras religiões e segmentos. Desta forma Saramago procura mostrar

que há tempos, o que milhões de pessoas seguem e acreditam, não passa de mais um texto

literário, que pode sim estar agregado a fatos reais, porém que é contado na Bíblia de uma

forma mistificada.

Deve ser levado em consideração, que Saramago teve cuidado com a crença religiosa,

não ofendendo quaisquer crenças. O autor teve sensibilidade uma inteligência absurda, afinal,

reescrever uma das histórias mais bonitas e conhecidas do mundo, não é tarefa simples.

Conclui-se que, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, acima de quaisquer análises e

comparações é uma das obras mais genuinamente “Saramagas”, da qual retrata os pensamentos

do autor de que dizia que nas obras dele, o eu lírico e o narrador era ele mesmo.

Referências

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Cristo” de José Saramago: um convite à reeleitura da identidade cristã. Anais do XIV

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<https://www.puc-

campinas.edu.br/websist/portal/pesquisa/ic/pic2011/resumos/2011820_11657_926968992_re

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SARAMAGO, José. José Saramago: 'Penso que não merecemos a vida'.O Globo, 17 out 2009.

Entrevista concedida ao jornal O Globo. Disponível em:

Page 13: A metaficção e a carnavalização presentes na obra O ... · miscelânea de seu conteúdo, a Bíblia não parece ter ganho existência através de uma serie improvável de acasos;

<http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2009/10/17/jose-saramago-penso-que-nao-

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SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das Letras,

2005.

SARAMAGO, José. In: ARIAS, Juan. José Saramago: O amor possível. Lisboa: Publicações

Dom Quixote, 1998.

SARAMAGO, José. Evangelho Segundo Jesus Cristo'. Obra de José Saramago, 15 maio

1992. Reportagem especial da Revista Veja. Disponível em:

<http://online.veja.com/blogs/posts/1992/05/15/evangelho-segundo-jesus-cristo-josé-

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SOUZA, Jorge Avelino. A Trindade Profana de Saramago: Ironia e Paródia em O

Evangelho Segundo Jesus Cristo. Brasília, 2009. 89 f. Dissertação (Mestrado em Literatura e

Outras Áreas do Conhecimento) – Instituto de Letras, Universidade de Brasília.

Page 14: A metaficção e a carnavalização presentes na obra O ... · miscelânea de seu conteúdo, a Bíblia não parece ter ganho existência através de uma serie improvável de acasos;