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1 ELAINE BARCELOS A METÁFORA E A RETÓRICA DO MEDO NAS LETRAS DE MÚSICAS DE RAUL SEIXAS: um drible à censura Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação da Universidade de Franca, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Lingüística. Orientadora: Profa. Dra. Ana Cristina Carmelino. FRANCA 2009

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ELAINE BARCELOS

A METÁFORA E A RETÓRICA DO MEDO NAS LETRAS DE

MÚSICAS DE RAUL SEIXAS: um drible à censura

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Universidade de Franca, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Lingüística. Orientadora: Profa. Dra. Ana Cristina Carmelino.

FRANCA 2009

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ELAINE BARCELOS

A METÁFORA E A RETÓRICA DO MEDO NAS LETRAS DE MÚSICAS DE RAUL SEIXAS: um drible à censura

COMISSÃO JULGADORA DO PROGRAMA DE MESTRADO EM LINGUÍSTICA

Presidente:___________________________________________________ Nome: Profa. Dra. Ana Cristina Carmelino Instituição: Universidade de Franca Titular :____________________________________________________ Nome: Profa. Dra. Maria Auxiliadora Brito Silva Instituição: UNAERP Titular : ___________________________________________________ Nome: Prof. Dr. Juscelino Pernambuco Instituição: Universidade de Franca

Franca,_____/_____/2009

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DEDICO este trabalho a meus pais, Elena Marcelina Barcelos e José Cândido Barcelos (in memória), por nunca terem me subestimado e pelo apoio e incentivo que sempre me deram aos estudos; ao meu marido, Marcílio Agege, pela compreensão e estímulo que me deu nos estudos de pós-graduação; à minha orientadora professora Drª. Ana Cristina Carmelino, pela paciência, dedicação e, principalmente, pela arte de saber ensinar; a todos que me apoiaram e fizeram com que meu sonho de chegar até aqui se tornasse realidade.

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AGRADECIMENTOS

a Deus, por me fortalecer nos momentos de cansaço e ter atendido as minhas preces; à professora Drª. Ana Cristina Carmelino, pela suas preciosas orientações, estímulo, competência, simpatia e dedicação. O mérito, pela evolução e realização deste trabalho, também é dela, motivo pelo qual lhe serei grata por toda minha vida; ao professor Dr. Juscelino Pernambuco, pela sabedoria, pelo incentivo, pelo coração enorme que tem, pela honra de tê-lo tido como integrante da banca do Exame de Qualificação, por suas valiosas contribuições para o desenvolvimento do trabalho; ao professor Dr. Luiz Antônio Ferreira, por sua importante contribuição no Exame de Qualificação; à professora Drª. Maria Auxiliadora Brito Silva, pela leitura atenta de meu trabalho e pelas contribuições para a versão final; à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, que por meio do projeto Bolsa Mestrado propiciou a realização deste sonho; à Diretoria de Ensino da região de Franca, sob a administração da Professora Ivani de Lourdes Marchesi, pela prontidão em esclarecer minhas dúvidas; à Sirley e Iolanda, pela atenção e carinho com que conduziram o meu processo no projeto Bolsa Mestrado; às minhas amigas Odille, Mayra, Elisa, Cristina, Rosana, Andréia, Janaína, Renata, Ângela, Alzira e Lílian pelo companheirismo, apoio e momentos de descontração que me proporcionaram. Em especial, para a amiga Carmen Lúcia que muito me incentivou e contribuiu com materiais para o meu trabalho e por, assim como eu, ser grande admiradora do cantor e compositor Raul Seixas; aos meus grandes companheiros do curso de mestrado Lucélia e Éderson, pelo estímulo e apoio nos momentos difíceis pelos quais passamos juntos; a toda minha família que são a razão do meu viver: meu marido Marcílio e sua filha Júlia, minha mãe Elena, meu pai José (in memória), meus irmãos José, Gabriel, Marcelo, Mozair, Roberto e sua esposa Giane, minha querida sobrinha Júlia e a todos os meus parentes, em especial, ao primo Ronaldinho que torceram a todo momento pelo meu sucesso. a todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização deste trabalho; ao cantor e compositor Raul Seixas (in memória), pelas preciosas obras que nos deixou e por ter sido a principal inspiração para o meu trabalho de Mestrado. Obrigada...

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RESUMO

BARCELOS, Elaine. A metáfora e a retórica do medo nas letras de músicas de Raul Seixas: um drible à censura. 2009. 110 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística) – Universidade de Franca, Franca. Em nosso trabalho analisamos as metáforas e a paixão do medo nas letras de músicas de Raul Seixas referentes ao período ditatorial. Nosso corpus foi composto por oito letras de músicas, a saber: “Conserve o seu Medo” (1979), “Metrô Linha 743” (1984), “Mosca na Sopa” (1973), “Novo Aeon” (1975); “Carimbador Maluco” (1983), “Paranóia” (1975), “Rockixe” (1973) e “Sociedade Alternativa” (1974), cujo tema comum a todas elas é “o drible à censura”. O motivo da escolha de analisarmos as canções desse cantor foi pela importância de Raul Seixas no cenário musical brasileiro e por admirarmos sua criatividade, uma vez que suas composições versam sobre temas diversos (como política, religião, esoterismo) bem como fundem diferentes linguagens (como a metafórica e a filosófica). Nossa pesquisa teve como objetivos demonstrar não só como as metáforas e expressões metafóricas foram usadas como recurso argumentativo e estratégias de persuasão para driblar a censura, mas também como o medo e outras paixões relacionadas a ele (desprezo, confiança, cólera e indignação) são manifestadas pelo eu-lírico ao longo de suas canções. Quanto à fundamentação teórica, adotamos os conceitos de Reboul (2004) e Tringali (1988) para a análise das metáforas e os pressupostos de Aristóteles (2003) para o estudo das paixões. A pesquisa também teve como objetivo caracterizar o gênero “letra de música” com base nos pressupostos teóricos de Bronckart (1999) e Carmelino (2006, 2007), levando em conta o conteúdo temático, o contexto de produção e a sua infra-estrutura. Como procedimento de análise, discorremos também sobre o contexto histórico-social da época em que as músicas foram compostas, de acordo com os conceitos de Fausto (2002) e Vieira (1985), e tecemos algumas considerações sobre a vida do cantor, com base em Passos (2003) e Boscato (2006), para que o leitor pudesse, a partir dessas informações, compreender melhor a análise das letras de músicas. Após nossa análise, constatamos que o cantor utilizou-se dessas canções para driblar a censura, já que, na época em questão, a música era um dos poucos meios de comunicação permitidos no país, bem como tentou persuadir os interlocutores para que lutassem contra as imposições do governo ditatorial. Verificamos também que tanto as metáforas, quanto as paixões e o gênero podem ser observados a partir de determinadas marcas textuais que nos permitem fazer as inferências necessárias para a construção do sentido das letras de músicas de Raul Seixas.

Palavras-chave: Retórica; gênero; metáfora; medo; letra de música.

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ABSTRACT

BARCELOS, Elaine. A metáfora e a retórica do medo nas letras de músicas de Raul Seixas: um drible à censura. 2009. 110 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística) – Universidade de Franca, Franca. In this thesis, we analyze the metaphors and the passion of fear in Raul Seixas’s lyrics during the dictatorship period. Our corpus was composed of eight lyrics: “Conserve o seu Medo” (1979), “Metrô Linha 743” (1984), “Mosca na Sopa” (1973), “Novo Aeon” (1975); “Carimbador Maluco” (1983), “Paranóia” (1975), “Rockixe” (1973) and “Sociedade Alternativa” (1974). They all share a common theme “deflecting censorship”. One of the reasons for choosing this singer’s lyrics is his importance in the Brazilian musical scenery. In addition, we admire his creativity as we observe there are not only several themes in his songs, such as politics, religion, esoterism, but also different languages, such as the metaphorical and the philosophical ones. Our research had the objective of showing how metaphors and metaphorical expressions were used as argumentative language resource and persuasion strategies to deflect censorship. We also noted that fear and other related passions, for instance, despise, confidence, wrath and indignation, are displayed by the lyric poet in Raul Seixas’s songs. As regards our theoretical fundamentals, we follow Reboul’s (2004) and Tringali’s (1988) concepts to analyze the metaphors and Aristotles’ (2003) principles to study the passions. The research also aimed at characterizing the genre “lyrics”, based on Bronckart’s (1999) and Carmelino’s (2006, 2007) theoretical concepts considering theme content, production context and the text infrastructure. As an analysis procedure, we also discussed the social-historical context of the time when these lyrics were written, according to Fausto’s (2002) and Vieira’s (1985) concepts. Furthermore, we draw some considerations on the singer’s life, following Passos (2003) and Boscato (2006), so that the reader could use this kind of information to have a better understanding of the analysis of the lyrics. After the analysis, we realized that the singer used these songs to deflect the censorship, since music was one of the few means of communication allowed in the country then. He had also tried to persuade his interlocutors to fight against the impositions of the dictatorial government. Moreover, we verified that the metaphors, the passions and the genre can be observed in certain textual signs which allow us to make the necessary inferences to construct meaning in Raul Seixas’s lyrics. Keywords: Rhetoric; genre; metaphor; fear; lyrics.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................................08

1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA..................................................................................11

1.1 RETÓRICA ANTIGA, CLÁSSICA E NOVA RETÓRICA..........................................11

1.1. As figuras retóricas........................................................................................................17

1.1.1.1 A metáfora.................................................................................................................21

1.1.2 As paixões....................................................................................................................24

2 METODOLOGIA............................................................................................................31

2.1 CORPUS DE ANÁLISE.................................................................................................31

2.2 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE...............................................................................31

3 RAUL SEIXAS E SUAS MÚSICAS...............................................................................33

3.1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE RAUL SEIXAS..........................................33

3.2 CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL: O REGIME MILITAR NO BRASIL E AS

LETRAS DE MÚSICAS DE RAUL SEIXAS DE 1973 – 1984..........................................37

4 O GÊNERO LETRA DE MÚSICA................................................................................45

4.1 GÊNERO DE TEXTO....................................................................................................45

4.2 O MODELO DE ANÁLISE DE GÊNERO PROPOSTO POR BRONCKART

(1999)....................................................................................................................................48

4.3 CARACTERIZAÇÃO DO GÊNERO LETRA DE MÚSICA........................................53

5 UMA ANÁLISE DAS METÁFORAS E DA PAIXÃO DO MEDO NAS LETRAS DE

MÚSICAS DE RAUL SEIXAS..........................................................................................69

5.1 AS METÁFORAS USADAS POR RAUL SEIXAS PARA DRIBLAR A

CENSURA............................................................................................................................69

5.2 A PAIXÃO DO MEDO NAS LETRAS DE MÚSICAS DE RAUL SEIXAS...............80

CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................92

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..............................................................................95

ANEXOS..............................................................................................................................98

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INTRODUÇÃO

O nosso trabalho intitula-se A metáfora e a retórica do medo nas letras de

músicas de Raul Seixas: um drible à censura e tem como foco o estudo das metáforas e da

paixão do medo em algumas letras de músicas de Raul Seixas, as quais se referem à época

ditatorial.

Os objetivos principais são demonstrar como as metáforas e expressões

metafóricas são usadas como recurso argumentativo e estratégias de persuasão para driblar a

censura, bem como o medo e outras paixões relacionadas a ele (como é o caso do desprezo, da

confiança, da cólera e da indignação) são manifestadas pelo eu-lírico ao longo de suas

canções.

Além desses, outro objetivo de nosso estudo, que toma como base os

pressupostos teóricos do interacionismo sociodiscursivo, é caracterizar o gênero “letra de

música”. Para isso, levamos em conta o conteúdo temático, o contexto de produção (que

inclui o quadro físico e o sócio-subjetivo) e a infra-estrutura das letras (que abrange os tipos

de discurso, os tipos de seqüência textual, os mecanismos de textualização e os mecanismos

enunciativos).

Este trabalho se justifica não só pela importância de Raul Seixas no cenário

musical brasileiro, nos anos da ditadura, mas também pela sua criatividade, ousadia e

coragem em enfrentar aos ditadores da época. Outro motivo é o fato de suas composições

versarem sobre temas diversos como é o caso da política, religião e esoterismo e, em grande

maioria delas fundem-se linguagem metafórica e filosófica, motivo pelo qual não é tão fácil

compreendê-las. A variedade do estilo de suas músicas também é interessante, visto que

mistura ora rock com o baião (Elvis Presley com Luiz Gonzaga), como fez na música “Let me

sing”; ora rock com ritmos de candomblé, conforme vemos na canção “Mosca na Sopa”.

Apesar de ter sido impedido, várias vezes, pela mídia de demonstrar seu talento no período da

censura, o cantor foi reconhecido, principalmente com a explosão do sucesso da canção Gita,

tocada em quase todas as emissoras de rádio da época. Até os dias atuais, o sucesso de Raul

Seixas ainda se propaga, pois continuamos a ouvir suas músicas em vários lugares. Notamos

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que o cantor vem acompanhando todas as gerações com seus sucessos. Quem nunca ouviu a

música Metamorfose Ambulante e Ouro de Tolo? Ou a mais popular e conhecida entre os

jovens da atual geração, Maluco Beleza? Como já dizia Raul Seixas “A arte de ser louco é

jamais cometer a loucura de ser um sujeito normal".

A criatividade nas canções e a ousadia de Seixas fazem dele um imortal entre

as gerações vindouras e, como o próprio cantor dizia "A desobediência é uma virtude

necessária à criatividade".

O corpus de nosso trabalho é composto de oito letras de músicas de Raul

Seixas, a saber: “Conserve o seu Medo” (1979), “Metrô Linha 743” (1984), “Mosca na Sopa”

(1973), “Novo Aeon” (1975); “Carimbador Maluco” (1983), “Paranóia” (1975), “Rockixe”

(1973) e “Sociedade Alternativa” (1974). Para selecionarmos tais canções adotamos como

critérios: a época em que as letras de músicas foram compostas – de 1973 a 1984, período em

que o governo vigente no país era a Ditadura Militar, e o tema comum a todas elas “o drible à

censura”.

No que se refere à fundamentação teórica, adotamos os pressupostos teóricos

do interacionismo sociodiscursivo – especialmente o modelo de análise proposto por

Bronckart (1999) e Carmelino (2006, 2007) – para caracterizar o gênero “letra de música”, e

os pressupostos da Retórica e Nova Retórica – principalmente a partir dos conceitos de

Aristóteles (1964, 2003), Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), Reboul (2004) e Tringali

(1988) – para analisar as metáforas e paixão do medo.

Em se tratando dos procedimentos de análise, podemos resumi-los em três

etapas, a saber: primeiramente, caracterizamos o gênero “letra de música”, com base no

modelo de análise proposto por Bronckart (1999) e Carmelino (2005, 2006). A seguir,

exploramos as metáforas e expressões metafóricas como um recurso argumentativo e

estratégias de persuasão de acordo com os pressupostos teóricos de Reboul (2004) e Tringali

(1988); e, finalmente, com base nos conceitos de Aristóteles (1964, 2003), demonstramos

como a paixão do medo, e outras, são manifestadas pelo eu-lírico.

Além disso, para que o leitor faça as inferências necessárias para a construção

do sentido das letras de músicas analisadas, achamos importante tecer algumas considerações

sobre a vida do cantor Raul Seixas e sobre o contexto histórico-social da época em que essas

letras de músicas foram compostas (1973-1984). Para os dados da vida do cantor, baseamo-

nos principalmente na obra de Passos (2003) e Boscato (2006), e para a contextualização das

letras de músicas, perfilhamos a obra de Fausto (2002) e Vieira (1985).

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Quanto à estrutura, este trabalho apresenta cinco capítulos. No primeiro,

apresentamos as bases teóricas que fundamentam nossas análises: Algumas considerações

sobre a Retórica e a Nova Retórica, as figuras retóricas (em especial, a metáfora), e as

paixões. No segundo capítulo, que trata da metodologia, esclarecemos o corpus bem como os

procedimentos de análise. No terceiro capítulo, tecemos algumas considerações sobre Raul

Seixas e sobre o contexto histórico-social (o regime militar no Brasil, 1973-1984), para

contextualizar as letras de músicas no momento da análise. No quarto capítulo,

caracterizamos o gênero letra de música com base no modelo de análise de textos proposto

por Bronckart (1999). No último capítulo, fizemos a análise das metáforas usadas por Raul

Seixas para driblar a censura e da paixão do medo (e outras geradas pelo medo) manifestada

pelo cantor ao longo de suas canções.

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1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A metáfora e a paixão do medo são objetos de estudo contemplados em nossa

análise e para que possamos compreendê-los melhor, necessitamos conhecer suas origens que

provém da retórica. Desse modo, neste capítulo, achamos importante tecer algumas

considerações sobre a Retórica Antiga, a Nova Retórica e as figuras retóricas antes de

tratarmos das metáforas e das paixões.

1.1 RETÓRICA ANTIGA, CLÁSSICA E A NOVA RETÓRICA

De acordo com Reboul (2004), a Retórica surge na Sicília grega por volta de

465, após a expulsão dos tiranos, e possui origem judiciária e não literária, visto que, na

época, não existiam advogados e os cidadãos, despojados pelos tiranos, para reclamarem seus

bens, a utiliza para defender suas causas. Desse modo, Córax e seu discípulo Tísias publicam

uma coletânea de exemplos para pessoas que necessitam recorrer à justiça. Górgias (487-380

a. C.), embaixador dos sicilianos, leva a Retórica a Atenas que se firma definitivamente por

obra dos sofistas. Eles abrem as primeiras escolas de Retórica que tinham como intuito a arte

do discurso persuasivo que ensinava fazer belos discursos de qualquer assunto. Para eles, a

verdade e a justiça são relativas por dependerem de um acordo inicial e final entre os

interlocutores. Os alunos eram treinados para defenderem qualquer um dos dois lados da

questão, cujo objetivo era ganhar a causa e não se preocupar com os aspectos éticos e fez com

que a retórica adquirisse valor depreciativo ao longo dos tempos.

Para Reboul (2004), Isócrates (436-338), grande professor de retórica, tenta

reconciliar retórica e sabedoria, pois ambas estão interligadas, ou seja, uma não tem valor sem

a outra. Ele acredita que o ensino não está acima de tudo, pois o orador, além do ensino e da

prática, precisa de habilidades naturais. Se dominarmos a palavra, somos capazes de também

dominar todas as técnicas. Por isso, a eloqüência assume um papel fundamental. A Retórica

deve, anteriormente, ter um objetivo e, posteriormente, encontrar os meios para atingi-lo

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cautelosamente para que nada passe despercebido. Ela só deve ser aceita se a causa for

honesta e nobre e não deve ser desprezada em função dos que a utilizam de forma negativa.

Platão (427-347 a. C.) preocupa-se com a Retórica em seu aspecto moral, ela deve ser sempre

justa, pois é melhor sofrer injustiça do que praticá-la. O autor condena a Retórica pelo fato de

o orador dizer o que sabe e o que não sabe, o que representa um discurso dispersivo e evasivo,

com o intuito de apenas adular e lisonjear as multidões. Assim, o sábio deve substituir o

orador e é por esse motivo que desencadeou a visão platônica e fez com que a retórica

adquirisse valor depreciativo ao longo dos tempos.

Reboul (2004) afirma que a Retórica antiga tem suas fontes em Aristóteles,

Cícero e Quintiliano. Nosso trabalho se baseia nos conceitos de Aristóteles (1964, 2003),

nascido em 384 a.C. em Estagira, antiga colônia jônia da Calcídica de Trácia e foi

considerado um dos maiores pensadores de todos os tempos e discípulo de Platão.

Definida por Aristóteles (1964, p. 22) como “a faculdade de ver teoricamente o

que, em cada caso, pode ser capaz de gerar a persuasão”, a Retórica possui suas regras que

não se estabelecem em um gênero particular, definido, e não pode ser considerada como uma

ciência determinada, pois trata de questões que não deixam de apresentar analogias com a

Dialética, visto que ambas são de competência comum a todos os homens. Seu fim não é

persuadir, mas ensinar o possível, aduzir provas. Ela se utiliza de procedimentos capazes de

descobrir o que é próprio para persuadir em uma dada situação, fornece argumentos para

demonstrar os contrários e também procura convencer a partir de opiniões.

Para Aristóteles (1964), a Retórica é uma parte da Dialética, pois nenhuma é

objeto definido, cujos caracteres se dêem ao trabalho de investigar. São apenas faculdades de

fornecer argumentos e a persuasão será eficaz quando relacionada aos valores e costumes dos

sujeitos e quando despertadas as paixões que fazem variar seus julgamentos. A demonstração

e as provas mais convincentes da Retórica são os entimemas que são uma espécie de

silogismo e fornecem a convicção mais decisiva. Será mais apto para manejar o entimema,

todo aquele que melhor souber aprofundar as premissas e a marcha do silogismo.

Baseado em Aristóteles, Reboul (2004) se utiliza de seus conceitos para dividir

e definir a Retórica como “a arte de persuadir pelo discurso”. Ela se divide em quatro partes: a

invenção (heurésis, em grego), que seria a busca de todos os argumentos e meios de

persuasão, pelo orador, relacionados ao tema do seu discurso; a disposição (taxis), que é a

organização interna do discurso do orador, através da ordenação dos argumentos; a elocução

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(lexis), que se refere à redação escrita do discurso e não à palavra oral; e a ação (hypocrisis),

que se refere à articulação do discurso com seus efeitos de voz, mímicas e gestos.

De acordo com Tringali (1988), a Retórica Antiga é completa em todas as suas

partes: invenção, disposição, elocução, memória e ação. É considerada a Retórica-mãe e, de

antiga, nada tem, pelo contrário, ainda se faz atual. A classificação, Retórica Antiga, é usada

somente para diferenciá-la das demais. O autor também se baseia nos conceitos de Aristóteles

(1964) para defini-la e afirma ser a teoria e prática do discurso retórico que explica os

problemas da elaboração, produção e efeitos do discurso. Segundo ele, a retórica também

ensina a fazer discursos persuasivos e como fazê-los bem feitos. Esse discurso persuasivo se

refere ao ponto de vista formal em que a persuasão se destaca.

Para Tringali

A persuasão indica a finalidade da Retórica. Persuadir vem de “persuadere”, “per + suadere”. O prefixo “per” significa de modo completo, “suadere” significa aconselhar, não impor. Portanto, “persuadere” significa aconselhar, levar alguém a aceitar um ponto de vista de modo suave, habilidosamente. Para persuadir deve-se provar de alguma forma. (1988, p. 20)

Para o referido autor, há três modos de persuadir: convencer (persuadir a mente

através de provas lógicas), comover (persuadir através da afetividade) e agradar (persuadir

através da estética, da arte do bem falar). Ainda, de acordo com o referido autor, a Retórica

Clássica se consolida na Renascença, mas tem antecedentes na própria Retórica Antiga que

apresenta duas vertentes, uma que deriva de Aristóteles e privilegia a invenção, a busca de

provas para persuadir. A outra, que provém dos sofistas, Isócrates e Cícero que realçam a

elocução sem negar a eficácia das outras partes. Cícero chega a dizer que quando se quer

elogiar um orador se diz que é eloqüente; palavra que deriva da elocução. Já Quintiliano

define a Retórica não como a arte de persuadir, e sim como a arte de escrever e falar bem.

Tringali (1988) afirma que a Retórica se enquadra nas duas definições, porém a

persuasão ocupa o primeiro lugar porque sem ela, a Retórica se desvirtua, se desnatura. Para

ele, um discurso necessita ser bem feito para persuadir, mas nem sempre um texto bem escrito

ou bem pronunciado pode ser retórico. Um texto mal escrito ou mal pronunciado pode ser

retórico e por isso dizer bem é uma propriedade da Retórica, mas não a define.

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O referido autor também se baseia em Aristóteles (1964) que distingue três

tipos de raciocínio: analítico, dialético e sofístico. Os raciocínios analíticos são certos,

verdadeiros, evidentes e levam à ciência. Os raciocínios dialéticos são prováveis, baseados na

crença mais geral e levam a uma conclusão provável. Os raciocínios sofísticos são falsos com

aparência de verdade, pretendem enganar.

Graças às contribuições de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), na obra

Tratado da argumentação: a nova retórica, a retórica é reformulada e tida como teoria da

argumentação. Ela renasce nos anos 60, renova-se e constitui uma forte teoria do discurso

persuasivo, vinculando-se à Antiga retórica. A classificação como Nova retórica se dá pelo

fato de ser um reexame da obra de Aristóteles. Conforme já dito por Tringalli (1988), de

antiga nada tem, pois a Nova retórica se baseia nos conceitos da Antiga retórica de

Aristóteles. De acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), o outro motivo para a

classificação Nova retórica é porque ela se relaciona com o Renascimento e com os autores

gregos e latinos que estudaram a arte de persuadir e de convencer e a técnica da deliberação e

da discussão. Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) retomam os conceitos de Aristóteles1 para

também enfatizar que é em função de um auditório que se desenvolve qualquer argumentação.

Para eles, auditório diz respeito ao “conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua

argumentação” (2005, p. 22). O orador deve pensar, de forma consciente, naqueles que

procura persuadir para que, através de um acordo prévio, haja argumentação entre eles.

Para esses autores existem três tipos de auditório: o universal, que é constituído

por toda a humanidade; o particular, formado por um ou vários interlocutores que tenham os

mesmos interesses e características; e o constituído pelo próprio interlocutor, quando ele

mesmo delibera ou representa as razões de seus próprios atos como, por exemplo, diários e

monólogos interiores. Segundo Perelman (1993, p. 41), “o orador só pode escolher, como

ponto de partida do seu raciocínio, teses admitidas por aqueles a quem se dirige”. O orador

expõe sua conclusão a fim de impor e encerrar a discussão e, para isso, é necessário que seja

mais forte que as premissas que a geram. Por sua vez, os ouvintes podem ou não aceitar a

conclusão do orador, independente do que ele considera verdadeiro, o que importa é o que os

ouvintes do discurso têm a dizer a respeito. A qualidade da argumentação é determinada pelo

auditório.

Enfim, Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005) conceituam a Retórica como o

estudo das técnicas discursivas que podem provocar ou acrescentar, em um determinado

1 Aristóteles. Retórica, liv. II, cap. 12 a 17, 1388 b a 1391 b.

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auditório, adesão a teses apresentadas. Nesse sentido, podemos verificar que, conforme o uso

das técnicas de argumentação no discurso, o orador poderá fazer com que seu auditório seja

persuadido ou até mesmo chegar a um acordo mediante divergências de opiniões.

De acordo com Mosca (2004), a Retórica, ao longo de toda a sua história, está

repleta de pontos altos, mas também de crises e questionamentos. Ela sempre refloresce, pois

aceita mudanças, respeita as diferenças, as diversidades e a consideração da língua como um

lugar de confronto das subjetividades. Para a autora (2004), a argumentatividade está presente

em toda e qualquer atividade discursiva e argumentar é considerar o outro como capaz de

reagir e de interagir mediante determinados assuntos e argumentos que lhe são apresentados.

É o exercício do entendimento e discussão, de forma dialogal, que pode fazer com que os

interesses se entrechoquem quando o clima é de negociação, em que o jogo de influência e

poder são predominantes. Mosca (2004) ainda afirma que para compreendermos os

fundamentos da Retórica, faz-se necessária a retomada dos conceitos de Aristóteles (1967) e

dos manuscritos de diversas culturas que nos foram legadas, como fonte primeira de estudo.

Assim, a partir dos anos 60, as teorias argumentativas da Nova retórica

representadas especialmente por Perelman e seus continuadores e pela Retórica Geral ou

Generalizada, do Grupo µ de Liège (Bélgica), vem retomar a Velha retórica e, ao mesmo

tempo, renová-la, através dos avanços de diversas disciplinas do nosso século: Lingüística,

Semilogia/Semiótica, Teoria da Informação, Pragmática.

Mosca (2004) afirma que contrário aos conceitos de Aristóteles (1967) que

visavam ao exercício da reflexão pessoal, a Retórica passou a uma reformulação rígida e ao

aprisionamento a cânones e essa tendência fez com que a Retórica e a Poética fossem vistas

como um conjunto de regras que deveriam abranger toda produção e avaliação de obras

concretas, presentes nos manuais do século XIX que, por sua vez, distorceram e deformaram

o conceito original da Retórica. Os próprios introdutores da Retórica em Atenas, os sofistas,

propagaram a descrença ao exercer o ceticismo e aceitar raciocínios de toda ordem, neles

incluindo-se os enganosos e só aparentemente corretos. Contudo, a palavra Retórica foi

adquirindo um valor depreciativo de que só mais recentemente vem se libertando. Essa é a

razão pela qual se faz necessária a vota renovada para evitar interpretações concretizadas ao

longo dos tempos. O marco fundamental da doutrina aristotélica é considerar que a Retórica

reside no domínio dos raciocínios prováveis e não no domínio das certezas e evidências, os

quais caberiam aos raciocínios lógicos e científicos. Por conseguinte, seu campo é o da

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controvérsia, da crença, do mundo da opinião, que se forma dialeticamente pela oposição das

idéias e aptidão na manobra do discurso.

Embasada no Tratado da argumentação de Perelman e Tyteca (1996), Mosca

(2004) afirma que:

o discurso persuasivo, o que se destina a agir sobre os outros através do logos (palavra e razão), envolve a disposição que os ouvintes concedem aos que falam (ethos) e a reação a ser desencadeada nos que ouvem (pathos). Esses três elementos compreendem o instruir (docere), comover (movere) e o agradar (delectare). (2004, p. 22)

Contudo, para Mosca (2004), as características básicas da Retórica, desde as

suas origens até o momento atual, são a eficácia e o caráter utilitário.

Quanto à eficácia, o discurso persuasivo utiliza-se de todos os recursos

retóricos manipuladores para se produzirem os efeitos de sentido. Portanto, todo discurso é

uma construção retórica, desde que o produtor induza o seu destinatário a agir de certo modo

ou em certa direção, conforme seus objetivos ou ponto de vista.

Em relação ao caráter utilitário, para se decidir em que medida um discurso

visa persuadir e como o faz, devemos levar em consideração as características fundamentais

da situação em que ele se dá e as relações de intersubjetividade dos interlocutores. Assim, a

argumentação é sempre situada, dando-se basicamente num processo dialógico entre os

sujeitos.

França (2006, p. 109) afirma que “a Retórica pressupõe debates, opinião e

paixão”. Conforme a teoria aristotélica, a atividade retórica envolve um orador (ethos), um

discurso (logos) e um auditório (pathos). Diante de um discurso bem estruturado, o orador

tenta convencer e persuadir seu auditório. A autora ainda afirma que a persuasão se relaciona

às paixões, às emoções que podem ser despertadas no auditório.

Para Citelli (1991), a Retórica Clássica revela como se faz a persuasão; é

analítica e abarca todas as formas discursivas. Já a Moderna se vincula ao estudo das figuras

de linguagem e ao estudo das técnicas de argumentação, da organização discursiva ligada à

adesão a um ponto de vista das idéias apresentadas.

Meyer (1998), ao tratar da Retórica, diz que ela busca persuadir e convencer;

agradar, seduzir ou manipular; fazer passar o verossímil; sugerir o implícito através do

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explícito; inserir, através do literal, um sentido figurado utilizando-se das figuras de estilo;

utilizar-se da linguagem literária e descobrir as intenções daquele que fala ou escreve

atribuindo razões para o seu dizer.

A partir desses vários conceitos, podemos verificar que, ao longo dos tempos, a

Retórica, apesar de seus pontos positivos, esteve em crise e adquiriu valor pejorativo. Graças

às contribuições de muitos estudiosos, ela foi retomada e seus conceitos foram reformulados

através dos fundamentos aristotélicos. A Retórica se atém ao estudo das técnicas de

argumentação e das figuras retóricas em que ocorre uma pluralidade de significação e sua

comunicação pode revelar intenções diferentes e contraditórias.

Após essas considerações, trataremos das figuras retóricas – em especial da

metáfora – e das paixões, conceitos priorizados na análise das letras de músicas aqui

estudadas.

1.1.1 As figuras retóricas

De acordo com Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), desde a antiguidade e o

momento em que o homem meditou sobre a linguagem, verificam-se certos modos de

expressão que não se enquadravam no comum. Desse modo, os estudos a esse respeito foram

incluídos nos tratados da retórica; daí o nome de figuras de retórica. Diferentemente de

figuras de estilo, para esses autores a figura é retórica (ou argumentativa) se, acarretando uma

mudança de perspectiva, seu emprego parecer normal em relação à nova situação sugerida. Se

o discurso não provocar a adesão do ouvinte a essa forma argumentativa, a figura será apenas

um ornamento, no entanto, uma figura de estilo.

Para os referidos autores algumas figuras podem aparecer imbricadas, como a

metáfora e a metonímia. Toda analogia, com exceção as que se apresentam em formas rígidas,

como a alegoria e a parábola, se tornam espontaneamente metáfora. Perelman e Olbrechts-

Tyteca (2005) ainda classificam as figuras retóricas em figuras de escolha, figuras de presença

e figuras de comunhão, explicando que:

não se designam gêneros dos quais certas figuras tradicionais seriam as espécies. Significam somente que o efeito, ou um dos efeitos, de certas figuras é, na

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apresentação dos dados, impor ou sugerir uma escolha, aumentar a presença ou realizar a comunhão com o auditório (1996; p. 195).

Guimarães (2004) fundamenta-se nos conceitos de Perelman e Olbrechts-

Tyteca (1996) para classificar e definir as figuras retóricas como fatores de persuasão e

instrumentos discursivos com função argumentativa. As figuras se caracterizam como

determinadas expressões que fogem da forma normal e despertam interesse no leitor ou

ouvinte. Assim, são marcadas sob dois aspectos: o efeito de concretude que elas provocam no

leitor ou ouvinte; e o distanciamento em relação à outra forma de linguagem, inserida dentro

dos padrões gramaticais.

Perelman e Olbrechts-Tyteca (1996) classificaram as figuras em: figuras de

caracterização, de presença e de comunhão e, Guimarães (2004), faz um esboço para explicá-

las:

As figuras de caracterização buscam impor ou sugerir uma caracterização.

Podemos, nesse sentido, pressupor que o texto revela não a intenção de definir uma palavra,

mas a de fazer associações e assimilações, através de elementos argumentativos, para se

chegar a uma conclusão.

As figuras de presença reforçam o sentimento de presença do objeto do

discurso, tanto de quem o faz quanto de quem lê ou ouve, vinculando-se, principalmente, à

figura de repetição em que o produtor, além de utilizar-se dela como um recurso estilístico,

também a transforma em um recurso argumentativo.

No que diz respeito às figuras de comunhão, estas podem ocorrer num processo

de pressuposição, ou seja, espera-se que o público já tenha conhecimento da mensagem

transmitida, por isso é capaz de comungar com o orador das informações. Essas figuras

fazem, portanto, com que o auditório participe da exposição do orador.

De acordo com Tringali (1988) a Retórica das Figuras passou por duas fases.

Na primeira fase, a Retórica das Figuras foi atacada pelo romantismo que lutava contra o

ensino impositivo das figuras em prol da liberdade criadora do artista. Na verdade, os

românticos concebiam, de modo diverso, o valor das figuras. Para eles a linguagem era

primeiro figurada e só depois, se faz natural, própria. Na segunda fase, Tringali (1988, p. 120)

afirma que “a Retórica das Figuras volta a renascer em nossos dias com a chamada Retórica

Geral que considera a Retórica Antiga morta e o nome disponível”.

Para o referido autor, Retórica Geral é:

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uma redução da Retórica às figuras e se qualifica geral porque define a função poética da linguagem pelo uso das figuras, ou seja, a função artística da linguagem, o que acontece quando a linguagem deixa de ser utilitária, um simples meio de comunicação e se converte em si mesma e obriga a atenção fixar-se nela. As figuras são um recurso para a manifestação artística da linguagem. Por isso, em vez de dizer função poética da linguagem, diz-se função retórica da linguagem (1988, p. 120).

Segundo Tringali as figuras consistem em:

modificações da linguagem, seja da palavra, seja da frase e tanto no nível da expressão, como do conteúdo, ou acrescentando alguma coisa (levantar - alevantar), ou subtraindo (ainda - inda), ou repetindo (Deus, Deus), ou permutando (da vida pela estrada), tendo como objetivo obter efeito artístico, em outros termos, obter o efeito poético ou retórico ou estilístico da linguagem (1988, p. 121).

O autor retoma os conceitos da Retórica Geral ou Generalizada, do Grupo µ de

Liège (Bélgica) para classificar as figuras em: metaplasmos ou figuras fonológicas, que

compreendem todas as figuras que modificam o aspecto gráfico ou sonoro do vocábulo, como

“ainda – inda”; metataxes ou figuras gramaticais, que são as figuras que mexem com a

estrutura da frase, como, por exemplo, as figuras de inversão da ordem das palavras na frase;

metassememas, também conhecidas como figuras semânticas ou tropo, que são todas as

figuras que modificam o conteúdo do vocábulo, que mudam sua significação; e metalogismos

ou figuras de pensamento, que são as figuras que modificam o valor lógico da frase,

modificam a semântica da frase, como, por exemplo, a ironia.

Para Mosca (2004), a figura retórica se constitui em figuras de texto, ou seja, a

produção geral de sentidos de um texto se dá através de um procedimento discursivo de

construção de sentido que possibilita a produção de novos sentidos e outras leituras, outros

pontos de vista sobre o mundo, uma nova perspectiva em um processo de reorganização

cognitiva e sensorial. A figura torna sensível um conteúdo ausente, propiciando à criação de

uma ilusão referencial, passando de uma isotopia a outra ao longo do discurso.

A classificação das figuras feita por Mosca (2004) toma como base também as

considerações do Grupo µ e de Tringali.

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Convém ressaltar aqui que, ao tratar das figuras, essa autora observa que a

metáfora reina sobre as demais figuras e constitui um dos recursos mais importantes no plano

de expressão da retórica e da poética.

Segundo Meyer, “as figuras são um desvio de sentido, um rodeio inabitual

relativamente ao sentido literal” (1998, p. 105). Portanto, as figuras têm a função de transpor

o sentido próprio, de palavras ou expressões, propiciando um novo sentido denominado

sentido figurado.

Citelli (1991) afirma que as figuras retóricas são recursos relevantes que

garantem a atenção do receptor através dos argumentos articulados pelo discurso. Elas

também redefinem determinadas informações proporcionando novos efeitos, quebrando o

sentido literal das expressões. Dentre as figuras retóricas, o autor aborda as figuras mais

usadas: a metáfora e a metonímia.

Para Reboul (2004), as figuras são “um recurso de estilo que permite

expressar-se de modo simultaneamente livre e codificado” (p. 113). Nesse sentido, não

precisamos recorrer às figuras para nos comunicarmos e cada figura é constituída em uma

estrutura conhecida, codificada. O autor classifica as figuras em quatro grupos: figuras de

palavras, que dizem respeito à matéria sonora do discurso: figuras de ritmo e figuras de som

(aliteração, paranomásia, antanáclase); figuras de sentido, que dizem respeito à significação

das palavras ou dos grupos de palavras: tropos simples (metonímia, sinédoque, metáfora),

tropos complexos (hipálage, enálage, oximoro, hipérbole, etc.); figuras de construção, que

dizem respeito à estrutura da frase: figuras por subtração (elipse, assíndeto, aposiopese ou

reticência), figuras de repetição (epanalepse, antítese), figuras diversas (quiasmo, hipérbato,

anacoluto, gradação); e figuras de pensamento, que dizem respeito à relação do discurso com

seu sujeito “o orador” ou com seu objeto: alegoria, ironia, figuras de enunciação (apóstrofe,

prosopopéia, preterição, epanortose); figuras de argumento: conglobação, prolepse, apodioxe,

cleuasmo).

Abreu afirma que as figuras retóricas são:

recursos lingüísticos utilizados especialmente a serviço da persuasão. As figuras retóricas possuem um poder persuasivo subliminares, ativando nosso sistema límbico, região do cérebro responsável pelas emoções. Elas funcionam como cenas de um filme, criando atmosferas de suspense, humor, encantamento, a serviço dos nossos argumentos (2001, p. 105).

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O autor dividiu as figuras retóricas em quatro grupos: As figuras retóricas

dividem-se em quatro grupos: figuras de som (as que se ligam à seleção de palavras por sua

sonoridade, tais como a paronomásia e homeoteleuto); figuras de construção (pleonasmo,

hipálage, anáfora, epístrofe e concatenação); figuras de pensamento (antítese, paradoxo e

alusão); e figuras de palavra (metonímia e metáfora).

Esse autor retoma os conceitos de Perelman (1996) e ressalta que é preciso

distinguir as figuras retóricas, que possuem caráter funcional e têm a intenção de persuadir,

das figuras estilísticas, que se objetivam em causar emoção estética, sem a preocupação de

convencer o receptor.

França afirma que “as figuras retóricas são recursos ideais para a construção do

discurso sedutor” (2006, p. 109), ou seja, o orador, diante de um discurso estruturado, tenta

convencer e persuadir seu auditório.

Partindo da diversidade de como os autores não só definem as figuras retóricas,

mas também as classificam (levando em conta diferentes critérios), aqui apenas gostaríamos

de salientar que, para nós, não importa o valor estético e estilístico que essas figuras assumem

ou assumiram ao longo do tempo, mas seu valor argumentativo. As figuras, segundo o que

entendemos, consistem em recursos persuasivos.

Abordemos agora a figura aqui eleita para estudo: a metáfora.

1.1.1.1 A metáfora

Segundo Mosca (2006), a metáfora sempre foi alvo de muitas investigações. É

a rainha das figuras e vem sendo retomada por vários autores, conforme veremos. A autora se

atém aos conceitos de Aristóteles (1967), que define a metáfora como a capacidade de

perceber semelhanças, tratando-a tanto na Arte Retórica como na Arte Poética, mas a sua

função difere de uma para outra, ou seja, na Retórica o seu valor é argumentativo. A distinção

não está no procedimento metafórico, mas na estratégia de sua utilização. E em ambas, a

metáfora constitui sempre um processo de enriquecimento, tanto na estética de ornamento,

quanto elemento argumentativo. Para Mosca (2006), a metáfora é eficaz em seu uso em

variados tipos de discurso, não só os persuasivos (políticos, publicitários, jornalísticos e

outros), mas também os literários.

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Para Aristóteles (1964), a metáfora é igualmente uma imagem; entre uma e

outra a diferença é pequena. Quando Homero diz de Aquiles “que se atirou como leão”, é uma

imagem; mas quando diz: “Este leão atirou-se”, é uma metáfora. Como o leão e o herói são

ambos corajosos, por uma transposição Homero qualificou Aquiles. No entanto, podemos

perceber que a metáfora passa por um processo de transposição de sentido por semelhança.

Podemos também observar exemplos de imagem de acordo com Tringali

(1988), que também a denomina símile ou comparação: “Ela é bela como uma rosa” ou “qual

uma rosa” ou “semelhante a uma rosa”. Comparar é notar semelhanças e diferenças entre duas

coisas. Nessa figura, buscam-se as semelhanças sem rigor lógico. Sob algum ponto de vista

percebemos uma semelhança entre a “moça” e a “rosa”, visto que a comparação se baseia

numa analogia. É crença de que tudo no universo se corresponde de algum modo, portanto,

são possíveis as comparações. Em: “é bela como uma rosa”, é uma comparação, mas em: “Ela

é uma rosa”, é uma metáfora. A diferença é que, na metáfora, não aparecem expressões

gramaticais de comparação tais como: qual, como, semelhante... Nela, há uma identificação e

uma abreviação: “é uma rosa”.

Segundo Tringali (1988), metáfora quer dizer, em grego, transporte. Como

podemos notar no exemplo: “no inverno da vida...”, a palavra “inverno” tem um sentido

próprio que significa estação do ano, mas por alguma semelhança, foi atribuída a uma fase da

vida humana, houve o transporte da palavra “inverno” do sentido natural de estação do ano

para a “velhice”, que é uma metáfora.

Valente (2002) considera a metáfora como uma comparação implícita (sem

conectivo) e a símile como uma comparação explícita (com conectivo). O autor ainda

classifica as metáforas em puras e impuras. A metáfora pura apresenta apenas um termo de

comparação, enquanto que a metáfora impura apresenta dois termos de comparação. Para

exemplificar a símile e as metáforas puras e impuras, o autor se vale de alguns versos da

canção: “Só dói quando eu rio”, de Moacyr Luz e Aldir Blanc. Em “Volto sempre a ela,/feito

criminosa.../ Doce e dolorosa”, notamos a presença da símile no verso “feito criminosa”; em

“ela diz quanto eu sofri./E Copacabana,/a linda meretriz-princesa”, notamos a presença da

metáfora impura nos versos “E Copacabana,/a linda meretriz-princesa”; já em “Loura Mãe de

Santo/com sua gargantilha acesa.../ela me ensinou pureza e pecado”, notamos a presença da

metáfora pura no verso “com sua gargantilha acesa...”

Citelli (1991) define a metáfora como uma figura que denomina representações

para as quais não se encontra um indicativo mais apropriado e ela passa por alguns processos

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tais como: transferência ou transposição, que é a passagem do plano base (significação

própria da palavra ou expressão) para o plano simbólico (representativo, figurativo); e

associação que, na transposição, ocorre um processo de associação ou comparação subjetiva

entre a significação própria e o efeito figurativo.

De acordo com Meyer (1998), a metáfora diz respeito a uma semelhança entre

dois domínios ou conjuntos disjuntos. A identidade figurativa é assimilada a uma identidade

real.

Conforme Reboul (2004, p. 122), a “metáfora designa uma coisa com o nome

de outra que tenha com ela uma relação de semelhança”. O autor afirma que a metáfora é um

tropo simples que se enquadra nas figuras de sentido as quais consistem em empregar um

termo (ou vários) com um sentido que não lhe é habitual. A figura de sentido desempenha

papel lexical, não que acrescente palavras ao léxico, mas enriquece o sentido das palavras e é

um tropo, um significante tomado no sentido de outro como podemos observar no exemplo:

“O olho escuta...” Esta metáfora de Claudel poderia ser vista como um desvio, transgressão da

norma lexical, mas restabelecendo-se o termo próprio, perde-se sentido, pois o olho que

“escuta” uma obra de arte compreende-a, e compreende-a porque lhe obedece. Portanto

“escuta” é o termo exato. Isso acontece com toda verdadeira figura. A metáfora é uma

semelhança de relações entre termos heterogêneos como podemos observar no exemplo:

“Sofia é uma pedra de gelo.” A semelhança em que se baseia essa metáfora provém de termos

heterogêneos, que não têm matéria nem medida em comum; Sofia não é nem uma pedra de

gelo, nem é como uma pedra de gelo.

Para Abreu (2001), a metáfora (que vem do grego metaphorá) sugere a idéia de

transporte do sentido próprio para o sentido figurado. Baseado em um artigo de J. V. Jensen

(1975): “Metaphorical Constructs for the Problem-solving Process”, Abreu ressalta que o

autor classifica a metáfora em cinco grupos: (i) metáforas de restauração: quando algo sofre

algum tipo de prejuízo, havendo a necessidade de reparação, tais como as metáforas médicas,

de roubo, de conserto e de limpeza; (ii) de percurso: são as que associam a resolução de

problemas a uma jornada, tais como as metáforas de percurso em terra, mar, cativeiro e ar;

(iii) de unificação: que tornam uno ou unido, como é o caso das metáforas de parentesco,

pastoral e esportiva, criativas que têm espírito inventivo, que favorece a criação, tais como as

metáforas de construção, tecelagem, composição musical e de lavrador; e (iv) naturais:

produzidas pela natureza ou regulado pelas suas leis, tais como as metáforas de claro-escuro e

de fenômenos naturais.

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Diante das várias definições de metáfora, podemos verificar que essa figura:

• é um processo de escolha por semelhança, transposição e associação;

• desconstrói o sentido literal propiciando outro sentido;

• funciona como um recurso persuasivo e argumentativo;

Desse modo, convém esclarecermos que, dentre os vários conceitos de

metáfora apresentados, valer-nos-emos das considerações de autores que mais se ajustam ao

nosso propósito de análise, a saber, as de Reboul (2004) e Tringali (1988).

É importante ressaltar que nas letras de músicas selecionadas para estudo,

consideraremos, além das metáforas, as expressões que, de certa forma, podem ser

consideradas metafóricas.

Passemos, agora, a tratar de outro aspecto teórico em nossa análise: as paixões,

propostas por Aristóteles (2003).

1.1.2 As paixões

Como a presença da paixão do medo é marcante nas letras de músicas

selecionadas para estudo, neste item, trataremos do conceito de paixão e de todas as paixões

elencadas por Aristóteles em Retórica das paixões (2003).

Segundo Aristóteles (2003, p. XIV), “as paixões são todos aqueles sentimentos

que, causando mudança nas pessoas, fazem diferir seus julgamentos”. Dessa forma, podemos

entender que as paixões tocam e mexem com os sentimentos dos indivíduos e podem até fazer

com que eles ignorem a razão e modifiquem o modo de pensar ou agir.

As paixões são igualmente as respostas às inferioridades e às superioridades

que se aventuram a pôr em risco o fim comum, o qual tem de subjugar as diferenças e não

provocá-las. São respostas às representações que os outros concebem de nós.

Lebrun (1987) afirma que “a paixão é sempre provocada pela presença ou

imagem de algo que me leva a reagir, geralmente de improviso. Ela é então o sinal de que eu

vivo na dependência permanente do outro” (p. 18). Para o autor, o objetivo do orador e do

poeta, não é apenas convencer pelos argumentos, mas sim, pelo afeto, pelas emoções que são

movimentados pelas paixões.

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De acordo com Aristóteles (2003), as paixões são também conhecidas como

formas da consciência de si, pois nos preocupamos com que os outros pensam a nosso

respeito e buscamos encontrar uma resposta a tal julgamento e vice-versa. O autor ainda

afirma que, nas paixões, há um conflito das opiniões humanas, pois as ações, qualidades e

pensamentos dos indivíduos são questionáveis, oferecem opções, alternativas contraditórias e

não-contraditórias. Nesse sentido, as paixões se ligam ao pathos que se refere às ações e às

qualidades que se vão atribuir ao sujeito e não ao que ele possui por natureza, não à sua

essência. Para ele buscamos a aceitação e não a exclusão do outro e, aceitar o outro, é aceitar

a si mesmo, é admitir as diferenças e alcançar uma identidade comum.

O autor ainda afirma que as paixões só podem ser analisadas quando há um

meio termo e se elas chegam a extremos, se tornam um vício ou se encontram em um estado

de inconsciência, não mais podem ser analisadas, pois já é um fim e não mais um meio termo,

ou seja, não mais caberão contestações, questionamentos e reflexões. Nas paixões deve haver

um julgamento, uma resposta, o reequilíbrio, a busca de alternativas.

Aristóteles (2003) divide as paixões em quatorze tipos, a saber:

1) Compaixão: também conhecida como piedade, é certo pesar por um mal que pode destruir

e atingir quem não o merece. Sentir compaixão é colocar-se na situação do outro que está a

ser julgado. Temos compaixão a quem nos é semelhante no caráter, nos hábitos, dignidades,

na origem.

2) Indignação: é oposta à piedade, é a não-aceitação (moral) da desordem, opõe-se à

compaixão. Deve-se sentir compaixão aos que são infelizes sem o merecer e indignação aos

que são felizes sem merecer. É quando o inferior, de alguma maneira, contesta o superior.

Indignar-se é também ser contra a injustiça. Até mesmo as pessoas dignas de maiores bens

podem sentir indignação.

3) Inveja: se manifesta entre as pessoas que são iguais ou parecidas quanto à idade, bens,

hábitos, reputação. Normalmente, os ambiciosos tendem a serem mais invejosos que os

homens sem ambição. Nela, buscamos bens, fama, consideração e glória. Ela gera a

competição e, nesse sentido, podemos até vê-la de forma positiva, visto que serve de

motivação para o indivíduo buscar o sucesso com grande probabilidade de consegui-lo.

Invejamos os que almejam o mesmo que nós. Na inveja, além de querermos o que o outro

tem, também desejamos tirar todos os seus bens para que somente nós o tenhamos.

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4) Emulação: dirige-se para os iguais, consiste na imitação do outro, valoriza os bens que o

outro tem, ou seja, a coragem, a sabedoria, a autoridade; como também aqueles a quem

muitos admiram, ou a quem nós próprios admiramos. Ela se assemelha à inveja, pois também

serve de estímulo ou incentivo a outrem.

5) Desprezo: desvaloriza o que o outro tem e tende para a ruptura. Desprezamos os que

gozam de boa sorte quando esta não vem acompanhada de bens honrosos. Quando as pessoas

sentem-se superiores e mais fortes, sem de fato sê-los, o sentimento de desprezo se manifesta.

Com ele, deseja-se gerar a diferença.

6) Favor: é o serviço pelo qual concedemos aos que têm necessidade, não em troca de alguma

coisa, nem com intuito de obter alguma vantagem pessoal, mas no interesse do favorecido. O

favor se torna grande quando o fazemos a alguém muito necessitado ou se somos os primeiros

a fazê-lo. É um serviço que prestamos aos que consideramos tristes, pobres, aflitos. Não será

favor se esperarmos por gratidão e reconhecimento, se for troca. Ele tem que ser espontâneo.

7) Vergonha: é certo sentimento de inferioridade, reforçando a importância do olhar e

julgamento do que o outro faz de nós. Nela, valorizamos o julgamento do outro, pois temos

vergonha daqueles por quem temos consideração.

8) Impudência: é certo sentimento de superioridade pela qual não nos importamos com o que

os outros pensam a nosso respeito. A imagem que o outro forma de nós é indiferente.

9) Segurança: também conhecida como confiança, provém de certa superioridade sobre as

coisas ou pessoas. É o afastamento do perigo, distanciamento do prejudicial, do temível e a

aproximação dos meios de salvação.

10) Cólera: é o reflexo de uma diferença entre aquele que se entrega a ela e aquele ao qual ela

se dirige. É um brado contra a diferença imposta, “injusta” ou como tal sentida; revela ao

interlocutor que a imagem que ele forma do locutor carece de fundamento. Ela se diferencia

do ódio, visto que o encolerizado deseja vingar-se e notar o desgosto, o sofrimento causado

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em seu adversário, enquanto que, no ódio, não há a necessidade de notar tal desgosto, mas

sim, que seu adversário desapareça.

11) Ódio: é certo sentimento de rancor e suas causas são a cólera, o ultraje e a calúnia. A

cólera vem do que nos toca pessoalmente, é individual, o ódio surge mesmo sem nenhuma

ligação pessoal. Se supusermos que uma pessoa é mau caráter, nós a odiamos. O ódio volta-se

também para a classe de pessoas, pois todo homem odeia o caluniador, o ladrão e assim por

diante. A cólera é o desejo de causar desgosto, mas o ódio é o de fazer o mal, visto que o

colérico quer notar o desgosto causado, enquanto ao que odeia nada importa. Em muitas

circunstâncias na cólera pode-se sentir compaixão, no ódio nenhuma.

12) Calma: estar calmo é o contrário de estar encolerizado. A calma é a inibição, talvez o

antídoto da cólera. Ela nos permite reconhecermos e nos arrependermos dos nossos erros,

fazendo com que nossa cólera se cesse. Ela é a verdadeira paixão, pois agimos, sobre certa

imagem, que o outro forma de nós, mantendo nossa calma. É a aceitação de uma relação que

pode gerar a indiferença, a ausência de toda paixão, o contrário absoluto daquilo que

encoleriza os homens.

13) Amor: também conhecida como amizade, é um vínculo de identidade mais ou menos

parcial. Amamos a quem se alegra com nossos bens e sofre com nossas tristezas, que

consideram como bem e mal as mesmas coisas que nós, os que têm em comum conosco os

mesmos amigos e inimigos, têm os mesmos desejos que temos. São também aqueles que nos

fazem favor de boa vontade, sem interesse. Amamos os que são sensatos e justos, cuja

presença nos é agradável, os que não censuram nossos erros, os que não guardam rancor, os

que não se opõem às nossas discussões, pois os que combatem parecem ter desejos opostos ao

nosso. As formas de amizade são: companheirismo, familiaridade, parentesco e

relacionamentos análogos. As causas da amizade são o favor, sem interesse.

14) Temor: é certo desgosto ou preocupação resultante de um suposto mal iminente, danoso

ou penoso. O temível parece estar bem próximo e é justamente nesse sentido que o perigo

reside. Não tememos o que nos é distante, como por exemplo, a morte. Tememos àqueles que

consideramos mais fortes que nós, como nossos adversários e inimigos que estão prestes a nos

prejudicar. Tememos também os calmos e os astutos, pois podem estar prestes a nos agredir.

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De acordo com Aristóteles (2003), a lista das paixões é diferente na Ética, visto

que nela, há a alegria, o desejo ou o pesar, que são estados de alma da pessoa considerada

isoladamente, por assim dizer, ou em todo caso tomada em sua temporalidade individual. Na

Retórica, ao contrário, as paixões passam por resposta a outra pessoa, e mais precisamente à

representação que ela faz de nós em seu espírito. Como já mencionamos, Aristóteles

classificou em quatorze as paixões. Discorreremos sobre a paixão do medo, objeto de análise

do nosso trabalho, de acordo com Aristóteles (2003).

O referido autor afirma que são temíveis aquelas coisas que parecem possuir

grande capacidade de arruinar, ou de causar danos que levam a grande desgosto. Tememos o

ódio e a cólera das pessoas que têm poder de fazer algum mal, pois elas estão a ponto de fazê-

lo. É temível estar à mercê de outrem, pois os que têm conhecimento de prática de uma ação

má fazem temer que nos denunciem ou nos abandonem. Os que sofrem injustiça também são

temíveis, pois estão sempre na expectativa de vingança. Os que praticam a injustiça também

temem serem vítimas de vingança. Os calmos, astutos e dissimulados são temíveis, pois não

se pode saber se estão prestes a agredir. Não tememos aquilo que julgamos que não

poderíamos sofrer ou aqueles que não se crê que poderiam nos causar algum mal. Não

tememos somente às pessoas que nos podem fazer mal, mas o que elas podem fazer.

Assim, conforme Aristóteles (2003), para temer é preciso guardar no íntimo

alguma esperança de salvação contra que se luta.

De acordo com Chauí (1987), que baseia-se nos conceitos aristotélicos, as

paixões se ligam aos afetos e compreender os afetos é alcançar sua origem, saber quais são

primitivos e quais derivados, quais são fortes e quais fracos, o que os diferencia, aproxima e

distancia, o que os conserva e o que os destrói.

Para classificar os afetos: desejo, alegria e tristeza, a autora baseia-se no Livro

III da Ethica, de Espinosa (1914).

O desejo é “a própria essência do homem enquanto concebida como

determinada a fazer algo por uma afecção nela existente” (CHAUÍ, 1987, p. 49). Não envolve

a consciência, diz Espinosa, senão quando conhecemos ou imaginamos conhecer a causa de

nossos apetites.

Para Chauí:

quando a causa é imaginária, depositada no desejado e não no desejante, o desejo é paixão; quando a causa é real, o próprio desejante, o desejo é ação. Dele nascem:

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emulação, gratidão, inveja, vingança, crueldade, temor, audácia, pusilanimidade, consternação, modéstia, ambição, lubricidade, avareza, benevolência, generosidade, orgulho (1987, p. 54).

A “alegria é passagem de uma perfeição (realidade) menor a outra maior,

sentimento de que nossa capacidade ou aptidão para existir e agir aumentam em decorrência

de uma causa externa, na paixão, e de uma causa interna, na ação” (CHAUÍ, 1987, p. 54).

Dela nascem: amor, amizade, contentamento, glória, esperança, irrisão,

segurança, estima, misericórdia.

A “tristeza é passagem de uma perfeição (realidade) maior a outra menor,

sentimento da diminuição de nossa aptidão para existir e agir. A tristeza só pode ter causas

exterior sendo por isso intrínseca e necessariamente paixão, jamais ação.” (CHAUÍ, 1987, p.

55)

Dela, nascem: ódio, medo, desespero, humildade, remorso, inveja, abjeção,

despeito, comiseração, vergonha, arrependimento.

Para Chauí (1987), medo é uma paixão triste. Ele é e sempre será paixão, jamais ação do

corpo e da alma. Sua origem e seus efeitos fazem com que não seja paixão isolada, mas

articulada a outras formando verdadeiro sistema do medo, determinando a maneira de sentir,

viver e pensar dos que a ele estão submetidos. O medo nasce de outras paixões e pode ser

minorado por outros afetos contrários e mais fortes do que ele, como também pode ser

aumentado por paixões mais tristes do que ele.

A autora enfatiza que o que mais causa-nos temor ou medo é a morte. Também

temos medo de todos os entes reais ou imaginários que sabemos ou cremos dotados de poder

de vida e de extermínio, como por exemplo, a cólera de Deus, a manhã do Diabo, a multidão

enfurecida, a peste, a fome, a guerra, o fim do mundo. Temos medo do esquecimento e de

jamais poder deslembrar. Da insônia e de não mais despertar. Do ódio que devora e da cólera

que corrói, mas também da resignação sem esperança, da dor sem fim e da desonra. Medo da

loucura, do mistério da fecundidade e da maternidade, fonte de tabus, ritos e terrores. Temos

medo dos vivos e dos mortos. Da fala mansa do inimigo, da angústia, do susto, espanto e

pavor, dentre outros.

A autora retoma ainda os conceitos aristotélicos para dizer que aquele que

permanece imperturbável em meio a perigos e que se comporta diante deles como é preciso é

mais verdadeiramente corajoso do que aquele que assim procede nas ocasiões seguras. É por

sua firmeza diante das coisas que trazem sofrimento que um homem é corajoso. Para a autora,

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acidente dotado de causas e fruto da insensatez, o medo não se opõe à valentia, mas à

prudência. O medo também é companheiro de secretos ódios.

Convém, aqui, esclarecer que Chauí utilizou-se dos conceitos aristotélicos e

que, para a análise das paixões, principalmente a paixão do medo, adotaremos apenas os

pressupostos teóricos de Aristóteles (2003).

Passemos, agora, à metodologia aplicada em nossa análise.

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2 METODOLOGIA

Nesta parte esclarecemos como se deu a constituição do corpus analisado nesta

pesquisa bem como quais foram as etapas de realização do estudo.

2.1 CORPUS DE ANÁLISE

O corpus de análise deste trabalho é constituído de oito letras de músicas de

Raul Seixas, a saber: Carimbador Maluco (Raul Seixas, 1983), Conserve o seu Medo (Mata

Virgem, 1979), Metrô Linha 743 (Metrô Linha 743, 1984), Mosca na Sopa (Krig-ha,

Bandolo!, 1973), Novo Aeon (Novo Aeon, 1975), Paranóia (Novo Aeon, 1975), Rockixe

(Krig-ha, Bandolo!, 1973) e Sociedade Alternativa (Gita, 1974)2.

Para o critério de seleção das oito letras de músicas do nosso corpus, levamos

em consideração duas questões: a época em que elas foram compostas – de 1973 a 1984,

período em que o país era regido pelo governo ditatorial, repleto de censuras e repressões; e o

tema comum a todas elas: “o drible à censura”. Como as letras de músicas, em análise, foram

compostas no período ditatorial, de 1973 a 1984, achamos importante fazer a contextualização

de tais músicas de acordo com o referido período. Essa contextualização pode ser vista no

próximo capítulo (item 3.2).

2.2 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE

A análise das letras de músicas compreendeu três etapas:

2Krig-ha, Bandolo!, Gita e O Novo Aeon, esses álbuns foram produzidos pela gravadora Philips; Mata Virgem

pela WEA; Raul Seixas pela Estúdio Eldorado e Metrô Linha 743 pela Som Livre.

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a) caracterização do gênero “letra de música”

A partir de uma breve descrição de alguns autores que tratam sobre a questão

do gênero como: Bakhtin (2000), Meurer, Bonini e Motta-Roth (2005), Marcuschi (2005),

Bronckart (1999) e Carmelino (2006), buscamos caracterizar o gênero “letra de música”,

levando em conta especialmente os pressupostos teóricos de Bronckart (1999) e Carmelino

(2006), os quais consideram, para a descrição de qualquer gênero:

- o conteúdo temático;

- o contexto de produção (físico e sócio-subjetivo);

- a infra-estrutura textual: tipos de discurso, tipos de seqüência textual, mecanismos de

textualização e mecanismos enunciativos.

b) estudo das metáforas em algumas letras de músicas de Raul Seixas

Com base, principalmente, nas considerações de Reboul (2004) e Tringali

(1988), procuramos não só identificar as metáforas e expressões metafóricas nas letras de

músicas que buscaram “driblar a censura”, mas também demonstrar que o uso dessas

expressões funciona como um importante recurso argumentativo e persuasivo.

c) análise da paixão do medo e das paixões mobilizadas pelo medo nas letras de músicas de

Raul Seixas

Após um levantamento das paixões encontradas nas letras de música aqui

estudadas, verificamos que a que predomina é o medo. Desse modo, buscamos demonstrar

não só como a paixão do medo permeia as letras, mas também mobiliza outras paixões, como

é o caso do desprezo, da indignação, da confiança e da cólera.

Para esta análise, baseamo-nos especialmente nos pressupostos de Aristóteles

(2003).

No próximo capítulo, apresentaremos algumas considerações sobre Raul

Seixas e sobre o contexto histórico em que as canções, aqui analisadas, foram produzidas.

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3 RAUL SEIXAS E SUAS MÚSICAS

Alguns dados da vida do compositor Raul Seixas e o contexto histórico-social

da época em que as músicas foram compostas são importantes para compreendermos as

metáforas e a paixão do medo presentes nas letras aqui escolhidas para a análise. Desse modo,

antes de passarmos à análise, vejamos essas questões.

3.1 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE RAUL SEIXAS

Todas as informações que seguem neste item foram embasadas, principalmente,

na obra de Passos (2003) e Boscato (2006).

Raul Santos Seixas nasceu aos 28 de junho de 1945, em Salvador, Bahia. Filho

de Raul Varella Seixas, engenheiro, e Maria Eugênia Santos, dona de casa, ambos

pertencentes à classe média baiana. Casou-se por duas vezes e teve duas filhas. Faleceu em 21

de agosto de 1989, às 5 horas, por parada cardíaca causada por pancreatite crônica. O

sepultamento ocorreu às 17 horas, do dia 22 de agosto, no Cemitério Jardim da Saudade, em

Salvador, sua cidade natal.

Formou-se em filosofia e inglês arcaico e estudou Psicologia, Literatura e

Direito. Raul, ainda criança, já havia lido praticamente toda a biblioteca do pai. Era um garoto

muito intelectual. O dom para a escrita se revelou ainda na infância quando Raul escrevia e

vendia seus gibis para o irmão mais novo. Em uma entrevista concedida ao jornalista

Walterson Sardenberg à revista Amiga (1982), afirma ter estudado latim só para ler

Metamorfose, de Ovídio, e que compôs a canção Metamorfose Ambulante aos doze ou treze

anos de idade.

O cantor morou ao lado do consulado norte-americano na Bahia e teve acesso,

através de garotos vizinhos, aos discos de Elvis Presley, Little Richard, Fats Domino, Jerry

Lee Lews, Chuck Berry que o influenciaram bastante. Seixas era fã de Elvis Presley e Luiz

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Gonzaga, motivo pelo qual, constatamos em muitas de suas canções, a mistura do rock de

Elvis e o baião de Gonzaga, como podemos notar na canção Let me sing, Let me sing. Raul

dizia que Luiz Gonzaga era o “Elvis Presley do sertão nordestino”, pois apesar de os estilos

serem diferentes, os tons musicais eram muito semelhantes.

Raul dizia ser Presley, quando andava e penteava o topete. E era o alvo de risos

e gracinhas. Ele havia assumido uma maneira diferente de vestir, falar e agir que ninguém

conhecia. Dizia que, na Bahia, estava na frente de todos em matéria do que estava

acontecendo no mundo, com relação à música. Apesar de afirmar que não tinha consciência

da mudança social toda que o rock implicava. Seixas achava que os jovens iriam dominar o

mundo.

Montou seu primeiro grupo de rock “Relâmpagos do Rock” (1962) e se

apresentaram na TV Itapoan, onde foi chamado de “conjunto de música cowboy” que passou,

em 1963, a se chamar “The Panters”. O grupo fizera sucesso por todo o interior da Bahia. Era

o grupo mais caro de Salvador.

Seixas abandona os estudos acadêmicos em 1965 e passa a figurar em shows

no Cine Roma, onde brilhavam estrelas da jovem guarda como Roberto Carlos, Jerry Adriani,

Wanderley Cardoso, Wanderléa, dentre outros.

Conhece a americana Edith Wisner, filha de um pastor, em 1966. A pedido dos

pais da moça, o cantor presta a faculdade de Direito e passa entre os primeiros colocados.

Para sobreviver, dá aulas de violão e Inglês.

Seixas se enquadrava em um perfil anárquico e admirava a filosofia de

Aristóteles e o revolucionário Gandhi. Em um de seus shows, na década de 70, foi

distribuídos o gibi-manifesto: “A Fundação de Krig-Há”, dando início à Sociedade

Alternativa apoiada pelo seu grande parceiro Paulo Coelho. A Polícia Federal recolheu todos

os gibis e começou a investigar o que seria essa tal sociedade.

De acordo com uma matéria publicada pela revista Contigo (2004), juntamente

com seu parceiro Paulo Coelho, Raul Seixas conseguiu, de uma sociedade esotérica

internacional, uma grande área em Paraíba do Sul, Minas Gerais, para construir a tão sonhada

Sociedade Alternativa que também era conhecida como Cidade das Estrelas. Raul e seu

parceiro mergulharam de cabeça na obra do bruxo Aleister Crowley (1875–947), que defendia

a revolução interna do ser humano, principalmente em O Livro da Lei que inspirou a dupla na

criação da Sociedade Alternativa. O empreendimento chegou a ter papel timbrado, logotipo e

endereço, um conjunto de salas na Praça XV, no Rio. O cantor afirmava que:

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“a Sociedade Alternativa era uma sociedade esotérica, lugar onde o advogado era o não advogado, o policial era o não policial e, assim por diante. Havia arquitetos, engenheiros e advogados querendo morar lá, uma comunidade de inversão de valores da época” (entrevista dirigida pelo apresentador de programa de TV, Pedro Bial, 1988).

Porém, essas afirmações não convenceram os militares e, de acordo com uma

entrevista concedida à revista Bizz, em março de 1987, Raul disse que no ano de 1974

recebeu uma ordem de prisão do Primeiro Exército que o levou para um lugar que não sabia

onde era. Estava nu com uma carapuça preta, colocada pelos militares, e foi torturado para

que dissesse os nomes das pessoas que faziam parte da Sociedade Alternativa, pois essa

sociedade estava sendo interpretada como um movimento revolucionário contra o governo.

Então o levaram e o escoltaram até o aeroporto para que ele deixasse o país juntamente com

Paulo Coelho. "Todos os partidos são variantes do absolutismo. Não fundaremos mais

partidos; o Estado é seu estado de espírito", palavras de Raul Seixas.

Os jornais divulgaram que Raul Seixas teria ido aos Estados Unidos fazer uma

visita a John Lennon. Foi convidado a retornar ao Brasil somente com o sucesso da canção

Guita para evitar especulações sobre seu exílio. Nessa época Raul disse ter estado,

pessoalmente, com Lennon, Elvis Presley e Jerry Lee Lewis.

Notamos, na maioria das canções de Seixas, a manifestação do ocultismo

inspirado no mago Aleister Crowley (1875-1947), o qual foi tido como o mais perverso

homem da face da terra, cuja vida sempre esteve simultaneamente compartilhada por

genialidade e loucura, por criação e destruição, amor e ódio, encanto e desafeto. Seu propósito

sempre esteve além de todos os dogmas, todo êxtase, além de toda vida e morte.

Para compor a música Sociedade Alternativa (1974) e A Lei (1988) Raul fez

uso de paráfrases do Livro da Lei, de Crowley (1904): A Lei de Thelema, notáveis no verso:

“Faz o que tu queres/ Há de ser tudo da lei”. O próprio mago gostava de ser considerado “A

Grande Besta 666”, como podemos notar em um dos versos da música Sociedade Alternativa:

“– O número 666/ Chama-se Aleister Crowley”.

Crowley acreditava que a divisão entre o bem (Deus) e o mal (Diabo) deveria

ser superada dentro de uma nova Espiritualidade a se formar. Por esse motivo, observamos

forte influência do mago nas canções de Raul Seixas, como é o caso da presença do diabo no

verso “O diabo é o pai do rock/ Foi ele mesmo que me deu o toque”, na canção Rock do diabo

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(1975) e de Deus em “Alô aqui é do céu/Quem tá na linha é Deus./Tô vendo tudo esquisito/O

que é que há com vocês?” (DDI - Discagem Direta Interestelar, 1983). Notamos também a

divisão do bem e do mal citado por Crowley em “Ói, lá vem Deus,/ deslizando no céu entre

brumas de mil megatões/ Ói, ói o Mal/ Vem de braços e abraços com o Bem/ num romance

astral/ Amém.” (O Trem das Sete, 1974).

O cantor também faz referência ao disco voador como podemos notar na

canção S.O.S (1974) que se remete à religião e à censura: “Ô Ô Ô seu moço do disco voador,/

Me leve com você, prá onde você for/ Ô Ô Ô seu moço, mas não me deixe aqui/ Enquanto eu

sei que tem tanta estrela por aí.”. O substantivo “moço” se refere a Deus e a expressão “tanta

estrela por aí” faz referência aos militares, porque quem carrega muitas estrelas são os

generais. Raul Seixas utiliza-se do disco voador de maneira metafórica para fazer um

apelo ao seu tripulante (Deus) que o livrasse da ditadura, mas isso não poderia ser dito

abertamente por se tratar de um período em que estávamos sob censura.

Em muitas de suas canções, o cantor também critica o “esquema da mídia”, a

qual priorizava a Música Popular Brasileira e considerava o rock-n’-roll de má qualidade.

Para se destacar, Seixas teve que entrar “no jogo” das manipulações, “no jogo” da mídia, no

“jogo dos ratos”, teve que aprender a lidar com o bem e o mal, com os altos e baixos, com

“Deus e com o Lobisomem”, verso citado no trecho: “Raul Seixas e Raulzito / Sempre foram

o mesmo homem/Mas pra aprender o jogo dos ratos/Transou com Deus e com o lobisomem”

(As aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor, 1974). Esse verso também sugere que “Raul

Seixas” e “Raulzito” sempre foram o mesmo homem, ou seja, apesar de ter se destacado na

MPB como Raulzito, sempre foi o roqueiro Raul Seixas.

Também podemos notar essas considerações em uma das canções de nosso

trabalho, Mosca na sopa (1973), na qual o cantor critica a midia, revelando-se uma “mosca na

sopa” a infernizar e a tormentar a mídia: “Eu sou a mosca que pousou em sua sopa/ Eu sou a

mosca que pintou pra lhe pegar”. Esse verso também faz referência à ditadura militar em que

o cidadão politizado inferniza e desestrutura o sistema de governo através da denúncia dos

crimes e anunciação das reformas.

Convém acrescentar que algumas obras foram realizadas em homenagem a

Raul Seixas, tais como: o Viaduto Raul Seixas, em Salvador; o Parque Ecológico Cultural

Raul Seixas, na Zona Leste de São Paulo; o lançamento do livro “Raul Seixas Por Ele

Mesmo”, pesquisado e analisado por Sylvio Passos; e a Oficina Cultural Raul Seixas no

bairro do Tatuapé, em São Paulo.

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As várias fases e experiências vividas por Raul Seixas contribuíram na

composição de suas canções: destacamos aqui o gosto pelo ocultismo, pela religião, pela

política, pela filosofia, pela cultura norte-americana e a nordestina.

Conforme veremos, todas essas informações sobre a vida do autor são

fundamentais para que o leitor faça as inferências necessárias para a construção do sentido das

letras das canções que serão analisadas.

3.2 CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL: O REGIME MILITAR NO BRASIL E AS

LETRAS DE MÚSICAS DE RAUL SEIXAS DE 1973–1984.

Além dos dados da vida do autor, para que o leitor faça as inferências

necessárias para a construção do sentido das letras de músicas de Raul Seixas que serão

analisadas em nosso trabalho, também é preciso que tenha conhecimento do contexto

histórico-social da época em que elas foram compostas – de 1973 a 1984. Assim, nesta parte,

para que o leitor se situe, faremos uma contextualização dessas letras de músicas com a

história da época, a partir das considerações de Fausto (2002) e Vieira (1985).

No período de 1973 a 1984, época em que as letras de músicas em análise

foram compostas, o Brasil foi regido por três presidentes da república, a saber: Emílio

Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Baptista de Oliveira Figueiredo.

a) O governo Médici (1969–1974)

De acordo com Fausto, o governo Médici não se limitou à repressão e afirma que

Médici não tinha gosto pelo exercício do poder, tendo delegado aos seus ministros o exercício do governo que resultou o paradoxo de um comando presidencial dividido em um dos períodos mais repressivos, se não o mais repressivo, da história brasileira (2002, p. 267),

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Grupos armados urbanos que aparentemente desestruturariam o regime militar

fracassaram e praticamente desapareceram. Com isso, o poder de repressão cria forças e se

torna ainda mais eficiente e ameaçador.

De acordo com Vieira (1985), em sua posse, Médici leu um “credo”, no qual se

declarava “Homem da Lei”. As oposições e suas organizações, sem alternativa, se renderam

às constantes repressões e a voz popular foi suprimida.

A partir de 1969, o país passa por uma série de turbulências: a fuga de presos

políticos, assaltos a bancos, ataques a quartéis para retirar armas dos militares, dentre outros.

Em setembro desse mesmo ano, o governo federal promoveu os Atos Institucionais nº. 13 e

14. O Ato Institucional nº 13 determinava que os presos políticos, trocados por diplomatas

seqüestrados, receberiam a condição de banidos do Brasil. O Ato Institucional nº 14

acrescentava à Constituição de 1967 algumas penalidades, antes inexistentes. Desde então,

começaram as práticas de penas de morte, prisão perpétua e exílio. Essas práticas seriam

aplicadas caso houvesse guerra psicológica, revolucionária ou externa.

Médici assinou o Decreto-Lei nº 69.534 em 11 de novembro de 1971, que foi

conhecido também por “Decreto-Lei-Secreto” que atribuía poder ao presidente da república

para fazer decretos-leis secretos que não seriam divulgados seus conteúdos. Esses decretos

autorizavam a prisão de pessoas por transgredirem a lei que muitas vezes ela nem a conhecia

por não ser uma lei clara e aberta. Nessa época, a repressão se torna ainda mais violenta.

Pessoas começam a ser revistadas e, caso fossem pegas sem documento, poderiam ser detidas

por serem consideradas suspeitas. Torturas eram aplicadas para se chegar a informações

desejadas sob risco de serem comprometedoras ao governo.

O Ministro da Justiça do governo Médici, Alfredo Buzaid, por meio do

Decreto-Lei nº 1.077, regulamentou a Emenda Constitucional nº 1 em que jornais e revistas

tinham de registrar-se na Polícia Federal, além de obedecer a uma série de exigências. Desse

modo, a Polícia Federal incumbiu-se de aplicar a prática da censura aos canais de

comunicação e a empreendimentos culturais.

Fausto (2002) afirma que, por volta de 1970, houve um grande avanço das

telecomunicações no país e, nessa época, o governo beneficiou a TV Globo que se

transformou em porta voz, motivo pelo qual se tornou rede nacional até alcançar o controle do

setor. A propaganda governamental passou a ter um canal de expressão como nunca existira

na história do país.

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O período de 1969 a 1973 foi conhecido como “Milagre Econômico

Brasileiro” pelo crescimento econômico do país e pelas baixas taxas de inflação. No entanto,

conforme Vieira (1985) houve um aumento nos investimentos estrangeiros e estatais no

Brasil, o que provocou um rápido aumento da dívida externa do Brasil que crescia bem mais

de três vezes, enquanto se festejava o ilusório dito “Milagre Econômico”.

A partir de todas essas considerações, podemos verificar que as letras de

músicas de Raul Seixas, contempladas em nossa análise e compostas nesse período, fazem

referência ao governo Médici e que o cantor utilizou-as para tentar driblar a censura como

podemos notar nos versos: “E não adianta/Vir me detetizar/Pois nem o DDT/Pode assim me

exterminar/Porque você mata uma/E vem outra em meu lugar...” (Mosca na sopa, 1973). A

sigla “DDT” é uma potente marca de pesticida usada para eliminar, exterminar insetos e se

identifica com as siglas: DOI-CODI (Destacamento de Operações e Informações e ao Centro

de Operações de Defesa Interna) que era um órgão que atuava como centro de investigação e

repressão do governo militar. A sua função era eliminar todos os intelectuais que se

manifestassem contra as normas governamentais. Podemos notar outras considerações a

respeito dessa mesma música em que o cantor critica a midia, revelando-se uma “mosca na

sopa” a infernizar e a tormentar a mídia: “Eu sou a mosca que pousou em sua sopa/ Eu sou a

mosca que pintou pra lhe pegar”, visto que, conforme mencionamos, nesse período, a Polícia

Federal se destacava no campo da censura aos canais de comunicação e a empreendimentos

culturais. Tanto é que o cantor Raul Seixas, em um de seus shows, distribuiu o gibi-manifesto:

“A Fundação de Krig-Há”, dando início à Sociedade Alternativa apoiada pelo seu grande

parceiro Paulo Coelho e a Polícia Federal recolheu todos os gibis e começou a investigar o

que seria essa tal sociedade.

Em outros versos também podemos notar a referência ao governo Médici:

“Então vá!/Faz o que tu queres/Pois é tudo/Da Lei! Da Lei!/Viva! Viva!/Viva a Sociedade

Alternativa...” (Sociedade Alternativa, 1974). Obsevamos que Médici se declarava como

sendo “O Homem da Lei”, no entanto, o cantor utiliza-se do termo “Lei”, em letra maiúscula,

provavelmente, para ironizar o presidente, ao mesmo tempo que pregava os preceitos da

Sociedade Alternativa, fundada por ele próprio, que era uma comunidade de inversão de

valores, sem regras e repressões. Foi através dessa Sociedade Alternativa que Raul Seixas foi

chamado, pelos militares, a prestar depoimentos sob suspeita de ser um movimento

revolucionário contra o governo, motivo pelo qual o cantor teria sido banido do país.

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Nos versos “Não tenho pressa, tenho muita paciência/Na esquina da

falência/que eu te pego pelo pé” (Rockixe, 1973), o cantor faz referência ao “Milagre

Econômico” do governo Médici, pois como já dito, foi um milagre ilusório em que o Brasil

fracassava, entrava em crise pelo aumento da dívida externa que crescia bem mais de três

vezes, conforme podemos notar a partir da expressão “esquina da falência”.

Enfim, a partir do que se expôs, é possível verificar que três letras de músicas,

que compõem o corpus do nosso trabalho, fazem menção às questões históricas e

acontecimentos do governo Médici. A saber: Mosca na sopa (1973), Sociedade Alternativa

(1974) e Rockixe (1973), conforme os exemplos acima citados.

b) O governo Geisel (1974–1979)

Conforme Fausto (2002) foi no governo de Geisel que se iniciou a abertura

política a qual foi definida por ele como lenta, gradual e segura. Fausto afirma que

na prática da liberalização do regime, chamada a princípio de distensão, seguiu um caminho difícil, cheio de pequenos avanços e recuos, pois de um lado, Geisel sofria pressões da linha dura; de outro, desejava controlar a abertura, no caminho de uma indefinida democracia conservadora, evitando que a oposição chegasse muito cedo ao poder. (2002, p. 270)

Em 1973 a oposição começava a se fortalecer, principalmente com o apoio da

Igreja Católica e do Estado que também era muito desgastante para o governo. A equipe de

transição de Geisel tentou um acordo com a Igreja que lutava contra a tortura, porém a

oposição e a Igreja não eram as categorias mais indicadas para a prática da distensão e as

Forças Armadas e o poder é que assumiram essa função. O poder fora tomado pelos órgãos de

repressão que gerou reflexos negativos na hierarquia das Forças e, para restaurá-la, foi preciso

promover a volta dos militares aos quartéis para suavizar a repressão.

Em 1975, Geisel combinou medidas liberalizantes com medidas repressivas e

embora tivesse terminado a guerrilha, os militares de linha dura continuavam com a prática da

tortura seguida do “desaparecimento” de várias pessoas assassinadas pela repressão como foi

o caso do jornalista Vladimir Herzog e do metalúrgico Manoel Fiel Filho, convidados a

comparecerem no DOI-CODI para prestarem depoimentos. Eles foram mortos e a versão

oficial era de suicídio por enforcamento. O fato provocou grande indignação em São Paulo e,

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em 1976, Geisel resolveu agir e pôs um fim nas torturas provenientes do DOI-CODI. Apesar

disso, a violência em São Paulo continuou.

De acordo com Vieira (1985), desde 1974, já não se podia celebrar os sucessos

do “Milagre Econômico” e, para tentar combater a crise economia do país, Geisel divulgou a

teoria da “distensão”. Vieira afirma que

para o presidente, a distensão, entendida como diminuição da pressão, seria feita em várias etapas: suspensão parcial da censura prévia, estabelecimento de limites para o exercício de direitos humanos, reformas eleitorais para melhorar o nível de representação política (1985, p. 42)

A preocupação do presidente Geisel fez com que ele criasse reformas no país,

porém acabou criando medidas que reprimiam a população brasileira e continuou espalhando

insegurança às pessoas.

O presidente pensava em transformar o Brasil em potência mundial, porém as

condições sociais pioraram e na mais havia esperança de equilibrar a economia brasileira. O

interessante é que a abertura política se deu no governo de Geisel e, ao fim do seu governo, as

pessoas tinham conquistado o direito de habeas-corpus para o que se considerava crime

político, o direito de não ser preso sem acusação ou ordem judicial e os juízes conquistaram o

direito de julgar sem passar por maiores pressões. No entanto, a crise econômica aumentava

cada vez mais. Essas informações vêm a calhar com as palavras de Raul Seixas “Que o mel é

doce, é coisa de que me nego a afirmar, mas que parece doce, eu afirmo plenamente”.

Mediante tudo o que foi exposto sobre o governo do presidente Geisel,

podemos observar que Raul Seixas também faz referências a acontecimentos que se deram

nesse governo em suas canções. No intuito de driblar a censura, vemos que Seixas alerta o

interlocutor a agir com muita cautela mediante as ameaças e punições do governo opressor

como vemos nos versos: “Conserve o seu medo/Mantenha ele aceso/Se você não teme/Se

você não ama/Vai acabar cedo” (Conserve o seu medo, 1979). A expressão “conserve O seu

medo” revela que o cantor tenta alertar o interlocutor quantos aos perigos que tal governo

representava e que poderia levá-lo até a morte como observamos na expressão metafórica “vai

acabar cedo” que significa “morrer cedo”.

Essas considerações também podem ser vistas nos versos “Se eu vejo um papel

qualquer no chão/Tremo, corro e apanho pra esconder/Medo de ter sido uma anotação que

eu fiz/Que não se possa ler/E eu gosto de escrever, mas.../Mas eu sinto medo!/Eu sinto

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medo!” (Paranóia, 1975). A presença do medo do eu-lírico no momento em que ele escreve,

a partir preocupação com as punições que poderia sofrer pelas autoridades ditatoriais caso

suas anotações fossem algo que conspirassem contra o governo é marcada especialmente

pelos verbos “tremo”, “corro”, “esconder” e pelo substantivo “medo”.

Como mencionamos, no governo de Geisel, além de a crise econômica ter

disparado, houve a abertura política que, de certa forma, direcionava a uma mudança no

governo com uma possível falência do sistema de governo opressor. É o que observamos nos

versos “O sol da noite agora está nascendo/Alguma coisa está acontecendo/Não dá no rádio

nem está/Nas bancas de jornais” (Novo Aeon, 1975). A expressão “O sol da noite”, em sentido

metafórico, representa a esperança que nasce em meio às repressões, o surgimento de uma

nova geração contestadora que luta por um governo melhor, pois sabemos que nesse governo

as pessoas já haviam conquistado alguns direitos como por exemplo, o habeas-corpus e o

direito de não ser preso sem provas concretas; apesar de que a censura e as repressões ainda se

faziam presentes como podemos observar em: “Não dá no rádio nem está/Nas bancas de

jornais”.

A partir dessas considerações notamos que as canções que fazem parte do

corpus do nosso trabalho: Conserve o seu medo (1979), Paranóia (1975) e Novo Aeon (1975)

aludem ao momento histórico do governo Geisel.

c) O governo Figueiredo (1979–1985)

Fausto (2002) afirma que no governo de Figueiredo as metas estariam

relacionadas à ampliação da abertura política e ao aprofundamento da crise econômica. Nesse

governo, a Lei da Anistia foi aprovada pelo Congresso em 1979.

De acordo com Vieira:

a Anistia de 1979 não foi concedida a quem participou da luta armada, tendo praticado “crimes de sangue”. Os militares punidos não puderam reassumir seus cargos, embora lhes fosse concedida aposentadoria, com pagamento integral. Os funcionários públicos de natureza civil só retomaram seus cargos depois de terem suas situações analisadas por comissão especial. A lei da anistia permitiu a volta dos exilados ao Brasil, devolvendo-lhes o direito político. No entanto, essa lei acabou também beneficiando os responsáveis por abusos praticados contra pessoas, incluindo quem praticou tortura (1985, p. 55).

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Uma série de atos criminosos e terroristas culminava como, por exemplo,

explosões de bombas por militares radicais que não aceitavam a lei da anistia que promoveria

o fim da ditadura. Na área econômica a crise não foi enfrentada e os índices de inflação

aumentaram violentamente.

De acordo com o referido autor, foi o governo de Figueiredo que deu início à

campanha pelas “Diretas-Já!”, que era uma proposta de realizar-se eleição direta de imediato,

para os cargos de presidente e vice-presidente da repúlica, por meio do voto popular, que

transformou-se em verdadeiro anelo dos brasileiros. Em 25 de abril de 1984, a emenda

constitucional que previa eleições diretas-já para a presidência da república foi rejeitada pela

Câmara dos Deputados. Ainda em junho de 1984, parte expressiva da população brasileira se

manifestava em prol das eleições diretas-já para a indicação da presidência da república, no

entanto houve a eleição indireta, feita pelo colégio eleitoral.

A partir dessas considerações sobre o governo de Figueiredo, podemos notar

que, apesar da aprovação da Lei da Anistia que findaria a ditadura militar, esse governo

também foi marcado por conflitos e resistência da oposição, principalmente dos militares

radicais que praticavam o terrorismo e perseguiam os intelecutais da época em questão. Isso

pode ser observado nos versos “Três outros chegaram com pistolas na mão/Um gritou: Mão

na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos/ Eu disse: Claro, pois não,

mas o que é que eu fiz?/Se é documento eu tenho aqui.../Outro disse: Não interessa, pouco

importa, fique aí/Eu quero é saber o que você estava pensando” (Metrô linha 743, 1984).

Notamos a presença de uma autoridade (policial) a partir da expressão “pistolas na mão”,

dando ordem a um cidadão para que permanecesse no local em que se encontrava e explicasse

o que estava pensando, pois se o pensamento fosse algo que conspirasse contra o governo, ele

poderia sofrer graves punições. Percebemos que Seixas, de maneira implícita, revela os

crimes cometidos pelas autoridades governamentais e suas perseguições aos intelectuais da

época tais como: professores, artistas, músicos, repórteres, dentre outros, considerados uma

ameaça ao governo ditatorial, pela anunciação das reformas e denúncia dos crimes.

Essas observações também podem ser vistas em “Plunct, Plact, Zum/Não vai a

lugar nenhum!/Tem que ser selado, registrado, carimbado/Avaliado, rotulado se quiser

voar!/Se quiser voar...” (Carimbador Maluco). A expressão Plunct, Plact, Zum representa um

avião e o trânsito aéreo só era permitido após uma prévia avaliação do governo que poderia

ou não autorizar a decolagem do indivíduo como podemos notar através do emprego dos

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termos “selado”, “registrado”, “carimbado”, “avaliado”, “rotulado” e do emprego do advérbio

de negação “não”, na expressão “Plunct, Plact, Zum/Não vai a lugar nenhum!”

Mediante ao exposto, verificamos que as canções do nosso corpus,

Carimbador Maluco (1983) e Metrô linha 743 (1984), se referem aos acontecimentos

históricos do governo Figueiredo.

Passemos, agora, ao gênero letra de música, outro capítulo de nosso trabalho.

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4 O GÊNERO LETRA DE MÚSICA

4.1 GÊNERO DE TEXTO

Toda forma de comunicação verbal, segundo Bakhtin (2000), se manifesta

através de um gênero que está vinculado ao contexto histórico, social e cultural. Por meio dos

gêneros, das práticas comunicativas, organizamos as atividades comunicativas do nosso

cotidiano.

Após a publicação dos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais), os quais

propõem uma mudança na educação por enfatizarem a diversidade de textos e de gêneros, a

preocupação com o gênero, que já era antiga, tornou-se ainda mais intensificada. Atualmente,

os estudos apontam para debates e pontos-de-vista diversos entre pesquisadores de várias

áreas em que muitos optam pelo termo gênero de texto e outros por gênero do discurso.

É o que observamos a partir do que afirma Meurer, Bonini e Motta-Roth

(2005). Segundo esses estudiosos, o gênero se encontra entre a língua, o discurso e as

estruturas sociais e sua terminologia é muito diversa, por esse motivo, surgem diferentes

teorias que promovem um diálogo entre pesquisadores que adotam o conceito gênero de texto

e outros que adotam o conceito gênero do discurso. Esses autores optam por demonstrar os

conceitos de três abordagens teóricas: as sócio-semióticas, as sócio-retóricas e as sócio-

discursivas. No entanto, ressaltam que todas elas retratam a noção de gênero como ação

social, ou seja, ligam-se mais ao caráter social da linguagem do que ao estrutural.

A fim de demonstrar a variedade de posicionamento acerca do assunto,

apresentamos, a seguir, algumas considerações de acordo com diferentes autores.

Para Bakhtin (2000, p. 279), “os gêneros são, pois, tipos de enunciados

relativamente estáveis, caracterizados por um conteúdo temático, uma construção

composicional e um estilo”. Assim, falamos sempre por meio de gêneros no interior de uma

dada esfera de atividade. Para o autor, o enunciado se constrói pelo conteúdo temático

(domínio de sentido de que se ocupa o gênero), estilo (seleção de meios lingüísticos),

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organização composicional (modo de organizar o texto, de estruturá-lo) e é marcado por

esferas de ação tais como as da escola, as da igreja, as da política, as das relações de amizades

e assim por diante.

O autor ainda divide os gêneros em primários e secundários. Os primários são

gêneros da vida cotidiana, pertencentes à comunicação verbal espontânea em um contexto

mais imediato como a piada, bate-papo e outros. Já os secundários pertencem à esfera da

comunicação cultural mais elaborada como a jornalística, a jurídica, política, dentre outras.

Em suma, o gênero é relativamente estável e não fixo.

Como os gêneros se relacionam com contexto histórico, social e cultural,

segundo Bakhtin (2000), notamos que eles não só podem desaparecer com o passar do tempo

como também podem aparecer. Observamos que eles podem diferenciar-se e ganhar um novo

sentido, como é o caso dos e-mails que, atualmente, têm substituído as cartas e telegramas.

De acordo com Marcuschi (2005), na perspectiva da lingüística textual, o autor

opta pela terminologia gênero de texto e considera que, atualmente, as teorias do gênero que

focam a forma pronta e acabada ou a estrutura estão em crise, pois, assim como a linguagem,

o gênero é flexível e variável. A tendência, desse modo, é observar os gêneros pelo lado

dinâmico, processual, social, interativo, cognitivo, evitando a classificação e postura

estrutural. Para o autor, o gênero é mais que uma forma, é uma ação social tipificada que,

mediante determinadas situações, faz com que ele se torne reconhecível. Os gêneros estão

relacionados às práticas sociais, à cultura, aos aspectos cognitivos, interesses, tecnologias,

relações de poder e atividades discursivas. Por esse motivo, não são estáticos e nem puros e

fundem-se, misturam-se, mudam e são flexíveis.

Para esse autor, “todas as manifestações verbais se dão como textos e não

como elementos lingüísticos isolados” (MARCUSCHI, 2005, p. 25), isso implica que todo

gênero se concretiza dentro de um texto. Texto pode ser considerado como toda manifestação

verbal praticada por um indivíduo através da fala ou da escrita. Eles são enunciados que não

são atos isolados nem na oralidade e nem na escrita e são marcados pelas instituições e ações

sociais.

O autor ainda observa que os gêneros circulam na sociedade e ajudam a

estruturar toda a ação de uma comunidade e fazem toda a intermediação das práticas sociais e,

mesmo que o indivíduo seja analfabeto ou de baixo letramento, ele tem uma relação com os

gêneros escritos como se fosse uma relação de dominação. Isso pode ser notado através de

exemplos simples tais como listas de compra e anotação de vendas, através dos gêneros que

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organizam as ações religiosas e profanas tais como: reza, canto, benditos, ensaio, novena,

missa, procissão; dos gêneros recorrentes no dia-a-dia regulados por papéis de circulação tais

como consulta, escritura de casa, cadastro, conta de luz, conta de água; gêneros que circulam

na família como listas de dívidas a pagar, título de eleitor, receitas culinárias, bula de

remédio, dentre outros.

Para Bronckart (1999, p. 137), cuja perspectiva teórica é o interacionismo

sociodiscursivo:

os textos são produtos da atividade de linguagem em funcionamento permanente nas formações sociais: em função de seus objetivos, interesses e questões específicas, essas formações elaboram diferentes espécies de textos, que apresentam características relativamente estáveis (justificando-se que sejam chamados de gêneros de textos) e que ficam disponíveis no intertexto como modelos indexados, para os contemporâneos e para as gerações posteriores.

A partir de todas essas considerações, podemos dizer que os gêneros são

fenômenos culturais, que nascem a partir da necessidade comunicativa de um grupo. É,

portanto, na prática social que os indivíduos organizam sua comunicação, de maneira a

facilitar seu discurso mediante a função a que se propõem. Desse modo, tanto podem ocorrer

transformações em um gênero já existente em nossa cultura, como pode surgir um novo

gênero mediante as necessidades de interação.

Segundo os estudiosos, o gênero pode ser inovador, mas não novo, como

podemos perceber com relação ao telegrama, por exemplo, que, com o avanço da tecnologia,

está sendo substituído por mensagens instantâneas via internet (programas de “bate-papo”,

como MSN, Skype, e-mails, entre outros). Contudo, está sempre aberto a mudanças, visto que

o mundo está sempre em um processo de transformação e evolução, conforme menciona

Bronckart (1999, p. 38):

os gêneros mudam com o passar do tempo sendo impossível classificá-los como estáveis ou definitivos, visto que tal classificação não pode se basear no único critério facilmente objetivável, a saber, nas unidades lingüísticas que neles são empiricamente observáveis. Qualquer que seja o gênero a que pertençam, os textos, de fato, são constituídos, segundo modalidades muito variáveis, por segmentos de estatutos diferentes (segmentos de exposição teórica, de relato, de diálogo, etc.). E é unicamente no nível desses segmentos que podem ser identificados regularidades de organização e de marcação lingüísticas.

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De acordo com o que foi exposto, notamos, junto com Meurer, Bonini e Motta-

Roth (2005), que a discussão sobre gênero a partir de diferentes abordagens teóricas tende a

ser bastante rica, visto que se trata mais de um diálogo entre pesquisadores.

O nosso estudo, no entanto, baseia-se especialmente nas considerações

Bronckart (1999) e Carmelino (2006), autores que optam pela terminologia gênero de texto e

levam em conta para caracterizar os gêneros elementos como: conteúdo temático; contexto de

produção, que abrange tanto o contexto físico como o sócio-subjetivo; e a composição, que

engloba a infra-estrutura geral do texto, os mecanismos de textualização e os mecanismos

enunciativos.

A seguir apresentamos o modelo de análise de gênero proposto por Bronckart

(1999) e comentado por Carmelino (2006).

4.2 O MODELO DE ANÁLISE DE GÊNERO PROPOSTO POR BRONCKART (1999)

Quanto às concepções de Bronckart (1999), convém esclarecer que o autor não

toma os gêneros como unidade de análise, mas as ações verbais (agir verbal) e não-verbais

(agir geral). Assim, suas propostas e conceitos se voltam para um modelo de análise de textos

e não de gêneros, mas que, conforme veremos, pode ser perfeitamente útil para a análise e

caracterização de diferentes gêneros.

O seu modelo pode ser resumido nos seguintes elementos: conteúdo temático,

contexto de produção e organização interna do texto, ou seja, a arquitetura textual. Esta

abrange a infra-estrutura geral do texto, os mecanismos de textualização e os mecanismos

enunciativos.

Segundo Bronckart (1999), o conteúdo temático se refere ao conjunto de

informações visíveis em um texto, as quais variam em função das experiências e

conhecimentos de mundo armazenados na memória do agente-produtor, anteriores à

manifestação da linguagem.

O contexto de produção diz respeito ao conjunto de todos os parâmetros que

contribuem para a organização do texto. Tais parâmetros se referem ao mundo físico, e ao

mundo sócio-subjetivo.

Conforme Bronckart (1999, p. 94):

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a produção de todo texto inscreve-se no quadro das atividades de uma formação social e, mais precisamente, no quadro de uma forma de interação comunicativa que implica o mundo social (normas, valores, regras, etc.) e o mundo subjetivo (imagem que o agente dá de si ao agir)

O autor (1999, p. 93) ressalta ainda que “todo texto resulta de um

comportamento verbal concreto, desenvolvido por um agente situado nas coordenadas do

espaço e do tempo; portanto, todo texto resulta de um ato realizado em um contexto físico”.

O contexto físico se refere ao lugar de produção (lugar onde se produz o texto);

ao momento de produção (tempo gasto para se produzir o texto); ao emissor (produtor ou

locutor), ao receptor [indivíduo(s) que recebem o texto].

O contexto sócio-subjetivo pode ser definido como o lugar social (instituição

em que foi produzido o texto: imprensa, universidade, empresa, etc.); a posição social do

emissor (a função que ele exerce, como por exemplo, a de cantor, professor, jornalista); a

posição social do receptor (papel social do receptor, como o de público, aluno, leitor); e o(s)

objetivo(s) da interação (ponto de vista do enunciador e o(s) efeito(s) que o texto produz no

destinatário).

Tratemos agora da composição ou organização textual que Bronckart (1999, p.

119) concebe como “a organização de um texto como um folhado constituído por três

camadas superpostas: a infra-estrutura geral do texto, os mecanismos de textualização e os

mecanismos enunciativos”.

De acordo com Bronckart (1999), a infra-estrutura se constitui em plano geral

do texto, tipos de discurso e pelas seqüências textuais que nele se apresentam.

Com relação ao plano geral do texto, podemos dizer que se trata da

organização do conjunto do conteúdo temático nítido no decurso da leitura e identificado em

um resumo.

A noção de tipo de discurso se refere aos diferentes segmentos que o texto

comporta. Segundo Bronckart (1999) e Carmelino (2006), para classificar os diferentes tipos

de discurso, faz-se necessário intervir duas decisões binárias: a de conjunção-disjunção

[quando o conteúdo temático é simultâneo ao momento de produção do agente (ordem de

narrar) ou não (ordem de expor)]; e a de implicação-autonomia (quando ocorre ou não a

explicitação do agente-produtor, interlocutor e situação de espaço-tempo). O cruzamento de

tais decisões denomina-se mundos discursivos, os quais se dividem, pelas considerações feitas

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anteriormente, em: narrar implicado, narrar autônomo, expor implicado e expor autônomo.

Bronckart (1999) subdivide em quatro os tipos de discurso:

(i) Discurso interativo:

Ø apresentado sob forma de diálogo ou monólogo;

Ø estabelece a presença de unidades referentes à própria interação verbal e ao caráter

conjunto-implicado do mundo discursivo criado;

Ø apresenta tempos verbais que comprometem os participantes da interação e os

conteúdos verbalizados simultâneos ao momento da produção (presente, pretérito

perfeito do indicativo e futuro perifrástico);

Ø apresenta dêiticos temporais e espaciais; formas verbais, nomes, adjetivos e pronomes

que remetem à 1ª e 2ª pessoa do singular ou plural; e auxiliares de modo; e frases não

declarativas (interrogativas, imperativas, exclamativas).

(ii) Discurso teórico:

Ø apresenta-se monologado e escrito;

Ø estabelece a presença de unidades referentes ao caráter conjunto-autônomo do mundo

discursivo criado;

Ø apresenta verbos no presente e pretérito perfeito do indicativo, formas verbais na 1ª

pessoa do plural; organizadores lógico-argumentativos; modalizações lógicas; e frases

declarativas e passivas, e procedimentos metatextuais (aspas, travessões, itálico), de

referência intertextual.

(iii) Discurso relato interativo:

Ø apresenta-se monologado em uma situação de interação;

Ø estabelece a presença de unidades referentes ao caráter disjunto-implicado do mundo

discursivo criado;

Ø apresenta verbos no pretérito perfeito e imperfeito do indicativo (ligados ao mais-que-

perfeito, futuro do presente e futuro do pretérito); e organizadores temporais, adjetivos

e pronomes que remetem à 1ª e à 2ª pessoa do singular ou plural e frases declarativas.

(iv) Discurso narração:

Ø apresenta-se monologado;

Ø estabelece a presença de unidades referentes ao caráter disjunto-autônomo do mundo

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discursivo criado;

Ø apresenta verbos no pretérito perfeito e imperfeito do indicativo (ligados ao mais-que-

perfeito e futuro do pretérito); e organizadores espaço-temporais e frases declarativas.

As articulações entre tipos de discurso ocorrem num processo de dependência

de um segmento em relação a outro, como também num processo de fusão, em um mesmo

segmento, de dois tipos de discursos diferentes.

A noção de seqüência seria os modos de planificação de linguagem que se

desenvolvem no interior do plano geral de texto. Os tipos de seqüências são seis:

a) narrativa, na qual ocorre a presença de uma intriga que se mantém e as personagens estão

inseridas em um acontecimento organizado e consecutivo. Prevalecem várias fases: situação

inicial, complicação, ações desencadeadas, resoluções, situação final, avaliação e moral;

b) descritiva, em que predomina fases que se combinam e se encaixam de forma não,

necessariamente, ordenada. Salientemos a ancoragem (tema-título no início); aspectualização

(enumeração de vários aspectos do tema-título); relacionamento (elementos descritos

associados a outros pela comparação ou metáfora) e reformulação;

c) explicativa, em que se constata um fenômeno incontestável por meio das fases: constatação

inicial, problematização, resolução, e conclusão-avaliação;

d) argumentativa, que se apresenta sob forma de persuasão e convencimento do produtor, de

seu posicionamento, para com o destinatário. Suas fases: premissas (constatação de partida);

argumentos (exemplos, regras que direcionam para a conclusão); contra-argumentos

(limitação à orientação argumentativa) e conclusão (integração dos argumentos e contra-

argumentos);

e) injuntiva, que induz o destinatário a agir de determinado modo ou em certa direção.

Manifesta-se sob a forma de enumeração de ações temporalmente subseqüentes; e

f) dialogal, em que os actantes se interagem em um processo de conversação. Suas fases

podem ser: abertura (inicia-se um contato entre os interactantes), transacional (o conteúdo

temático se constrói através da interação verbal) e encerramento (fim da interação).

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Quanto aos os mecanismos de textualização, notamos a partir de Bronckart

(1999), que são constituídos pelos mecanismos de conexão, coesão nominal e coesão verbal.

No que se refere aos mecanismos de conexão, verificamos que eles contribuem

para marcar as articulações da progressão temática através dos organizadores textuais que se

adéquam ao plano geral do texto. Os mecanismos de coesão nominal introduzem temas e/ou

personagens novos, garantindo sua retomada ou substituição na propagação e andamento do

texto; são realizados a partir de unidades e estruturas anafóricas (pronomes pessoais, relativos,

demonstrativos e possessivos, e também alguns sintagmas nominais). Já os mecanismos de

coesão verbal mantêm a organização temporal e/ou hierárquica dos processos verbalizados no

texto (estados, acontecimentos ou ações); manifestam-se através dos tempos verbais, como

também com outras unidades de caráter temporal (advérbios); relacionam-se com os tipos de

discurso ocorrentes.

Em se tratando dos mecanismos enunciativos, vemos que eles são constituídos

por posicionamentos enunciativos e vozes – que se referem, respectivamente, às instâncias

que assumem o que é enunciado no texto e as vozes que ali se expressam, sejam elas do autor

principal, das personagens ou vozes sociais (instituições) – e pelas modalizações, que nos

revelam os julgamentos, opiniões, avaliações e sentimentos relacionados ao conteúdo

temático

As modalizações, segundo Bronckart (1999) podem ser lógicas (julgamento

com valor de verdades – certas, possíveis, prováveis, improváveis); deônticas (julgamento

com valores sociais – fatos permitidos, proibidos, necessários); apreciativas (julgamento

subjetivo – fatos bons, maus, estranhos); e pragmáticas (julgamento da capacidade de ação,

intenção e razão, sendo a personagem, responsável por tal ato).

Carmelino (2002), que se baseia nos pressupostos de Dik (1989), subdivide os

tipos de modalidade em: modalidade epistêmica, que parte da certeza até os limites da

possibilidade (certo – provável – possível – improvável – impossível – não certeza); e

modalidade deôntica, que se situa no domínio do dever, variando da obrigação à permissão, e

se liga à expressão da volição e ordem (obrigatório – aceitável – permissível – inaceitável –

proibido + ordem e volição).

Essa autora ainda ressalta que os valores que compõem a escala da modalidade

epistêmica, acrescenta-se a não-certeza, valor que marca o extremo da certeza, e é expresso

por modalizadores que indicam opinião, crença e aparência.

Em suma, podemos dizer que, para Carmelino (2006), a manifestação da

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linguagem se dá por meio de um gênero, quando um agente-produtor enuncia um conteúdo

temático de um determinado contexto (físico e sócio-subjetivo), organizando sua produção.

4.3 CARACTERIZAÇÃO DO GÊNERO LETRA DE MÚSICA

Para caracterizar o gênero letra de música, baseamo-nos na metodologia de

análise proposta por Bronckart (1999) e Carmelino (2006), abordada anteriormente e, para tal

caracterização, tomamos como exemplo, algumas letras de músicas de Raul Seixas.

Comecemos nossa análise conceituando, de um modo geral, a palavra música

que vem a ser, segundo Houaiss (2001), “a arte de se exprimir por meio de sons, seguindo

regras variáveis conforme a época, a civilização, etc. (a música é uma das manifestações mais

autênticas de uma cultura)”. As letras de músicas se aproximam muito das poesias, pois

manifestam sentimentos, emoções, pensamentos e podem ser lidos sem a melodia.

De acordo com Cícero (2007), que escreve poemas e letras de canções, a

expressão “letra de canção” já indica de que modo essa questão deve ser entendida, pois a

palavra “letra” remete à escrita. A verdadeira questão parece ser se uma letra de canção é

necessariamente um bom poema ou se uma letra de canção é possivelmente um bom poema.

Segundo ele, nenhum poema é necessariamente um bom poema; nenhum texto é

necessariamente um bom poema; logo, nenhuma letra é necessariamente um bom poema,

pois, conforme Tatit (1996), em seu livro O Cancionista3, no mundo dos cancionistas não

importa tanto o que é dito, mas a maneira de o dizer, e a maneira é essencialmente melódica, e

é por isso que podemos perfeitamente apreciar cantores a cantar canções em línguas que não

entendemos. Assim, uma boa letra de canção não é necessariamente um bom poema. Uma

letra de canção é possivelmente um bom poema. Os poemas líricos da Grécia antiga e dos

provençais eram letras de canções. Perderam-se as músicas que os acompanhavam, de modo

que só os conhecemos na forma escrita. Para o referido autor, nada impede que um bom

poema, quando musicado, se torne uma boa letra de canção.

Cícero (2007) conceitua poema como um objeto autotélico, isto é, ele tem o

seu fim em si próprio. O poema se realiza quando é lido tanto em voz baixa, interna ou aural.

3 TATIT, L. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 1996.

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Já uma letra de canção é heterotélica, isto é, ela não tem o seu fim em si própria. Se uma letra

de canção sevir para fazer uma boa canção, ela é boa, ainda que seja ilegível. E a letra pode

ser ilegível porque, para se estruturar, para adquirir determinado colorido, para ter os sons ou

as palavras certas enfatizadas, ela depende da melodia, da harmonia, do ritmo, do tom da

música à qual se encontra associada.

Segundo o referido autor, a letra se realiza na canção, mas a canção só se

realiza plenamente quando interpretada, isto é, quando cantada e escutada.

Enfim, podemos dizer que as letras buscam, muitas vezes, seduzir, despertar

sentimentos, emoções, paixões. É a arte de se fazer apreciar, tal como as poesias, podendo

também ampliar o nosso universo cultural. Além disso, a música é um gênero sincrético, pois

aglutina fala e contexto; letra e melodia.

O estilo da grande maioria das músicas do cantor contemplado em nosso

trabalho, Raul Seixas, é o rock-and-roll (rock-‘n’-roll), “música popular usualmente executada

em instrumentos amplificados eletronicamente e caracterizada por um ritmo muito marcado e

persistente, pela repetição de frases simples e freqüentemente pela presença de elementos dos

gêneros country, folk e blues.” (Dicionário HOUAISS, 2001).

Após essas considerações gerais, passemos à caracterização, segundo os

pressupostos anteriormente expostos, do gênero letra de música, mais precisamente a partir

das letras de Raul Seixas, para verificarmos não só as suas peculiaridades, mas também se

existe uma padronização em sua configuração.

No que diz respeito ao conteúdo temático, verificamos que nas letras de

músicas de Raul os temas mais explorados são: religião, esoterismo e política. Como

podemos observar nos versos das músicas que seguem.

Religião:

Conversa pra boi dormir (1980)

“João Batista batizou Jesus

De água e sal e o sinal da cruz

Com a profecia que já estava esquecida

Para que o seu povo encontrasse a luz”

D.D.I. – Discagem Direta Interestelar (1983)

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“Alô aqui é do céu

Quem está na linha é Deus

Estou vendo tudo esquisito

O que é que há com vocês?”

As profecias (1979)

“Sem fogo, sem sangue, sem ais

O mundo dos nossos ancestrais

Acabam sem guerra, os mortais

Sem glórias de mártir ferido

Sem o estrondo, mas com gemido

Está em qualquer profecia

Que o mundo se acaba um dia

Um dia”

S.O.S. (1974)

“Andei rezando para totens e Jesus

Jamais olhei pro céu

Meu disco voador além”

O trem das sete (1974)

“Vê, é o sinal, é o sinal das trombetas, dos anjos e dos guardiões

Ó, lá vem Deus, deslizando no céu entre brumas de mil megatons”

Um messias indeciso (1984)

“E acreditando em si mesmo

Tornou-se o mais sábio entre os seus

E o povo pedindo milagres

Chamava este homem de Deus”

Esoterismo:

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Sociedade Alternativa (1974)

"-O número 666

Chama-se Aleister Crowley"

"-A Lei de Thelema

Viva! Viva!”

Gita (1974)

“Eu sou o seu sacrifício

A placa de contramão

O sangue no olhar do vampiro

E as juras de maldição”

Novo Aeon (1975)

“Ao som da flauta

Da mãe serpente

No para-inferno

De Adão na gente

Dança o bebê

Uma dança bem diferente”

Caminhos (1975)

“O caminho do bruxo é a nuvem,

O da nuvem é o espaço,

O da luz é o túnel,

O caminho da fera é o laço”

Canceriano sem lar (1987)

“Eu sou um canceriano sem lar

Eu tomo café pra mim não chorar

Pergunto à nuvem preta quando o sol vai brilhar”

Política (que critica a repressão e as regras impostas pelo governo ditatorial):

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Rockixe (1973)

“Eu tinha medo do seu medo

Do que eu faço

Medo de cair no laço

Que você preparou

Eu tinha medo de ter que dormir mais cedo

Numa cama que eu não gosto só porque você mandou...”

Metrô linha 743 (1984)

“O homem apressado me deixou e saiu voando

Aí eu me encostei num poste e fiquei fumando

Três outros chegaram com pistolas na mão

Um gritou: Mão na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos”

Paranóia (1975)

“Se eu vejo um papel qualquer no chão

Tremo, corro e apanho pra esconder

Medo de ter sido uma anotação que eu fiz

Que não se possa ler

E eu gosto de escrever, mas...

Mas eu sinto medo!”

Convém esclarecer que, por causa da diversidade de temas abordados por Raul

Seixas em suas canções, o conteúdo temático a ser explorado nas letras de músicas escolhidas

como corpus deste trabalho é “o drible à censura”.

Esse tema pode ser observado a partir dos exemplos de versos das letras de

músicas Rockixe, Metrô linha 743 e Paranóia, mencionadas acima.

Em relação aos versos da letra Rockixe, vemos que a expressão “dormir mais

cedo”, sugere o toque de recolher da época ditatorial em que os militares proibiam os

cidadãos de permanecerem fora de suas casas após as vinte e duas horas. No entanto, apesar

de explícita a referida expressão, só será possível, ao leitor, reconhecer o conteúdo temático

“o drible à censura”, se ele tiver estocado em sua memória conhecimentos sobre a questão

histórica, social e cultural da época em que a música foi lançada.

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Nos versos da letra Paranóia, o compositor revela o medo de escrever, ou seja,

o medo de se manifestar, de protestar contra o sistema de governo ditatorial, vistos a partir do

emprego explícito dos verbos “tremo”, “corro”, “esconder” e do substantivo “medo”.

Em Metrô Linha 743, notamos a presença de uma autoridade (policial) dando

ordem a um cidadão para que permanecesse no local em que se encontrava e explicasse o que

estava pensando, pois se o pensamento fosse algo que conspirasse contra o governo, ele

poderia sofrer graves punições. Percebemos que Seixas, de maneira ora implícita ora

explícita, revela os crimes cometidos pelas autoridades governamentais e suas perseguições

aos intelectuais da época tais como: professores, artistas, músicos, repórteres, dentre outros,

considerados uma ameaça ao governo ditatorial, pela anunciação das reformas e denúncia dos

crimes.

Tratemos agora do contexto de produção do gênero em análise, que segundo

Bronckart (1999) diz respeito ao aspecto físico e sócio-subjetivo da ação de linguagem.

Dos elementos que compõem o contexto físico, mencionado por Bronckart, é

possível, em relação ao corpus analisado, identificar a pessoa que produz fisicamente as

letras, no caso Raul Seixas, e a pessoa que recebe concretamente as letras, que são os seus

ouvintes. O tempo físico diz respeito à época em que tais músicas foram compostas, ou seja,

no período de 1973 a 1984 e o lugar físico em que as letras foram produzidas por Raul é o

Brasil.

Quanto ao contexto sócio-subjetivo, observamos que o lugar social de

divulgação das letras é a mídia (a qual compreende as emissoras de rádio, televisão e shows) e

o tempo social é a época da ditadura militar. A posição social do emissor é a de compositor

(eu lírico, ídolo) e o papel social dos receptores é o de ouvintes-fãs e autoridades4. Quanto ao

objetivo das composições, podemos dizer que as letras de músicas que versam sobre a censura

procuravam revelar uma visão política e crítica contra a forma de governo opressora e

ditadora da época.

Em relação ao plano geral do gênero, que se resume na infra-estrutura geral das

letras, nos tipos de discurso e tipos de seqüências presentes, verificamos que as letras de

músicas se assemelham ao gênero poesia, uma vez que apresentam versos e estrofes. Como já

dissemos, de acordo com Cícero (2007), que escreve poemas e letras de canções, a expressão

“letra de canção” já indica de que modo essa questão deve ser entendida, pois a palavra

4 As autoridades se referem aos policiais e à imprensa

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“letra” remete à escrita. A verdadeira questão parece ser se uma letra de canção é

necessariamente um bom poema ou se uma letra de canção é possivelmente um bom poema.

No caso das letras de músicas de Raul Seixas em análise, consideramo-nas

bom poema. Essa consideração pode ser confirmada a partir dos versos de uma das letras de

música de nossa análise, “Novo Aeon” (1975), a saber: “O vento voa e varre as velhas ruas/

Capim silvestre racha as pedras nuas”. Além da metáfora, vemos que os versos apresentam

aliteração e paradoxo, figuras que muitas vezes caracterizam poema. A partir dessas

considerações observamos, através desse e de outros exemplos das letras de músicas que

serão analisadas em nosso trabalho, que elas não foram feitas somente para serem cantadas,

mas interpretadas.

Das letras analisadas, a maioria possui elementos constitutivos comuns, como

refrão e rima, conforme podemos notar nos versos que seguem:

Refrão:

Paranóia

“Eu estava com Deus!

Eu estava com Deus!

Eu estava com Deus!”

Rima:

Conserve o seu medo

“Conserve o seu medo

Mantenha ele aceso

Se você não teme

Se você não ama

Vai acabar cedo”

Em se tratando dos tipos de discurso, observamos que nas letras analisadas o

mais freqüente é o discurso interativo (já que aparece em cinco das letras), no entanto também

aparecem o teórico e o relato interativo, conforme veremos a seguir.

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O tipo de discurso teórico pode ser visto na letra de música intitulada Lei, uma

vez que notamos um distanciamento da situação de produção, já que há o uso de:

* tempo no presente do indicativo com valor genérico: “Todo homem tem direito de pensar o

que quiser”;

* de frases declarativas: “Todo homem tem direito de viver como quiser”;

* de modalizadores lógicos, como o modo indicativo, que indica certeza: “Todo homem tem

direito”.

No que diz respeito ao relato interativo, tomemos como exemplo a música

Metrô Linha 743, na qual observamos a presença de:

* unidades que se referem ao caráter disjunto-implicado, como a presença da 1ª e 2ª pessoa do

singular e o tempo verbal no pretérito perfeito do indicativo: “Eu morri e nem sei mesmo

qual foi aquele mês”/ “Eu quero é saber o que você estava pensando”;

* verbos no pretérito imperfeito do indicativo: “Ele sabia que tava sendo vigiado”;

* frases declarativas: “Ele ia andando pela rua meio apressado”.

O tipo mais freqüente, conforme mencionamos, é o discurso interativo, já que é

o tipo que prevalece nas músicas Novo Aeon, Sociedade Alternativa, Rockixe, O Carimbador

Maluco e Conserve seu Medo. Esse tipo de discurso pode ser identificado nessas letras a partir

da presença de:

* verbos no presente do indicativo: “Um larga a fábrica, outro sai do lar” (Novo Aeon);

“Todo homem, toda mulher/ É uma estrela” (Sociedade Alternativa);

* verbos no pretérito perfeito do indicativo: “Aprendi a ficar quieto e começar tudo de novo”

(Rockixe)

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* dêiticos temporais: “Agora, o Plunct, Plact, Zum/ Pode partir sem problema algum” (O

Carimbador Maluco); “Mas já pro seu foguete viajar pelo universo” (O Carimbador

Maluco); “O sol da noite agora está nascendo” (Novo Aeon); “Já não há mais culpado, nem

inocente” (Novo Aeon);

* frases não declarativas: “Vê se me entende, olha o meu sapato novo” (Rockixe); “Parem,

esperem aí” (O Carimbador Maluco); “Esteja atento” (Conserve seu Medo).

Quanto às seqüências textuais, verificamos a presença de várias delas (dialogal,

descritiva, injuntiva, narrativa) nas músicas em exame, entretanto as mais comuns são a

seqüência injuntiva e a seqüência narrativa.

A seqüência dialogal, em que os actantes estão efetivamente engajados em uma

conversação e há troca de turnos, pode ser observada em:

“Um gritou: Mão na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos/ Eu

disse: Claro, pois não, mas o que é que eu fiz?” (Metrô Linha 743).

Quanto à seqüência descritiva, observamos a presença de elementos descritos

assimilados a outros pela metaforização nos seguintes versos:

“Eu sou a mosca/ Que pousou em sua sopa” (Mosca na Sopa);

“Eu sou o anjo do inferno que chegou pra lhe buscar” (Rockixe).

A seqüência injuntiva que faz com que o destinatário aja de certo modo ou em certa

direção, pode ser vista nos versos a seguir:

“Conserve o seu medo/ Mantenha ele aceso” (...)

“Esteja atento/Ao rumo da História/Mantenha em segredo/Mas mantenha viva/Sua

paranóia” (...)

“E ande pra frente/Olhando pro lado/Se entregue a quem ama” (Conserve o seu medo);

“Então vá/ Faz o que tu queres/ Pois é tudo da lei” (Sociedade Alternativa);

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No que diz respeito à seqüência narrativa, observamos que ela é sustentada por

uma intriga e mobiliza personagens em acontecimento organizado no eixo sucessivo:

“Ele ia andando pela rua meio apressado

Ele sabia que estava sendo vigiado” (Metrô Linha 743);

“Atenção, eu sou a mosca

A grande mosca

A mosca que perturba o seu sono” (Mosca na Sopa);

“O sol da noite agora está nascendo

Alguma coisa está acontecendo” (Novo Aeon);

“Se eu vejo um papel qualquer no chão

Tremo, corro e apanho pra esconder” (Paranóia).

Abordemos, agora, os mecanismos de textualização, ou seja, vejamos como as

letras são construídas em termos de conexão, coesão nominal e coesão verbal.

Com relação aos elementos de conexão, é freqüente o emprego das conjunções

“mas” e “se” nas letras de músicas de Seixas:

“Se você não teme

Se você não ama

Vai acabar cedo” (Conserve o seu medo)

“Mantenha em segredo

Mas mantenha viva

Sua paranóia” (Conserve o seu medo)

“Mas se eu quero e você quer”

Tomar banho de chapéu” (Sociedade Alternativa)

“Mas o negócio aqui tá muito bandeira

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Dá bandeira demais meu Deus” (Metrô Linha 743)

“E eu gosto de escrever, mas...

Mas eu sinto medo!

Eu sinto medo!” (Paranóia)

“Mas eu não via Deus

Achava assombração, mas...

Mas eu tinha medo!

Eu tinha medo!” (Paranóia)

“Você é forte, faz o que deseja e quer

Mas se assusta com o que eu faço, isso eu já posso ver” (Rockixe)

“Tem que ser selado, registrado, carimbado

Avaliado, rotulado se quiser voar!

Se quiser voar...” (Carimbador Maluco)

“Pra Lua: a taxa é alta

Pro Sol: identidade,

Mas já pro seu foguete viajar pelo universo

É preciso o meu carimbo dando o sim,

Sim, sim, sim.” (Carimbador Maluco)

“Mas eu sou a mosca

Que pousou em sua sopa

Eu sou a mosca

Que pintou prá lhe abusar...” (Mosca na Sopa).

Como podemos verificar, a maioria das conjunções “mas” empregadas nas

letras de música em análise funciona como advertência, ou seja, o cantor busca alertar os

interlocutores a agirem com cautela perante os perigos e punições que poderiam sofrer pelo

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governo opressor, pois na época em questão, o indivíduo não tinha liberdade de expressão e

deveria permanecer em estado de alerta como podemos observar em “E eu gosto de escrever,

mas.../Mas eu sinto medo!/ Eu sinto medo!” (Paranóia). O ato de escrever era considerado

suspeito na época em questão, pois poderia ser algo que conspirasse contra o governo.

O uso das conjunções “se” indica bem claramente a condição a que o

interlocutor estava submetido: ele só poderia tomar determinadas atitudes levando-se em

conta as condições impostas pelo governo opressor, pois caso isso não fosse obedecido, ele

seria punido. É o que vemos em “Tem que ser selado, registrado, carimbado/Avaliado,

rotulado se quiser voar!/Se quiser voar...” (Carimbador Maluco). Nesses versos, podemos

notar que na referida época, o governo ditatorial impunha suas regras e o cidadão só poderia

transitar pelo país mediante as condições impostas por tal governo, ou seja, não era permitido

transitar pelo país sem a sua autorização.

Quanto à coesão nominal, por predominiar o tipo de discurso interativo nas

letras em estudo, é freqüente o uso dos pronomes “eu”, “tu” e “vocês”, e de pronomes

possessivos os quais podem ser vistos em:

“Eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mês” (Metrô Linha 743)

“Eu sou a mosca/ Que pousou em sua sopa” (Mosca na Sopa)

“Mas ora, vejam só, já estou gostando de vocês” (Carimbador Maluco)

“Cuidado brother, cuidado sábio senhor/ É um conselho sério pra vocês” (Metrô Linha 743)

“Conserve o seu medo/ Mantenha ele aceso” (Conserve o seu medo)

“Mantenha em segredo/ Mas mantenha viva/ Sua paranóia” (Conserve o seu medo)

“Olha o meu charme, minha túnica, meu terno/ Eu sou o anjo do inferno que chegou pra lhe

buscar” (Rockixe)

“Eu sou a mosca/ Que perturba o seu sono/ Eu sou a mosca/ No seu quarto a zumbizar”

(Mosca na Sopa)

“Minha cabeça caída, solta no chão/ Eu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vez”

(Metrô Linha 743)

“Meu coração não diz e eu.../ Eu sinto medo” (Paranóia)

“Essa é a nossa lei/ E a alegria do mundo” (Sociedade Alternativa)

“Querer o meu/ Não é roubar o seu/ Pois o que eu quero/ É só função de eu ” (Novo Aeon).

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A presença desses elementos pronominais pressupõe uma interação entre o

locutor e seus interlocutores.

Em se tratando de coesão verbal, o que é marcante nas letras é o uso dos

tempos verbais no presente e pretérito perfeito do indicativo, como vemos em:

“Todo homem tem direito de amar a quem quiser” (A Lei);

“Eu sou a mosca/ Que pintou pra lhe abusar” (Mosca na Sopa);

“O vento voa e varre as velhas ruas” (Novo Aeon)

“Um gritou: Mão na cabeça malandro” (Metrô Linha 743);

“Eu sou a mosca/ Que pousou em sua sopa” (Mosca na Sopa);

“Minha mãe me disse há tempo atrás” (Paranóia).

Notamos também, a freqüência dos advérbios de tempo “agora”, “já” e “aí”,

como em:

“O sol da noite agora está nascendo

Alguma coisa está acontecendo” (Novo Aeon);

“Já não há mais culpado, nem inocente

Cada pessoa ou coisa é diferente” (Novo Aeon);

“Já que assim, baseado em que

Você pune quem não é você?” (Novo Aeon);

“O homem apressado me deixou e saiu voando

Aí eu me encostei num poste e fiquei fumando” (Metrô Linha 743);

“Eu avalio o preço me baseando no nível mental

Que você anda por aí usando

E aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custando” (Metrô Linha 743);

“Mas já pro seu foguete viajar pelo universo

É preciso o meu carimbo dando sim...sim...sim...” (Carimbador Maluco).

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“Mas já que eu não posso, boa viagem

E até outra vez” (Carimbador Maluco).

Passemos à análise dos mecanismos enunciativos presentes nas letras de

músicas em análise, isto é, ao posicionamento das vozes e às modalizações.

É comum notarmos a presença das vozes:

* do eu-lírico:

“Eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mês” (Metrô Linha 743);

“Eu sou a mosca/ Que pousou em sua sopa” (Mosca na Sopa);

“Querer o meu não é roubar o seu” (Novo Aeon);

“Eu sinto medo!” (Paranóia);

“O que eu quero, eu vou conseguir” (Rockixe);

* dos interlocutores (público ouvinte-fãs):

“Faz o que tu queres” (A Lei);

“Cuidado brother, cuidado sábio senhor/ É um conselho sério a vocês” (Metrô Linha 743);

“Se eu quero e você quer” (Sociedade Alternativa).

Além disso, observamos as vozes sociais das autoridades governamentais que

censuravam a imprensa: “Alguma coisa está acontecendo/ Não dá no rádio nem está/ Nas

bancas de jornais!” (Novo Aeon), como também proibiam o cidadão de transitar pelos países

sem autorização: “Plunct, Plact, Zum5/ Não vai a lugar nenhum/ Tem que ser selado,

registrado, carimbado/ Avaliado e rotulado se quiser voar!” (Carimbador Maluco); e a voz

dos policiais: “Três outros chegaram com pistolas na mão/ Um gritou: Mão na cabeça

malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos” (Metrô Linha 743).

A partir desses dados, podemos notar que são predominantes, nas músicas de

Raul Seixas, as vozes: do cantor, do público (ouvintes-fãs) e as vozes sociais (mídia, censura,

policiais e governo). Isso pode sugerir que a voz do locutor se direciona aos interlocutores

que, tanto podem ser indivíduos comuns (fãs e público ouvinte), quanto às autoridades

(policiais e governantes), em uma tentativa de alertar o cidadão para o perigo próximo e para

5 Avião.

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chamar a atenção quanto à necessidade de mudanças no sistema de governo em que todos

devem ter o direito de expressar-se livremente.

No que tange às modalizações, percebemos que são mais comuns as lógicas e

as deônticas. Na modalização lógica, há o julgamento do valor de verdade em que os fatos são

colocados como prováveis de acontecer. Dos valores expressos por essa modalização variam,

nas músicas em análise:

* a certeza:

“O sol da noite agora está nascendo/ Alguma coisa está acontecendo” (Novo Aeon);

“O que eu quero, eu vou conseguir” (Rockixe);

* a incerteza:

“Sinto a culpa que eu não sei de que” (Paranóia).

Na modalização deôntica, notamos a avaliação do que é enunciado à luz dos

valores sociais em que os fatos são permitidos, conforme vemos nos versos da música

Carimbador Maluco: “Agora, o Plunct, Plact, Zum/ Pode partir sem problema algum”;

* proibidos: “Plunct, Plact, Zum/ Não vai a lugar nenhum”;

* necessários: “Mas já pro seu foguete viajar pelo universo/ É preciso o meu carimbo dando,

sim, sim, sim”.

Convém ressaltar ainda que, nessa modalização, há a presença de

modalizadores que revelam a volição:

“Faz o que tu queres/ Pois é tudo da lei” (Sociedade Alternativa);

“Eu quero é saber o que você estava pensando” (Metrô Linha 743);

“O que eu quero, eu vou conseguir” (Rockixe).

As modalizações presentes nas músicas em análise ajudam a revelar o medo, a

incerteza e a insegurança do cidadão com relação às atitudes do governo ditatorial que

reprimia e punia todos os que contrariassem suas regras. Notamos também a manifestação do

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desejo do cidadão de se conseguir reverter os fatos, ou seja, driblar a censura e repressões, na

certeza de que a almejada liberdade será conquistada.

Em geral, após a análise das letras de músicas de Raul Seixas, verificamos que

nesse gênero, em termos de infra-estrutura, há o predomínio do tipo de discurso interativo –

por haver um diálogo entre locutor e interlocutores e pela freqüência do tempo presente do

indicativo –, e do tipo de seqüência narrativa, uma vez que, na maioria das letras, o eu lírico

nos conta uma história que se sustenta por uma intriga e mobiliza personagens em

acontecimento organizado.

Quanto aos mecanismos de textualização, que levam em conta a conexão, a

coesão verbal e a coesão nominal, as letras são marcadas pela presença das conjunções “se” e

“mas”, pelo tempo presente do indicativo e pelos pronomes pessoais “eu” e “tu”. O emprego

das conjunções “se” e “mas” nos leva a pressupor que o cantor “eu” interage com o

interlocutor “tu”, e busca alertá-lo quanto aos perigos que o governo ditatorial representava

para a sociedade, como também adverti-lo para que permaneça sempre atento e cauteloso, sob

risco de sofrer punições.

No que diz respeito aos mecanismos enunciativos, prevalecem as vozes do eu-

lírico, do público (ouvintes-fãs) e as vozes sociais (mídia, censura, policiais e governo). Em

geral, verifica-se um diálogo entre o cantor e o público, cuja função é alertar o cidadão sobre a

necessidade de mudança para que haja o fim da censura imposta pelas autoridades.

Em relação às modalizações, predominam as lógicas; por revelarem valores de

certeza e incerteza; e as deônticas, por revelarem fatos permitidos, proibidos, necessários e

desejados.

A seguir, apresentaremos um capítulo que trata especificamente da análise das

metáforas e expressões metafóricas presentes nas letras de músicas de Raul Seixas.

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5 UMA ANÁLISE DAS METÁFORAS E DA PAIXÃO DO MEDO NAS LETRAS DE

MÚSICAS DE RAUL SEIXAS

5.1 AS METÁFORAS USADAS POR RAUL SEIXAS PARA DRIBLAR A CENSURA

A análise das letras de músicas selecionadas contempla o conceito de metáfora

e expressões metafóricas como um recurso argumentativo usado pelo compositor, para expor

seus pensamentos, idéias e protestar, de maneira implícita, contra a censura e as atitudes

impostas pelo sistema ditatorial. Para tais conceitos de metáfora e expressões metafóricas,

tomamos como base os conceitos de Reboul (2004) e Tringali (1988).

Segundo Reboul (2004), a metáfora designa uma coisa com o nome de outra

que tenha com ela uma relação de semelhança. Vejamos como essa figura é freqüente nas

letras em questão:

1. “Metrô Linha 743”

“Disse: O prato mais caro do melhor banquete é

O que se come cabeça de gente

Que pensa e os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam

Porque quem pensa, pensa melhor parado”

Nesses versos, “cabeça de gente” se identifica com os intelectuais, “banquete”

com o governo militar e “canibais de cabeça” com os militares que perseguiam, reprimiam e

censuravam os intelectuais da época ditatorial. Nesse sentido, notamos que a metáfora foi

empregada como um recurso argumentativo para criticar e denunciar os crimes cometidos por

tais autoridades.

“Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinha

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Eu era agora um cérebro, um cérebro vivo a vinagrete

Meu cérebro logo pensou: que seja, mas nunca fui tiete”

Nesse caso, o “cérebro” do cidadão se assemelha a uma comida que está sendo

servida a vinagrete. Essa construção alude ao cidadão que foi pego pelas autoridades sendo

exposto e obrigado a confessar possíveis informações que possam comprometer o sistema de

governo. Ao mencionar um tipo de tortura adotada pelas autoridades ditatoriais (que

obrigavam o cidadão a delatar todas as informações que poderiam prejudicar e desestruturar a

forma de governo), o eu lírico busca despertar o sentimento de revolta à sociedade, levando-a

a agir contra atitudes do governo. Podemos notar também essas considerações nos versos em

destaque:

“Fui posto à mesa com mais dois

E eram três pratos raros, e foi o maître que pôs”

Por uma relação de semelhança, a expressão “três pratos raros”, que representa

pratos não muito comuns de se encontrar, é designada como três cidadãos intelectuais,

conscientes do que era o Estado Ditatorial, difíceis de serem encontrados, que viviam se

escondendo das autoridades ditatoriais por serem perseguidos para que prestassem

depoimentos sob suspeita de estarem envolvidos em atitudes contra o sistema governamental.

Esses intelectuais, da referida época, eram considerados uma ameaça ao governo por

denunciar os crimes e desestruturar as regras impostas pelo governo opressor.

2. Mosca na Sopa

“Eu sou a mosca

Que pousou em sua sopa

Eu sou a mosca

Que pintou pra lhe abusar...

Eu sou a mosca

Que perturba o seu sono

Eu sou a mosca

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No seu quarto a zumbizar...

E não adianta

Vir me detetizar

Pois nem o DDT

Pode assim me exterminar

Porque você mata uma

E vem outra em meu lugar...”

Nos versos acima, o termo “a mosca” que representa um inseto perturbador,

por uma relação de semelhança foi empregado para designar o eu-lírico, visto que, como a

mosca, ele também infernizava e perturbava as autoridades (policiais, delegados,

investigadores) através da denúncia dos crimes, da anunciação das reformas, da sua

irreverência, coragem e ousadia. A sigla “DDT” 6 é uma potente marca de pesticida usada

para eliminar, exterminar insetos e se identifica com as siglas: DOI-CODI (Destacamento de

Operações e Informações e ao Centro de Operações de Defesa Interna) que era um órgão que

atuava como centro de investigação e repressão do governo militar. A sua função era eliminar

todos os intelectuais que se manifestassem contra as normas governamentais. Muitos

professores, políticos, músicos, artistas e escritores eram investigados, presos, torturados ou

exilados do país. A metáfora utilizada nesses versos possui valor argumentativo, pois sugere a

tentativa de persuadir o cidadão, através de sua consciência política, para que ele se sinta

forte, reaja e lute contra a censura imposta e contra as repressões governamentais. Convém

ressaltar que além dessas metáforas fazerem alusão à Ditadura Militar, podem se referir a uma

crítica ao jogo da mídia que promovia a MPB e censurava o que não lhe fosse viável.

3. O Novo Aeon

“Sociedade Alternativa

Sociedade Novo Aeon

É um sapato em cada pé

É direito de ser ateu

Ou de ter fé”

6 DDT (Dicloro-Difenil-Tricloroetano) potente veneno muito usado na II Guerra Mundial para proteger soldados contra insetos. A partir daí tornou-se um popular pesticida, tanto para combater doenças transmitidas por insetos, quanto para ajudar fazendeiros a controlar pestes agrícolas (www.ambientebrasil.com.br).

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A “Sociedade Alternativa” ou “Sociedade Novo Aeon”, oposta às regras do

governo ditatorial, pois representava uma sociedade anárquica, uma inversão de valores, sem

regras e imposições, criada pelo cantor, por uma relação de semelhança é designada como um

sapato em cada pé, ou seja, ao conforto supostamente de se sentir livre e não mais pressionado

e reprimido pela censura. O valor argumentativo desses versos está no fato de o eu-lírico

tentar motivar e convencer a sociedade, a nova geração, de que ela possuía forças suficientes

para lutar e combater o sistema de governo opressor, bem como fazer um apelo à sociedade

para que siga os preceitos da Sociedade Alternativa.

4. Rockixe

“Olha o meu charme, minha túnica, meu terno

Eu sou o anjo do inferno que chegou pra lhe buscar

Eu vim de longe, vim d´uma metamorfose

Numa nuvem de poeira que pintou pra lhe pegar”

O “anjo do inferno” representa o demônio e indica o próprio compositor a

infernizar os opressores através da denúncia dos crimes e anunciação das reformas. A

metáfora utilizada nesse verso possui valor argumentativo, pois busca fazer com que os

interlocutores ajam de acordo com o eu lírico, ou seja, que se movam, a partir de uma

consciência política, contra as atitudes do governo ditatorial.

5. Sociedade Alternativa

"-Faz o que tu queres

Há de ser tudo da Lei"

Viva! Viva!

Viva a Sociedade Alternativa

"-Todo homem, toda mulher

É uma estrela"

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O “homem” e a “mulher” identificam-se com uma “estrela”, astro

aparentemente fixo que tem luz e calor próprios, possivelmente por ser iluminados e capazes

de brilhar, de conquistar seu espaço na sociedade, sua própria liberdade. Essa metáfora

procura fazer com que todo cidadão reflita sobre si mesmo e sobre seu valor (ser iluminado),

incitando-o a não aceitar que fosse considerado como ser inferior, como faziam as autoridades

ditatoriais, daí seu valor argumentativo.

"- O número 666

Chama-se Aleister Crowley

Viva! Viva!

Viva! A Sociedade Alternativa”

Popularmente conhecido pelo número da besta, o “número 666” representa a

marca do diabo e, por uma relação de semelhança, esse número foi designado como Aleister

Crowley, um mago do século XX, por ter sido considerado um anti-cristão, o próprio diabo a

divulgar o esoterismo através de seus pensamentos revolucionários, que pregavam a

libertação do espírito humano em busca de sua essência. Notamos que o eu-lírico tenta

divulgar o anarquismo, a rebeldia e lutar contra a censura imposta através da exaltação do

nome Crowley e do número 666, marca do diabo, considerado forte, e fazer com que os

interlocutores lutem pela sua liberdade, pelos seus pensamentos e idéias e que revolucionem e

desestruturem os sistemas de valores e normas sociais

Consideremos, agora, a linguagem metafórica, de acordo com os pressupostos

teóricos de Tringali (1988) que, conforme já mencionamos, afirma que a metáfora passa por

um processo de transposição ou associação do sentido próprio da palavra ou expressão para o

sentido figurativo. Analisemos os versos que seguem:

1. Metrô Linha 743

“O homem apressado me deixou e saiu voando

Aí eu me encostei num poste e fiquei fumando

Três outros chegaram com pistolas na mão,

Um gritou: Mão na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos”

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No primeiro verso, em “O homem voando”, notamos que, por um processo de

transposição de sentido, foram atribuídas ao homem características de ave ou máquina, pois

voar significa, literalmente, sustentar-se ou mover-se no ar por meio de asas. Essa construção

sugere que o cidadão, sentindo-se perseguido pelas autoridades (policiais), se pôs a correr

velozmente por medo de sofrer graves punições. O referido verbo também foi usado como

expressão argumentativa para enfatizar e reforçar o quanto eram severas e cruéis as formas de

censuras aplicadas pelo sistema ditatorial ao ponto de todo cidadão não mais poder caminhar

livremente pelas vias públicas, sentindo-se tomado pelo medo e desespero. Em

“Eu disse: Claro, pois não, mas o que é que eu fiz?

Se é documento eu tenho aqui...

Outro disse: Não interessa, pouco importa, fique aí

Eu quero é saber o que você estava pensando

Eu avalio o preço me baseando no nível mental

Que você anda por aí usando

E aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custando”

o sentido literal da palavra “cabeça”, parte superior do corpo humano, é transportado para o

sentido metafórico, que se associa à uma mercadoria, como podemos notar através do

substantivo “preço” e do verbo “custando”, e sugere que ela tanto pode ser valiosa ou não,

conforme o grau intelectual do cidadão e as informações que eles poderiam revelar aos

governantes. Nesse sentido, o homem vale pelo que pensa. Esse verso busca fazer com que o

interlocutor reflita (e se convença) sobre o quanto o cidadão era menosprezado e mal tratado

pelas autoridades governamentais. Nos versos

“Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado

Meu último pedaço, antes de ser engolido ainda pensou grilado:

Quem será este desgraçado dono desta zorra toda?”

a palavra “comida”, que em sentido literal significa refeição, foi usada em um sentido

metafórico, associando-se às confissões do eu-lírico e ao senhor alinhado que representa uma

autoridade a torturá-lo com prazer, tanto quanto se degusta uma comida, possivelmente um

delegado de polícia ou investigador, a interrogá-lo, obrigando-o a revelar seus pensamentos

com a intenção de descobrir se ele estaria ou não conspirando contra a regras do governo

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opressor. Conforme mencionamos em um dos capítulos de nosso trabalho, o cantor disse ter

sido torturado pelas autoridades para que dissesse o nome dos integrantes de Sociedade

Alternativa e, provavelmente, esses versos podem se referir a esse episódio na vida do cantor.

O eu-lírico busca despertar o sentimento de revolta à sociedade, levando-a a agir contra

atitudes do governo. Em

“Cuidado brother, cuidado sábio senhor

É um conselho sério pra vocês

Eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mês

Ah! Metrô linha 743”

na expressão “Eu morri” houve transporte do sentido próprio para o figurado, por se associar

à perda da própria identidade e não à morte que, literalmente, significa falecimento, pois o

cidadão não podia expressar-se livremente, agir conforme sua vontade, por medo das censuras

e punições que poderia sofrer. O cantor busca mobilizar o cidadão para que lute contra a

maneira pela qual as autoridades ditatoriais maltratavam e humilhavam as pessoas através de

seus interrogatórios.

2. Mosca na Sopa

“Atenção, eu sou a mosca

A grande mosca

A mosca que perturba o seu sono

Eu sou a mosca no seu quarto

A zum-zum-zumbizar

Observando e abusando

Olha do outro lado agora

Eu tô sempre junto de você

Água mole em pedra dura

Tanto bate até que fura

Quem, quem é?

A mosca, meu irmão!”

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A expressão “Água mole em pedra dura/ Tanto bate até que fura” significa que,

por mais que um desejo se torne difícil ou quase impossível de se realizar, com persistência e

perseverança, ele pode se transformar em realidade. Nesse caso, o desejo é o fim da censura.

Essa expressão metafórica passa por um processo de transposição do sentido próprio da

palavra para o sentido figurativo, visto que “água mole” se associa ao cidadão oprimido,

considerado fraco, e “pedra dura” ao governo ditatorial, considerado forte. Esse verso é

persuasivo por tentar fazer com que o cidadão (“água mole”) persista e lute confiante de que

pode, um dia, derrubar tal governo (“pedra dura”) e conquistar sua liberdade de expressão.

3. Novo Aeon

“O sol da noite agora está nascendo

Alguma coisa está acontecendo

Não dá no rádio nem está

Nas bancas de jornais”

A expressão “O sol da noite”, por um processo de associação é transportada do

sentido literal ao figurado, pois “sol”, em sentido literal, significa um astro luminoso e

“noite”, significa espaço de tempo entre o crepúsculo da tarde e crepúsculo da manhã e, em

sentido metafórico, a expressão sugere a esperança de um mundo melhor, de uma nova forma

de governo que surge em meio às repressões, sofrimentos e tristezas marcadas pelo governo

ditatorial, pois a palavra “sol” é associada ao início de uma nova geração, consciente e

contestadora e a palavra “noite” se associa às punições, às angústias e sofrimentos causados

pelo governo opressor. Essa expressão metafórica tem função argumentativa por fazer com

que a sociedade perceba que uma mudança no governo vigente está acontecendo, que ele está

prestes a fracassar e que seria esse o momento de lutarem confiantes na conquista de um novo

governo, sem imposições e censuras. Isso também pode ser notado nos versos em destaque:

“O vento voa e varre as velhas ruas

Capim silvestre racha as pedras nuas

Encobre asfaltos que guardavam

Hitórias terríveis”

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Esses versos sugerem uma possível quebra do sistema ditatorial que, através do

tempo que passou, surge uma nova visão política, uma nova geração que começa a reagir

contra o governo ditatorial na tentativa de eliminá-lo, de acabar com a censura e as repressões,

propiciando a paz. Podemos notar essas considerações através das expressões metafóricas que

foram transportadas para o sentido figurativo: “O vento voa” que se associa ao “tempo que

passa rápido”; “velhas ruas” ao “antigo governo ditatorial”, “capim silvestre” a “nova

geração”; e “pedras nuas” as “repressões”. Nesse sentido, notamos que o eu-lírico percebe que

o sistema de governo ditatorial começa a fracassar e aproveita a ocasião para tentar convencer

e incentivar seus interlocutores para que se fortaleçam e reajam contra tal governo, a fim de

acabarem com a censura, repressões e injustiças.

4. Carimbador Maluco

“Plunct, Plact, Zum

Não vai a lugar nenhum!

Plunct, Plact, Zum

Não vai a lugar nenhum!

Tem que ser selado, registrado, carimbado

Avaliado, rotulado se quiser voar!

Se quiser voar...”

Nesse caso, “Plunct, Plact, Zum” é uma expressão onomatopaica por emitir um

som e, ao mesmo tempo, metafórica, pois “Plunct, Plact” passa por um processo de

transposição de sentido e é associado ao som de um carimbo usado pelas autoridades

governamentais para autorizar ou não o trânsito pelo país, e “Zum” ao som da decolagem de

um avião e ao próprio avião, notável através do emprego do verbo “voar” no verso: “Se quiser

voar”. Nessa época, era muito comum o exílio e, conforme já mencionamos, Raul Seixas foi

exilado do país por suspeitas de estar tramando algo que conspirasse contra as regras do

governo, através da Sociedade Alternativa. Isso pode ser um dos motivos que levaram o

compositor a se utilizar desses versos como um recurso argumentativo para tentar mobilizar

os interlocutores a não aceitarem a maneira como os passageiros eram censurados, visto que

só poderiam desembarcar após uma prévia avaliação das autoridades governamentais,

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concebidas através de um carimbo de autorização e que, eram tais autoridades, que decidiam

quem ficava ou se exilava do país, sob risco de estarem tramando contra o governo.

Essas considerações também podem ser notadas nos versos que seguem:

“Pra Lua: a taxa é alta

Pro Sol: identidade,

Mas já pro seu foguete viajar pelo universo

É preciso o meu carimbo dando o sim,

Sim, sim, sim.

O seu Plunct, Plact, Zum

Não vai a lugar nenhum!”

Na expressão metafórica “Pra Lua: a taxa é alta/ Pro Sol: identidade” houve a

transposição do sentido literal ao sentido figurativo, pois em sentido literal, o termo “Lua”,

representa um satélite natural de qualquer planeta e “Sol”, representa um astro luminoso. Em

sentido figurado, esses dois termos se associam a lugares comuns de se transitar, como países,

cidades, estados, dentre outros, cuja passagem era muito cara e necessário a apresentação de

documento de identidade para decolar.

5. Rockixe

“Eu tinha medo do seu medo

do que eu faço

Medo de cair no laço

que você preparou

Eu tinha medo de ter que dormir mais cedo

numa cama que eu não gosto só porque você mandou...”

A expressão metafórica “cair no laço”, que literalmente significa “cair em

armadilhas” é transportada para o sentido figurativo “ser preso”, “ser exilado” e “ser

torturado”. Essa expressão metafórica foi empregada de maneira argumentativa na tentativa

de mover os interlocutores a não aceitarem o modo como as autoridades ditatoriais

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rebaixavam os cidadãos ao ponto de serem caçados como um animal irracional, e a criticarem

e denunciarem o abuso de poder das autoridades governamentais. No versos

“Olha o meu charme, minha túnica, meu terno

Eu sou o anjo do inferno que chegou pra lhe buscar

Eu vim de longe, vim d´uma metamorfose

Numa nuvem de poeira que pintou pra lhe pegar

O que eu quero, eu vou conseguir

O que eu quero, eu vou conseguir

Pois quando eu quero todos querem

Quando eu quero todo mundo pede mais

E pede bis”

a palavra “metamorfose”, literalmente, representa uma mudança de forma física, e também

passa por um processo de transposição de sentido literal a figurado que se associa a um lugar

bem distante, “longe”. Conforme já mencionamos, Raul Seixas foi exilado nos Estados

Unidos. Nesse caso, é possível inferir que ele tenha utilizado a palavra “metamorfose” para se

referir ao sistema de governo americano, ao mundo consumista, a uma nova sociedade e que,

ao conviver com essa nova cultura, retorna ao país de origem transformado moralmente e

mais politizado. Essa metáfora tem valor argumentativo, porque o compositor busca

convencer e mobilizar os interlocutores para que sejam audaciosos e criem coragem para

enfrentar o estado ditatorial e acabar com a censura, como ele mesmo afirma, em tom

ameaçador, nas expressões “Eu sou o anjo do inferno” e “que pintou para lhe pegar”.

Retomando os conceitos de Reboul (2004) e Tringali (1988), constatamos que,

nas músicas examinadas, as metáforas e expressões metafóricas ora designam uma coisa com

o nome de outra a partir de uma relação de semelhança, ora passam por um processo de

transposição ou associação do sentido próprio da palavra ou expressão para o sentido

figurativo. Seja por uma relação de semelhança ou por uma transposição de sentidos, o

constante uso das metáforas e expressões metafóricas por Raul Seixas nos leva a entender que

o cantor se utilizava dessas expressões como estratégia de persuasão, como um recurso

argumentativo, para driblar a censura e protestar contra as injustiças do governo ditatorial.

Essas considerações vêm de encontro com as palavras de Raul Seixas: "Sou tão bom ator que

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me finjo de compositor e poeta e todo mundo acredita. Eu apenas uso a música para expressar

o que penso!”

Passemos, agora, à análise da paixão do medo nas letras de músicas

selecionadas e as que são mobilizadas por ela.

5.2 A PAIXÃO DO MEDO NAS LETRAS DE MÚSICAS DE RAUL SEIXAS

Sabemos que, segundo Aristóteles (2003, XIV), “as paixões são todos aqueles

sentimentos que, causando mudança nas pessoas, fazem diferir seus julgamentos”. Levando-

se isso em conta, notamos que nas letras de músicas de Raul Seixas, aqui analisadas, as

autoridades ditatoriais provocam não só o medo no eu-lírico, mas também outros sentimentos

mobilizados por essa paixão.

O medo consiste em certo desgosto ou preocupação resultante de um suposto

mal iminente, danoso ou penoso. No caso de nosso corpus de análise, vemos que o eu-lírico é

movido pelo sentimento de temor por causa da presença do perigo, das possíveis torturas e até

mesmo da morte, caso não aja com certa cautela e cuidado perante as imposições do governo

ditatorial. É o que observamos em várias das letras analisadas.

1. Conserve o seu medo

“Conserve o seu medo

Mantenha ele aceso

Se você não teme

Se você não ama

Vai acabar cedo”

Observamos a paixão do medo, na expressão em destaque, através do emprego

do verbo no imperativo “conserve” e do substantivo “medo”, pois por medo e conhecimento

do perigo, o eu-lírico sente-se preocupado em alertar o indivíduo para que ele mantenha

“aceso” seu medo, visto que a falta de cautela poderia fazer com que sofressem punições

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severas como torturas ou até mesmo a própria morte, conforme notamos na expressão “vai

acabar cedo”, isto é, vai ser morto.

2. Novo Aeon

“O vento voa e varre as velhas ruas

Capim silvestre racha as pedras nuas

Encobre asfaltos que guardavam

Histórias terríveis”

Observamos, na expressão em destaque, a manifestação do medo a partir do

desgosto resultante dos males causados pelas autoridades ditatoriais a ponto de esses males

ficarem registrados às lembranças, pois sabemos que a época foi marcada por torturas,

prisões, mortes e exílios. Essas considerações podem ser notadas por meio do emprego do

adjetivo “terríveis” e da expressão “Histórias terríveis” que se remetem à “lembranças

terríveis”.

3. Paranóia

“Se eu vejo um papel qualquer no chão

Tremo, corro e apanho pra esconder

Medo de ter sido uma anotação que eu fiz

Que não se possa ler

E eu gosto de escrever, mas...

Mas eu sinto medo!”

Nesses versos notamos a manifestação do medo pelo eu-lírico no momento em

que ele escreve, a partir da preocupação com um suposto mal danoso, ou seja, punições que

poderia sofrer pelas autoridades ditatoriais caso suas anotações fossem algo que conspirassem

contra o governo. Essas considerações podem ser observadas através dos versos “Medo de ter

sido uma anotação que eu fiz/Que não se possa ler”, do emprego explícito dos verbos

“tremo”, “corro”, “esconder”, do substantivo “medo”, e da conjunção “mas”, a qual indica a

contraposição da idéia de gostar de escrever e não poder por se tratar de um período de

censuras. Nos versos

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“Tinha tanto medo de sair da cama à noite pro banheiro

Medo de saber que não estava ali sozinho porque sempre...

Sempre... sempre...

Eu estava com Deus!

Eu estava com Deus!

Eu estava com Deus!

Eu tava sempre com Deus!”

observamos a manifestação do medo nas expressões em destaque por meio do emprego do

substantivo “medo”, que sugere o medo até de fatos corriqueiros como ir ao banheiro à noite,

pois o eu-lírico sentia-se perseguido pelas autoridades ditatoriais e preocupado com os

supostos males que tais autoridades poderiam lhe causar. Até mesmo a figura Deus era

sinônimo de perseguição. Convém ressaltar que, como os governantes ditatoriais perseguiam

vários cidadãos, considerados suspeitos de estarem tramando contra o governo, também

podemos notar que tais perseguições levavam o indivíduo a atitudes paranóicas, ou seja,

delírios de perseguição, daí o motivo pelo qual a música se intitula Paranóia. Também

podemos observar tais considerações nos versos que seguem:

“Minha mãe me disse há tempo atrás

Onde você for Deus vai atrás

Deus vê sempre tudo que cê faz

Mas eu não via Deus

Achava assombração, mas...

Mas eu tinha medo!

Eu tinha medo!”

Nesse caso, o substantivo “assombração” se refere às autoridades ditatoriais,

visto que, assim como a assombração, as autoridades ditatoriais também causam espanto e

medo. Nesse sentido, podemos perceber que o sentimento de medo do eu-lírico é gerado por

tais autoridades e, nem mesmo a presença de Deus era suficiente para eliminar tal medo como

podemos notar nos versos “Mas eu não via Deus/Achava assombração, mas.../Mas eu tinha

medo!/Eu tinha medo!”

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4. Rockixe

“Eu tinha medo do seu medo

do que eu faço

Medo de cair no laço que você preparou

Eu tinha medo de ter que dormir mais cedo

numa cama que eu não gosto só porque você mandou...”

A expressão “cair no laço” revela o medo de o eu-lírico ser punido, cair em

armadilhas, ser preso e exilado, caso suas atitudes e modo de agir contrariassem as normas do

governo ditatorial. A presença desse sentimento, manifestado pelas punições do governo

ditatorial no eu-lírico pode ser vista também na expressão “dormir mais cedo”, conhecida

como “o toque de recolher” da época ditatorial em que o cidadão era obrigado a permanecer

em seus aposentos antes das vinte e duas horas. Nessa parte, achamos válido ressaltar que a

expressão “do seu medo/ do que eu faço” se refere ao medo que as autoridades

governamentais também sentiam dos cidadãos críticos e politizados, tais como repórteres,

professores, artistas e músicos, dentre eles, do próprio cantor Raul Seixas, que eram tidos

como uma ameaça, um desequilíbrio ao sistema de governo ditatorial por divulgarem os

crimes e anunciarem as reformas. Isso justifica o porquê desses cidadãos serem perseguidos,

torturados e exilados por tais autoridades.

Mediante ao que foi exposto, podemos verificar que a análise das letras de

músicas de Raul Seixas se enquadra na teoria aristotélica, pois notamos que o cantor foi

mobilizado pela paixão do medo que é a preocupação e desgosto resultante de um mal danoso

ou penoso, ou seja, o medo é manifestado pelo cantor em função das preocupações e

desgostos gerados pelos males cometidos pelas autoridades ditatoriais tais como: torturas,

prisões, exílios, injustiças e repressões.

Passemos, agora, à observação de outras paixões que estão relacionadas ao

medo nas canções de Raul Seixas, pois notamos que esta paixão mobiliza uma série de outros

sentimentos no eu-lírico, como é o caso do desprezo, da confiança, da cólera e da indignação,

conforme veremos no decorrer da análise.

Comecemos pelo desprezo que, de acordo com Aristóteles (2003), desvaloriza

o que o outro tem. Desprezamos os que gozam de boa sorte quando esta não vem

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acompanhada de bens honrosos, ou seja, julgamos os que gozam de boa sorte sem serem

dignos de consideração. Quando as pessoas sentem-se superiores e mais fortes, sem de fato

sê-los, o sentimento de desprezo é manifestado. Com ele, deseja-se gerar a diferença. No que

tange às letras de músicas analisadas, vemos que o desprezo está atrelado ao medo, pois o eu-

lírico utiliza-se dessa paixão como uma espécie de mecanismo de defesa, para desprezar,

desvalorizar o poder das autoridades ditatoriais por julgar que essas autoridades não são

dignas de consideração, como podemos observar nos versos de algumas das músicas que

seguem.

1) Rockixe

“Você é forte, mas eu sou muito mais lindo

O meu cinto cintilante, a minha bota, o meu boné

Não tenho pressa, tenho muita paciência

Na esquina da falência

que eu te pego pelo pé”

O poder de reprimir que as autoridades ditatoriais tinham desperta o medo no

eu-lírico e, conseqüentemente, esse medo mobiliza a paixão do desprezo como uma espécie

de mecanismo de defesa, visto que o eu-lírico desvaloriza o poder das autoridades ditatoriais

que o utilizava de forma abusiva, não sendo dignas de consideração, conforme notamos na

expressão “Você é forte, mas eu sou muito mais lindo” em que o eu-lírico se considera “mais

lindo”, mais digno de consideração e desvaloriza o poder das autoridades ditatoriais

representadas, nesse verso, pelo emprego do adjetivo “forte”. Esse mesmo desprezo também

pode ser notado na música a seguir:

2) Sociedade Alternativa

“Se eu quero e você quer

Tomar banho de chapéu

Ou esperar Papai Noel

Ou discutir Carlos Gardel

Então vá!

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Faz o que tu queres

Pois é tudo

Da Lei! Da Lei!”

Através desses versos em destaque podemos perceber que o eu-lírico, movido

pela paixão do desprezo, incita os interlocutores para que, assim como ele, desvalorizem as

regras impostas pelo governo ditatorial, uma vez que a palavra “Lei” foi empregada como

substantivo próprio para que o indivíduo haja pela sua própria “Lei”, perceba que ela é mais

digna de consideração do que a ditada pelo governo ditatorial e, por isso, que a despreze.

Assim, notamos que o eu-lírico deseja gerar a diferença entre ele e o governo ditatorial pelo

desprezo, pela desvalorização.

Outra paixão mobilizada pelo medo nas letras de músicas de Raul Seixas é a

segurança ou confiança que, segundo Aristóteles (2003) provém de certa superioridade sobre

as coisas ou pessoas. É o afastamento do perigo, distanciamento do prejudicial, do temível e a

aproximação dos meios de salvação. Em algumas situações, o medo pode até ser visto como

um ponto positivo, pois gera a esperança de salvação e, muitas vezes, também desperta a

coragem. Quando tememos algo que, aparentemente nos é ameaçador e conseguimos

combatê-lo, criamos coragem para superar o medo. Não fosse pelo medo, não haveria motivo

de existir a coragem. A coragem provém do medo e, nesse sentido, o medo mobiliza a paixão

da confiança e acaba por se tornar um sentimento positivo, conforme veremos nos versos das

canções que seguem.

Mosca na sopa

“E não adianta

Vir me detetizar

Pois nem o DDT

Pode assim me exterminar

Porque você mata uma

E vem outra em meu lugar

Eu sou a mosca

Que pousou em sua sopa

Eu sou a mosca

Que pintou prá lhe abusar”

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As punições aplicadas pelas autoridades ditatoriais despertam o medo no eu-

lírico e, por meio desse medo, surge a coragem e a esperança de se salvar. Tais sentimentos

são mobilizados pela paixão da confiança, a qual resulta de suas experiências e

conhecimentos do que é o sistema de governo opressor, levando-o a agir, com confiança,

contra as autoridades ditatoriais. Nesse sentido, notamos um suposto afastamento do perigo

que tal governo representa. Essas considerações podem ser notadas através dos termos

“mosca” e “DDT”. A mosca sugere o próprio eu-lírico a infernizar e perturbar, tal como uma

mosca, as autoridades ditatoriais, representadas pela sigla DDT (veneno usado para

exterminar moscas), através da denúncia dos crimes e anunciação das reformas. Também

podemos notar essas observações por meio dos versos: “E não adianta/Vir me detetizar/Pois

nem o DDT/Pode assim me exterminar” em que o eu-lírico, independente de quaisquer tipos

de punições, sente-se forte, confiante, com coragem para lutar contra as imposições do

governo opressor. Vejamos essas considerações também nos versos da música que segue:

Rockixe

“Vê se me entende, olha o meu sapato novo

Minha calça colorida o meu novo way of life

Eu tô tão lindo porém bem mais perigoso

Aprendi a ficar quieto e começar tudo de novo”

“O que eu quero, eu vou conseguir

O que eu quero, eu vou conseguir

Pois quando eu quero todos querem

Quando eu quero todo mundo pede mais

E pede bis”

“Você é forte, faz o que deseja e quer

Mas se assusta com o que eu faço, isso eu já posso ver

E foi com isso justamente que eu vi

Maravilhoso, eu aprendi que eu sou mais forte que você”

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Os versos destacados nessa música revelam que o eu-lírico é mobilizado pelo

sentimento de confiança, o qual resulta de seu conhecimento quanto a um possível

desequilíbrio, falência do governo ditatorial e, portanto, de um suposto afastamento do perigo

que tal governo representava. Esses versos também sugerem que, diante do desequilíbrio

econômico e poder de luta do eu-lírico e dos demais intelectuais da época, os ditadores se

vêem assustados, o que aumenta ainda mais a sua segurança e confiança. Todas essas

considerações e a manifestação da paixão da confiança no eu-lírico podem ser observadas a

partir de várias expressões desta canção, as quais se referem ao eu-lírico: “bem mais

perigoso” que significa mais forte e seguro; “começar tudo de novo” que se refere ao poder de

luta; “O que eu quero eu vou conseguir” que diz respeito à conquista da liberdade de

expressão; “se assusta com o que eu faço” que faz alusão à denúncia dos crimes e anunciação

das reformas; “sou mais forte que você” que revela a confiança e segurança. Convém ressaltar

que os termos “sapato novo” e “calça colorida” se referem a um novo estilo de vida

promovido pelo consumismo americano, notável na expressão: “novo way of life” que, por

conseguinte, já era a anunciação das reformas, ou seja, a anunciação do mundo capitalista, do

fracasso da economia do Brasil conhecido, na época, por “Milagre Econômico” que

desestruturaria o governo ditatorial com sua possível falência. Isso pode ser confirmado pelo

fato de Raul Seixas ter convivido com a nova cultura americana, quando esteve exilado do

país, e percebido o fracasso econômico do governo ditatorial. Contudo, o medo que o eu-

lírico sentia das autoridades ditatoriais fez com que a coragem fosse despertada e esse medo

mobilizou a paixão da confiança pelas suas experiências e conhecimentos das reformas

anunciadas.

A cólera também é outra paixão mobilizada pelo medo. Retomando os

conceitos de Aristóteles (2003), vemos que a cólera é o reflexo de uma diferença entre aquele

que se entrega a ela e aquele ao qual ela se dirige. É um brado contra a diferença imposta,

“injusta” ou como tal sentida; revela ao interlocutor que a imagem que ele forma do locutor

carece de fundamento. O encolerizado deseja vingar-se e notar o desgosto, o sofrimento

causado em seu adversário, como também deseja aquilo que lhe parece possível. Há uma

diferença entre o ódio e a cólera, pois aqueles que são movidos pelo ódio querem que seu

adversário desapareça, em contraposição, o encolerizado quer notar o desgosto causado no

seu adversário. O medo, conforme mencionamos é um desgosto resultante de um suposto mal

danoso. Quando experimentamos um desgosto, é possível que nos encolerizemos e o desejo

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de vingança se manifeste. Nesse sentido, o desgosto desperta o sentimento de vingança, ou

seja, o medo mobiliza a paixão da cólera.

A partir do exposto, podemos observar que o sentimento de desgosto que as

autoridades ditatoriais provocam no eu-lírico faz com que ele se sinta encolerizado e tomado

pelo sentimento de vingança, desse modo, o medo mobiliza a paixão da cólera no eu-lírico,

conforme podemos verificar nos versos das letras de músicas que seguem:

Mosca na sopa

“Eu sou a mosca

Que pousou em sua sopa

Eu sou a mosca

Que pintou pra lhe abusar

Eu sou a mosca

Que perturba o seu sono

Eu sou a mosca

No seu quarto a zumbizar.”

A mosca é um inseto incômodo que nos atormenta em todos os lugares como

podemos notar nas expressões: “pousou em sua sopa”, “pintou pra lhe abusar”, “perturba o

seu sono”, “no seu quarto a zumbizar”. Nesse sentido, “a mosca”, que nesse caso representa o

próprio eu-lírico, busca infernizar e contrariar as autoridades ditatoriais através da denúncia

dos crimes e anunciação das reformas. Assim, o eu-lírico é movido pela paixão da cólera, ou

seja, sente-se encolerizado pelos desgostos resultantes dos males causados pelas autoridades

ditatoriais e deseja não só se vingar, mas observar o sofrimento de seu adversário (autoridades

ditatoriais). Também verificamos essas considerações nos versos abaixo:

Rockixe

“Olha o meu charme, minha túnica, meu terno

Eu sou o anjo do inferno que chegou pra lhe buscar

Eu vim de longe, vim d’uma metamorfose

Numa nuvem de poeira que pintou pra lhe pegar”

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O “anjo do inferno” se refere ao demônio, aqui representado pelo eu-lírico, que

é mobilizado pela cólera, pelo desejo de vingar-se das autoridades ditatoriais, infernizando-as

como o demônio a contrariar e a desestruturá-las. O encolerizado “eu-lírico”, além de querer

vingar-se, ao contrário do que significa a paixão do ódio (que quer que seu adversário

desapareça), quer notar o desgosto que causa a seus adversários, conforme podemos observar

pelo uso das expressões “chegou pra lhe buscar” e em “pintou pra lhe pegar”.

A paixão da indignação também é mobilizada pelo medo. Segundo Aristóteles

(2003), oposta à piedade, a indignação é a não-aceitação (moral) da desordem. É o sentimento

que se opõe à compaixão. Deve-se sentir compaixão aos que são infelizes sem o merecer e

indignação aos que são felizes sem merecer. É quando o inferior, de alguma maneira, contesta

o superior. Indignar-se é também ser contra a injustiça. Até mesmo as pessoas dignas de

maiores bens podem sentir indignação. Conforme dito anteriormente, a coragem provém do

medo e é através da coragem que o inferior contesta o superior. Já que indignar-se é ser contra

a injustiça, é contestar de alguma maneira, é a não-aceitação da desordem, nesse sentido, é

pela coragem que a indignação se manifesta e, se a coragem provém do medo,

conseqüentemente o medo mobiliza a paixão da indignação.

Nas músicas em análise, o medo gera, no eu-lírico, a paixão da indignação,

visto que ele contesta contra as injustiças cometidas pelas autoridades governamentais e se

mostra indignado por possuírem o poder sem o merecer, conforme veremos nos versos a

seguir:

Novo Aeon

“Já não há mais culpado

nem inocente

Cada pessoa ou coisa é diferente

Já que assim, baseado em que

Você pune quem não é você?”

Nos versos, a partir do enunciados destacados, observamos que o eu-lírico é

movido pela indignação, pois se dirige às autoridades ditatorias para questionar e contestar a

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maneira como abusavam do poder, por suas punições e injustiças. A indignação do eu-lírico

pode ser notada a partir do questionamento que faz às autoridades ditatoriais, através do

emprego da construção interrogativa: “baseado em que/Você pune quem não é você?”. Ainda,

nesse verso, podemos observar que o eu-lírico sente compaixão dos que são injustiçados, dos

que são punidos sem o merecer e indignação por aqueles que cometem injustiça, que abusam

do poder e punem sem motivo algum, no caso em questão, o eu-lírico se mostra indignado

com as autoridades ditatoriais por estarem no poder sem o merecer. Essas considerações

também podem ser notadas na música que segue:

Rockixe

“Você é forte, faz o que deseja e quer

Mas se assusta com o que eu faço, isso eu já posso ver

E foi com isso justamente que eu vi

Maravilhoso, eu aprendi que eu sou mais forte que você”

Na expressão em negrito, observamos que o eu-lírico também é movido pela

paixão da indignação, pela não-aceitação do abuso de poder, pela indignação aos que estão no

poder sem o merecer, no caso em questão, os opressores e controladores das forças que se

mantém livres para fazer o que desejam e quer. O eu-lírico, mesmo considerado inferior,

fraco, de certa forma, contesta sua indignação às autoridades ditatoriais, consideradas

superiores e fortes. Essas considerações podem se vistas no verso “Mas se assusta com o que

eu faço, isso eu já posso ver”, pois a expressão “eu faço” se refere às atitudes do eu-lírico, ao

que ele faz, ou seja, contesta, anuncia as reformas e denuncia os crimes cometidos pelas

autoridades ditatoriais. Nesse sentido, o medo mobiliza a paixão da indignação, pois para

contestar é preciso ter coragem e a coragem, conforme mencionamos provêm do medo.

De acordo com a análise exposta, podemos verificar que por se tratar de uma

época em que o governo vigente no país era a Ditadura Militar, período marcado por censuras,

ameaças e punições, o eu-lírico foi movido pela paixão do medo, motivo pelo qual ela se faz

predominante nas letras de músicas em análise, e que essa paixão mobiliza outras, como é o

caso do desprezo, da confiança, da cólera e da indignação, uma vez que esses sentimentos se

manifestam quando algo nos é ameaçador e temível. Portanto todos esses sentimentos se

associam de certa forma, ao medo.

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Notamos também que a coragem provém do medo, pois sentimos coragem

quando precisamos lutar contra tudo o que nos é ameaçador. Nas músicas analisadas,

observamos a manifestação da paixão do medo pelo eu-lírico que o impulsiona, despertando-

lhe a coragem para lutar contra as repressões das autoridades ditatoriais. Se não fosse o medo,

não haveria coragem. Ela só existe pelo medo que a impulsiona. A coragem está atrelada a

diversas paixões como: confiança, indignação, cólera e desprezo e, conseqüentemente, todas

essas paixões são mobilizadas pelo medo. Justamente por isso que o medo também mobilizou,

no eu-lírico, essas paixões.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a análise das letras de músicas de Raul Seixas, chegamos a algumas

conclusões interessantes.

No que diz respeito ao primeiro objetivo proposto em nosso trabalho,

caracterização do gênero “letra de música”, em se tratando da infra-estrutura geral, notamos

que é comum a seqüência textual injuntiva por fazer com que o destinatário aja de certo modo

ou em certa direção através dos argumentos utilizados pelo eu-lírico; a seqüência textual

narrativa, porque a maioria das letras retrata acontecimentos referentes à maneira como as

autoridades ditatoriais agiam; e o tipo de discurso interativo, uma vez que a maioria das

canções apresenta uma interação entre o eu-lírico e os interlocutores. Essa interação,

conforme ressaltamos em nosso trabalho pode ser vista a partir do predomínio dos pronomes

pessoais “eu”, “tu” e “você” e pela presença dos verbos no presente do indicativo, dados que

caracterizam esse tipo de discurso. Isso nos sugere que o locutor dialoga com os

interlocutores para que fiquem atentos e para que tenham muita cautela com relação às

autoridades ditatoriais, visto que poderiam sofrer punições, tais como pena de morte, tortura e

exílio, caso contrariassem as regras do governo opressor.

Essas considerações também podem ser notadas nos mecanismos de

textualização, que levam em conta a conexão, a coesão verbal e a coesão nominal, pois as

letras de músicas são marcadas pela presença das conjunções “se” e “mas”, pelos verbos no

imperativo e pelos pronomes pessoais “eu” e “tu”. O freqüente emprego das conjunções “se”

e “mas” e dos verbos no imperativo nos leva a concluir que o cantor “eu”, ao interagir com o

interlocutor “tu”, busca alertá-lo quanto aos perigos que o governo ditatorial representa para a

sociedade, advertindo-o a permanecer sempre cauteloso, já que ele corre o risco de sofrer

punições.

Quanto aos mecanismos enunciativos, prevalecem as vozes do eu-lírico, do

público (ouvintes-fãs) e as vozes sociais (mídia, policiais e governo). Em geral, verifica-se um

diálogo entre o eu-lírico e o público, cuja função é, através da audácia e irreverência desse eu-

lírico, mover o cidadão a compartilhar dos seus argumentos.

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Em relação às modalizações, predominam as lógicas, que se relacionam aos

valores de certeza e incerteza: a incerteza do cidadão quanto à sua segurança e a sua proteção,

mediante as ameaças das autoridades ditatoriais, e a certeza do cidadão de um futuro melhor,

sem repressão e punições. Além dessas, as letras apresentam também as modalizações

deônticas, que se referem aos fatos permitidos, proibidos, necessários e desejados. Ao mesmo

tempo em que percebemos as autoridades ditatoriais estipulando as regras, o que era

permitido, proibido ou necessário ao cidadão perante as leis governamentais, vemos o desejo

do cidadão de conquistar sua liberdade de expressão.

Com relação às metáforas e expressões metafóricas usadas por Raul Seixas,

segundo objetivo de nosso trabalho, constatamos que essas expressões não só consistem na

figura retórica mais usada pelo cantor em suas letras, mas também que elas foram usadas

como recurso argumentativo e estratégia de persuasão. Com o seu jeito audacioso de ser,

comportamento anárquico e revolucionário, Seixas se destacou entre os cantores da MPB no

período ditatorial brasileiro, pois, mesmo sendo punido pelos militares, deixou que sua

ousadia falasse mais alto e, através de suas letras de músicas, mandou o seu recado aos

governantes ditatoriais e à sociedade, ou seja, utilizou-se das metáforas como recurso

argumentativo para driblar a censura, criticar o governo opressor e denunciá-lo pelos crimes

que cometeu. Na verdade, o emprego das metáforas, nas letras de músicas, consiste em uma

estratégia usada por Raul para poder se manifestar e persuadir o cidadão a se mover, a agir, a

lutar contra as injustiças e opressões do governo ditatorial.

Consideremos, agora, os resultados obtidos com relação ao terceiro objetivo de

nosso trabalho: a análise da paixão do medo e das demais paixões mobilizadas por esta nas

letras de músicas estudadas. A paixão do medo é predominante nas canções de Seixas.

Retomando os conceitos de Aristóteles (2003, p. 31), que afirma que o medo consiste em

“certo desgosto ou preocupação resultantes da suposição de um mal iminente, ou danoso ou

penoso”, verificamos que o eu-lírico foi movido por essa paixão pelas ameaças e punições

que poderia sofrer do governo ditatorial caso não agisse com cautela e cuidado. Notamos

também que o medo mobiliza outras paixões, como é o caso do desprezo, da confiança, da

cólera e da indignação, uma vez que esses sentimentos se manifestam quando algo nos é

ameaçador e temível.

Embora o medo apareça nas letras de músicas, por se tratar de um período em

que o país era regido pela Ditadura Militar, o eu-lírico não pode ser considerado medroso,

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muito pelo contrário, pois notamos, a partir das músicas em análise, a sua irreverência ao

argumentar de forma corajosa e audaciosa com o intuito de driblar a censura.

Diante dessas considerações, podemos verificar que tanto o gênero quanto as

metáforas e as paixões podem ser observadas a partir de determinadas marcas textuais que nos

permitem fazer as inferências necessárias para a construção do sentido das letras de músicas

de Raul Seixas.

Constatamos também que, além dessas considerações, foi de suma importância

recorrermos ao contexto histórico-social da época em que as músicas foram compostas para

fazer as devidas inferências e chegarmos à compreensão das letras analisadas, pois se o leitor

não vivenciou a época ditatorial ou não tem conhecimento estocado na memória do momento

histórico, social e cultural do período em que as músicas foram compostas, como poderia

então fazer inferências sem recorrer à história e acontecimentos marcantes desse período? Os

dados da vida do autor também são de grande importância, uma vez que nos ajudaram a

inferir informações implícitas de modo a facilitar o entendimento do texto, pois sabemos que

o cantor vivenciou essa época e que sofreu punições por ser considerado ameaçador ao

governo ditatorial, motivo pelo qual, conforme já mencionamos, foi exilado do país.

Convém ressaltar que, na época ditatorial, as músicas, reportagens, entrevistas,

enfim, todos os meios de comunicação passavam por uma avaliação do governo que

censurava tudo o que não era de sua conveniência ser divulgado. Até mesmo o pensamento

era censurado e quem ousasse a opor-se contra o governo ditatorial seria punido. Como a

música nesta época era permitida, mesmo que com uma prévia avaliação do governo, o astuto

e sagaz, Raul Seixas, aproveitou-se do momento para, através de suas composições,

expressar-se, driblar a censura e criticar as imposições das autoridades ditatoriais. Com o seu

estilo inovador, talento e perspicácia, Raul Seixas não deixou por menos, desafiou a tudo e a

todos como ele mesmo declara nos versos de sua canção No fundo do quintal da escola

(1978):

“Sou o que sou

porque vivo da minha maneira...

Você procurando respostas olhando pro espaço,

e eu tão ocupado vivendo...

Eu não me pergunto,

Eu faço!”

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ANEXOS

ANEXO A – Carimbador maluco (Raul Seixas, 1983)

5, 4, 3, 2... - Parem, esperem aí. Onde é que vocês pensam que vão? Plunct, Plact, Zum Não vai a lugar nenhum! Plunct, Plact, Zum Não vai a lugar nenhum! Tem que ser selado, registrado, carimbado Avaliado, rotulado se quiser voar! Se quiser voar... Pra Lua: a taxa é alta Pro Sol: identidade, Mas já pro seu foguete viajar pelo universo É preciso o meu carimbo dando o sim, Sim, sim, sim. O seu Plunct, Plact, Zum Não vai a lugar nenhum! Tem que ser selado, registrado, carimbado Avaliado, rotulado se quiser voar! Se quiser voar... Pra Lua: a taxa é alta Pro Sol: identidade, Mas já pro seu foguete viajar pelo universo É preciso o meu carimbo dando o sim, Sim, sim, sim. Plunct, Plact, Zum Não vai a lugar nenhum! Plunct, Plact, Zum Não vai a lugar nenhum! Mas ora, vejam só, já estou gostando de vocês Aventura como esta eu nunca experimentei! O que eu queria mesmo era ir com vocês Mas já que eu não posso: Boa viagem, até outra vez. Agora...

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O Plunct, Plact, Zum Pode partir sem problema algum O Plunct, Plact, Zum Pode partir sem problema algum (Boa viagem, meninos. Boa viagem).

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ANEXO B – Conserve o seu medo (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1979)

Conserve o seu medo Mantenha ele aceso Se você não teme Se você não ama Vai acabar cedo Esteja atento Ao rumo da História Mantenha em segredo Mas mantenha viva Sua paranóia Conserve o seu medo Mas sempre ficando Sem medo de nada Porque dessa vida De qualquer maneira Não se leva nada E ande pra frente Olhando pro lado Se entregue a quem ama Na rua ou na cama Mas tenha cuidado Conserve o seu medo Mas sempre ficando Sem medo de nada Porque dessa vida De qualquer maneira Não se leva nada E ande pra frente Olhando pro lado Se entregue a quem ama Na rua ou na cama Mas tenha cuidado Cuidado! Ah! Ah! Muito cuidado!

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ANEXO C – Metrô linha 743 (Raul Seixas, 1984) Ele ia andando pela rua meio apressado Ele sabia que tava sendo vigiado Cheguei para ele e disse: Ei amigo, você pode me ceder um cigarro? Ele disse: Eu dou, mas vá fumar lá pro outro lado Dois homens fumando juntos pode ser muito arriscado! Disse: O prato mais caro do melhor banquete é O que se come cabeça de gente Que pensa e os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam Porque quem pensa, pensa melhor parado. Desculpe minha pressa, fingindo atrasado Trabalho em cartório mas sou escritor, Perdi minha pena nem sei qual foi o mês Metrô linha 743 O homem apressado me deixou e saiu voando Aí eu me encostei num poste e fiquei fumando Três outros chegaram com pistolas na mão Um gritou: Mão na cabeça malandro, se não quiser levar chumbo quente nos cornos Eu disse: Claro, pois não, mas o que é que eu fiz? Se é documento eu tenho aqui... Outro disse: Não interessa, pouco importa, fique aí Eu quero é saber o que você estava pensando Eu avalio o preço me baseando no nível mental Que você anda por aí usando E aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custando Minha cabeça caída, solta no chão Eu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vez Metrô linha 743 Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinha E eu era agora um cérebro, um cérebro vivo à vinagrete Meu cérebro logo pensou: que seja, mas nunca fui tiete Fui posto à mesa com mais dois E eram três pratos raros, e foi o maître que pôs Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado Meu último pedaço, antes de ser engolido ainda pensou grilado: Quem será este desgraçado dono desta zorra toda? Já tá tudo armado, o jogo dos caçadores canibais Mas o negócio aqui tá muito bandeira Dá bandeira demais meu Deus Cuidado brother, cuidado sábio senhor É um conselho sério pra vocês Eu morri e nem sei mesmo qual foi aquele mês Ah! Metrô linha 743

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ANEXO D – Mosca na sopa (Raul Seixas, 1973) Eu sou a mosca Que pousou em sua sopa Eu sou a mosca Que pintou prá lhe abusar...(3x) Eu sou a mosca Que perturba o seu sono Eu sou a mosca No seu quarto a zumbizar...(2x) E não adianta Vir me detetizar Pois nem o DDT Pode assim me exterminar Porque você mata uma E vem outra em meu lugar... Eu sou a mosca Que pousou em sua sopa Eu sou a mosca Que pintou prá lhe abusar...(2x) - “Atenção, eu sou a mosca A grande mosca A mosca que perturba o seu sono Eu sou a mosca no seu quarto A zum-zum-zumbizar Observando e abusando Olha do outro lado agora Eu tô sempre junto de você Água mole em pedra dura Tanto bate até que fura Quem, quem é? A mosca, meu irmão!” Eu sou a mosca Que pousou em sua sopa Eu sou a mosca Que pintou prá lhe abusar...(2x) Eu sou a mosca Que perturba o seu sono Eu sou a mosca No seu quarto a zumbizar...(2x)

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Mas eu sou a mosca Que pousou em sua sopa Eu sou a mosca Que pintou prá lhe abusar...

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ANEXO E – Novo Aeon (Raul Seixas, Cláudio Roberto e Marcelo Motta, 1975) O sol da noite agora está nascendo Alguma coisa está acontecendo Não dá no rádio nem está Nas bancas de jornais Em cada dia ou qualquer lugar Um larga a fábrica, outro sai do lar E até as mulheres, ditas escravas, Já não querem servir mais Ao som da flauta Da mãe serpente No para-inferno De Adão na gente Dança o bebê Uma dança bem diferente O vento voa e varre as velhas ruas Capim silvestre racha as pedras nuas Encobre asfaltos que guardavam Hitórias terríveis Já não há mais culpado nem inocente Cada pessoa ou coisa é diferente Já que assim, baseado em que Você pune quem não é você? Ao som da flauta Da mão serpente No para-inferno De Adão na gente Dança o bebê Uma dança bem diferente Querer o meu Não é roubar o seu Pois o que eu quero É só função de eu Sociedade Alternativa Sociedade Novo Aeon É um sapato em cada pé É direito de ser ateu Ou de ter fé Ter prato entupido de comida Que você mais gosta É ser carregado, ou carregar Gente nas costas Direito de ter riso e de prazer

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E até direito de deixar Jesus Sofrer

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ANEXO F – Paranóia (Raul Seixas, 1975) Quando esqueço a hora de dormir E de repente chega o amanhecer Sinto a culpa que eu não sei de que Pergunto o que é que eu fiz? Meu coração não diz e eu... Eu sinto medo! Eu sinto medo! Se eu vejo um papel qualquer no chão Tremo, corro e apanho pra esconder Medo de ter sido uma anotação que eu fiz Que não se possa ler E eu gosto de escrever, mas... Mas eu sinto medo! Eu sinto medo! Tinha tanto medo de sair da cama à noite pro banheiro Medo de saber que não estava ali sozinho porque sempre... Sempre... sempre... Eu estava com Deus! Eu estava com Deus! Eu estava com Deus! Eu tava sempre com Deus! Minha mãe me disse há tempo atrás Onde você for Deus vai atrás Deus vê sempre tudo que cê faz Mas eu não via Deus Achava assombração, mas... Mas eu tinha medo! Eu tinha medo! Vacilava sempre a ficar nu lá no chuveiro, com vergonha Com vergonha de saber que tinha alguém ali comigo Vendo fazer tudo que se faz dentro dum banheiro Vendo fazer tudo que se faz dentro dum banheiro Para...nóia Dedico esta canção: Para Nóia! Com amor e com medo (com amor e com medo) Com amor e com medo (com amor e com medo) Com amor e com medo (com amor e com medo) Com amor e com medo (com amor e com medo)...

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ANEXO G – Rockixe (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1973) Vê se me entende, olha o meu sapato novo Minha calça colorida o meu novo way of life Eu tô tão lindo porém bem mais perigoso Aprendi a ficar quieto e começar tudo de novo O que eu quero, eu vou conseguir O que eu quero, eu vou conseguir Pois quando eu quero todos querem Quando eu quero todo mundo pede mais E pede bis Eu tinha medo do seu medo do que eu faço Medo de cair no laço que você preparou Eu tinha medo de ter que dormir mais cedo numa cama que eu não gosto só porque você mandou... O que eu quero, eu vou conseguir O que eu quero, eu vou conseguir Pois quando eu quero todos querem Quando eu quero todo mundo pede mais E pede bis Você é forte, mas eu sou muito mais lindo O meu cinto cintilante, a minha bota, o meu boné Não tenho pressa, tenho muita paciência Na esquina da falência que eu te pego pelo pé O que eu quero, eu vou conseguir O que eu quero, eu vou conseguir Pois quando eu quero todos querem Quando eu quero todo mundo pede mais E pede bis Olha o meu charme, minha túnica, meu terno Eu sou o anjo do inferno que chegou pra lhe buscar Eu vim de longe, vim d´uma metamorfose Numa nuvem de poeira que pintou pra lhe pegar O que eu quero, eu vou conseguir O que eu quero, eu vou conseguir Pois quando eu quero todos querem Quando eu quero todo mundo pede mais

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E pede bis Você é forte, faz o que deseja e quer Mas se assusta com o que eu faço, isso eu já posso ver E foi com isso justamente que eu vi Maravilhoso, eu aprendi que eu sou mais forte que você O que eu quero, eu vou conseguir O que eu quero, eu vou conseguir Pois quando eu quero todos querem Quando eu quero todo mundo pede mais E pede bis, e pede mais...

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ANEXO H– Sociedade alternativa (Raul Seixas e Paulo Coelho, 1974) Viva! Viva! Viva A Sociedade Alternativa (Viva! Viva!) Viva! Viva! Viva A Sociedade Alternativa (Viva O Novo Eon!) Viva! Viva! Viva A Sociedade Alternativa (Viva! Viva! Viva!) Viva! Viva! Viva A Sociedade Alternativa... Se eu quero e você quer Tomar banho de chapéu Ou esperar Papai Noel Ou discutir Carlos Gardel Então vá! Faz o que tu queres Pois é tudo Da Lei! Da Lei! Viva! Viva! Viva A Sociedade Alternativa... "-Faz o que tu queres Há de ser tudo da Lei" Viva! Viva! Viva A Sociedade Alternativa "-Todo homem, toda mulher É uma estrela" Viva! Viva! Viva A Sociedade Alternativa (Viva! Viva!) Viva! Viva! Viva A Sociedade Alternativa Han!... Mas se eu quero e você quer Tomar banho de chapéu Ou discutir Carlos Gardel Ou esperar Papai Noel Então vá! Faz o que tu queres Pois é tudo Da Lei! Da Lei! Viva! Viva!

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Viva a Sociedade Alternativa Viva! Viva! Viva A Sociedade Alternativa... "-O número 666 Chama-se Aleister Crowley" Viva! Viva! Viva! A Sociedade Alternativa "-Faz o que tu queres Há de ser tudo da lei" Viva! Viva! Viva! A Sociedade Alternativa "-A Lei de Thelema" Viva! Viva! Viva A Sociedade Alternativa "-A Lei do forte Essa é a nossa lei E a alegria do mundo" Viva! Viva! Viva A Sociedade Alternativa (Viva! Viva! Viva!)...

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