A MÍDIA COMO GERADORA DE IDENTIDADE E HISTÓRIA
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II Encontro Nacional da Rede Alfredo de CarvalhoFlorianópolis, de 15 a 17 de abril de 2004
GT História do JornalismoCoordenação: Prof. Dra. Marialva Barbosa (UFF)
A MÍDIA COMO GERADORA DE IDENTIDADE E HISTÓRIA
Maria da Conceição Silva SoaresVanessa Maia Barbosa de Paiva Rangel
Palavras chaves: Identidade, História, Cultura
Resumo: O trabalho tem a intenção de debater os meios de comunicação como conectivos de acesso a visões de mundo e construção de identidades, levando em consideração que as formações discursivas fragmentárias dos grupos sociais são culturais e históricas. Destacamos que a capacidade de narrar (sua própria história) está relacionada com a construção da identidade, pelo confronto com as narrativas alheias. O jornalismo é situado, no trabalho, como uma das forças sociais objetivas que, com o auxílio dos paramentos tecnológicos, cria um campo magnético que move crenças, políticas e ideologias, criando uma cola entre o homem e o mundo.
Os tribalistas já não querem ter razão,não querem ter certeza, não querem ter juízo, nem religião.
Os tribalistas já não entram em questão,não entram em doutrina, em fofoca ou discussão.
Chegou o tribalismo no pilar da construção.(...) Os tribalistas saudosistas do futuro,
abusam do colírio e dos ósculos escuros.São turistas assim como você e o seu vizinho,
dentro da placenta do planeta azulzinho.(...) O tribalismo é um antimovimento,
que vai se desintegrar no próximo momento. Tribalistas - Tribalistas
(Arnaldo Antunes / Carlinhos Brown / Marisa Monte)
As rápidas mudanças que as sociedades contemporâneas têm experimentado nas
últimas décadas, especialmente no que diz respeito aos efeitos da globalização, nos levam a
repensar a questão do sujeito, da identidade e da cultura, agora no contexto da midiatização
impulsionada pelas novas tecnologias da comunicação e da informação e pelo mercado
(SODRÉ, 2002).
O que particularmente nos interessa discutir são as ambigüidades e possibilidades
trazidas pelo avanço das infotelecomunicações, seja no que se refere ao controle político e
econômico da subjetividade, seja no que se refere à interferência e à participação dos
sujeitos e dos grupos sociais nos processos de produção coletiva da realidade social.
Decidimos iniciar essa reflexão partindo de uma interrogação trazida por Manuel
Castells.
Como combinar las nuevas tecnologías y la memoria colectiva, la ciencia universal y las culturas comunitarias, la pasión y la razón (...), porque la tendencia es hacia la distancia creciente entre globalización e identidad, entre la red y el yo.
(apud RINCÓN, 2001:11)
Ao refletir sobre essa questão nos deparamos com um paradoxo. Ao mesmo tempo
em que os processos de globalização e midatização tendem a agir como agentes de
uniformização planetária a reboque do capital e do neoliberalismo, eles vêm possibilitando
a emergência de novas identidades, não só aquelas produzidas nas relações de consumo,
mas também outras formas de identidades políticas e culturais construídas na reação ou nas
brechas abertas por esses processos.
Por globalização entendemos a atualização do liberalismo e a transnacionalização
do sistema produtivo e por midiatização entendemos a tendência a virtualização ou a
telerrealização das relações institucionais ou individuais (SODRÉ, 2002). Articulados,
esses processos geram uma nova “ambiência existencial”, em que se impõem outras formas
de perceber o tempo (tempo-real) e o espaço (espaço-virtual), operando juntamente às
tradicionais.
As formas de sociabilidade e de subjetivação contemporâneas são,
conseqüentemente, atravessadas por vetores como a velocidade e a fluidez resultantes
desses processos, que imprimem, na experiência vivida, orientações no sentido do efêmero
e do flexível. Essas transformações afetam as formas tradicionais de vida, inclusive no que
diz respeito à fixidez das identidades, apontando para um re-ordenamento cultural. Emerge
a tecnocultura, implicando um novo tipo de relacionamento do indivíduo com as
referências concretas. Nesse contexto, segundo Sodré, seria a mídia quem conforma o
sentido da presença do homem no território em que ele habita, encenando uma reforma
cognitiva e moral necessárias à ordem do consumo, com implicações como o narcisismo e a
individualização. É o padrão identitário conectado a esses comportamentos e valorizado
pelos meios de comunicação que vai permitir ao indivíduo atingir um reconhecimento
social.
No entanto, como adverte o próprio Sodré (2002), a mídia não determina coisa
alguma, apenas prescreve, o que nos permite vislumbrar a possibilidade da instalação da
diferença identitária, mesmo se considerarmos a ação padronizadora dos meios de
comunicação.
Seguindo a trilha aberta por Sodré, fomos buscar em Egdar Morin auxílio para
compreender a complexidade da sociedade contemporânea. Para Morin (1990), complexo
é o que coloca o paradoxo do uno e do múltiplo, mas é também o que é tecido por
acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações e acasos. Será necessário
então pensar complexo para discutir os efeitos da midiatização.
Assim, ao paradigma da disjunção/redução/unidimensionalização, seria preciso substituir um paradigma de distinção/conjunção que permita distinguir sem separar, associar sem identificar ou reduzir. (p.22)
O paradigma da complexidade nos ensina refletir sobre a complexidade não só do
pensamento, mas também da ação. Para Morin, a ação é uma aposta e, por isso, comporta
risco e incerteza. A ação é estratégia, mas não está livre de bifurcações e pode conduzir a
desvios irremediáveis. A ação, ensina o pensador francês, escapa às intenções.
Desde que um indivíduo empreende uma acção, qualquer que seja, esta começa a escapar às suas intenções. Esta acção entra num universo de intencções e é finalmente o meio que a agarra num sentido que pode tornar-se o contrário à intenção inicial. (MORIN,1990:18)
O que Morin sugere é que os seres humanos não são “máquinas triviais” e
por isso não é possível prever todos os seus comportamentos. Por outro lado, eles
comportam-se como máquinas quando a vida social exige que se comportem dessa
maneira. De acordo com o pensador, são nos momentos de crise que a máquina se torna não
trivial e os sujeitos agem de uma maneira que não se pode prever.
Qualquer crise é um acréscimo de incertezas. A previsão diminui. As desordens tornam-se ameaçadoras. Os antagonismos inibem as complementaridades, as conflitualidades virtuais atualizam-se. As regulações falham ou quebram-se. É preciso abandonar os programas e inventar estratégias para sair da crise. É preciso freqüentemente abandonar as soluções que remediavam nas crises antigas e elaborar soluções novas. (1990:120)
A complexidade é, portanto, uma advertência contra a aparente trivialidade dos
determinismos.
Acreditamos que podemos seguir essa indicação para tentar entender o paradoxo
que resulta da globalização e da midiatização planetárias, empreendidas pelo capital
transnacional. A ação (estratégia) de produção de uma identidade global, padronizada e
homogeneizada a partir do consumo, não teria produzido a crise de identidade, que por sua
vez teria produzido as condições para o questionamento das identidades hegemônicas e a
emergência de identidades culturais e políticas contra-hegemônicas e tácitas (Certeau)?
O que alguns teóricos chamam de crise de identidade é para Hall (2001) o
deslocamento, a descentralização ou a fragmentação das identidades modernas a partir das
mudanças estruturais experimentadas nas ultimas décadas.
Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. Esse duplo deslocamento – descentralização dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo. (HALL, 2001:09)
Para prosseguirmos com essa discussão, se faz necessário explicitar que, assim
como Hall, não compactuamos com uma concepção fixa e essencialista de identidade.
Pensamos a identidade, individual ou coletiva, como uma construção social, produzida a
partir de operações de identificação e diferenciação. Compreendida dessa forma, a
identidade é relacional, é sustentada pela exclusão, é marcada por meio de símbolos e
representações. No entanto, é preciso não esquecer que como adverte Woodward (2000) a
construção da identidade é tanto simbólica quanto social, mas a luta para afirmar as
diferentes identidades tem causas e conseqüências materiais.
A identidade é marcada pela diferença, mas parece que algumas diferenças (...) são vistas como mais importantes do que outras, especialmente em lugares particulares e em momentos particulares. (p.11)
Woodward (2000) explica que a emergência dessas diferentes identidades é
histórica e se localiza em um ponto específico do tempo, mas a autora, defende que, ao
buscar referências no passado para recuperar identidades supostamente perdidas, os grupos
podem estar realmente produzindo novas identidades. A busca e a reprodução do passado
sugere um momento de crise e não que haja algo estabelecido e fixo na construção da
identidade.
O que estaria então provocando a crise de identidade? Hall (2001) sustenta que é a
globalização. Para ele, as novas características espaciais e temporais, que resultam da
compressão de distâncias e de escalas temporais, estão entre os aspectos mais importantes
da globalização a ter efeito nas identidades culturais. Ele alinhava três possíveis
conseqüências desse processo:
1. As identidades nacionais estão se desintegrando, como resultado da
homegeneização cultural planetária.
2. As identidades nacionais, locais ou particularistas estão sendo reforçadas
pela resistência à globalização.
3. As identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades –
híbridas – estão tomando seu lugar.
Para Hall, o impacto da globalização sobre as identidades pode ser compreendido a
partir de uma de suas principais características, a compressão espaço-tempo, provocando a
sensação que o mundo é menor e as distâncias mais curtas. Dessa forma, o que acontece em
um determinado lugar tem impacto imediato sobre as pessoas que estão a grande distância.
Ele defende que todas as identidades estão localizadas no espaço e no tempo simbólicos, no
senso de lugar, nas tradições inventadas que ligam passado e presente, nos mitos de origem
e nas narrativas de nação.
A globalização midiatizada proporciona um afrouxamento das identificações com as
culturas nacionais e um reforçamento de outros laços e lealdades culturais, como gênero,
raça, etnia, idade e estilos de vida. Nesse contexto, as identidades locais, regionais e
comunitárias (inclusive as virtuais) têm se tornado mais importantes. Faz-se necessário
porem distinguir as identidades culturais e políticas que emergem na contemporaneidade
daquelas produzidas pelo consumo.
Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global dos estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem “flutuar livremente”. Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível fazer uma escolha. Foi a difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribui para esse efeito de “supermercado cultural”. (HALL, 2001:75)
Paradoxalmente, uma suposta diversidade passa a conviver com a homogeneização
cultural, isso quando ela não é fabricada pelos próprios meios de comunicação. Ao
contrário da idéia de diversidade, o multiculturalismo, como defende Silva (2001), é
ambíguo. Por um lado, é um movimento legítimo de reivindicação dos grupos dominados
para terem suas formas culturais reconhecidas e representadas e, por outro lado, é uma
solução para os problemas que esses grupos colocam no interior da sociedade. Ele defende
que é exatamente por causa dessa ambigüidade que o multiculturalismo representa uma
forma de luta política.
Para se pensar o multiculturalismo numa perspectiva política e crítica é preciso
pensar que as diferenças culturais não podem ser concebidas separadamente de relações de
poder. Silva, em resposta aos teóricos que postulam que a manifestação de múltiplas
identidades e tradições culturais fragmentaria uma cultura nacional única e comum (com
implicações políticas regressivas) lembra que a cultura nacional comum confunde-se com a
cultura dominante.
Curiosamente, entretanto, esses valores e instituições tidos como universais acabam coincidindo com os valores e instituições das chamadas “democracias representativas” ocidentais, concebidos no contexto do Iluminismo e consolidados no período chamado “moderno”. Qualquer posição que questione esses valores e essas instituições é vista como relativista.(2001: 90)
O autor defende que a questão do universalismo e do relativismo deixa de ser
epistemológica para ser política. Se a tradição crítica nos chamou atenção para as
determinações de classe, o multiculturalismo acrescenta que a desigualdade resulta também
de outras dinâmicas, como as de raça, gênero e sexualidade, por exemplo. A partir desta
perspectiva, se estabelece uma outra relação entre saber, poder e identidade. Não se trata de
celebrar a diferença e a diversidade, mas de questioná-las. Quais são os mecanismos de
construção de identidade e de diferença e em que medida eles estão vinculados com
relações de poder? É nesse sentido, ao desnaturalizar a produção do uno, que a questão da
identidade torna-se política e que o pensamento pós-crítico questiona o objetivismo das
“grandes narrativas”, vistas como expressão da vontade de controle e domínio. No lugar
delas, o pensamento pós-crítico propõe o subjetivismo das interpretações pessoais e
localizadas.
Nas sociedades contemporâneas, os meios de comunicação e de informação
corporificam muitos elementos verificados na cena cultural e social, tais como a
fragmentação, o hibridismo, o pastiche, a colagem e a ironia. Observa-se a emergência de
uma identidade descentrada, múltipla e fragmentada, que, em certa medida, pode ser
interpretada como radicalização do questionamento às formas de conhecimento e
comportamento dominantes. O que nos interessa nesse contexto é perceber a cultura como
um campo de luta, em que está em jogo a definição da identidade cultural e social dos
diferentes grupos.
A cultura é um campo de produção de significados no qual os diferentes grupos sociais, situados em posições diferenciais de poder, lutam pela imposição de seus significados à sociedade mais ampla. A cultura é, nessa
concepção, um campo contestado de significação. (SILVA, 2001:133-134)
O que desejamos compreender agora é: Como os meios de comunicação, mesmo ao
prescrever uma identidade descentrada, mas hegemônica, possibilitam a produção de outras
identidades, que podem ser políticas e tácitas, e por isso mesmo desviantes e de resistência?
Para refletir sobre esta questão, recorremos mais uma vez a Woodward (2000). A
autora nos ensina que as identidades adquirem sentido por meio da linguagem e dos
sistemas simbólicos pelos quais elas são representadas. Ela explica ainda que a identidade é
relacional e a diferença é estabelecida por uma marcação simbólica relativamente a outras
identidades.
Com Sodré (2002) aprendemos que a prescrição (identitária) mediática é difusa,
sem linearidade discursiva ou regulamentação implícita, operando numa lógica caótica e
não seqüencial. Invocando Eliseo Verón, ele destaca também que o regime semiótico da
mídia é o indiciário, em que o signo não representa um significado universal ou abstrato,
mas sim uma apropriação no interior de um contexto de significação. Nessa nova
“ambiência existencial”, a postura mais adequada ao indivíduo, define o autor, é a da
“exploração interpretativa”, em vez da dedução de verdades. Para Sodré, o processamento
dos conteúdos sócio-culturais da mídia pode ser combinado com um trabalho contínuo dos
materiais discursivos, o que aumenta a indecibilidade quanto às relações de causa e feito
entre mídia e sociedade.
A partir dessa constatação, podemos pensar em apropriações e usos diferenciados
dos conteúdos midiáticos pelos indivíduos e grupos sociais, principalmente em relação ao
que nos interessa particularmente nesse trabalho, ou seja, a produção da identidade e da
diferença. Esse processos, contudo, só podem ser atualizados e verificados na experiência
vivida cotidianamente pelos sujeitos (Certeau:1994).
Voltamos então a Woodward (2000). Ela defende que o social e o simbólico
referem-se a dois processos diferentes, mas cada um deles é necessário para a construção e
a manutenção das identidades. A mídia, explica a autora, é uma das instituições que podem
construir novas identidades, identidades das quais os sujeitos podem se apropriar e podem
reconstruir para seu uso. Nesse sentido, os sujeitos são constrangidos não apenas pelas
identidades que a cultura oferece, mas também pelas relações sociais que se estabelecem.
A globalização, entretanto, produz diferentes resultados em termos de identidade. A homogeneidade cultural promovida pelo mercado global pode levar ao distanciamento da identidade relativamente à comunidade e à cultura local. De forma alternativa, pode levar a uma resistência que pode fortalecer e reafirmar algumas identidades nacionais e locais ou levar ao surgimento de novas posições de identidade. (Woodward , 2000:21)
Recorrendo a Hall, a autora define uma concepção de identidade cultural que não se
preocupa em recuperar a “verdade” sobre seu passado na “unicidade” de uma história, mas
a vê como uma questão tanto de “tornar-se” quanto de “ser”.
Ela argumenta em favor de uma identidade que não esteja fixada na rigidez da oposição
binária (nós e eles). E explica ainda que, embora a identidade seja construída por meio da
diferença, o significado não é fixo. Recorre também a Derrida, para quem o significado é
sempre diferido ou adiado, ele não é completamente fixo ou completo de forma que existe
sempre um deslizamento.
Woodward (2000) argumenta que a crise global de identidades, constituída com a
ajuda da midiatização e da globalização, resulta do deslocamento dos centros. Um dos
centros que foi deslocado é do da classe social como um determinante de todas as outras
relações sociais. Esse deslocamento abre espaços para a percepção que há muitos e
diferentes lugares a partir dos quais novos sujeitos podem se expressar. O sintoma desse
processo é o surgimento de outras arenas de conflito social, tais como as baseadas no
gênero, na raça, na etnia, na sexualidade, na idade, na incapacidade física e nas
preocupações ecológicas, entre muitas outras.
Essas novas e/ou diferentes identidades podem ser construídas como “estranhas” ou
“desviantes”, mas emergem como “políticas de identidade”.
Uma política de identidade concentra-se na afirmação de uma identidade cultural
das pessoas que pertencem a um determinado grupo oprimido ou marginalizado. Trata-se
de uma nova forma de sociabilidade e de mobilização política, que envolve a celebração da
singularidade cultural de um determinado grupo, bem como a análise de sua opressão
específica. Nesse contexto, alguns movimentos sociais e de minorias têm reivindicado o
direito de construir e assumir a responsabilidade de suas próprias identidades.
O direito à diferenciação cultural, como forma legítima de luta por interesses
específicos e pelos direitos humanos, vem sendo defendido também pelo sociólogo
Boaventura de Souza Santos. Ele vem tentando desenvolver um quadro analítico capaz de
reforçar o potencial emancipatório de uma política dos direitos humanos que se define no
duplo contexto da globalização. Por um lado, o contexto da fragmentação cultural e, por
outro, o da política de identidades. O que o sociólogo defende é uma política de direitos
humanos baseada na articulação contra-hegemônica e no reconhecimento das diferenças
culturais, com âmbito global e com legitimidade local.
Santos argumenta que o que temos chamado de globalização remete-se a
globalismos localizados ou a localismos globalizados, mas ele reconhece nesse processo
outras formas de globalização, entre elas, a que ele chama de cosmopolitismo. Trata-se da
organização transnacional, possibilitada pelas próprias tecnologias de comunicação e
informação, das classes ou grupos sociais subordinados, na defesa de interesses percebidos
como comuns.
As atividades cosmopolitas, segundo Santos incluem, diálogos e organizações Sul-
Sul, organizações mundiais de trabalhadores, filantropia transnacional Norte-Sul, redes
internacionais de assistência jurídica alternativa, organizações transnacionais de direitos
humanos, redes mundiais de movimentos feministas, organizações não governamentais
(ONG's) transnacionais de militância anticapitalista, redes de movimentos e associações
ecológicas e de desenvolvimento alternativo, movimentos literários, artísticos e científicos
na periferia do sistema mundial em busca de valores culturais alternativos, entre outros.
Neste cenário, em que movimentos sociais com potencial emancipatório podem
emergir e se articular independente da mídia ou a partir das brechas abertas pela própria
tecnologia que dá suporte ao processo de globalização e midiatização, poderia a
comunicação e o jornalismo em particular contribuírem para a construção de uma sociedade
mais justa e solidária?
Buscando caminhos para trilhar neste sentido, profissionais e estudiosos do
jornalismo têm apontado e experimentado várias possibilidades na tentativa de vincular a
comunicação aos movimentos sociais, culturais e aos movimentos de minoria, que se
constituem e se desmontam na resistência à padronização e ao controle da subjetividade e
da identidade pelas estruturas do poder e do mercado. Entre esses caminhos podemos
destacar, entre outros, a constituição da imprensa alternativa, livre e comunitária, a luta pela
democratização do acesso e de produção da comunicação e a atuação profissional no
sentido de dar voz aos excluídos e marginalizados pela mídia tradicional.
Ómar Rincón (2001) alerta, entretanto, para a falta de conexão entre a mídia e os
movimentos sociais e entre ambos e o real-histórico, onde as identidades adquirem sentido
e potencial para operar como um lugar de posicionamento e transformação social. Ele
ressalta que, num cenário em que se desautorizam instituições tradicionais de subjetivação,
como a família, a escola, a comunidade e o trabalho, os meios de comunicação, assim como
os movimentos sociais contemporâneos, tornam-se excelentes mecanismos de produção
artificial de identidades (efêmeras e em fluxo), tanto individuais como coletivas, na medida
em que, ao invés de criar laços sociais, fomentam a fragmentação da vida civil. Ele defende
que tanto os meios de comunicação como os movimentos sociais devem trabalhar para
inserir o indivíduo na vida coletiva e para re-inventar a confiança, o político, a imaginação
e a visibilidade social.
Rincón sugere que os meios de comunicação e em especial a imprensa, visando a
construção de um público cidadão, devem ampliar a agenda temática no que se refere aos
atores, assuntos sociais, histórias, contextos e pontos de vista, bem como converter os
temas provenientes dos movimentos sociais em assuntos centrais, ao invés de limita-los em
seções. Ele sugere também que a imprensa construa narrativas, com histórias e contextos,
que permitam a compreensão e a conexão entre as diferenças. Trata-se de produzir memória
e espaços públicos comunicativos, onde seja possível o reconhecimento dos diversos
discursos sociais, buscando mais pluralismo, mais ativismo e mais coletivismo.
Referências bibliográficas:
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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro : D,P&A, 2001.
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Rincón, Omar. De la desconexión a la conexión. Medios de comunicción y movimientos
sociales: propuestas y práticas de um trabajo conjunto IN: Signo y Pensamiento. Número
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SANTOS, Boaventura de Souza. Para um novo senso comum : a ciência, o direito e a
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SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho. Petrópolis, RJ : Vozes, 2002.
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In. SILVA, Tomaz Tadeu da (org.) Identidade e diferença : a perspectiva dos estudos
culturais. Petrópolis, RJ : Vozes, 2000.