A música - Entrada - Centro Virtual...
Transcript of A música - Entrada - Centro Virtual...
A msica sacra no perodo
pombalino C rist ,t na Ferna ndes
PARA A HISTORIOGRAFIA MUSICAL PORTUGUESA,
o reinado de D. Jos I tem sido tradicionalmente
sinnimo do florescimento da pera em Portu
gal como instrumento de propaganda do poder
rgio, em correlao com o processo de secula
rizao da vida poltica e cultural, por oposio
ao reinado de D. Joo V, que centrou a sua poltica musical no cerimonial religioso.! No entanto,
ainda que, porventura, ausente do mesmo valor
simblico que tinha tido nas dcadas anteriores,
a msica sacra foi provavelmente a rea musical
mais determinante em Portugal na segunda
metade do sculo XVIII, atingindo um alcance
muito mais amplo do que a pera junto dos dife
rentes estratos da sociedade. Vrios factores tm
contribudo para que a nossa percepo da reali
dade histrico-musical desta poca tenha sido
moldada na ptica do espectculo de pera quer
na corte, quer nos teatros pblicos: a dimenso
de grande acontecimento associada ao enorme
investimento de D. Jos I no sentido de criar um
verdadeiro estabelecimento opertico de corte
(com a sua concretizao material na magnifi
cente pera do Tejo e na contratao dos melho
res msicos, cengrafos, arquitectos teatrais e
bailarinos italianos da poca) ; o peso das medi
das da poltica pombalina que implicavam uma
clara separao hierrquica e simblica entre a
Igreja e o Estado e pretendiam diminuir o poder
do clero (expulso dos jesutas, corte de relaes
com a Santa S, secularizao da censura atra
vs da criao da Real Mesa Censria, etc.) ; ou,
ainda, o facto de dispormos de um importante
estudo que nos traa o quadro de fundo da acti
vidade opertica em Portugal no sculo XVIII -
a tese de doutoramento de Manuel Carlos de
Brito, Opera inPortugal in the Eighteenth Centu/y 2 - ao contrrio do que acontece com a msica
sacra (de resto, um terreno bastante negligencia
do pela musicologia quer portuguesa, quer inter
nacional) , at aqui objecto de estudos raros e
parciais.
Na realidade, a primazia da pera como instm
mento de representao do poder rgio, seme
lhana do que sucedia noutras cortes absolutis
tas europeias, teve em Portugal uma vida curta,
sendo interrompida prematuramente, de forma
abrupta, pelo terramoto de 1755. Os espectcu
los de pera sofreram um interregno de oito anos
e, depois disso, abandonou-se a ideia da criao
de um teatro de Estado. A reconstruo da pera
do Tejo no foi contemplada pelo Marqus de
Pombal pelo que a pera passou a ser sobretudo
um entretenimento de natureza semiprivada
nos teatros rgios, relativamente pequenos, da
Ajuda, de Salvaterra e, mais tarde, de Queluz. A
cultura opertica de corte assim remetida para
uma zona perifrica relativamente aos centros de
deciso poltica, passando a funcionar mais
como diverso aprazvel do que como disposi
tivo de exibio de poder.
Pelo contrrio, o cerimonial religioso e a sua
respectiva componente musical eram indissoci
veis do quotidiano. Logo a seguir ao terramoto
foram tomadas medidas imediatas no sentido de
garantir os Ofcios Divinos na Patriarcal ou nos
templos que no tinham sido destrudos pelos
abalos ou pelo incndio que se seguiu. O prprio
Sebastio Jos de Carvalho e Melo escreveu uma
carta, datada de 17 de Novembro de 1755, ao
Abade do Mosteiro de So Bento com a finalidade
de transferir os servios litrgicos da Capela Real
e Patriarcal para aquele local, ainda que esta
acabasse por no ter efeito.3
O peso institucional da msica sacra nas
sociedades do Antigo Regime da Europa meridio
nal, em particular em Portugal e Espanha, encon
trava-se de tal modo enraizado, que praticamente
se pode considerar autnomo face s tentativas
de secularizao do Estado empreendidas neste
perodo. Deste modo, no plano musical, o lado
mais visvel da representao do poder rgio
junto das populaes acabaria, paradoxalmente,
por se continuar a centrar no cerimonial religioso
(principalmente na Patriarcal) e a funcionar
como uma das principais fontes de investimento
da corte.
Durante o sculo XVIII o principal suporte
institucional do circuito da msica sacra era a
Capela Real e a Igreja Patriarcal. D. Joo V logrou
obter uma srie de privilgios junto da Cria
Romana que lhe permitiram colocar as institui
es religiosas portuguesas sob a alada do seu
capelo pessoal, obtendo sucessivos decretos
pontifcios que promoveram a Capela Real a Cole
giada (17 10) e depois a Igreja Patriarcal (1716) . O
terramoto veio, inevitavelmente, determinar uma
nova organizao da prtica musical. Para alm
de no inclu a pera do Tejo, a reconstruo de
Lisboa pelo Marqus de Pombal tambm no
contemplou a Capela Real e Patriarcal, passando
estas a funcionar em templos diferentes. Com a
mudana de residncia da famlia real para a
Ajuda, a Capela Real foi para a igualmente trans-
Retrato de D. Jos I. atribudo a Miguel Antnio do Amaral. Palcio Nacional de Queluz
88
Estante de Coro, madeira, sculo XVIII. Bibl ioteca Nacional de Lisboa
89
ladada ficando instalada provisoriamente na
Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Ajuda,
defronte da Real Barraca. Segundo Joo Baptista
de Castro4 havia aqui Coro todos os dias ordi
nariamente rezado pelos Capelles, e cantado
nos dias solemnes, Domingos e dias Santos, cele
brando-se a liturgia pelos Ministros da Patriar
cal; sendo que os que Sua Majestade nomeou
para officiarem alli quotidianamente foro
quatorze Capelles, nove Muzicos, hum Mestre
de Cerimnias para assistir somente s Missas e
Vsperas Solemnes; quatro Moos de Capella, e
hum Tesoureiro, que tambm serve de Altaneiro.
Por sua vez, a Patriarcal teve a sua sede na
Ermida de S. Joaquim e Santa Ana, situada na
freguesia da Ajuda, stio de Alcntara, (1755-
- 1756, Revista Portuguesa de Musicologia, n.07-8, 1997-1998, pp. 59-94, e ElisaLessaA Mlsica IIOS Mosteiros Belleditinos Porlllgueses: centros de ensillo e prtica musical (sculosX\1JJ,xvm eXlX), (tissertao de douto
ramento apresentada Universidade Nova de Lisboa, 1998. 21 Sobre os relatos dos viajrultes estrrulgeiros relativos poca
pombalina ver RuiVieira Nery, David Perez in Portogallo, teste
monirulZe di viaggiatori snanieri, Avidi LWlli, Quadrimestmle di Cultum Musicali dei Teatro Massimo di Palermo, Ano V. n.014, Fevereiro 2002, pp. 87-99. Este rutigo apresenta elementos de um traballlO exaustivo muito mais runplo, que Rui Vieira Nery
tem viJldo a preparar e que recolhe, orgalliza e contextualiza de
forma problematizante os depoimentos relativos msica nos
relatos dos viajantes estrangeiros que visitarrun POrl1.lgal e o
Brasil entre 1750 e 1834. A sua futura publicao vir clarificru muitos aspectos da vida musical desta poca e das prticas de
sociabilidade em torno da msica.
25 Wi.lliam Beckford, op. cito iII nota 20, (13-6- 1787), pp. 60-61. 26 BombeUes, op. cit., (22-3-1788), pp. 283 (22-3-1788). 27 Miclligan, Nm Arbor - UM!, 1980. 28 No tempo de D. Jos a Orquestra da Real Cmara teve wn efec
tivo que compreendia entre 32 e 51 iJlstrumentistas, chegruldo a ser a maior orquestra de corte da Emopa. Sobre esta forma
o ver o livTO de Joseph Scherpereel, A Olquestra e os InstTIIlI1elltistas da Real Cmara de Lisboa de 1 764 a 1834, Lisboa, FWldao Gulbenkian, 1985.
29 Cf. Schepereel, op. cito in nota 21 . 30 Cristina Fernruldes, As \lsperas de Joo de Sousa: para o estlldo
do Salmo Concertato em Portllgal em meados do sculo XVIII, dissertao de mestrado apresentada Universidade Nova de Lisboa, 199.