ESTADO METÁFORA: CARNAVALIZAÇÃO, LIMINARIDADE E...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM
ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORNEA
CLAUDYANNE RODRIGUES DE ALMEIDA
ESTADO METFORA: CARNAVALIZAO,
LIMINARIDADE E PERFORMATIVIDADE NO BLOCO DOS
CARETAS DE GUIRATINGA, MATO GROSSO
CUIAB-MT
2011
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CLAUDYANNE RODRIGUES DE ALMEIDA
ESTADO METFORA: CARNAVALIZAO,
LIMINARIDADE E PERFORMATIVIDADE NO BLOCO DOS
CARETAS DE GUIRATINGA, MATO GROSSO
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Estudos de Cultura Contempornea
da Universidade Federal de Mato Grosso como
requisito para a obteno do ttulo de Mestre em
Estudos de Cultura Contempornea na rea de
Concentrao Estudos Interdisciplinares de
Cultura, Linha de Pesquisa Poticas
Contemporneas.
Orientadora: Prof(a). Dr(a) Maria Thereza de Oliveira Azevedo.
Cuiab-MT
2011
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A447l
Almeida, Claudyanne Rodrigues de. Estado metfora: carnavalizao, liminaridade e performatividade
no Bloco dos Caretas de Guiratinga, Mato Grosso/ Claudyanne
Rodrigues de Almeida. -- Cuiab (MT): IL/UFMT, 2011.
99 f.: il.; 30 cm.
Dissertao (Mestrado em Estudos de Cultura Contempornea).
Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Linguagem.
Programa de PsGraduao em Estudos de Cultura Contempornea.
Orientadora: Prof. Dr. Maria Thereza de Oliveira Azevedo. Inclui bibliografia.
1. Liminaridade - Teoria. 2. Mscaras - Carnaval. 3. Bloco dos Caretas. I. Ttulo.
CDU: 316.7
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luz da mulher-maravilha, super-mulher: Marileide,
arte
Um brinde!
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AGRADECIMENTOS
Sinto-me grata,
Ao esforo incontvel dos pais Abdias e Marileide pelo investimento em zelo, em dinheiro,
em ternura, em orgulho. Pelo exemplo de humildade e amor;
Aos amigos por colorir minhalma restabelecendo meu nimo aos estudos, por me cuidar em
todos os momentos de apreenso dissertativa;
sabedoria e dedicao da orientadora Marith, pelo exemplo profissional e inspirao;
benevolncia da Tia Nega (tambm cordialidade dos funcionrios de sua grfica), pelos
incontveis A4, tonner e cor que me proporcionaram teoria e incentivo durante toda a
experincia acadmica.
todos os entrevistados mascarados e desmascarados e, especialmente ao organizador do
Bloco dos Caretas, Wivaldo, pela ateno e carinho em auxiliar na pesquisa;
Ao instinto materno da D. Elaine e famlia muito Forte, que me acolheu e cuidou em
momentos importantes do mestrado.
Aos professores do ECCo que foram essenciais para o desenvolvimento dessa pesquisa;
ateno dos professores Jos Leite e John Dawsen que contriburam significativamente com
as correes e sugestes para o trabalho.
Ao convnio CAPES/FAPEMAT que financiou grande parte da pesquisa.
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RESUMO
Observando alguns paradoxos diagnosticados no cotidiano da cultura contempornea,
voltou-se o olhar para o processo de desvinculao das convenes sociais e transgresses
vivenciados num ritual de carnaval com mscaras do Bloco dos Caretas de Guiratinga, Mato
Grosso. A partir da teoria da liminaridade de Victor Turner, carnavalizao (Bakhtin) e
performatividade (Schechner) foi criado o termo estado-metfora para sugerir que uma
coletividade em contato com estados de arte pode criar novas possibilidades de olhar para o
mundo, para si e para as relaes com o outro. A observao se deu por meio de pesquisa
bibliogrfica e etnografia.
Palavras-chave: Bloco dos Caretas; singularidade; arte/vida; mscaras.
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ABSTRACTS
Observing some paradoxes diagnosed during the daily contemporary culture, it turned
his gaze to the process of detachment from social conventions and transgressions experienced
in the Bloco dos Caretas from Guiratinga, Mato Grosso, a ritual of carnival in
which merrymakers use masks. The state-metaphor term was created concerning Victor
Turner's liminality, Bakthin's carnivalization and Schechner's performance to suggests that a
colectivity experiencing states-of-art might develop new ways of looking the world, yourself,
and the relationship with others. The observation was made by means of literature and
ethnography research.
Keywords: Bloco dos Caretas;singularit; art/life; masks.
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LISTA DE ILUSTRAOES
Figura 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8: mscaras do Bloco dos Caretas..................................................36-39
Figura 9: reajuste na mscara......................................................................................................41
Figura 10: mscara sendo confeccionada....................................................................................41
Figura 11: alunos na Escola Santa Teresinha..............................................................................45
Figura 12: alunos em carnavalizao..........................................................................................45
Figura 13, 14, 15, 16: Concentrao............................................................................49,50
Figura 27,18: Bloco saindo da concentrao....................................................................52
Figura 39, 20, 21, 22: Criatividade dos monstros de Caretas.................................................54,55
Figuras 23, 24 Caretas- irreverncia............................................................................................59
Anexo ............................................................................................................ ..............................93
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SUMRIO
RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE ILUSTRAES
INTRODUO .................................................................................................................... 5
CAPTULO I...................................................................................................................... 10 1. CONTEMPORANEIDADE: MAPAS POSSVEIS...................................................... 10
1.2 A falncia do projeto moderno .................................................................................. 16 1.2.1 Da perda das metanarrativas ................................................................................ 16
1.3 Do deslocamento ....................................................................................................... 21 1.4 Outra sociabilidade .................................................................................................... 22
CAPTULO II .................................................................................................................... 24 2. UMA PR-LIMINAR CONTEXTUALIZAO..................................................... 24
2.1 Do Carnaval liminaridade ....................................................................................... 24 2.2 liminaridade .......................................................................................................... 26
CAPTULO III................................................................................................................... 32 3. BLOCO DOS CARETAS ............................................................................................. 32
3.1 Visitando os criadores do Bloco dos Caretas ............................................................. 34 3.2 Preparando para o desnudamento do corpo social ...................................................... 40
3.2.1 Confeccionando a mscara ................................................................................... 41 3.2.2 Pr-liminares para a liminaridade ...................................................................... 44
3.2.3 Concentrao ....................................................................................................... 46 3.3 Um, dois, trs e...! deriva pelas ruas ....................................................................... 52
3.3.1 O Tempo .............................................................................................................. 57 3.3.2 O Espao .............................................................................................................. 59
CAPTULO IV
4. O LIMIAR E A MSCARA .......................................................................................... 65 4.1 Performatividade no Bloco dos Caretas ..................................................................... 66
4.1.1 Da experincia ..................................................................................................... 69
4.1.2 Singularidade ....................................................................................................... 71 4.2 Rito e Estado holstico .............................................................................................. 75
4.2.1 Do rito para o corpo comunitrio ou estado holstico Fim das fronteiras entre arte
e vida? .......................................................................................................................... 77 4.3 Carnavalizao: Um olhar atravs da mscara para alm da realidade cotidiana......... 80
4.3.1 Mscaras e/no Teatro........................................................................................... 82 4.4 Arte e vida................................................................................................................. 86
CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................. 88 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 93
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INTRODUO
A ideia de se pesquisar as nuances da suspenso do cotidiano, partiu primeiramente de
observaes genricas da estrutura social cotidiana, com um olhar particularmente
antropolgico. O olhar, que provavelmente j se encontrava pairando por tais preocupaes,
apontou para itens relacionados a uma sociedade encharcada de lamrias a respeito da falta de
tempo, das hierarquias e burocratizao da vida, da mecanizao da vida humana, etc.
Embora o se preocupar unicamente com a realidade presente esteja associado s
culturas primitivas em nossas mitologias etnocntricas (inteiramente questionveis), que
salientam a primazia da vida instintiva e a sublimao da condio civilizada, todos ns, em
algum momento, fomos to consumidos pela realidade, pelo cotidiano, a ponto de perdermos
a conscincia de ns mesmos e de nossos limites. De tal modo que algo tendia por estar na
contramo da vontade social. E se esse modelo de estrutura social no parece nem de longe
ideal, surge ento um imperativo em se pesquisar, um momento/instante que se desviasse, ou
melhor, se localizasse alm do azedume de tal realidade. Ainda assim, no estou propondo um
novo modelo social. Busco um momento especfico, rpido ou longo, no importa, que
proporciona uma trgua da atrao da realidade exacerbada de estmulos; suspende-se da
estrutura habitual, questionando-a, flexibilizando espaos para a possibilidade de aproximao
de estmulos particulares, construo de subjetividades.
Esse processo de suspenso do cotidiano est baseado nos estudos de um antroplogo
britnico, Victor Turner que enxergou o que ele chama de liminaridade nos ritos de
passagem. Sinteticamente liminaridade seria o momento de suspenso da estrutura cotidiana.
Pretendeu-se questionar pressupostos humanos quanto natureza das relaes com o outro e
consigo, mediante uma releitura da teoria da liminaridade de Victor Turner. No segundo
captulo encontra-se uma reviso bibliogrfica sobre o tema da suspenso do cotidiano, a
liminaridade de Turner e suas vertentes.
Dessa maneira investigou-se o processo que faz dormir a vida cotidiana,
lugar/instante de eterealizao e transitao por outras realidades, por esse motivo chamado
de estado-metfora. Esses instantes ultrapassam as fronteiras do emprico, do burocrtico, da
exatido; permitido experimentar estrias e censuras.
O termo estado-metfora foi criado para definir esse processo que me debruo, no
com intuito de elaborar uma nova teoria, mas apenas para servir como ferramenta de auxlio
ao leitor e a minha escrita. Estado-metfora seria, ento, o processo que se experiencia a
suspenso de todos os acordos apriorsticos do cultural; momento que se paira por um
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espao/tempo onrico, quase indizvel. Foi escolhido o termo Estado por se tratar de um
tempo/espao singular em que se est experienciando mesmo, e Metfora pelas conexes que
as mesmas podem desvelar. Benjaminianamente fica claro a potencialidade das metforas
no apenas como um fenmeno lingustico, mas um mtodo para absoro e aprendizagem,
tambm para a construo do novo. Esta ltima caracterstica se revela de grande valia para
o estudo de cultura contempornea, j que, nesse sentido, objeto de investigao de uma
potica. O gesto das crianas, nas perspectivas das metforas, tem a capacidade de simbolizar
suas experincias do novo, assim como o pintor tem capacidade de olhar com as mos. A
obra de arte para Benjamin (1994) caracterizada como uma metfora, pois objetiva discutir
um estado de percepo outro, que acessado em contato com experimentaes artsticas.1
Assim Benjamin (Ibid.) afirma que as metforas tm a forma de agir, de olhar, da posio do
novo. E aqui est o grande valor da metfora para estudar o contemporneo. Cada pessoa tem
uma rede de associaes e as ativa de acordo com a correlao da nova imagem que
estabelece uma metfora. No o sinnimo, mas uma nova maneira de olhar, diz Benjamin,
sendo providencial para o desenvolvimento do termo citado (estado-metfora). Sendo assim,
para no repetir todas essas explicitaes, caractersticas e definies, sempre que falar desse
momento e acabar atrapalhando a fluncia da leitura, o termo estado-metfora ser usado
todas as vezes que me referir s mesmas.
Recorrendo a Suely Rolnik (1995, p. 50, 51), encontramos o argumento de que no
contemporneo precisamos, mais do que nunca, renovar nossas formas de subjetivao. Como
um relmpago, passagem de um plano para outro, o instante da desagregao de formas
fixas de subjetivao, o que permite que as diferenas se manifestem. Somos lanadas numa
espcie de vcuo. Esse vcuo, relmpago, liminaridade, espao vazio, betwixt and between ,
suspenso da estrutura, horizontes imaginativos, campo de virtualidades, zona de
indeterminao, estado pirata, plano de imanncia, corpo-de-sonho, estado de arte, estado-
metfora e todos as definies que esse momento pode ter, o momento que me toca como
uma necessidade atual de pesquisa. Existindo ainda teorias como as encontradas na pesquisa
bibliogrfica, que deflagram o potencial desse fenmeno, suscita-se outra vez legitimidade
pesquisa.
1 A arte uma atividade que consiste em produzir relaes com o mundo com o auxlio de signos, formas,
gestos ou objetos. (BOURRIAUD, 2009, p. 147)
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Partindo da investigao desse estado, pretendeu-se pesquisar primeiramente quais
sos os meios para acess-lo, questes ligadas s sensaes e experincias de vivenci-lo,
alm de pincelar possibilidades desse instante de suspenso e desdm pelas convenes scio-
culturais desvelar algo para o devir. Interesso-me pelo papel do que est situado alm do
horizonte causal, pelas possibilidades que oferece, pelos desejos lcitos e ilcitos que
desencadeia, pelos jogos de poder que sugere, pelo terror que pode causar a incerteza, a
sensao de contingncia, de acaso , pela exaltao e principalmente pelo frmito que o
desconhecido pode provocar.
O fenmeno emprico escolhido para observar mais de perto e analisar o estado-
metfora uma expresso cultural carnavalesca, o Bloco dos Caretas. Moradores da cidade de
Guiratinga-MT fabricam e ornamentam mscaras de argila e papel mach no carnaval, vestem
um roupo de chita e saem danando pelas ruas ao som da percusso, jogando talco nos mais
desavisados, desmontando seus corpos limpos, socialmente perfeitos, puros. As mscaras
so os artefatos de destaque pela beleza e surpresa, construda pelos prprios folies. O Bloco
dos Caretas foi destacado, primeiramente, por expressar tipos diferentes de artes, interagindo
assim, com os atributos da arte contempornea e suas contaminaes, hibridaes de tipos
diversos de artes. Tambm pelo seu processo que pode ser definido como um ritual, e o
interesse pelo estudo do rito categrico, acreditando nos tesouros epistemolgicos que a
anlise do mesmo pode abarcar. Terceiro, pelo desafio de verificar num momento de
profanao total, que o carnaval, os elementos destacados por Turner como liminar (esses
encontrados nos ritos em geral religiosos ou de iniciao, enfim, ritos de carter
profundamente sagrados).
As metodologias foram escolhidas de acordo com as necessidades das revelaes
sobre o objeto. A pesquisa bibliogrfica talvez possa dizer que foi o procedimento mais
importante tendo em vista que o objeto de estudo bastante terico, e reflexivo. As teorias
presentes na reviso bibliogrfica foram analisadas na concepo de resenha,
contextualizando e embatendo os autores; observao participante e crtica; optou-se tambm
por uma breve etnografia do campo escolhido, na qual foram realizadas entrevistas
qualitativas livres com transeuntes, expectadores que esperavam nos portes de suas casas a
passagem do Bloco e tambm com os prprios bloquistas mascarados, na concentrao do
Bloco, durante e aps a passagem do Bloco, alm de entrevistas informais em diversos locais
onde o assunto do Bloco surgia. Permaneci na cidade durante dois meses antes do carnaval do
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ano de 2010 com o intuito de buscar dados que considerasse importantes para a pesquisa no
dia-a-dia da cidade.
A ideia de suspenso instigante ao pensar que o que vemos do alto parece mais
bonito, completo, imparcial; seria a viso panormica; j arriscaram at dizer que o olhar do
alto o conhecimento. Alm das divagaes sobre a necessidade de olhar de fora para
entender melhor o que se pretende. Em meio a tais ponderaes posso eu estar alando
problemas com alguns antroplogos. Primeiramente, fao uma pesquisa cujo tema se
encaminhou para a busca de um processo desprendido das condies culturais; tendo em vista
que antroplogos so por excelncia os estudiosos da cultura, poder-se-ia estar me
enforcando. Segundo, pesquiso e observo (agora como de fora) um objeto emprico que
cresci de dentro, ou seja, preciso deixar claro a minha naturalidade guiratinguensse que me
vestiu de Careta durante toda infncia e pr-adolescncia. Fato problemtico para a
metodologia da etnografia que tem por princpio olhar o outro, desfamiliarizar-se. No
obstante, me propus e me pus no lugar de pesquisadora analisando um fenmeno social que
observa o outro com um olhar particular, assim como qualquer etnlogo que aparecesse por
aquelas bandas. No creio que seja problema olhar o outro com as marcas que esto no corpo
batizado com a carnavalizao dos Caretas. Claro que a princpio isso causou uma ginstica
psicolgica, mas com o passar da etnografia, tomando os devidos cuidados que os livros de
metodologia prescrevem, de se ausentar o quanto possvel dos prprios julgamentos e
conceitos j estabelecidos sobre o objeto, desfamiliarizar-se, etc., creio que superei.
(Deixando claro que o discurso sempre est marcado pela referncia cultural e terica
vivenciada, essas so essencialmente inevitveis).
Para deixar mais explcito ainda meu ponto de vista metodolgico, reverencio e
compartilho do prisma de Crapanzano (2005) que assinalou:
Vejo a contribuio da etnografia no sentido da montagem. A justaposio, s vezes
arbitrria, s vezes inusual, de dois ou mais itens, elementos, imagens ou
representaes que chama ateno para aspectos desses itens que estavam escondidos ou eram ignorados. Montagens inusuais podem produzir surpresa ou choque,
iluminaes repentinas, epifanias ou insights e, por isso, podem ser retricas, estticas
ou terapeuticamente efetivas. Devo observar, entre parnteses, que a montagem
intrnseca etnografia, pois o antroplogo conjuga elementos de duas culturas a cultura em estudo e a cultura de referncia. Assim, h uma dimenso iconoclasta
importante para a etnografia que (em meu ponto de vista, infelizmente) reduzida pela
etnologia pela descrio tornada convencional, pela interpretao autorizada, pela explicao cientfica. No estou negando agora o valor da interpretao ou da
explicao (embora questione a descrio convencional). Desejo simplesmente
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indicar-lhes um efeito secundrio inevitvel, que exige reconhecimento crtico (2005, p.371).
Acrescentaria ainda uma eterna desconfiana na cincia que tenta afirmar verdades.
Ainda mais quando se trata de pesquisar o ser humano.
O Captulo I da dissertao discute a busca do homem contemporneo em geral,
problematizando quem ele . Para isso, fao observaes sobre as necessidades atualizadas
desse homem e de seu meio social, argumentando como essas necessidades se encontram em
desarranjo com os modelos modernos. Aqui j toco nos pontos principais que seria a busca de
singularidades ou de auto-referncias e de aes coletivas formadas por redes sociais ou
estado comunitrio ou ainda estado holstico.
No Captulo II optou-se por contextualizar o primeiro elemento do campo emprico
o carnaval, fazendo um apanhado bibliogrfico sobre este, tambm sobre o conceito de
liminaridade, e suas possveis vertentes definidas por outros nomes, por outros autores e
como estas se articulam com o estado-metfora.
No Captulo III encontra-se a pesquisa de campo descritiva e analtica. A etnografia
sobre o Bloco dos Caretas veio para exemplificar a anlise com observao participante o
instante limiar que acontece com arte e coletividade. Aqui eu me incluo no campo e nas
observaes respondendo do ponto de vista emprico as problematizaes sugeridas.
O Captulo IV busca apropriar da literatura sobre o objeto da pesquisa. o captulo
terico que, dialogando com autores e conceitos, analisa como a pesquisa prope ento o
encontro com essas singularidades e com o coletivo (as relaes interligadas). Ou seja,
aborda a experincia do instante limiar do estado-metfora, pois ele parece ser porta de
entrada para esse desvio, e qual o papel da mscara e da performance nesse fenmeno.
Respondendo, assim, do ponto de vista terico, as problematizaes do primeiro captulo.
A partir de agora nos presenteamos com um ingresso para um novo olhar. Adentramos
para o mundo das possibilidades onde a ordem no ter ordem. Olhamos o espetculo da vida
quimrica, das capacidades de ser e de olhar por fora da estrutura e amarras construdas sem o
nosso aval. No vamos comprar o jornal do dia nem almoar ao meio-dia. Estamos de folga
do tempo linear, tempo do trabalho (vital). Ento, partamos em busca de novos sentidos
vida.
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CAPTULO I
1. CONTEMPORANEIDADE: MAPAS POSSVEIS
Subjetividade o conjunto das condies que torna possvel que
instncias individuais e/ou coletivas estejam em posio de
emergir como territrio existencial auto-referencial, em adjacncias ou em relao de delimitao com uma alteridade
ela mesma subjetiva.
(GUATTARI, 1992, p. 19)
Os ideais da modernidade2 influenciaram os modos de pensar coletivo. Independente
de sua real efetivao, como argumentam alguns autores como Bruno Latour (1994) sobre a
falncia do projeto moderno, pois mesmo no alterando a feio da vida explicitamente, seus
modelos foram assimilados pelo imaginrio social como dever-ser e repercutem at a
atualidade. Mas quais modelos/projetos/ideais so esses?
Para citar alguns o uso da razo para todos os questionamentos humanos; o princpio
de igualdade para todas as prerrogativas entre os homens; a separao de todas as instncias
da vida em caixinhas analisveis; o controle e a dominao da natureza pela cincia...3
A valorizao das atividades humanas submetida a modos dominantes e tentando se
encaixar nos modelos mencionados o homem se encontra cada vez mais limitado aos
paradigmas internalizados da cultura. Segundo Ortega y Gasset (1987, p. 38) ele briga para
entrar no mundo moderno, pois tem que ser idntico aos demais e se sente bem com isso. Os
desejos dos indivduos so delineados pelos fatos sociais, o que costuma tracejar infindveis
2 O conceito de modernidade alvo de muita polmica nas cincias sociais, visto que h vrias vertentes que
tentam defin-lo. Uma dessas vertentes sugerida por Ieda Tucherman que modernidade a mudana em um
determinado perodo histrico aps Revoluo Francesa que apostou no desejo de futuro, ou na antecipao
de seus possveis (1999, p. 16); um tempo onde no se trata apenas do que podemos ser ou fazer, mas se
podemos controlar aquilo que faremos e o resultado do que fizermos; do fim dos processos de subjetivao. A esta fase podemos reunir outras concepes, como a que diz tratar-se da imposio de que tudo deve/pode ser
separado, definido e classificado a exemplo de Maffesoli, entre outros.
No decorrer do texto no usarei mais as aspas em modernidade ou em tais termos, subentendendo que a idia
se encontra nessa linha de raciocnio.
Tambm no me atenho discusso sobre qual perodo estamos vivendo, se samos da modernidade, se estamos
convivendo com dois perodos ou se a mesma nunca existiu. Nada relevante para tal pesquisa enquadrar em
definies construdas, momentos histricos. Afinal, no o momento de ser moderno. 3 Posteriormente discutiremos o porqu da falncia desses projetos/ideais.
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labirintos a afast-lo cada vez mais de seu eixo, obstando de desenvolver suas prprias
distncias de singularizao com relao subjetividade normalizada, e inibindo os espaos
para criao j que o espao vazio praticamente no existe. Este preenchido pela
necessidade de buscar e levar os filhos na aula de natao, kumon, piano, ingls, capoeira, de
buscar cursos para se especializar cada vez mais; de estar sempre informado; de procurar a
comida pronta mais rpida do mercado; alm de delimitar a melhor classificao para o
sobrinho: heterossexual, homossexual, bissexual ou assexuado... Ou seja, o indivduo
contemporneo fabrica mais necessidades para mais consumir; a vida domstica vem sendo
manipulada pela produo de subjetividade coletiva da mdia e do capital; uma tica da
responsabilidade, na qual se deve produzir e desempenhar funes para ser considerado
cidado; meritocracia; alm da estranha emancipao que multiplicou os compromissos;
etc.
Naquela conjuntura, o projeto moderno imps tantos estmulos e construiu a iluso de
tantas necessidades que esse homem se encontra basicamente imerso nas convenes
estabelecidas e pouco resta para pensar singularidades, pouco resta para novas possibilidades
de pensar, agir, criar. Ainda quando o sujeito faz referncia a si mesmo como lugar de
realizao, suas ocorrncias existenciais podem ser distorcidas ou ilegveis ao olhar de si
mesmo, como sustenta o autor das poticas da singularidade, Hlio Strassburger:
A noo de coerncia institucional oferecida desde cedo, alm de dificultar
possibilidades de inveno e criatividade, tambm serve para enraizar
sensaes de deslocamento e impossibilidade de conhecer outras verdades. Assim a diferena ameaa e passa a ser vista como marginal, um desajuste
com o mundo considerado normal (STRASSBURGER, 2010, s/p.).
Guattari e Rolnik (1986) demonstram preocupao a respeito do imperativo por
brechas dos tais estmulos culturais, arquitetando o conceito de revoluo molecular.
Militantes pela afirmao positiva da criatividade, esses autores da psiqu acreditam que
preciso abrir espaos para que ela acontea. Nesse contexto, o desejo s pode ser vivido em
vetores de singularidade.
H menos tempo ainda para interao com o outro, nos espaos pblicos, por simples
e puro lazer, por exemplo4. A oferta incessante de produtos e servios supe a escolha ao
infinito e a velocidade, o mpeto do tempo, guia o consumo de menos tempo csmico e mais
tempo linear. O que se faz uma dificuldade para o indivduo, pois de acordo com Tarde
4 De acordo com Canclini (1995), existe uma tendncia internacional para o decrscimo do consumo que se faz
nas instalaes culturais pblicas, em funo direta da grande expanso dos meios eletrnicos.
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(1992) esforamos muito para seguir o tempo linear, pois, na maior parte, estamos
perambulando pelas nossas fantasias (tempo csmico) e acaba sendo cansativo tentar ser
moderno.
Tudo isso o que aparentemente o projeto moderno imps e o que percebemos, se
olharmos na superfcie, ou mesmo se fizermos uma crtica aprofundada, porm arraigada nos
mesmos modelos e estmulos da ressabiada herana moderna. Todavia, os ecos que a
observao focada nas mincias e liames rudos que se anuncia como presentificao de um
futuro, podero nos apontar para novos anseios.
Ratificando o escrito de Suely Rolnik (1999) quando afirma que no contemporneo a
busca para conseguir reconfigurar-se diante do caos, j que este tempo intensifica a
desestabilizao do homem problematizaremos as necessidades contemporneas tendo em
vista os incentivos da atual conjuntura poltica, scio-cultural, psicolgica, inter-humana da
sociedade atual.
Para Rolnik, no contexto atual o mapa de relaes com o mundo e com o outro se
renova, so mltiplos mapas possveis, ou seja, so incorporadas novas sensaes sem que
tenha mudado necessariamente a figura atravs da qual a subjetividade se reconhecia, sem ter
construdo novas subjetividades.
Tendo essas afirmaes em vista e pretensiosamente espelhadas nas relaes humanas
contemporneas, compete-se salientar dois aspectos como imperativos do tempo presente:
- A necessidade de aparatos/artifcios/espaos vazios para a construo de
subjetividades auto-referenciais (sim, a proposta aqui interferir nas imposies
contemporneas da poltica de homogeneizao/massificao de produo da realidade);
- e a necessidade de mais comunidade em oposio a menos sociedade nos moldes
do socilogo Ferdinand Tnnies, para o qual comunidade so indivduos diferentes que
compartilham idias, valores, e sociedade so indivduos diferentes que compartilham de
idias da massa, porm esto isolados nas suas ambies5. Contudo, no pretendo tratar esse
momento apocalipticamente, e sim pensar um estado holstico6 como momentos que podem
ser mais vivenciados/incorporados no dia-a-dia.
5 Citado por Buela (1987) que define assim: a idia de comunidade enuncia no seu sentido original a
participao dos homens que a compem num ncleo aglutinado de valores (bens) que lhes so comuns. Ao
passo que a sociedade enuncia antes a aceitao por parte dos seus membros de um conjunto de normas
(deveres) que regulam a relao entre eles. Onde a satisfao egosta das necessidades do homem-indivduo deixa de parte toda a referncia ao prximo. 6 Experienciar uma sensao de coletivo interagindo organicamente. A densidade das relaes sociais
recompondo o conjunto dos efeitos do ser-em-grupo. Ou seja, um estado holstico algo cujos acessos no
podem ser separados. So to embaraados que tornam qualquer delimitao de um corpo ou alma singular,
quase arbitrria.
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1.1 Coletividade para se singularizar, ou o todo para a parte e vice-versa
A primeira vista pode parecer um paradoxo o argumento de que os sujeitos necessitam
de contato com estmulos particulares, ao mesmo tempo ser necessrio vivenciar o coletivo.
Pelo contrrio, h uma complementaridade a. Alm disso, a sugesto aqui a de
experienciar sensaes num todo interligado, numa tessitura ininterrupta, uma viso no-
fragmentada da realidade onde sensao, sentimento, razo e intuio se equilibram e se
reforam.7 Um depende do outro e um movimento aqui reage imediatamente acol. O que, a
mim, no parece algo to surpreendentemente novo, ou um surgimento inesperado da dita
ps-modernidade, remete, ao contrrio, diretamente aos modos de vida pr-industrial das
sociedades naturais onde todas as tessituras da vida se encontravam interligadas.
A revoluo molecular de Guattari e Rolnik (1986) tambm consiste em produzir as
condies no s de uma vida coletiva, mas tambm da encarnao da vida para si prprio,
tanto no campo material, quanto no campo subjetivo.
Ao mesmo tempo em que Ortega y Gasset (1987, p. 41) afirma que se tem que
incorporar a mentalidade da poca, pois nessa sociedade quem no for como todo mundo
correr o risco de ser eliminado (...) ser diferente indecente, os movimentos que se
anunciam, mesmo em sua incipincia, so aspiraes por no ser mais um na multido.
Ou melhor, no seria o homem contemporneo profuso de tantos estmulos, regras,
definies, tanto que de alguma forma ele quer se diferenciar dos demais? Ou melhor, o
sujeito social de hoje um caador de nuances de autocoerncia, busca de singularidades, ou
ele quer continuar a vagar para longe de si?
A busca pessoal pode seguir desfigurada ao tentar se adequar aos arranjos da
conformao dominante. Um discurso bem acabado por onde se instituem as leis e o gesso
aos propsitos de mudana pode afastar os indivduos cada vez mais do seu eixo.
Fonseca (1998, p.67) diz que precisamos saber a enorme distncia que h entre as
diferenas e as hierarquias. As primeiras instituem a heterogeneidade. As hierarquias
homogenezam. O homogneo incrivelmente vai se tornando dmod, assim como a
hierarquizao do mundo. Aspirao por se destacar, submergir da massa resignada, enfim, se
7 Depois de maio 68 a viso micro-social de uma realidade complexa, rizomtica, verifica-se a no separao
das instncias sociais, ou seja, tudo est interligado (DELEUZE & GUATTARI, 2004).
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14
singularizar. Ela sustenta que necessrio entrar num processo de desmistificao do
ordinrio para que o extraordinrio acontea e surjam contornos inesperados. Ou seja, o
artifcio para busca pelas suas singularidades s pode se dar pela prerrogativa do processo. A
singularidade por excelncia processualidade.
O processo que abre as ocorrncias, cria vazios, espaos para a imaginao aflorar e
transcender. Cada um deve estar forte e presente na obra.
Processo movimento e auto-engendramento, remetendo idia de permanente
ruptura de equilbrios estabelecidos (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 322). Para estes
autores a lgica do sujeito enquanto processo, seria a autopoise, e no uma lgica da
identidade. A primeira engendra diferenas, a segunda homogeneza.8
A singularidade precisa renunciar identidade. Clarice Lispector (1973 e 1993) cria
um termo para a necessidade de se renunciar identidade, para no saber, pois permanecer
nela seria ficar prisioneiro de um nico sentido IT (que ela retira do pronome neutro do
ingls), seria no-pessoal ou pr-pessoal.
O corpo no estado-metfora, tanto como o do artista, como o do processo, no serve
criao de identidades. Pelo contrrio, implica uma ruptura com a lgica identitria. O corpo
desmascarado de si no se faz de informaes, mas de processo, quase uma iniciao que, por
sua vez, nunca se conclui. E concluir no mesmo o intento.
Tendo como prerrogativa que de processo vive a arte, optou-se nesse trabalho olhar
para a arte como exemplo prtico das expectativas contemporneas mais singularizantes.
De acordo com Bourriaud (2009) a arte contempornea, cria espaos livres, gera
duraes com um ritmo contrrio ao das duraes que ordenam a vida cotidiana. Ela favorece
um intercmbio humano diferente das zonas de comunicao que nos so impostas.
Bourriaud usa o termo interstcio, usado tambm por Marx, para designar comunidades de
troca que escapavam ao quadro da economia capitalista. O interstcio um espao de
relaes humanas que, mesmo inserido de maneira mais ou menos aberta e harmoniosa no
sistema global, sugere outras possibilidades de troca alm das vigentes nesse sistema
(BOURRIAUD, 2009, p. 22, 23).
Para Calabrese (1988), incorporando o que est no limite do padro cultural criam-se
zonas de indefinio. Nesse sentido a arte tambm supera o bvio do cotidiano. Pois ela,
principalmente a arte contempornea, tem a predisposio de ser indita, incompleta, no 8 Autopoise seria uma lgica celular, ideogramtica e, se quisermos, uma lgica das diferenas. a lgica da
forma significante (FONSECA, 1998, p. 25). No sub-item 4.1.2 encontra-se uma discusso mais detalhada
sobre o termo.
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15
definida. Ou por acaso esses trabalhos geniais de artistas como Lygia Clark, Duchamp,
Artaud, Canigam, entre tantos outros, criavam algo previsto, completo, definido?
Na opinio de Schiller (1992) o homem deve ser lido como uma obra de arte porque
nela que est manifesta a totalidade de todo o saber livre, fazendo vibrar no contingente
logicamente produzido, a universalidade da transcendncia.9
Bourriaud com a noo de que a arte contempornea se desenvolve em funo de
noes interativas, conviviais e relacionais e diz que hoje, a comunicao encerra os contatos
humanos dentro de espaos de controle que decompem o vinculo social em produtos
padronizados de consumo, assim a atividade artstica, por sua vez, tenta efetuar ligaes
modestas, abrir algumas passagens obstrudas, pr em contato nvel de realidade apartados.
(2009, p. 11)
No de hoje que o assunto fonte de reflexo:
Os poetas so aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o
cu e a terra com as quais nosso saber escolar no nos deixou sonhar. Esto
bem adiante de ns, gente comum, no conhecimento da psique, j que se nutrem em fontes que ainda no tornamos acessveis cincia (FREUD,
1970, p. 1285).
A hiptese/sugesto parte das novas possibilidades de olhar para o mundo, para si e
para as relaes com o outro a partir da suspenso/trgua dos estmulos da estrutura cotidiana.
Da necessidade dos indivduos construrem singularidades, subjetividades menos
convencionais, com mais tempo csmico, e tambm vivenciar mais comunidade.10 Vislumbrar
outras possibilidades de olhar e repensar a realidade construda socialmente e vivida
cotidianamente como nica.
Tucherman (1999, p.13) questiona a realidade que vivemos cotidianamente como
nica j que a realidade, tal como a nossa tradio cultural a concebeu, supe uma efetuao
material e uma presena tangvel. Nesse sentido, Maffesoli (1995, p. 67) acentua que o estilo
de vida contemporneo enfatiza os aspectos intangveis e imateriais da existncia.11
9 Gillo Dorfles (1992) afirma que hoje mais do que ontem, quando em sua base havia, sobretudo uma funo
mgica, ritual, mtica ou religiosa a arte possa vir a ser fonte de catarse e de iluminao constante e
insubstituvel para o homem. 10
Ver: MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o declnio do individualismo nas sociedades de massa. 3 edio. Rio de janeiro: Forense Universitria, 1987. 11
Novas solicitaes e implantaes nas diferentes instituies, vo no sentido de valorizar e at fomentar
aspectos imateriais da cultura. Digamos que a imaterialidade a menina dos olhos, inclusive, de aes
polticas contemporneas. Como por exemplo, a implantao do Registro do patrimnio imaterial e intangvel
no IPHAN, rgo at ento preocupado com tombamentos de coisas materiais.
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16
Ento, por que o mal-estar que experimentamos perante o que imaterial, ou melhor, a
inquietao que sentimos por aquilo que impreciso, indefinido, inexplicado?
Para responder a tal questionamento o momento de voltarmos primeira questo
sobre a falncia do projeto moderno.
1.2 A falncia do projeto moderno
A valorizao de comportamentos culturais distante dos estimulados genericamente
pelo projeto moderno, principalmente na sociedade ocidental, foi e alvo de incontveis
teorias sobre essa nova textura histrica do homem. Um marco sobre o tema a polmica
obra: A condio ps-moderna de Jean-Franois Lyotard (1998), visto que teria formulado
um fundamento arrematador que definiria, nos diversos aspectos culturais, a condio social
desse novo momento. O termo usado, ps-moderno, desgastado e vago, ainda assim, o seu
argumento principal a perda das metanarrativas acabou sendo eficaz em vrias das
abordagens seguintes sobre essa linha de raciocnio sobre a cultura contempornea,
independentemente do tema e enfoque dado.12 A teoria designa o estado da cultura, depois das
transformaes bruscas nas regras dos jogos da cincia, da literatura e das artes, a partir do
sc. XIX, incio do XX.
Nesse arcabouo de metanarrativas esto: a cincia/razo que se isentou de cumprir
com promessas de libertao e valorizao das diferenas, de responder todos os
questionamentos humanos, controlar e dominar a natureza; no mesmo pacote das precises,
definies e completudes modernas; estilhaamento de suas cristalizaes e endurecimentos
discursivos relacionados unidade e centro; a morte de Deus, alm de outras. Discursos esses,
que instituram na sociedade os modos de tentar se encaixar na iluminada sociedade
irrompida com os misticismos e selvagismos pr-modernos.
1.2.1 Da perda das metanarrativas
Voltando s metanarrativas, pensemos um grande discurso que foi marcante na
ultrapassagem do perodo metafsico: a morte de Deus. Fato crucial para a modernidade
(desde o iluminismo), segue perdendo fora e acaba por ultrapassar a si mesmo, marcando
outra quebra de paradigma. Ideologia mtica outrora tida como arcaica, selvagem, quase
12
Marc Aug (1994). ; Zygmund Bauman (2001), entre outros.
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17
desumana para a luz da razo, a crena em algo alm (que no podemos ver), ganha
credibilidade novamente, visto as circunstncias e os riscos ocasionados pelas prprias aes
humanas. Isso significa a valorizao do invisvel, do alm-terra, do indecifrvel,
incompleto, indefinido, afinal, tudo o que a razo no pode demonstrar ou provar.
Observo a preocupao com o alm-realidade-ordinria, mais que atual! Os
noticirios sensacionalizam: Tufo na ndia mata mais de 10 mil pessoas jogadas pelo ar!;
Tragdia no Rio de Janeiro deixa milhares de humanos desabrigados!; Terremoto no Haiti
devasta um pas inteiro e leva mais de 60 mil pessoas desse mundo catastrfico que nossos
olhos podem enxergar! Isso os meteorologistas no puderam prever com sua objetividade e
preciso. Ou seja, a modernidade e a cincia preocupam-se muito em resolver problemas
estruturais, mas o que no podem os telescpios precisar, o que a cincia positivista no pode
demonstrar com fatos, e o que o tato bem apurado no pode tocar materialmente, no
facilmente posto em questo, nem refletido. So as nuances que no temos a capacidade de
ver.
As ideias de Janklvitch (apud CALABRESE, 1988, p. 172, 173), inquietas pelo
delineamento do contemporneo, mostram que h uma precisa prtica terica a desafiar as leis
da representao, propondo-se representar o irrepresentvel, dizer o indizvel, mostrar o no
visvel. Principia o reconhecimento que seria muita prepotncia da mente humana achar que
temos conhecimento sobre tudo que existe no mundo. Shakespeare foi perspicaz ao dizer que
h mais coisas entre o cu e a terra do que sonha nossa v filosofia.
Valoriza-se o impreciso, indizvel, ao contrrio da cincia teoricamente to precisa.
Omar Calabrese (1988, p. 171) salienta que O universo do impreciso, do indefinido, do vago
mostra-se, pois rico de seduo para a mentalidade contempornea. E ainda completa que
tem a ver com a revelao efetiva de uma mentalidade, ou seja, reluz uma nova maneira de
pensar/olhar na cultura contempornea.13
Turner (apud CRAPANZANO, 2005, p. 380) cita o mstico alemo Jakob Bhme:
Em incerteza todas as coisas consistem. Poderamos citar mais uma infinidade de outros
msticos que chamam ateno para os paradoxos de nossa compreenso.
curioso, alm disso, que justamente hoje a impreciso seja assim to revalorizada.
De acordo com as precises, definies, controle do progresso moderno, os contedos da
13
Nesse sentido, Flix Guattari (1992, 1993) alerta sobre a urgncia em pensarmos a cidade no s em seus
aspectos fsicos, mas tambm no psquico e no social. Pensar a sociedade de uma forma global, no em caixinhas
definidas. Introduzir a arte na vida, ou vice-versa, parece uma boa maneira de vislumbrar uma nova forma de
sociabilidade.
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18
cultura deveriam tambm assim o ser. Entretanto, o que verificamos que a calculadora
produz arredondamentos at o undcimo algarismo, lembra Calabrese (1988); a TV produz
efeitos de realidades, o relgio indiscutvel aproximao, nenhum dia tem 24hs, entre outros.
Notadamente a preciso apenas um discurso bem inventado.
Richard Schechner (1995, p. 205) escolhe abordar esse no-sei-que-indefinvel que
est exterior ao cotidiano. Para ele o momento no qual a oposio entre comportamento
cotidiano e comportamento extra-cotidiano deixa o plano fsico e alcana outro plano no
reconhecvel imediatamente. Chama isso de comportamento restaurado, o mesmo usado
em todos os tipos de representaes desde o xamanismo at o transe, do ritual at a dana
esttica e teatro, desde os ritos de iniciao at os dramas sociais, desde a psicanlise at o
psico-drama e a anlise transacional.
Sendo assim, a dificuldade da sociedade diante da incompletude, da indefinio, da
impreciso, deve encontrar resposta num sentimento que provm, pois, do resduo da nossa
atividade de reduo, prxis, explicao e controle do conhecimento.
No obstante, a curiosidade para saber o que est alm do bvio, (o excntrico, o que
transborda), incita o ser humano, cansado de definies, limitaes, ordem, aclamados pela
modernidade, a esquadrinhar as possibilidades, as lacunas, as brechas, para exceder aos
limites cotidianos.14
Calabrese (1988) formula ideias a partir de limite e excesso argumentando que estamos
nessa fase de romper, deslocar o limite incorporando-o para dentro da margem. O ritual tem
como um dos objetivos, a busca por essa quebra de fronteiras do permissivo, do dito real. O
exemplo do carnaval providencial tanto para o ultrapassar o limite quanto para celebrar o
excesso. o espao/tempo reservado para o transbordamento de fronteiras da regra, o excesso
do riso, do permissivo, do sexo, da dana, da alegria, etc.
imprescindvel que se crie zonas de indefinio, para dar possibilidade de o novo
acontecer e no viver como se fossemos expectadores dos prprios eventos. Assim como
consegue o Dionsio de Nietzsche:
S Dioniso, o artista criador, atinge a potncia das metamorfoses que o faz
devir, dando testemunho de uma vida que jorra; ele eleva a potncia do falso
14
As especificidades da modernidade, a vida regrada, planejada e a confiana na preciso e no perfeito,
provocam um tipo de ritmo paradoxo que objetiva a via contrria (artifcios para superar o regrado), como bem
argumenta Certeau (1994) nas artes de fazer.
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19
a um grau que se efetua no mais na forma, porm na transformao
virtude que d, ou criao de possibilidades de vida: transmutao. A
vontade de potncia como a energia; chama-se nobre aquela que apta a
transformar-se. So vis, ou baixos, aqueles que s sabem disfarar-se,
travestir-se, isto , tomar uma forma e manter-se numa forma sempre a
mesma. (DELEUZE, 1997, p. 121).
Afinal, se para diagnosticar o contemporneo devemos pensar o que se precipita,
necessrio ento estar atento ao desconhecido e este no definido, completo perfeito, mas
justamente o contrrio. Para pensar o que estamos a caminho de ser, carece escutar a diferena
que est sendo produzida, perceber a sutileza do inacabado. E seria difcil encontrar a
diferena no cotidiano, no que se repete todo dia, a possibilidade maior acess-la exterior a
ele, como diria Schechner, no extra-cotidiano.
Ficar deriva de si, para suportar momentos de transio pode ajudar a desintoxicar as ressonncias histricas, por onde alguns fantasmas ainda
sobrevivem. Na multiplicidade dos cotidianos papis, muitos so os esboos
para depois de amanh. Quem sabe o imaginrio possa encontrar outros nexos, na especulao dos rascunhos com as provisrias certezas. Talvez a a
histria de cada pessoa possa deixar de ter autoria desconhecida.
(STRASSBURGER, 2010, s/p.)
Outra metanarrativa vlida de conjecturao a questo da cincia.
A cincia j no sabe mais o que pode ou no, no deu conta dos projetos de salvar o
mundo com a razo, pois seus riscos so incalculveis, como defende Ulrich Beck (1998) em
La Sociedad Del Riesgo global. As conseqncias dos xitos da modernidade se convertem
em riscos. Hoje a iminncia de uma catstrofe ecolgica, econmica ou terrorista, fato. A
modernidade emerge da situao de segurana metafsica, para segurar na mo da razo.
Colocamos-nos como o centro que inclusive poderamos controlar a natureza, ns mesmos,
mas na prtica percebemos que os medos continuam e que a razo no conseguiu assegurar os
riscos. Um remdio pode paliar uma doena, mas no garante que em longo prazo afetar
outra funo do organismo. A idealizao da libertao do homem pela medicina e a cincia,
que a partir do iluminismo tanto contribuiu para a separao das instncias da vida, entra em
crise.
No obstante, notadamente claro tendncias a valorizar certas aes, ideais e
questes do nosso passado, este to indigno e ultrapassado para o ideal da modernidade. Por
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20
exemplo, verifica-se a valorizao novamente da medicina alternativa15, crditos para os
populares que conhecem o poder medicinal das ervas, plantas da mata, do cerrado, da
caatinga, etc. Percebe-se at mesmo o investimento da publicidade por tal gosto. As
propagandas de cosmticos, alimentos, tendem a destacar o valor natural, orgnico do
produto. Arrisco dizer que h um movimento intenso por certo reencantamento pelo natural.
Ao invs da cincia controlar a natureza, a natureza tem poder at sobre nossos hbitos
cotidianos.
Renato Ortiz diz que h uma recuperao16 de um gosto tradicional pelo pblico
considerado civilizado e atualizado. Adornos mais simples, voltados ao natural, ecolgico,
certo saudosismo do passado, estima pelo Romantismo, so cada vez mais procurados e
ressignificados. Essa busca pelo ecolgico/natural, na viso de Renato Ortiz, o smbolo
dominante de um suposto ps-modernismo, onde a idia de ultrapassar a modernidade o
projeto de justia social, no qual a questo ecolgica o ponto central.17
Estima-se de forma reconfigurada e atualizada a importncia da sapincia popular,
conhecimento adquirido no necessariamente na escola ou livros. Elementos estes, que os
orientais fazem questo de salvaguardar o quanto puderem, assim como os povos ditos
naturais, como os indgenas. Nessas sociedades o respeito pela sabedoria dos mais velhos
basilar, e o saber est ligado vida, organizao social, ao mito, assim como arte. Tudo
est intricado numa rede de relaes, no classificadas separadamente como na modernidade.
O esclarecimento procede, muitas vezes, do ardor no olho por mirar o sol ao invs da leitura
sobre o no dever olhar para o sol. Maffesoli (1998) tambm argumenta sobre a relevncia e
relao do saber em si, do saber comum na contemporaneidade.
A cincia se apropria da idia de verdade atravs do mtodo. Toda modernidade cr na
possibilidade de cura e liberdade atravs desse mtodo que a ideia exata sobre algum objeto.
A imagem do objeto igual sua representao. S que a idia de representao j nasce falida
a partir do momento em que a representao depende da referncia e referncia um dos
15
Em pases da Europa existe at um curso superior para Parteira. As pessoas buscam muito esse tipo de
procedimento rudimentar e ligado ao natural. 16
Recuperao foi o termo usado pelo professor Ortiz na palestra conferida a alunos da Universidade Federal
de Mato Grosso (UFMT) no ano de 2004. No uso tal termo, visto a problemtica atribuda em torno dessa
palavra. 17
Para Renato Ortiz, ligar a idia de ps-modernismo idia de ecologia tambm uma tentativa de desconstruir
e at se opor a alguns evolucionistas, com seu progresso tecnolgico. Porm o autor considera contraditrio e
invivel nesse sentido ps-moderno-natural, pois argumenta que no tem como dissociar projetos ecolgicos
de tecnologia, ou seja, alm da conscientizao, hoje necessrio tecnologia avanada para facilitar e viabilizar
recursos ecolgicos. Aqui um exemplo do novo uso de elementos do passado e no a fidedignidade de sua
recuperao.
-
21
maiores colapsos contemporneos18. Ademais, o exerccio da hermenutica acaba por
impossibilitar a idia exata sobre a singularidade das referncias.
Foucault tambm desconstri a idia do saber ser libertador. Para ele o saber constitui
ilhas de ignorncias tambm. O apelo sedutor dos princpios de verdade costuma conter
sofisticadas armadilhas, muitas delas estimulam alguma forma de competio ou comparao
com os demais.
1.3 Do deslocamento
No conjunto de fenmenos sociais definidores do tempo presente, encontra-se um
elemento forte chamado deslocamento. O reencontro ou revalorizao desses fenmenos
citados acima exemplifica essa caracterstica de deslocamento que acaba por revelar uma
potica da contemporaneidade. A reciclagem de elementos que no so desconhecidos do ser
humano, pelo contrrio, foi vivenciado fortemente em pocas outras.19
Isso talvez leve a refletir tambm sobre os to popularizados tempos histricos que
tem sido largamente utilizado para se pensar nosso passado. No consigo ver tanta linearidade
nesses momentos se eles convivem juntos, principalmente na atualidade. Talvez porque seja o
lugar onde estamos vivendo e ao mesmo tempo pesquisando, mas esses gostos
contemporneos que a primeira vista se ope a alguns modernos, tambm pode em grande
medida ser um gosto barroco que se ope ao clssico, ou romntico que se ope ao realismo,
no precisamente, mas com traos de alguns e abortamentos de outros em todos os to
definidos tempos histricos. Ao invs de uma linha contnua, porque no pensar em linhas
que aparecem de diversos lugares, ou linhas circulares, rizomticas?20 A origem pode ser o
movimento.
A reflexo de Schiller (1992), por exemplo, no se esgota no tempo histrico. Ele
acredita que a possibilidade de um mundo fundamentado em princpios humanizadores de arte
junto de novo com a vida pode existir, uma vez que j existiu na histria. E no depende do
tempo porque hiptese de uma tica social que busca a totalidade da insero humana no
mundo, para ele esquecida quando a poesia separou-se da vida cotidiana.
18
Ver Marc-Aug (1994), Deleuze, Guattari (1992). 19 Segundo Calabrese deslocamento "consiste em atribuir ao que foi desvelado do passado, um significado a
partir do presente, ou proporcionar ao presente, um significado a partir do que foi desvelado no passado" (1987,
p.193). 20
No tempo em que vivemos o excesso e a intensidade dos acontecimentos ativa a memria, de modo que se
capaz de narrar eventos histricos importantssimos em pouco tempo de vida.
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22
atravs da expresso da experincia que as culturas articulam seus significados, articulam passado e presente e por isso podem ser melhor
comparadas atravs de seus rituais, suas artes cnicas, contos, peras do que
atravs de seus hbitos (MLLER, 2000, s/p.).
Dessa forma, elementos valorizados e utilizados no passado deslocam de maneira
ressignificada a agir na contemporaneidade, definindo assim, uma nova potica, que ela
mesma a do deslocamento. Aqui so os momentos de estado holstico que me interessam
como fenmeno de deslocamento.
1.4 Outra sociabilidade
Refletir sobre os estmulos dos tempos modernos e a necessidade de emergir dos
mesmos se faz necessrio a partir da constatao que os paradigmas modernos no vigoraram.
A pretensa dominao da natureza; a cincia como verdade e a razo como certeza dos riscos
paradoxalmente produzindo uma sociedade de riscos incalculveis e sua verdade (sempre
entre muitas aspas) uma grande dvida. As separaes explcitas, a idia de puro e o horror
mistura se desfazem nos fluxos indissociveis de hibridaes e misturas constantes da
cultura contempornea. Produzir sua vida com um futuro projetado no presente (pois
professaram que s o homem das cavernas agia no aqui e agora), etc., so exemplos dos
modelos que naufragaram.
A maioria dos indivduos prioriza o presente, pois, dos muitos estmulos, no so
todos que podem participar. O projeto da maior parte das pessoas viver e muitas vezes o
planejamento apenas a comida que se consegue no dia. Ortega y Gasset (1987 p. 55)
sustenta que nesse contexto a f na cultura moderna era muito triste j que tinha a vida toda
planejada: saber que o progresso consistia s em avanar eternamente por um caminho
idntico ao que j estava sob nossos ps. Um caminho que mais se parece com uma priso,
elstica, se estica sem nos libertar. Finalmente, o que parece que o projeto moderno e sua
lgica do dever-ser no se concretizou, como j previa o clssico socilogo Max Weber.
Por exemplo, pesquisas apontam que apenas 3% da populao brasileira cumpriu o projeto de
terminar o ensino bsico e entrar na faculdade.
Assim, vislumbrar um espao mais hedonista deve ser uma tendncia contempornea,
como elaboram Ortega y Gasset e Maffesoli.
O que importante reter que as mudanas aqui discutidas apresentam (exatamente
pelo que trazem de novo na relao com o espectro do corpo, com a possibilidade de outro
olhar sobre o espao e tempo cotidiano e a relao comunitria com o outro), frteis
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23
possibilidades aos indivduos para o exerccio de uma nova relao consigo e com o mundo.
De vivenciar de forma diferente o mundo e de experimentar formas reelaboradas de
sociabilidade e relao com a alteridade, especialmente a partir da experincia artstica.
A direo potica atual desconhece impedimentos ou limites. O fim dos limites entre
arte e vida possibilita uma nova forma de sociabilidade mais adequada e to imprescindvel na
cultura contempornea. Bourriaud (2009) trabalha com a assertiva que, na
contemporaneidade, os artistas passaram a produzir modelos de socialidade e a situar dentro
da esfera inter-humana.
O mundo contemporneo esse caos e no caos que se criam brechas para ultrapassar
os limites do cotidiano. O carnaval provoca caos, e caos morte. Tudo para nascer novo
precisa morrer, desconjuntar; o carnaval desmonta todo um sistema de valores e leis para
recriar, renascer. Uma ordem objetiva 'mutante' pode nascer do caos atual de nossas cidades
e tambm uma nova poesia, uma nova arte de viver (GUATTARI, 1992). Trata-se de
reconstruir no apenas no real, mas tambm no possvel.
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24
CAPTULO II
2. UMA PR-LIMINAR CONTEXTUALIZAO
A liminaridade pode ser como um reino de pura
possibilidade, de onde novas configuraes de idias e
relaes podem surgir
(TURNER apud CRAPANZANO, 2005, p. 381)
2.1 Do Carnaval liminaridade
H muito vrios autores tm teorizado sobre o carnaval e seu poder de inverso da
ordem. Descrevem esse perodo como um momento no qual as regras sociais vigentes na vida
diria so temporariamente interrompidas, neutralizadas ou invertidas.
As anlises vo ao sentido de o carnaval configurar um perodo de contraverso de
valores ordinrios; momento onde tudo permitido; esquecimento provisrio das regras;
descaso sobre a estrutura, etiqueta, etc.
Um dos tericos que esmiuou a esttica carnavalesca foi o filsofo da linguagem
Mikhail Bakhtin. Este, a partir de estudos e analogias sobre o carnaval na Idade Mdia e no
Renascimento, desenvolveu um conceito chave de articulao terica que influencia vrias
reas de conhecimento como a lingstica, literatura, histria, sociologia, cincias em geral a
esttica carnavalesca ou carnavalizao.
Resgatando Bakhtin (1993), pode-se dizer que o carnaval, como a representao
mxima da carnavalizao, conjuga uma pluralidade de vozes tal que o caracteriza,
fundamentalmente, como polifnico, dada sua heterogeneidade constitutiva, que relaciona
extravagncia e simplicidade, cenrios exticos e banais, aspectos eruditos e populares,
mesclando uma significativa variedade de estilos e contemplando a juno de pessoas de
diferentes classes sociais, etnias e idades. isso que sintetiza, por excelncia, a composio
carnavalesca.
Substituir o uniforme pela fantasia, comer e beber nas ruas, trocando a casa pelo
mundo pblico, no qual o comportamento dos indivduos dominado pela ausncia do status
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25
social e a regra no ter regra. Em carnavalizao a concepo de espao redimensionada
pelo desregramento habitual, o riso propriedade de todos, h a celebrao do
transbordamento ou excesso de prazer, riqueza, alegria. Bakhtin fala de excesso relacionando-
o com o grotesco a bocarra, o nariz imenso, o exagero nas formas e na diverso levada ao
extremo sem maiores preocupaes.
Para Bakhtin (apud PACHECO, 2006) outro aspecto constante dos ritos carnavalescos
so as situaes de desnudamento e de mascaramento, j que o ato de pr a mscara significa
assumir outra personalidade e esconder-se, ou mesmo, assumir-se.
Durkheim discorre muito bem sobre o tema da anonmia, assim como o antroplogo
britnico Victor Turner. As mscaras so recorrentes e o anonimato com o artifcio de
esconder o rosto, possibilita expressar desejos proibidos no cotidiano.
A hierarquia desvelada como a mais irrelevante superficialidade, pois o
destronamento de tudo que elevado, para dar lugar o nivelamento do mundo, acaba por criar
a intensidade de uma nova cosmologia, do novo olhar para o mundo muito mais profundo.
Bakhtin (1993, p. 14) caracteriza esse ambiente carnavalizado como o carter universal, a
concepo profunda do mundo. Para o autor o carnaval a procisso dos deuses
destronados tanto dos status social, quanto dos pecados morais (apud BRAIT, p.55).
O socilogo brasileiro, Roberto da Matta (1977, p. 22) diz que o carnaval o sumrio
perfeito da viso anticotidiana da vida.
Sua abordagem especfica sobre o carnaval no Brasil, sua imagem e as incorporaes
dessa imagem pelos prprios brasileiros. Nesse sentido, como se os brasileiros desejassem
sempre enfatizar os aspectos comunitrios da sua ordem social, e o desdm pelo estrutural21.
O malandro, em contraste com o Caxias; o jeitinho, em contraste com a burocracia
cotidiana, assim por diante.
A diluio das hierarquias est presente em todas as teorias sobre o carnaval. Ela um
forte vetor para incorporao do estado comunitrio (holstico) como problematizado no
primeiro captulo. J que as diferenas instituem a heterogeneidade e as hierarquias
homogenezam, de acordo com Eliane Fonseca (1998, p.67), o carnaval institui a diferena,
no sentido de respeito individualidade, prazeres e desejos de cada um, ao mesmo tempo
colocando todos no mesmo patamar de humanidade. Sem escadas, os corpos realmente se
21
(permanncia, autoridade, posio definida, no espontaneidade social e ideolgica, distines de status e
riqueza, secularidade, obedincia, hierarquia, conhecimento tcnico), aspectos destacados por Turner (1992)
como estrutura.
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tornam comunitrios e os sujeitos podem experimentar sensaes de coletividade, de um todo
ininterrupto naturalmente. o citado estado holstico, que se faz presente no carnaval.
Da Matta constri uma analogia do conceito de Vitor Turner de communitas e
liminaridade com o carnaval do Brasil. Aborda o carnaval como sendo a instituio
paradigmtica desta viso do Brasil como uma grande communitas. Diz que o carnaval e sua
viso no rotinizada do mundo rompe com o continuum da vida diria, apontando
gritantemente para alguns pontos bsicos da nossa ordem social (MATTA, 1977, p. 22).
Segundo o autor, o carnaval o perodo de tempo anmalo onde encontramos uma
coerncia entre o aparecimento de seres ambguos e escondidos- monstros, demnios, seres
csmicos, entre outros. As fantasias representam tipos problemticos e marginais tais como
tivesse aberto os pores da sociedade. Aparecem com todo o seu poder de provocar o caos.
Para-se com as atividades rotineiras, dorme-se de dia e anda-se de noite. (Id., Ibid., p. 36) O
trnsito se acalma e as ruas so ocupadas pelas pessoas.
2.2 liminaridade
Olavo Bilac descreve um tipo social o carnavalesco, como o exemplo perfeito do
homem liminal:
... um homem maduro, matriculado tendo mulher e filhos, aplices e
comenda. Pouco importa! um carnavalesco... Na vida desse homem, de
vida regrada e equilibrada, o Carnaval um hiato, uma sncope, a anulao completa de sua conscincia de homem e de chefe de famlia, a
suspenso absoluta de toda a sua gravidade de negociante e de comendador
(apud MATTA, 1977, p. 31).
Sublinho o fato de essa composio carnavalesca representar uma ausncia de
estrutura, ou melhor, a estrutura estar em suspenso, assim como os anseios do cotidiano, o
que leva os indivduos a uma experincia onrica, com espao e tempo em outra dimenso,
onde o futuro no planejado, incerto. Aqui, inicia-se a conjugao do ponto que nos
interessa os efeitos de carnavalizao com a teoria da liminaridade de Turner (1974).
Victor Turner, um antroplogo britnico preocupado com a transio nos ritos de
passagem, estudando os Nuer descobre nos momentos auge de seus rituais a liminaridade.
Liminaridade seria o momento auge do ritual onde a estrutura se encontra em
suspenso, h ausncia de status, de diferena sexual, de classes, hierarquia, de obrigaes
de parentesco, anonmia. Os corpos se encontram pairando por um espao-tempo indizvel,
mais potencial que se imagina, segundo Turner. O indivduo se encontra no meio, no entre
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(betwixt and between22), no nada da estrutura cotidiana. O que est suspenso todo o sistema
social vigente, tudo que ordinrio, todos os anseios do cotidiano. Turner (1974) chamou,
apropriadamente, a liminaridade de prima matria: um estado bruto onde no se est nem
dentro nem fora da sociedade, est absorto em singularidades, espao, tempo, inclassificveis,
alis, ele diz que transporte para outras realidades.23
O modelo de Turner basicamente o modelo tripartite do rite de passage de Van
Gennep (1960): separao, margem e incorporao. Crapanzano (2005) entre outros autores
ampliaram o modelo dos ritos concernentes a crises na vida de um indivduo para aqueles da
sociedade em geral. Estes incluiriam ritos preparatrios para a guerra, cerimnias de primeira
frutificao, colheita e chuva, que marcam a passagem da escassez para a abundncia, e
rituais de posse, como coroaes, que, embora centrados em um indivduo, so
eminentemente coletivos na orientao e nos efeitos. Turner (1974, cap. 1) amplia mais ainda
o modelo, aplicando-o a perodos de reparao de conflitos sociais, que chama de dramas
sociais. O centro de sua ateno a liminaridade a margem , que considera uma situao
interestrutural e entendida como processo e devir. No est particularmente interessado em
pontuar o liminar em suas disjunes internas e em como este efetua e afetado pelo
momento final, definidor da transio.
Contribuindo com o estudo de Turner, quero atentar justamente para as disjunes
momentneas no instante especfico da dissociao das estruturas conscienciais ou no, ou
seja, o foco da pesquisa est no momento crucial do desligamento de todas as percepes
automatizadas da cultura. Analiso qual o caminho pra se chegar nesse estado de escuta das
vibraes que se diferenciam da repetio diria. Esses momentos liminares so apenas
executados e geralmente ignorados, embora possam ser exibidos em rituais dilatados e
repetitivos, no drama, na literatura e na msica, segundo Crapanzano (2005). So os
momentos definidores dos ritos de passagem, mas tambm de transies corriqueiras de um
registro experiencial, por exemplo, a viglia, a outro, por exemplo, o sonho, o transe ou o
simples adormecer.
O trabalho que me propus realizar est no momento de passagem que, em essncia,
nao pode ser enunciado, no com ritos de passagem tradicionais, mas com uma inclinao
considervel para o elemento que foi identificado a priori como o que representa mais
22 Turner usa o termo betwixt and between em vrios livros, no qual funde dois sinnimos que aponta a
indeterminao e falta de localizao precisa da coisa designada. Exemplos de possveis tradues seriam: nem
l nem c, aqum e alm dos pontos fixos, entre dois mundos, entre e entrementes. 23 Para Artaud o ser tem estados inumerveis.
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ludicamente a suspenso da estrutura cotidiana e quebra das convenes culturais a arte.
Assim, o termo estado-metfora veio para ajudar a pensar essa passagem.
Turner enxergou a liminaridade nos ritos de passagem, Vicent Crapanzano na esttica
japonesa e no misticismo sufi. A maioria desses ritos se fazem em situaes de culto, religio
ou manifestaes equivalentes; aqui estaria ento a suspenso da estrutura cotidiana com
Religio. Abordo essa suspenso em contato com Arte explicitada no momento liminar de
Turner, com o antes, o durante o ato da criao e o depois, se esse ato de produzir algum tipo
de Arte24
, ou mesmo a sensao artstica, o estado-metfora, ou o estado de arte, como
veremos adiante, pode enriquecer subjetividades no personagem cotidiano ou mesmo no
grupo social. A Arte aqui ser abordada no sentido ritual. Abordando-a assim, numa
perspectiva maior compreendendo alm da apreciao esttica, (e todas as definies
europeizantes), como um amplo espectro de expresses e manifestaes de sentidos e valores
culturais.
Mas por que escolher a arte?
Eliane Fonseca (1998, p. 14) discorrendo a respeito da funo mais importante da arte,
defende que a ruptura com o velho, o conhecido, e a abertura para outra forma de
conhecer.
Bourriaud diz que a arte tem por finalidade reduzir a parte mecnica em ns: ela
almeja destruir todo acordo apriorstico sobre o percebido (2009, p. 113).
Enfim, a arte inventa subjetividades com uma linguagem que s pode ser acessada
atravs da linguagem artstica. Essas e outras descries sobre as sensaes de arte partem do
significado que pesquiso, do encontro com o momento limiar do estado-metfora.
Se liminaridade no parece uma palavra to comumente usada no meio cientfico, no
obstante, a ideia que compe o conceito bastante teorizada, porm, em outros contextos e
com nomes bastante distintos. Expor sobre eles pode nos ajudar a pensar o objeto desse
trabalho:
O conceito de corpo-de-sonho da psicanalista e poeta, Eliane Fonseca (1998), um
bom exemplo. Para ela corpo-de-sonho o movimento perceptvel que deixa ver o vo, o
entre uma coisa e outra coisa.25
Ela define:
o intervalo entre a evanescncia e a corporeidade, entre o possvel e o
virtual, entre o vo do sentir e do experimentar, na bscula entre desejar e
24
A Arte proporciona a dimenso da beleza aberta ao esprito atravs da sensibilidade. (Hegel, 1992)
25 Turner betwixt and between, para tentar definir melhor esse estado liminar, o entre, como foi dito.
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querer, na esquize da vida e da morte (...) funciona como um instrumento privilegiado para a travessia do estranho que, por ser o informe, aterroriza e
fascina (FONSECA, Ibid., Apresentao).
Assim como a liminaridade, o corpo-de-sonho estado de arte ou estado de risco, de
acordo com Fonseca, pois sua emerso implica o abandono das garantias e referncias do
saber suposto, e o deslocamento do horizonte das representaes, da lgica do racional-
discursivo para o campo da potica. Por estar determinado pela quebra do senso comum, h
uma funo do corpo-de-sonho que se aproxima da funo mais importante da arte aquela de
romper com o definido e abrir fendas para o pr formal ou o informe, chamando de o saber
que permite sonhar (FONSECA, 1998, p.14).
O conceito dessa autora demonstra que a conexo das sensaes da liminaridade com
as da arte j foi no s pensada como teorizada.
Muito propcio para o objeto dessa pesquisa, tanto liminaridade, arte e corpo-de-
sonho, jamais esto prontos, mas sempre em constituio, desmanchando formas,
atravessando o informe e criando outras formas de subjetivao e de existncia. um
ultrapassar da linguagem, do formalismo, da estrutura, um ir alm.
Para Crapanzano (2005) o limiar foi muitas vezes equiparado ao sonho ao processo
primrio de pensamento, mas na verdade ele sugere possibilidades imaginativas que, no
necessariamente, esto ao nosso dispor no cotidiano.
Estado de arte outro conceito relevante aqui. Esse elaborado pela artista (ou
como ela preferia se auto-intitular no-artista) Lygia Clark. Sua arte aproximava o
expectador de um estado onde o mundo se molda e passa a ser constante transformao.
O que a artista buscava era a constituio de um estado esttico (o estado da arte sem
arte) que s ocorreria com a recuperao do corpo sensrio. Por isso os suportes fsicos das
proposies construtivas no so obras artsticas, mas instrumentos de sensibilizao: so
pontos de partida que procuram despertar a capacidade criativa do manipulador (CLARK
apud BRETAS, 2010, s/p). Avatar de uma prtica eminentemente esttica, Clark investe na
experimentao de um constructo espcio-temporal alternativo como propedutica para
outro tipo de vivncia poltica. Tanto que em 1968, em um texto espcie de manifesto da atitude
reivindicada pela artista desde Caminhando, ela escreve: Somos os propositores (...)
enterramos a obra de arte como tal e solicitamos a vocs que o pensamento viva pela ao
(CLARK, 1980, p.31).
Sua nfase na sensao notria. A sensao, segundo Deleuze e Guattari (1992, p.
271), a maneira de responder ao caos. Ela a vibrao contrada, tornada qualidade,
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variedade (...) A contrao no uma ao, mas uma paixo pura, uma contemplao que
conserva o precedente no seguinte. Essa contra-ao pode ser entendida tambm como a
no-regra, as contravenes do estado-metfora.
Para eles a sensao est, pois, sobre outro plano diferente daqueles dos mecanismos e
das finalidades. Ela preenche o plano de composio, e preenche a si mesma, preenchendo-se
com aquilo que ela contempla.
preciso que a funo seja captada numa sensao que lhe d perceptos e afectos
compostos pela arte exclusivamente, sobre um plano de criao especfica que a arranca de
toda referncia. (DELEUZE; GATTARI, Ibid., p. 278)
Passando por Walter Benjamim (apud FONSECA,1998, p. 132), observamos que ele
traa dois conceitos relacionados ao tempo, bastantes distintos entre si: o limite e o limiar. O
limite no uma interrupo no tempo, mas o fator de sua continuidade. O limite existiria, por
exemplo, para o tempo cronolgico. O limiar, por sua vez, uma zona de passagem, uma
interrupo no tempo. Justamente essa interrupo o que cria um entremeio, um hiato,
transformando o limiar em uma zona, uma espacialidade dentro da prpria interrupo do
tempo cronolgico que, por sua vez, d lugar a outras temporalidades. Segundo
Benjamin (apud MATOS, 1993), no limiar que ocorre o estranhamento, quando fronteiras
se misturam: as do sono e da viglia, da fico e da realidade material, do eu e do no-eu, da
historia e da natureza, da natureza e do homem. Ainda completa dizendo que no predomnio
da razo discursiva, quando o mundo se desencanta e se mecaniza, ns nos tornamos muito
pobres em experincias de limiar. (Id., Ibid., p. 49)
Deleuze e Guattari (1992) tambm formulam uma teoria providencial para nossas
analogias de liminaridade. Em O que filosofia? referem-se a um guarda-sol que nos
protege do caos, que aqui seria a cultura dominante, a estrutura convencionalizada. Esse
guarda-sol em alguma medida nos impede de formar uma opinio fora de tudo que j foi
formatado. No caso deles, so a filosofia, a cincia e a arte, os instrumentos que rasgam o
guarda-sol e faz-nos mergulhar no caos. O caos pode ser comparado com o estado-metfora.
Eles citam Lawrence que diz:
Os homens no deixam de fabricar um guarda-sol que os abriga, por baixo
do qual traam um firmamento e escrevem suas convenes, suas opinies; mas o poeta, o artista abre uma fenda no guarda-sol, rasga at o firmamento,
para fazer passar um pouco do caos livre e tempestuoso e enquadrar numa
luz brusca, uma viso que aparece atravs da fenda... (apud DELEUZE;
GUATARI, 1992, p. 261).
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Os autores consideram esse encontro com o caos necessrio para operar as destruies
imprescindveis e mostrar a novidade que no podemos ver na vida ordinria (o novo da
metfora). O caos que faz surgir uma viso que o ilumina por um instante, uma Sensao.
Em todo o apanhado bibliogrfico realizado aqui, as referncias so exclusivamente o
que se experimenta a flor da pele. Sendo assim, a composio Carnaval/Liminaridade
operam sensaes nicas que o discurso no alcana plenamente, sensaes essas que
compem o alvo da pesquisa.
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CAPTULO III
3. BLOCO DOS CARETAS
Quantos seres sou eu para buscar sempre do outro ser que me habita as
realidades das contradies? Quantas alegrias e dores meu corpo se
abrindo como uma gigantesca couve-flor ofereceu ao outro ser que est
secreto dentro de meu eu? Dentro de minha barriga mora um pssaro,
dentro do meu peito, um leo. Esse passeia pra l e pra c incessantemente. A ave grasna, esperneia e sacrificada. O ovo
continua a envolv-la, como mortalha, mas j o comeo do outro
pssaro que nasce imediatamente aps a morte. Nem chega a haver
intervalo. o festim da vida e da morte entrelaadas.
(Lygia Clark)
Logo que cheguei, no notei nada alm de uma cidade pacata e acomodada, pouco
acontece fora da rotina to fixa, tpica de uma cidade muito pequena. Um lugar que aos
poucos decresce em nmero de habitantes26
, fato este, que incomoda muito aos moradores.
No entanto, uma semana antes do carnaval, nitidamente a cidade comea a borbulhar. O
volume de carros aumenta, assim como o nmero de pessoas, burburinhos sobre o Bloco dos
Caretas, a banda, os roupes, a mscara que ser utilizada, o talco; os moradores se postam
para fora de suas casas... Parece que algo nasce por ali. Para essa cidade realmente o carnaval
algo mpar, ansiosamente esperado que age movimentando a esttica do espao e os nimos
de moradores, turistas e entorno.
Cada dia que passa o clima carnavalesco aumenta e vai tomando conta da cidade.
A princpio, essa descrio pode se equiparar descrio sobre os dias que antecedem
o carnaval em qualquer cidade. Entretanto, por conta do carter de transe nos traos artsticos
do Bloco (teatralizao, performance, msica, dana, artes plsticas) e por configurar um
ritual descerimonioso e profano, ao contrrio dos ritos tradicionais, o campo emprico se
mostrou oportuno para os objetivos da pesquisa.
Localizada na regio sul de Mato Grosso, distando cerca de 310 km (trezentos e dez
quilmetros) da capital Cuiab, Guiratinga, considerada a capital nacional das orqudeas, tem
26 Dados do IBGE demonstram que nos anos de 1950 a populao era superior vinte mil habitantes. O ltimo
censo 2010 contou menos de quatorze mil habitantes. Ver: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1
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como marco a ocupao motivada pela explorao de diamantes e por forte seca ocorrida nas
regies norte e nordeste do pas no incio do sculo XX. As mltiplas representaes
presentes na alma desses migrantes deslocaram para a incipiente cultura local um modo novo
e metamorfoseado de brincar o carnaval.
O Bloco dos Caretas uma expresso artstica na qual uma diversidade de pessoas
muito dispostas a se divertir sai pelas ruas danando ao som de tambores, jogando talco em
quem no est fantasiado. Para participar, basta vestir uma tnica27
, o dito roupo, colorido de
chita, um capuz, uma mscara, muita irreverncia e energia, para bancar uma de monstro
percorrendo as ruas da cidade brincando de rei, capeta, viado, Xuxa preta, entre outros.
A mscara o componente mais prodigioso do Bloco. Pode apresentar formas
aberrantes, espantosas, criativas, engraadas, o suficiente para causar impacto no pblico que
muito valoriza e se diverte com as peripcias desses caretas. Alm disso, a mscara o
elemento que desperta a criatividade, engenhosidade, pois so confeccionadas artesanalmente
pelos prprios folies, existindo, ainda, toda uma ludicidade na composio e modos de
confeccion-las. Modelar barro e construir mscaras algo que est presente no imaginrio
dos moradores e nas brincadeiras de criana.
A princpio, ocupei-me do levantamento de dados acerca das condies sociais
daqueles que ajudaram a criar o Bloco dos Caretas, conferindo-lhe uma forma que se
transformaria ao longo dos anos. Foram observadas as representaes sociais presentes no
imaginrio de moradores e turistas. Foram realizadas entrevistas abertas com folies e
transeuntes, antes, durante e depois da passagem do Bloco. Alm de visitas em moradias
aleatrias e entrevistas dentro da concentrao tambm. Visitantes e habitantes dos mais
diversos estados sociais, padres, crianas e adultos, ateus e atores da trama desnudam seus
desejos, brincam com a seriedade da vida, descobrindo entes atravs das mscaras e melodias
no silncio distante.
Observao participante coloquei-me de fora e, noutros momentos, de dentro da
mscara, saindo mascarada junto com os folies, com o intuito de verificar por diferentes
ngulos, a observao dos folies e dos expectadores, cujas poltronas eram os portes, ou
janelas de suas prprias casas.
27 Vestidura larga de um corte s que cobre o corpo inteiro, como um grande vestido. Em Guiratinga chamado de
roupo.
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3.1 Visitando os criadores do Bloco dos Caretas
Na dcada de 1940 a elite guiratinguense possua locais exclusivos para brincar
carnaval. Por ser a economia da cidade baseada no garimpo, os diamantes bancavam fantasias
luxuosas encomendadas no Rio e em So Paulo.28 Entretanto, os moradores que fugiam do
padro social exigido nessas festas, eram excludos desses clubes. Assim os mais
entusiasmados, mas sem dinheiro no bolso (ou at mesmo por serem negros) tiveram que
utilizar do imaginrio e criatividade para dar vida ao Bloco dos Caretas. Joaquim Vilela Neto
relata:
Filhos de mes solteiras, homossexuais, pobres e pretos no adiantava nem tentar entrar nos clubes, eram barrados mesmo; a discriminao j comeava
pela escolha do traje, mas caso a pessoa se enquadrasse em uma das
situaes anteriores, nem estando bem trajado conseguiria adentrar ao
recinto de um clube (DOURADO, 2003, p. 6).
Seu Antnio Silva relata sobre o mencionado perodo:
Naquela poca era muito divertido! Quando o Bloco passava parava tudo,
at as danceterias que promoviam as matins elitizadas (...) era chegar ali e acabar com o carnaval deles, a crianada corria tudo pra ver o Bloco!
Sem ter conscincia da contribuio para a relativa democratizao do carnaval,
aqueles nordestinos criaram uma fora coletiva mpar que com o passar do tempo integrou
todas as classes. Por alguns momentos, todos, em suas particulares diferenas, sentiam-se
iguais. Relativa democratizao porque as mulheres ainda estavam de fora. No entanto,
alguns relatos mostram que a prpria mscara era o fator mais democratizador de tal
fenmeno, pois, segundo uma foli, Ana Cludia:
Se em algum momento do pula-pula no meio dos Caretas todos fossem obrigados a tirar as mscaras, certeza que veramos um bocado de mulheres
entre os integrantes do Bloco que entram escondidas. (...) Ns furamos
mesmo, s aglomerar o pessoal que a gente furava.
Dessa maneira, o Bloco dos Caretas foi atraindo uma diversidade de pessoas que se