A nebulosa do decrescimento

download A nebulosa do decrescimento

of 181

description

Dissertação sobre a teoria do decrescimento

Transcript of A nebulosa do decrescimento

  • Universidade de So PauloFaculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas

    Departamento de AntropologiaPrograma de Ps-Graduao em Antropologia Social

    Ana Flvia Pulsini Louzada Bdue

    A nebulosa do decrescimento.Um estudo sobre as contradies das novas formas de

    fazer poltica

    So Paulo2012

  • Ana Flvia Pulsini Louzada Bdue

    A nebulosa do decrescimento.Um estudo sobre as contradies das novas formas de

    fazer poltica

    So Paulo2012

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, sob a orientao da Profa. Dra. Ana Claudia Duarte Rocha Marques, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.

  • Nome: Ana Flvia Pulsini Louzada Bdue

    Ttulo: A nebulosa do Decrescimento. Um estudo sobre as contradies das novas formas de

    fazer poltica

    Aprovada em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr.:____________________________________________________________________

    Instituio:__________________________________________________________________

    Julgamento:_________________________________________________________________

    Assinatura:__________________________________________________________________

    Prof. Dr.:____________________________________________________________________

    Instituio:__________________________________________________________________

    Julgamento:_________________________________________________________________

    Assinatura:__________________________________________________________________

    Prof. Dr.:____________________________________________________________________

    Instituio:__________________________________________________________________

    Julgamento:_________________________________________________________________

    Assinatura:__________________________________________________________________

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, sob a orientao da Profa. Dra. Ana Claudia Duarte Rocha Marques, como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre em Antropologia Social.

  • A meu av, que me ensinou a gostar de histria.

    Ao Danilo.

  • Agradecimentos

    Agradeo, primeiramente, quelas e queles que deram corpo a esta pesquisa:

    militantes e ativistas do decrescimento que me receberam em suas casas, em seus locais de

    trabalho, em suas reunies, aes e manifestaes. Agradeo pela disposio em me mostrar

    que o decrescimento era muito mais do que um conjunto de ideias, e que para saber do que se

    tratava, era preciso circular muito. Especialmente a Lucie Supiot, Nicolas Lechopier e

    Guillaume Gamblin, que me ofereceram muitas das condies necessrias para essa

    circulao. Agradeo tambm a(os) integrantes do grupo Decrescimento Brasil pelas trocas,

    debate e dilogos.

    professora Ana Claudia Duarte Rocha Marques, que aceitou orientar um trabalho

    cujo tema sempre foi to nebuloso. Seu apoio, suas indicaes e sobretudo a liberdade que

    sempre me concedeu foram fundamentais para deslindar o caos que insistia em se colocar

    diante de ns.

    professora Isabel Loureiro, pelas ricas contribuies na banca de qualificao. A

    suas sugestes foram de extrema importncia, inspirando grande parte desse trabalho.

    Ao professor Renato Sztutman, no apenas pelo instigante dilogo na banca de

    qualificao como pelas trocas ao longo das disciplinas. Agradeo por estar sempre aberto e

    pelo constante incentivo.

    professora Sylvia G. Garcia, que me ensinou, ainda na graduao, o que ser

    cientista social 24 horas por dia e que para fazer um bom trabalho, preciso dar razes.

    Ao grupo de estudos sobre ideologia, do qual fiz parte de maneira tmida e silenciosa.

    Sou imensamente grata por terem aberto as portas para um universo do qual eu no fazia

    parte, mesmo sob a minha condio de espectadora. Espero, com este trabalho, tornar pblico

    o quanto aprendi com vocs, Bruna, Anouch, Lais, Eduardo, Everaldo, Ugo, Fbio e Vladimir.

    Ao grupo Hybris, de onde este trabalho sorveu muitas referncias, indagaes e

    questionamentos. O cruzamento de temas aparentemente to distantes foi e continua sendo

    absolutamente enriquecedor, permitindo-me ultrapassar fronteiras tericas e polticas.

    Agradeo ao Nicolau, Julia, ao Carlos, Fernanda, Dani, Flor e ao Adalton. Sobretudo

    Natacha por compreender muitas vezes as minhas incertezas, e Catarina, que uma grande

    inspirao.

    Anouch e Lais, pelas conversas infindveis e por sempre me lembrarem de que eu

  • no estava sozinha. Samantha, pela amizade de anos, pelos incentivos nos momentos de

    crise e por compartilhar inquietaes e questes. Ao Edu, pelas sempre animadas discusses.

    Carol e ao Leandro, por estarem sempre presentes. Andrea pelo apoio na reta final.

    Em especial Bruna, por ter me ensinado, com sua fora e sua amizade, o que (e

    como) enfrentar este mundo.

    A quatro mulheres que, ora de perto ora de longe, acreditaram na importncia deste

    trabalho: minha av Janette e as tias queridas Sandra, Heleninha e Ndia. Ao Camilo e ao

    Alexandre, por terem acompanhado e torcido com tanto carinho.

    A minha me e ao meu pai, por incentivarem e por me oferecerem todas as condies

    para que eu pudesse ir a campo, passar horas diante dos livros e por nunca duvidarem da

    importncia de tudo isso. Agradeo ainda minha irm que, com sua incrvel compreenso

    das contradies do mundo, sempre esteve disposta a ouvir o que que eu tanto estudo.

    Ao Danilo, por estar presente sempre, em tudo o que est por trs e pela frente de

    todas essas pginas.

    Esta pesquisa contou com o apoio do CNPq.

  • BDUE, Ana Flvia P. L. A nebulosa do decrescimento. Um estudo sobre as contradies das novas formas de fazer poltica. 181p. Dissertao (Mestrado em Antropologia Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Antropologia da Universidade de So Paulo, 2012.

    Resumo: Esta dissertao de mestrado tem como tema central a mobilizao poltico-

    ecolgica de Decrescimento na Frana. Com o argumento de que o crescimento econmico

    destri o meio ambiente, militantes do decrescimento acionam uma diversidade de coletivos,

    aes e ideias para construir uma mobilizao poltica em forma de nebulosa. Diferente de um

    movimento social, de um partido poltico ou de um grupo com contornos bem estabelecidos,

    uma nebulosa uma mobilizao descentrada e aberta, que coloca em relao iniciativas

    distribudas pelo territrio francs com a preocupao de garantir a autonomia e a

    particularidade de cada grupo local. A fim de discutir as implicaes dessa forma de fazer

    poltica que frequentemente considerada inovadora, esta dissertao toma como ponto de

    partida a nouvelle gauche, nascida em meados dos anos 1950 na Frana. Por meio do

    levantamento de algumas questes que aparecem nessa nova esquerda, discute-se as

    implicaes do aparecimento de novas maneiras de conceber o social e agir politicamente em

    detrimento do marxismo, da contradio de classes e da noo de explorao por meio do

    trabalho. Diante da problematizao do conjunto de ideias e prticas que tomava corpo

    naquele perodo, parte-se para uma discusso das continuidades e descontinuidades

    instauradas pelo decrescimento com relao aos movimentos precedentes, atravs da

    descrio etnogrfica das relaes estabelecidas pelos militantes franceses. Por fim, as novas

    formas de fazer poltica desenvolvidas pelo decrescimento so problematizadas na medida em

    que so aproximadas das novas formas do capitalismo. Muitas anlises sugerem que a crtica

    tornou-se o motor do capitalismo por meio da incorporao de formas de organizao social e

    ideolgica que tem profundas afinidades com o movimento decrescimento. Dessa forma, so

    discutidas as contradies de um movimento que tenta colocar o crescimento em xeque.

    Palavras-chave: 1) Decrescimento; 2) Ecologia poltica; 3) Movimentos sociais; 4)

    Capitalismo

  • BDUE, Ana Flvia P. L. The nebula of degrowth. A study on the contradictions of new forms of political action. 181p. Dissertao (Mestrado em Antropologia Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Antropologia da Universidade de So Paulo, 2012.

    Abstract: The aim of this thesis is to discuss the degrowth movement in France. Considering

    that economic growth leads to environmental damages, degrowth activists state that it is

    necessary to create new forms of political action. Thus, many informal collectives, practices

    and ideas are mobilized in order to built what is called nebula of degrowth. Different from a

    social movement, a political party or a well defined group, a nebula is a non-centered and

    opened mobilization, that establishes many relations between collectives and groups spread

    all over the French territory. While the connections are created, many efforts are made to

    guarantee the differences and autonomy of the groups joined together. To discuss the

    implications of the nebula form of degrowth, this thesis goes back to the emergency of the

    nouvelle gauche, during the 1950s. Some issues that usually have shown up in this moment

    allows us to discuss how society and political action was reconceptualized, for example by the

    expulsion of marxist ideas such as class struggle and labor exploitation. The mapping of the

    main points of the new left in France leads us to discuss the continuities and discontinuities

    introduced by degrowth movement in the political scenery. After an ethnographic presentation

    of degrowth nebula, the conclusion is that there are many contradictions in the form the

    movement states social criticism. To explain what are the meanings of such contradictions, a

    final topic is presented: the contradictions of the contemporary capitalism. By bringing

    capitalism and degrowth movement aside, it is possible to see that both have similar but

    opposite forms.

    Keywords: 1) Degrowth; 2) Political ecology; 3) Social movements; 4) Capitalism

  • Sumrio

    Introduo.................................................................................................................................10Captulo 1. A Nouvelle Gauche.................................................................................................18

    1. 1. O diagnstico de uma sociedade integrada pela tcnica..............................................211. 1. 1. O novo mundo..................................................................................................211. 1. 2. A recusa do marxismo e tcnica como nova inimiga...........................................231. 1. 3. Da prxis transformao...................................................................................46

    1. 2. A nouvelle gauche e a ecologia poltica....................................................................561. 3. Marxismo fragmentado................................................................................................661. 4. Do novo nebulosa...................................................................................................69

    Captulo 2. Decrescimento em nebulosa...................................................................................732. 1. Histria(s).....................................................................................................................78

    2. 1. 1. Nasce o decrescimento como conceito................................................................782. 1. 2. Etiquetando e costurando o decrescimento: nebulosa como mtodo..................90

    2. 2. Meios de comunicao.................................................................................................962. 2. 1. Silence e a nebulosa das alternativas...............................................................972. 2. 2. Redes de comunicao.......................................................................................1062. 2. 3. La Dcroissance: a crtica como ao................................................................110

    2. 3. Consumo poltico, trocas humanizadas e produo justa...........................................1172. 3. 1. Borrando a publicidade......................................................................................126

    2. 4. Militncia e as totalizaes parciais...........................................................................1322. 5. A expulso do outro no outro possvel....................................................................135

    Captulo 3. Transformaes no capitalismo e as contradies da crtica................................1383. 1. O achatamento das contradies................................................................................1403. 2. Economia de espelhos e ps-modernismo..................................................................1493. 3. Ideologia.....................................................................................................................1623. 4. As contradies do decrescimento.............................................................................167

    Referncias Bibliogrficas......................................................................................................174

  • Introduo

    A Cincia Poltica europeia est passando por um dilema: como estudar poltica se as

    instituies polticas (parlamento, eleies, partidos) esto perdendo a credibilidade e a fora?

    Uma srie de estudos vem sendo elaborados para tentar medir a democracia, para verificar

    se as pessoas identificam-se com os partidos e qual a confiana que depositam nas instituies

    democrticas. Segundo dados obtidos pelo Eurobarometer (um conjunto de surveys realizados

    em diversos pases da Unio Europeia sobre a percepo da economia e da poltica na UE1),

    europeus declaram acreditar mais em instituies no democrticas como a polcia do que em

    eleies e partidos. Alm disso, os jovens esto depositando sua energia poltica no mais em

    militncia partidria, mas sim em associaes e organizaes no governamentais. Por fim, os

    partidos que tinham amplo apoio popular tem sua participao quantitativamente diminuda

    nas instncias de poder, sendo substitudos por uma mirade de novos pequenos partidos cuja

    base social de classe mdia. A consequncia disso a expulso dos setores mais pobres para

    fora da poltica, por um lado, e de outro uma reorganizao da ao de jovens de classe mdia

    e alta que no parece se encaixar nos moldes tradicionais de partidos e eleies (cf.

    MERKEL, 2012).

    Essas questes, no interior da teoria poltica, passam por uma srie de reas temticas,

    que vo do debate sobre o conceito de democracia at a discusso metodolgica sobre a

    possibilidade de mensur-la, passando por problematizaes filosficas de representao e

    legitimidade. Qualquer que seja a perspectiva e a posio adotada, o ponto no qual todas se

    cruzam o consenso de que preciso repensar o que poltica na Europa e discutir as

    instituies e seus limites.

    H cientistas polticos (que declaram-se isolados) que tentam traar um quadro mais

    otimista no que diz respeito aparente falncia da participao popular no engajamento

    poltico e propem que as associaes, organizaes e mesmo coletivos no formalizados que

    so apontados como substitutos dos partidos pelo Eurobarometer so novas formas de fazer

    poltica. Esta viso corresponde aos argumentos acionados pelos prprios militantes que

    travam batalhas (semnticas e concretas) para mostrar o quo importante consumir

    1 Conferir o site do Eurobarometer: .

    10

  • orgnicos e andar de bicicleta. E mais do que politizar novas esferas da vida, o argumento em

    voga que isto se d por oposio a outras formas de ao que seriam estreis do ponto de

    vista da transformao social.

    Os planos de austeridade europeus em resposta crise econmica (que comeou em

    2008 e que voltou ainda com mais fora nos pases de capitalismo avanado em 2010)

    levaram s ruas europeias e norte-americanas multides de indignad@s que reivindicavam

    democracia real j, uma democracia cujas decises fossem tomadas sem a mediao dos

    partidos existentes e sem que a poltica fosse submetida a prerrogativas econmicas. As

    praas tomadas, como Bellecour em Lyon, eram como arenas nas quais se poderiam ensaiar,

    em pequena escala, a democracia que se queria levar adiante2. Ao mesmo tempo, no interior

    dos acampamentos, havia um grande problema em jogo: seria preciso fazer a crtica ao

    sistema contra o qual as pessoas ali presentes se manifestavam ou a prpria existncia de

    coletivos auto-geridos daria conta de colocar abaixo a poltica que servia aos bancos? Esse

    debate, que tomava as assembleias e as conversas nas praas, abordava a mesma questo que

    a cincia poltica europeia aciona: o que fazer poltica?

    Esta dissertao de mestrado tem como tema central o decrescimento, uma dentre

    tantas novas formas de fazer poltica que circulam na Frana e cujos militantes3 estiveram

    presentes ativamente nas praas europeias durante o ms de maio de 2011. Nascido na esteira

    dos primeiros Fruns Sociais Mundiais, no incio dos anos 2000, o decrescimento era uma

    termo que aparecia para sistematizar a crtica ao crescimento econmico e os problemas

    ambientais e para tornar pblica a possibilidade de se construir uma sociedade no baseada

    nos ndices de crescimento e desenvolvimentos.

    A novidade conclamada pelo decrescimento residiria em sua forma disforme e por isso

    democrtica: sem um centro, sem um programa comum deliberadamente qualquer pessoa

    ou coletivo pode integr-lo e transform-lo, mediante debates e relaes com os demais.

    Diferente de um conjunto de coletividades dispersas, a nebulosa do decrescimento

    2 Na Espanha, foram milhares de pessoas que ocuparam praas em Madri, Barcelona e outras cidades. Logo, a pequena escala no significa uma quantidade pequena de pessoas envolvidas, mas sim que havia um acordo sobre as ocupaes serem uma forma de protesto e no uma construo imediata de uma sociedade alternativa, como se aquelas praas oferecessem instrumentos para a nova poltica na medida em que eram organizadas de maneiras novas.

    3 Novas formas de fazer poltica implicam novas formas de militncia. Militar pelo decrescimento, como veremos ao longo deste trabalho, no pertencer a um grupo de decrescimento, mas defender a causa em diversas situaes coletivas e tambm no modo de vida cotidiano.

    11

  • definida por seus militantes como a possibilidade de interconectar iniciativas esparsas e

    separadas, bem como aes individuais e pontuais e, assim, potencialmente estend-las para

    provocar uma transformao social em larga escala.

    Por meio dessa forma de organizao, o decrescimento uma mobilizao que

    problematiza o crescimento econmico em funo das destruies ambientais que este

    provoca, mas a mirade de argumentos evocada para fazer essa associao e para propor

    solues dificulta propositadamente o elenco de um conjunto de conceitos que definam

    decrescimento. H, por exemplo, setores do movimento que enfatizam a dimenso econmica

    do crescimento; outros colocam a economia como fruto de nosso imaginrio consumista, e

    propem que a ao deve ser voltada para a transformao das mentalidades. Alguns grupos

    defendem uma relativa separao temtica no interior da crtica ao crescimento e assim as

    reivindicaes seriam melhor atendidas, por exemplo separar a luta contra a publicidade dos

    problemas ambientais. Ainda h coletivos voltados para a construo de relaes entre

    pequenos grupos (como associaes de associaes, redes de movimentos, etc.) para evitar

    que a mobilizao se fragmente.

    A questo de inovar as formas de fazer poltica por meio do decrescimento toma corpo

    nas alianas e nos conflitos entre grupos, pessoas e ideias. Militar pelo decrescimento no

    pertencer a um grupo bem constitudo, mas passar por uma srie de coletivos de forma

    flexvel, como que deslocando o compromisso com uma causa que se pretende totalizante

    para um mltiplo engajamento. Os coletivos, por sua vez, so pequenos, frequentados por um

    nmero flutuante de pessoas e a diferena entre uma militante e um simpatizante difcil de

    ser estabelecida, como que se isso no fizesse diferena para efetividade da mobilizao.

    E exatamente este o ponto mais importante para se compreender o que

    decrescimento: a efetividade da mobilizao. Como ser mostrado ao longo deste trabalho, a

    reconfigurao da ao poltica, que to debatida em diversos meios (acadmicos,

    militantes, nos jornais, etc), passa por uma relao com o fazer: no basta criticar o

    crescimento, preciso fazer algo. Aparecem, ento, os conflitos em torno do que este fazer:

    seria suficiente entregar panfletos na rua, integrar um partido poltico? Fazer no apenas

    organizar descontentamentos (mas, diro rapidamente as defensoras e defensores do

    decrescimento, certamente isto fundamental), e sim fazer o outro mundo que se quer

    quando se nega aquele em que se vive. Decrescimento colocar em prtica a crtica ao

    12

  • crescimento (que, por sua vez elaborada nos livros e debatida em diversas coletividades),

    no apenas atravs da publicizao dos questionamentos, mas tambm de formas de ao que

    supostamente no passam pelas orientaes gerais (tericas e prticas) do sistema o qual se

    critica.

    Muitas das propostas e prticas envolvidas com o decrescimento, apesar de

    aparecerem aos olhos de jovens militantes como uma novidade, j estiveram presentes nas

    mobilizaes da nova esquerda nos anos 1960. Contudo, apesar das proximidade entre as

    aes, o que retomado deste perodo na construo do decrescimento menos o repertrio

    das prticas do que a produo terica de autores como Bernard Charbonneau, Jacques Ellul,

    Ivan Illich e Andr Gorz.

    No primeiro captulo da dissertao, retomamos alguns aspectos da esquerda francesa

    entre as dcadas de 1950 e 1970, tanto aqueles que so explicitamente mencionados pelos

    militantes do decrescimento quanto os que no so. A partir de uma retomada de pontos

    centrais da obra produzida naquele contexto por Charbonneau, Ellul, Gorz e Illich, bem como

    de algumas questes que perpassavam diversas mobilizaes, pode-se perceber que mais

    importante do que o modo como o meio ambiente era problematizado naquele contexto era a

    proposta de reformular a compreenso da sociedade, a crtica e as formas de ao poltica.

    A reformulao da crtica pela nova esquerda dizia respeito expulso do marxismo

    dos partidos comunistas, bem como de conceitos e explicaes que pareciam estar superadas

    (como as classes sociais e a explorao do trabalho), sob a justificativa de que o mundo

    mudara consideravelmente e novas anlises precisavam ser feitas e novas formas de ao

    seriam necessrias para mudar essa realidade social. Entravam em cena, ainda, novos atores,

    como cientistas e estudantes de classe mdia.

    Embora os movimentos daquele momento sejam vistos hoje com ressalvas por terem

    fracassado, se estabelecemos pontos de contato entre aquelas mobilizaes e o decrescimento

    atualmente, percebemos que na verdade a nova esquerda teve efeitos bastante significativos

    com relao renovao da compreenso do social e das estratgias polticas. Ao defender

    que na nova formao social no mais eram mais as classes operrias que eram exploradas,

    mas toda a sociedade que, por meio do consumo de massas e do Estado de Bem Estar Social

    se via submetida aos imperativos da tcnica at mesmo as esferas subjetivas no escapavam

    ao seu jugo, j estava em jogo a organizao de formas de mobilizao que colocavam em

    13

  • xeque certas categorias sociais ao lanar propostas e reflexes sobre autonomia, autogesto,

    aes locais e micropolticas.

    Em termos mais abstratos, a fora da multiplicao de pontos de vista e de

    movimentos fragmentados corresponde a uma supresso da noo de contradio como motor

    da organizao social. As teorias que defendiam o fim das classes, por exemplo, propunham

    que a sociedade no era mais marcada por uma ciso interna, porque toda a populao estava

    igualmente submetida ao totalitarismo das tcnicas e do progresso. O novo fenmeno da

    alienao no se dava mais pelo trabalho, defendiam muitos pensadores e militantes daquele

    momento, e sim pela determinao de todas as esferas da vida por tcnicas heternomas, ou

    seja, que subvertem as necessidades, desejos e princpios humanos transformando-os em seus

    produtos.

    A reformulao da esquerda passava tambm por uma recusa de uma centralizao

    poltica e ideolgica (aqui no sentido de conjunto de ideias polticas), que reverberava nas

    formas de ao pontuais e fragmentadas, nas quais o corpo, a alimentao, a sexualidade e os

    modos de vida assumiam papel preponderante. O prprio marxismo, que tanto fora avaliado

    naquele momento como fracassado e insuficiente incorporou as crticas que recebia. A partir

    de um breve levantamento dos rumos do marxismo na Frana nos anos 1960, sugerimos que a

    descentralizao e a recusa de um corpo coeso de conceitos e projetos de mobilizao tambm

    marcaram-nos.

    O efeito da combinao entre recusa de teorias totalizantes de um lado e exploso de

    lutas pontuais baseadas nos modos de vida de outro foi a consolidao de uma esquerda que

    entende a ao por meio do fragmento, que perde de vista a totalidade social, seja como modo

    de organizao ou como alvo das mobilizaes. Anos depois, quando emergem os

    movimentos anti-globalizao, essa fragmentao potencializada mas tambm

    problematizada por movimentos como o do decrescimento, que busca restabelecer alguma

    percepo de totalidade ao mesmo tempo que se esfora para no recair em formaes

    totalitrias.

    No fim dos anos 1990, quando surgem os movimentos anti-globalizao, os problemas

    contra os quais estes se colocavam eram significativamente distintos daqueles vivenciados

    pela nova esquerda trinta anos antes. Ao mesmo tempo, no se pode dizer que no houvesse

    qualquer continuidade entre ambos perodos. O decrescimento, que nasceu nesse contexto,

    14

  • sempre foi marcado por uma recusa da centralizao de ideias por determinados grupos, como

    se a prpria existncia do movimento passasse por sua forma disforme. O segundo captulo

    faz uma descrio dessa multiplicidade de coletivos, pessoas, ideias e conceitos que compem

    o decrescimento e atenta para a nfase da ao militante na construo de relaes, como

    uma maneira de evitar que pequenos gestos e pequenas coletividades restem isoladas e no

    produzam efeitos socialmente relevantes.

    comum, como j foi dito, que os militantes definam o decrescimento como uma

    nebulosa, composta por meios de comunicao, sites, jornais e revistas, produtores, lojas e

    restaurantes de alimentos orgnicos, coletivos anti-publicidade e uma mirade de associaes

    ligadas a temas diversos. As relaes so o mote destas pequenas organizaes, ou seja, no

    bastaria agir pontualmente produzindo orgnicos se esta produo no fosse um modo de

    religar produtores e consumidores, de restabelecer laos de amizade onde o dinheiro havia

    provocado despersonalizao das relaes. Entre este e outros casos, o decrescimento aparece

    como uma dupla resposta s formas precedentes de fazer poltica: de um lado, recusando a

    ao tradicional (como militncia partidria) e de outro, problematizando a herana new age

    dos anos 1960, isto , das iniciativas individuais de levar estilos de vida alternativos que em

    nada mudariam o mundo. Em suma, por meio de uma srie de discusses, o segundo captulo

    traa um mapeamento de alternativas militantes e problematiza o que est em jogo quando se

    propem novas formas de fazer poltica que passem tanto pelos modos de vida quanto pelos

    investimentos de criar conexes que no suprimam as especificidades e diferenas efeito das

    mobilizaes da nova esquerda quarenta anos antes.

    A continuidade entre os dois perodos , portanto, mais profunda do que uma mera

    transmisso de contedos e de repertrios de ao e de reflexes. Ao enfatizar as relaes

    entre as lutas fragmentadas que a nova esquerda havia lanado no campo do poltico, o

    decrescimento procurou restabelecer uma dimenso de totalidade que ao mesmo tempo fica

    ameaada pelo princpio organizador de no territorializar o decrescimento em lugar algum.

    A hiptese final deste trabalho, desenvolvida no terceiro e ltimo captulo, que esta

    oscilao contraditria do decrescimento corresponde outra contradio, que sua relao

    tensa com o capitalismo contra o qual se erige. Ao se constituir como uma nebulosa de

    alternativas (seja no plano do pensamento ou das aes concretas), o decrescimento retoma,

    sua maneira, a ideia de outro mundo possvel postulada pelos movimentos antiglobalizao

    15

  • da virada para o sculo 21. Alternativas a qu, poderamos perguntar? No apenas ao

    crescimento econmico, mas tambm ao neoliberalismo, manipulao dos desejos pela

    publicidade, estetizao da poltica, entre tantos outros questionamentos que so

    apresentados no segundo captulo.

    O terceiro captulo , ento, uma reflexo feita com base em diferentes abordagens

    sobre o capitalismo contemporneo com o objetivo de apreender como o alvo das lutas do

    decrescimento se organiza. A partir desse quadro, nos deparamos com contradies no

    movimento pois, na medida em que se ope a uma srie de elementos que constituem o

    capitalismo, acaba se aproximando dele atravs de sua forma nebulosa de estabelecer relaes

    que constituem totalidades parciais e ao acionar a diferena como motor de sua existncia. Por

    outro lado, h que se levar em conta que esto envolvidas na nebulosa do decrescimento

    motivaes de resistncia que, diante de um diagnstico de falncia da mobilizao social de

    massas, encontram suas armas de luta no cotidiano e na articulao de gestos pontuais. Uma

    vez que o capitalismo incorporou a crtica (como forma e no o contedo especfico de

    alguma crtica em particular), parece no haver mais lugar para sair dele; se seu motor a

    prpria possibilidade de crtica, ele ir sempre se perpetuar como verses diferentes de si

    mesmo. Mas fica a questo: ser que o movimento de decrescimento tambm no instaura

    rupturas que desafiam um pensamento teleolgico, e cujo efeito no pode ser previsto?

    ***

    Nota etnogrfica

    O trabalho de campo que deu origem s questes desenvolvidas nesta pesquisa de

    mestrado foi realizado em Lyon, terceira maior cidade francesa, em maro de 2010 e maio de

    2011, mas antes de ir a Frana, a pesquisa j estava em curso a partir do levantamento dirio

    de textos que circulavam na internet com a palavra dcroissance4. Foi em campo que me

    deparei com uma inesperada rede de pequenos coletivos, pelos quais as pessoas circulam e

    constroem imagens de mundo a partir de sua perspectiva militante, de modo que pude recortar

    4 Por meio de uma ferramenta do Google, recebo em minha conta de e-mails todos os dias as notcias publicadas que contenham a palavra dcroissance. Entre 2008 e 2010 organizei o material em um banco de textos.

    16

  • como tema da pesquisa de mestrado a organizao em nebulosa do decrescimento.

    importante apontar, de incio, que muitos grupos, pessoas, ideias, propostas e aes

    ficaram de fora deste trabalho, no apenas pela economia do texto, mas pela impossibilidade

    (constitutiva do movimento) de acompanhar todos os grupos. Durante esses dois meses,

    acompanhei uma srie de atividades e movimentaes organizadas por pessoas e coletivos

    que defendem diretamente o decrescimento, como o jornal La Dcroissance, a revista Silence,

    e a Entropia ou por grupos que se dizem afeitos ideia de decrescimento, como o

    Deboulonneurs, o Les Compostiers, o bazar 3 p'tit pois, o restaurante Le Court Circuit, entre

    outros, de modo que eu mesma fui considerada militante. Foram realizadas algumas

    entrevistas mas o meio principal de adentrar na nebulosa foi segui-la diariamente.

    A simples fala de que eu estava em Lyon para estudar o decrescimento me colocava

    diante da forma descentrada da mobilizao: imediatamente meus interlocutores acionavam

    uma srie de pessoas e de coletivos com os quais eu deveria estabelecer contato. Entre tantas

    indicaes, algumas referiam-se a autores j mortos que teriam levantado precocemente o

    tema do decrescimento, como aqueles sobre os quais me detive no segundo captulo. Passei a

    intercalar a pesquisa sobre mobilizao social e correntes tericas da chamada nova esquerda.

    Os temas escolhidos para serem trabalhados no primeiro captulo foram de certa forma

    originados das questes que motivam o decrescimento contemporneo e, por essa razo,

    foram feitos recortes e muitas questes importantes levantadas pelos autores em particular e

    pelos movimentos da dcada de 1960 em geral no foram contemplados nesta dissertao.

    Por fim, o carter aparentemente mais terico e menos emprico do ltimo captulo

    est profundamente relacionado com toda a pesquisa de campo que realizei e com os

    estranhamentos e contradies vividas pelos prprios militantes. Mais do que um captulo

    separado que busca explicar e dar sentido a todas as questes previamente levantadas,

    busquei realizar textualmente um procedimento metodolgico de passar das partes ao todo e

    do todo s partes, bem como do geral ao particular e vice-versa.

    17

  • Captulo 1. A Nouvelle Gauche

    No se deve perguntar qual o regime mais duro, ou mais tolervel, pois em cada um deles

    que se enfrentam as liberaes e as sujeies. [] No cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas.

    Giles Deleuze

    O decrescimento tanto um movimento poltico-ecolgico, quanto um princpio de

    vida, como ainda um conjunto de teorias sociais, econmicas e polticas. O ponto comum

    entre as diversas formulaes do decrescimento a constatao da insustentabilidade

    ecolgica e social do crescimento econmico que, mensurado por ndices de produo de bens

    e servios e de consumo, encontraria seus limites na explorao da natureza, j que um mundo

    de recursos naturais finitos parece dar sinais de esgotamento frente a nveis de crescimento

    cada vez maiores. Em termos muito genricos, quem se diz favorvel ao decrescimento

    concorda que o crescimento infinito no absolutamente compatvel com um mundo de

    recursos naturais finitos.

    O crescimento econmico nem sempre o nico ponto a ser explorado por militantes e

    acadmicos. H temas e questes paralelas que circulam nos meios acadmicos e/ou

    militantes e que complementam a construo da inteligibilidade do termo, permitindo

    localiz-lo como algo distinto de uma oposio semntica ao crescimento5. o caso da

    problematizao dos padres de consumo dos pases industrializados do Norte, tema que

    parece ocupar certo lugar de consenso: opor-se ao crescimento passaria, inevitavelmente, por

    uma crtica feroz ao consumismo e publicidade.

    Os pontos de convergncia so, contudo, provisrios, no sentido de que nem sempre

    so abordados da mesma maneira por quem defende o decrescimento. A crtica sociedade do

    consumo pode ser o ponto de partida de certas coletividades, mas ser o ponto de chegada de

    5 Para ficar mais claro, pensemos em como a palavra decrescimento aparece no Brasil: no a identificamos com um grupo de pessoas ou um conjunto de ideias. Decrescimento apenas a palavra que indica o contrrio de crescimento, seja econmico, fsico, estatstico. Na Frana, o termo dcroissance entrou para o dicionrio Petit Larouse em 2009 como "politique prconisant un ralentissement du taux de croissance dans une perspective de dveloppement durable" (BONAL, 2009). Porm, grande parte dos outros dicionrios do como definio termo "diminuio".

    18

  • outras. Uma heterognea massa de ideias, propostas, crticas, sugestes, aes prticas,

    coletivos e associaes propem verses distintas de decrescimento e comum que os

    prprios militantes do decrescimento nomeiem aquilo que aparece a uma observadora externa

    como um mosaico como uma nebulosa. Como ficar evidente no prximo captulo, as

    diferenas so consideradas a forma de existncia do decrescimento, como uma recusa em

    sistematizar um conceito de decrescimento exclusivo e unvoco. Por isso o decrescimento

    considerada pelas pessoas engajadas uma nebulosa e no propriamente de movimento

    social, nem reduzido teoria do decrescimento ou a determinadas maneiras legtimas e

    corretas de praticar o decrescimento.

    O decrescimento se constituiu em um momento de efervescncia de mobilizaes

    sociais e ambientais nos anos 2000, ao mesmo tempo em que muitos militantes remontam aos

    anos 1960 e 70 como fonte de inspirao. Autores como os franceses Jacques Ellul, Bernard

    Charbonneau, Andr Gorz, Cornelius Castoriadis e Franois Partant, o romeno Nicolas

    Georgescu-Roegen, o austraco Ivan Illich e o ingls Ernst Friedrich Schumacher seriam de

    certa forma referncias para a elaborao do pensamento e das propostas de decrescimento, j

    que todos eles teriam, de um modo ou de outro, apresentado de forma sistemtica questes

    relativas aos malefcios da sociedade de consumo e insuficincia (social e ecolgica) do

    crescimento econmico (cf. BESSON-GIRARD; LATOUCHE, 2006).

    O projeto de uma sociedade autnoma e econmica abarcado pelo slogan do decrescimento no de ontem. Sem remontar a algumas utopias do primeiro socialismo, nem tradio anarquista renovada pelo situacionismo, ele foi formulado, desde o fim dos anos 1960 e de uma forma muito prxima da nossa, por Andr Gorz, Franois Partant, Jacques Ellul, Bernard Charbonneau, mas sobretudo por Cornelius Castoriadis e Ivan Illich. O fracasso do desenvolvimento no Sul e a perda das referncias no Norte levaram esses pensadores a questionar a sociedade de consumo e suas bases imaginrias.

    LATOUCHE, 2009, p. 13.

    Alm de evocados atualmente como precursores de algumas das ideias do

    decrescimento, os prprios autores tiveram alguma participao com o movimento atual. Ivan

    Illich participou da conferncia Dfaire le dveloppement, rfaire le monde (ILLICH, 2002) e

    Gorz escreveu o ltimo artigo de sua vida, amplamente noticiado pela internet em sites do

    decrescimento, para a revista eletrnica EcoRev' (GORZ, 2007). Ellul, Charbonneau, Gorz e

    Ellul produziram uma srie de trabalhos entre os anos 1950 e 1970 que nem sempre foram

    19

  • imediatamente reconhecidos. Contudo, este perodo de suas produes tornou-se referncia e,

    mesmo os trabalhos mais recentes aparecem como se fizessem parte de uma obra cuja

    importncia decorresse das reflexes produzidas naquele momento6. Tais autores mantiveram

    profundo dilogo entre si. Ellul e Charbonneau trabalharam juntos desde a juventude, como

    ambos relatam em diversos trabalhos. Charbonneau foi o "mestre" intelectual de Illich (cf.

    ILLICH, 1994), que por sua vez tornou-se referncia obrigatria para Gorz depois que este

    comeou a se engajar nas questes de sade, cincia e tecnologia (cf. GORZ, 2008).

    Duverger (2011) sugere que o decrescimento apenas reabilitou, sob a forma de

    movimento social, um debate que j estava posto quatro dcadas antes do qual tais autores

    citados por Latouche eram expoentes. Que debate seria esse? Neste captulo, sero levantados

    alguns temas desenvolvidos por Andr Gorz, Jacques Ellul, Bernard Charbonneau e Ivan

    Illich para compreender o que era evocado, mobilizado e enunciado naquele momento e que

    retorna hoje pela via do decrescimento. Ao selecionar a obra desses quatro autores, o objetivo

    evitar generalizaes acerca daquele perodo e mostrar como estavam sendo produzidos

    conhecimentos sobre a realidade social e propostas de transformao. Ao mesmo tempo, a fim

    de localiz-los em seu tempo, sero apontadas algumas linhas gerais do que se convencionou

    chamar de nova esquerda francesa, de ecologia poltica e do marxismo que entrava em

    colapso como referncia unvoca. O duplo movimento de refinar as referncias de um lado

    (aprofundar a apresentao dos quatro autores) e generaliz-las de outro (pela nova esquerda,

    pela ecologia poltica e pelo marxismo fragmentado) ao mesmo tempo um modo de

    apresentar o procedimento utilizado pelos defensores do decrescimento hoje e us-lo como

    estratgia textual para relacionar parte e todo. Como diz David Harvey (2012), a proximidade

    ajuda a revelar as microtexturas de que so compostas as grandes pinceladas e abrir mo de

    uma implica abrir mo da outra.

    Entre as generalizaes feitas sobre os anos 1960 e 1970 na Frana, esto aquelas que

    falam sobre a nouvelle gauche: a nova esquerda francesa que se constituiu para responder

    s crises do socialismo real, ao imobilismo e autoritarismo do comunismo internacional e s

    transformaes scio econmicas decorrentes das altas taxas de crescimento na Frana. Uma

    das caractersticas sempre lembradas dessa nova esquerda sua multiplicidade, no sentido de

    6 Um exemplo o livro Finis Terrae de Bernard Charbonneau (2010), que foi escrito na dcada de 1990 mas que apresentado como se fosse um trabalho imediatamente associado s reflexes que o autor produziu nos anos 1970.

    20

  • ser praticamente invivel traar linhas comuns. Ao invs de mapear tudo aquilo que se

    considerava como nova esquerda, ou de buscar todas as linhas gerais para conseguir

    classificar os quatro autores, parece ser mais interessante levantar os elementos que se

    tornaram significativos na reorientao da esquerda e que hoje marcam a crtica do

    decrescimento e sua forma de mobilizao social. Isso significa que o quadro apresentado

    adiante acaba deixando de fora uma srie de debates e questes, como a sexualidade e o

    feminismo, que foram de suma importncia para o momento mas que hoje no esto

    imediatamente ligados ao decrescimento.

    O que liga os autores aqui escolhidos ao decrescimento contemporneo menos uma

    preocupao propriamente ecolgica e a problemtica da natureza propriamente dita. Decerto

    apareciam consideraes sobre o meio ambiente, mas na maior parte das vezes eram como

    uma chave de acesso a problemas maiores: a questo da liberdade e da autonomia. O que

    levou esses autores a serem reconhecidos tantos anos depois como importantes pensadores da

    ecologia poltica so suas formulaes acerca de um mundo novo, em transformao, que

    exigia novas reflexes, questionamentos e intervenes.

    1. 1. O diagnstico de uma sociedade integrada pela tcnica

    1. 1. 1. O novo mundo

    Entre 1945 e 1973 a Frana (bem como os demais pases de capitalismo avanado,

    cada qual com sua especificidade) foi marcada pela racionalizao extrema da indstria

    amadurecida no entre-guerras, por elevados nveis de crescimento econmico, pelo aumento

    do padro de vida (aumento de salrios reais e de renda familiar), pela conteno de

    tendncias a crise e a conflitos blicos e pela preservao da democracia de massas. O

    crescimento teve como fundamento uma reformulao dos papeis dos atores envolvidos nesse

    fenmeno: o Estado passou a intervir pesadamente na economia e nas relaes corporativas; o

    capital corporativo teve que se ajustar a reivindicaes dos sindicatos e estes, por sua vez,

    para ter suas reivindicaes salariais e de polticas sociais atendidas ofereciam em troca a

    cooperao s tcnicas fordistas de produo para garantir o aumento de produtividade (cf.

    HARVEY, 2012). Alm disso, o regime sovitico apontava sinais de crise e os partidos

    socialistas e comunistas fora da URSS representavam cada vez menos os grupos de esquerda,

    21

  • descontentes com uma srie de fatores do regime.

    Esse perodo, que ficou conhecido como os Trinta Gloriosos (ou Anos Dourados do

    capitalismo), colocava para a esquerda, uma srie de problemas relativos a como interpretar e

    compreender essas relaes sociais, econmicas e polticas e como lutar contra elas. Era

    comum que se definisse aquela realidade como uma novidade radical, no sentido de romper

    completamente com o passado. Conforme Angela Alonso (2009, p. 59), naquele momento

    dizia-se que uma mudana macroestrutural teria alterado a natureza do capitalismo, cujo

    centro teria deixado de ser a produo industrial e o trabalho. Uma nova sociedade se

    vislumbraria, dando lugar tambm a novos temas e agentes para as mobilizaes coletivas. O

    marxismo comeou, assim, a ser visto por certos setores da esquerda francesa como

    insuficiente para dar conta desse contexto. O mundo parecia no mais corresponder ciso de

    classes, como se todas as pessoas agora tivessem sido igualmente submetidas tcnica; logo,

    a transformao social no dependeria mais de uma luta interna sociedade, mas de uma

    recusa a algo que lhe exterior e lhe determina de fora.

    A indstria, a tcnica e a ao humana deixam de figurar como soluo para o futuro

    para se converterem em problema presente, causadoras de problemas sociais, ambientais e,

    mais do que isso, um perigo liberdade. Como mostra Jean Jacob (1999), os anos 1960 e 70

    foram marcados pelo fim das esperanas oferecidas pela razo. A cincia no mais levaria a

    um futuro melhor e inelutvel, o progresso parecia ter deixado de ser soluo e tornou-se

    problema, a industrializao elevou o nvel de vida material, mas teria sido responsvel por

    novas formas de restries s liberdades humanas.

    Alm disso, divulgava-se o fracasso do socialismo real e consequentemente parte da

    esquerda recusava o Partido Comunista e a Unio Sovitica como referncias ou paradigmas.

    Por fim, tudo isso estava associado reconfigurao dos problemas diante da emergncia de

    novas questes, como a ecologia, o feminismo e a sexualidade. As fronteiras sociais, polticas

    e territoriais dos problemas se transformaram: uma vez que o poder passa a ser

    problematizado como algo que opera sem centro e por meio de pequenos gestos e em relaes

    sociais que antes no eram problematizadas como tais (como a escola, o turismo, a sade,

    etc), esse poder (e a dominao) no mais estava associado a grupos especficos nem era

    mediado por determinadas relaes sociais, de modo que todo o mundo parecia estar sujeito

    aos mesmos mecanismos de controle e dominao.

    22

  • 1. 1. 2. A recusa do marxismo e tcnica como nova inimiga

    Atualmente, o marxismo uma questo que aparece entre os militantes do

    decrescimento, mas em menor medida se comparado com o debate crtico das dcadas de

    1950 a 70 na Frana. Parece haver um certo consenso sobre sua derrocada dada sua suposta

    insuficincia; mas antes de haver um consenso (que frequentemente questionado em alguns

    textos ou em algumas conversas entre militantes), houve um momento em que foi preciso

    explicitar as razes para tirar o marxismo de cena.

    Dificilmente o marxismo era qualificado ou adjetivado porque era sempre identificado

    com aquilo que se proferia e se executava nos partidos comunistas, que respondiam ao PC da

    Unio Sovitica. Algumas vezes, o dilogo fazia parte de uma tentativa de reabilitar Marx e a

    crtica ao capitalismo fora do circuito do partido comunista sem abrir mo da posio

    questionadora e da perspectiva de transformao social. Charbonneau, Ellul, Illich e Gorz

    oscilavam muito entre desferir golpes violentos s proposies de Marx e entre historiciz-lo,

    garantindo um status de importncia obra de Marx, mas que era limitada por ser datada no

    tempo e no espao. Novas anlises deveriam ser feitas para explorar pontos aos quais Marx

    no teria dado a devida ateno ou que no teria vislumbrado dado o momento em que seu

    trabalho foi produzido. Muito do que se convencionou chamar de nova esquerda e as teses dos

    quatro autores tinham o objetivo de ser uma nova luz para reabilitar a crtica social sem

    necessariamente ter que passar pelo arcabouo terico-poltico marxista.

    Um dos elementos que se mobilizava com certa frequncia para estabelecer uma

    distncia com relao ao marxismo vigente era a crtica ao socialismo real. Charbonneau

    (1973) identificava a Unio Sovitica aos Estados Unidos a fim de mostrar que os problemas

    sociais e ambientais no eram exclusivos de um regime ou de outro, j que ambos

    compartilhavam a ideologia do progresso. Alm disso, tanto em um sistema com em outro, as

    estruturas tcnicas dominantes moldavam as formas de vida cotidiana suprimindo a liberdade

    de todos os indivduos. Ellul dizia que o grande problema nos anos 1930 e 40 era saber com

    qual tempero seremos devorados: hitlerista, stalinista ou americano" (ELLUL, 1982b, p. 12),

    ou seja, todos os sistemas apresentavam grandes ameaas totalitrias e deveriam igualmente

    ser combatidos.

    Illich, que viveu no Mxico e em Porto Rico por muitos anos, direcionava sua crticas

    sobretudo aos Estados Unidos e s intervenes deste pas na Amrica Latina, mas no

    23

  • deixava de compartilhar com Ellul e Charbonneau, reflexes sobre o socialismo. Afirmava

    que os mesmos processos se verificavam nos pases capitalistas e socialistas:

    contraprodutividade, subdesenvolvimento e monoplio radical7. Argumentava que, uma vez

    que a industrializao elimina a poltica, pouco importava a orientao do pas: a

    industrializao imperava, gerando um crescente dano irreparvel em todos os setores, em

    todas as partes do mundo. A nfase na industrializao fazia com que o socialismo e o

    capitalismo falassem o mesmo idioma ao classificar as sociedades por seu grau de

    desenvolvimento (ILLICH, 2006a, 2006b).

    Andr Gorz, nos anos 1960, discordava que se pudesse comparar os regimes

    capitalistas entre si bem como comparar capitalistas e socialistas, mas verificava um processo

    comum a todos: a subordinao do consumo produo e das necessidades, exigncias

    criadoras, cultura e educao s exigncias do processo de acumulao (GORZ, 1968a,

    1968b). Em suma, em nenhum dos pases as necessidades econmicas respondiam s

    exigncias de libertao humana; pelo contrrio, as finalidades humanas se submetiam s

    tcnicas. Isso se passava porque a acumulao tambm teria orientado o socialismo real, mas

    ao invs de ser privada, ali era pblica.

    A aproximao dos regimes capitalistas e socialistas implicava uma reviso das teorias

    sociais que preconizavam os segundos como alternativa (e por vezes inevitvel) aos

    primeiros, levando inevitavelmente a um dilogo, seno uma ruptura, com o marxismo, j que

    este, na viso dos autores em questo e de muitos outros contemporneos, no conseguia dar

    conta de uma nova realidade que subjugava todo o mundo, independentemente do regime

    poltico.

    Charbonneau e a grande metamorfose

    Ellul e Charbonneau se conheceram ainda jovens, quando faziam parte do movimento

    personalista. O personalismo foi uma corrente filosfica fundada por Emmanuel Mounier

    como uma alternativa leitura marxista economicista disponvel naquele momento para

    explicar as crises pelas quais passava a Europa desde 1929. Segundo essa corrente, a pessoa

    era o cerne das relaes sociais, por oposio s estruturas totalitrias e ao individualismo. A

    pessoa era concebida como uma relao dialtica, como um ser cuja existncia uma relao

    7 Esses conceitos sero desenvolvidos adiante.

    24

  • contnua de conflitos entre a exteriorizao e a interiorizao. O personalismo era, assim,

    tambm um projeto social uma vez que sugeria a plena realizao dessa existncia, da

    conciliao entre a pessoa e a vida comunitria uma vez que apessoa era a referncia de todas

    as aes humanas (cf. PEIXOTO, 2010).

    A perspectiva personalista de Charbonneau e Ellul j prenunciava na dcada de 1930

    as teses que publicariam nos anos 1950 e 1960. Conforme escreveram no Diretivas para um

    manifesto personalista, texto de 1935 publicado na revista Esprit, coordenada por Mounier, a

    organizao social, poltica e econmica que vivenciavam funcionava sem passar pelas

    escolhas reais dos indivduos, que agora se viam subjugados a uma ordem que lhes era

    exterior (CHARBONNEAU; ELLUL, 2011). Nesta sociedade, a renncia ao ser humano,

    conscincia, medida humana levou a um quadro no qual no so mais pessoas que dominam

    pessoas, mas as fbricas, as instituies, o Estado, o lucro, os armamentos que dominam a

    humanidade, minando as liberdades humanas. O personalismo seria uma nova civilizao que

    s se alcanaria mediante um novo estilo de vida verdadeiramente humano. Aquilo que

    verdadeiramente humano feito por "juzos que ns temos sem pensar, pelas nossas reaes

    em face a todos os eventos dirios" (CHARBONNEAU; ELLUL, 2011, p. 155). Seria como

    uma conjugao entre espontaneidade e conscincia.

    A questo central para os dois amigos era a perda da liberdade provocada pela

    hipertrofia das estruturas tcnicas e de gesto, mais do que com uma eventual "crise de

    civilizao" (CRZUELLE, 2006, p. 20). Eles pretendiam mostrar que as experincias

    totalitrias no foram uma anormalidade, uma exceo, mas ao contrrio, a sociedade

    contempornea herdara, por meio da tcnica, o totalitarismo. Essas reflexes pautaram toda a

    obra subsequente de ambos os autores. Em 1937, Charbonneau escreveu o que hoje

    considerada uma das primeiras reflexes ecolgicas publicadas na Frana, intitulada Le

    sentiment de la nature, force rvolutionnaire. Desde ento, juntamente com Ellul, passou a

    refletir sobre os custos e consequncias do progresso tecnolgico (INGRAND, 2012;

    LAURENCIN, 2010). Por conta disso, ambos enfrentaram resistncia do marxismo que

    predominava entre a esquerda francesa no ps-guerra, porque contestar o progresso, depois da

    ocupao nazista, parecia ser muito reacionrio; as palavras de ordem eram reconstruo e

    produo (CRZUELLE, 2006).

    Charbonneau distancia-se de Ellul, contudo, no mtodo de exposio de suas questes.

    25

  • Reconstruir sua argumentao de forma linear uma tarefa difcil (diferentemente de Ellul) j

    que o prprio autor buscava uma alternativa s abstraes cientficas. Em seus livros e demais

    trabalhos fica evidente de que maneira a prtica da escrita lhe soava como uma reduo da

    sensibilidade, da oralidade e da experincia8. As palavras crescimento, desenvolvimento,

    tcnica, burocracia e economia so muitas vezes tratadas como equivalentes, sem que haja

    uma preocupao em filiar-se a uma linguagem conceitual rigorosa.

    Sua proposta era que, pelo carter potico e pouco sistemtico, fossem apresentadas

    reflexes sobre a realidade das sociedades (sobretudo europeias) depois do fim da Segunda

    Guerra Mundial. Em 1973, Charbonneau publicou o livro Le systme et le chaos, no qual

    propunha a tese de que a autonomizao da cincia e da tcnica no capitalismo e no

    socialismo levaram destruio da liberdade humana porque invadiram todas as esferas da

    vida social e individual com suas leis e com sua organizao. De acordo com a interpretao

    de Crzuelle (CRZUELLE, 2006, 2012), Charbonneau fez convergir uma srie de

    problemas sociais na expresso grande metamorfose (que, na verdade, no definida como

    um conceito e aparece em uma srie de textos).

    Em diversos textos, Charbonneau fala sobre uma contradio entre a natureza do ser

    humano de criar meios para facilitar sua vida, por um lado, e a autonomizao desses meios e

    a consequente destruio da liberdade humana, de outro. Como veremos adiante, essa

    contradio no deveria ser eliminada, mas sim, equilibrada. Antes de chegarmos ao projeto

    do equilbrio, vamos ver como Charbonneau desenvolve sua argumentao a respeito dessa

    contradio.

    Na primeira parte de Le systme, dedicada emergncia da razo e da cincia,

    Charbonneau defende que a recusa da tradio, o questionamento das verdades religiosas e o

    racionalismo levaram transformao do universo em uma mquina eficaz. Paradoxalmente,

    essa mesma mquina tornou-se pesada, abstrata e complicada. Com a objetividade, o

    conhecimento se descolou do sujeito, no havendo mais bem e mal nem a responsabilidade

    sobre os frutos da cincia, pois tudo apenas objetivo, neutro. Consequentemente, a tcnica

    que nasceu para responder certas necessidades se autonomizou com relao a seus fins

    8 Um exemplo da preocupao de Charbonneau em escapar da escrita cientfica e das abstraes foi o prefcio para um livro de fotografias de Maurice Bardet intitulado La fin du paysage (1972). Segundo Crzuelle, Charbonneau mostra mais do que demonstra e isso que caracteriza seu mtodo expositivo, articulado com seu projeto terico-poltico (CRZUELLE, 2006).

    26

  • (valores, julgamentos) e acabou se convertendo ela prpria em um fim, sobretudo por meio

    das leis cientficas que acabam por atribuir cincia um carter normativo. Em suma, a

    cincia melhorou a condio das massas, mas ao mesmo tempo concentrou na mo de poucos

    especialistas (e no na mo das massas) a autoridade e o poder (CHARBONNEAU, 1973).

    Charbonneau defendia que o processo que se verifica na cincia espraia-se por todas

    as dimenses sociais por meio da tcnica, fazendo com que a vida humana, tanto individual

    quanto coletiva, seja organizada segundo os princpios da eficcia. Era como se a sociedade

    tivesse se autonomizado frente ao indivduo, que fica restrito sua vida privada, de onde sai

    ocasionalmente para participar da "poltica", nas eleies ou participando de sindicatos. A

    espontaneidade desaparece quando a vida social passa a ser mediada.

    Isso significa que a tcnica no s mquina, j que para que uma cadeia qualquer

    funcione necessrio que tudo esteja integrado e que haja uma organizao de tudo o que est

    envolvido. Quando essa organizao feita de forma hierrquica, aparecem novas tcnicas de

    controle na figura da administrao. O Estado, a economia, a propaganda, a urbanizao, o

    turismo e o lazer, a relao com a natureza, a burocracia, tudo isso so mediaes tcnicas da

    vida social. Outras formas intermedirias de associao (entre sociedade global e indivduo),

    como os sindicatos, desapareceram ou entraram na lgica administrativa. Delegou-se o poder

    de unio e articulao social ao Estado, ao qual cabe agora a organizao da sociedade.

    No sistema em que a tcnica impera, a economia ocupou lugar fundamental por ser a

    nova religio universal. At ento, a economia no era algo separado, no tinha conscincia de

    si mesma. Segundo Charbonneau, a burguesia inventou a economia poltica; ela pretendia

    governar as naes em funo de suas prprias leis naturais e sagradas, as leis do lucro. E

    como preciso produzir para ganhar, a Produo se transforma no valor supremo, mais do

    que a propriedade ou as finanas (CHARBONNEAU, 1973, p. 101). O dinheiro passa a

    funcionar nessa mesma lgica como um signo que submete tudo economia, que serve

    produo e tcnica. Tornou-se um signo que media as relaes privadas enquanto o Estado,

    anlogo ao dinheiro, tornou-se mediador de relaes pblicas e tambm tem como finalidade

    nica a produo9.

    9 Segundo Crzuelle (2006), Charbonneau confere importncia fundamental ao Estado na constituio da nova configurao social pautada pela tcnica. Com a Primeira Guerra, os Estados viram-se diante da necessidade de controlar a produo de forma total, unificada e eficaz. Assim, a organizao e a eficcia foram se espraiando para outros setores, resultando em uma totalizao social.

    27

  • Neste mundo, no qual as prerrogativas da produo industrial imperam em todas as

    dimenses, Charbonneau defende que no faz mais sentido pensar em termos de luta de

    classes. No capitalismo, a explorao do trabalhador menos para enriquecer o patro e mais

    para enriquecer a indstria, da sua afirmao que o trabalhador se libertou do capital para se

    submeter produo. A explorao do trabalhador agora no se d mais pelo homem, mas

    pela economia, e todas as pessoas passam a ser igualmente exploradas como recursos naturais.

    O dinheiro e o Estado no servem a classes especficas, mas produo, bastaria ver que uma

    parte da mais-valia sempre volta para a aquisio de novas mquinas e meios de produo,

    afirma Charbonneau (ibid: 105).

    Charbonneau seguiu algumas aulas do curso sobre Marx ministrado na Universidade

    de Bordeaux por seu amigo Jacques Ellul. muito interessante notar que, apesar desse

    conhecimento, Charbonneau quase no cita Marx em seus textos mas v-se que o dilogo era

    bastante vivo. Em um relato, Michel Rodes conta que seu toda militncia de seu amigo

    Charbonneau se deu em termos de lutas poltico-ecolgicas, contra uma srie de

    transformaes territoriais nas pequenas cidades francesas mas no menciona qualquer

    referncia ao marxismo. Ao fim do relato, Rodes lembra rapidamente que Marx foi uma

    influncia de Charbonneau uma vez que seu pensamento se caracterizava pela sua notvel

    capacidade de frustrar e denunciar paradoxos. (RODES, 2012, p. 135). Ao mesmo tempo,

    Charbonneau teria seguido outro caminho: o estilo incisivo, pitoresco, que vai do detalhe

    mais realiza sntese mais magistral, a nfase nas transformaes tcnicas, a crtica

    colaborao entre a universidade e a indstria, a recusa de uma linguagem hermtica na

    descrio da realidade.

    Marx aparecia, ento, como uma inspirao mas tambm como algo a ser superado.

    No lugar da suposta centralidade da economia em Marx, Charbonneua adotava uma

    perspectiva que jogava luz sobre outros domnios sociais. A organizao torna-se palavra de

    ordem em todos eles. O Estado como tcnica poltica, por exemplo, assume a organizao do

    trabalho para garantir o pleno emprego. Mas o pleno emprego nada mais que a submisso de

    todas as pessoas produo. Por isso Charbonneau diz que a produo totalitria: ela impe

    sua organizao por todas as esferas para que possa continuar funcionando. Assim, ao invs

    de a organizao permitir um controle da economia para que esta seja o meio, ela faz o

    inverso.

    28

  • O mesmo processo se d com as cidades e a urbanizao: no incio, a cidade era um

    espao de liberdade, pois era o lugar do individualismo. Mas, em nome da proteo

    individual, o planejamento urbano e regulaes diversas minaram a liberdade

    (CHARBONNEAU, 1988). Alm disso, se por um lado a cidade teve sucesso em permitir ao

    homem escapar da natureza, por outro, elas se transformaram em meio totalmente artificial.

    Esse argumento se confirmaria pelo fato de que as pessoas viajam para o campo para se

    libertar da vida na cidade.

    Uma das consequncias do espraiamento da tcnica por todas as dimenses do social

    que no faz mais sentido, ressalta Charbonneau, pensar a sociedade exclusivamente em

    termos de classes, uma vez que todos estariam igualmente submetidos a um nico sistema. A

    burocracia, por exemplo, uma forma de unir a organizao humana com a organizao das

    mquinas. Ela se despersonaliza cada vez mais, assim como o Estado, fazendo com que o

    poder no se concentre mais nas mos de pessoas determinadas, mas que todos o exeram

    igualmente para faz-lo funcionar. No h, ento, uma diferena essencial entre as classes,

    no h mais dominadores de um lado e dominados de outro e todos se associam em um

    aparelho burocrtico, mesmo que alguns tenham excelentes salrios e outros no. At mesmo

    os diretores servem ao sistema mas sua autoridade garantida e exercida para amenizar e

    esconder sua posio de servido.

    Podemos falar de uma era dos gerentes, de uma tecnocracia? Eles formam uma classe dirigente, tal como fora a burguesia, que buscam conscientemente obter a conquista do poder e justificam-na por uma ideologia? [] Eles no so uma classe, eles so a sociedade.

    CHARBONNEAU, 1973, p. 94.

    Dentro desse novo sistema, novas diferenas reconfigurariam as relaes sociais e a

    existncia humana. Em termos mundiais, os pases podem ser divididos entre desenvolvidos e

    subdesenvolvidos os que esto totalmente organizados e os que ainda resguardam espaos

    de espontaneidade e no-organizao tcnica. E como a tcnica e a cincia tambm so

    palavras de ordem no socialismo da URSS, as diferenas entre os pases no decorreriam do

    regime poltico. Por fim, h ainda outro critrio de diferenciao social no interior das

    sociedades tcnicas, que diz respeito oposio entre campo e cidade. O marxismo e o

    socialismo "reduziram a questo social oposio da burguesia e do proletariado", mas

    burguesia e proletariado "tm com efeito a mesma religio da indstria e o mesmo terreno de

    29

  • jogo a cidade. Para um como para outro, o campo um corpo estranho que se suporta pior

    ou melhor, enquanto se aguarda o momento de elimin-lo, brutalmente pela revoluo e

    metodicamente pela tcnica" (CHARBONNEAU, 1988, p. 37).

    A lgica totalizante da grande metamorfose no implica em uma real unidade social.

    Segundo Charbonneau, a unidade real s existe na medida em que h diferena, pois se no h

    diferenas, no h trocas, no h comparaes10. As diferenas que de fato existem em nossa

    sociedade so produto da diviso do trabalho, que acompanhada pela segregao espacial

    nas cidades entre classes de ricos e pobres. Somente o dinheiro distingue os homens e

    mulheres, e o dinheiro que os une.

    Outra consequncia da grande metamorfose a perda da liberdade dos indivduos. As

    mquinas, a organizao, a burocracia, os saberes tcnicos e cientficos especializados

    controlam as foras sociais e podam as relaes materiais e sociais espontneas e livres. Se o

    progresso nasceu para libertar o homem de Deus e das antigas formas sociais, ele trouxe

    novos sofrimentos, observa Charbonneau. O produtor reduzido produo e o consumidor,

    ao consumo. As tcnicas, as mquinas e a administrao nos do novos membros, mas

    atrofiam os antigos.

    Os indivduos sequer podem ter ideias e correr riscos, j que o Estado organiza tudo e

    at mesmo cria um sistema de seguridade social. Para que a produo continue em perfeito

    funcionamento, todo o risco (exceto a guerra) deve ser garantido pelo Estado, que assume

    formas burocrticas e replica os mtodos de trustes privados a fim de garantir a ordem social.

    Homens e mulheres repetem os mesmos gestos nas mesmas mquinas enquanto a televiso

    impe a mesma distrao para todas (os). No h mais espontaneidade, as pessoas tm tarefas

    bem definidas e uniformizadas e suas relaes so mediadas pelo dinheiro e pela organizao

    impessoal. O efeito subjetivo da ausncia de espontaneidade e de liberdade a angstia.

    Diante das mudanas constantes e das novas necessidades que devem ser supridas, o resultado

    um sentimento de que nunca conseguiremos atingir a felicidade (CHARBONNEAU, 1973,

    p. 187).

    10 Charbonneau chega a mencionar Lvi-Strauss para dizer que o fim da multiplicidade tambm o fim da sociedade e embora o primeiro no recorra teoria das trocas do segundo, vemos que Charbonneau inspira-se nos trabalhos sobre esse tema para definir a sociedade em vias de desaparecimento.

    30

  • Ivan Illich, contraprodutividade e monoplio radical

    Ivan Illich era catlico e fez parte do clero, assim como Jacques Ellul. Na dcada de

    1960, devido s crticas que fazia Igreja Catlica acabou por desligar-se dela. Essas crticas

    eram profundamente ligadas as suas teses sobre subdesenvolvimento e sobre a

    desfuncionalidade da escola e de misses religiosas (ILLICH, 1973a, 1973b). Nesse

    momento, sua obra se separava em duas frentes que dialogavam: a primeira era mais voltada a

    temas teolgicos e religiosos e a segunda era "panfletria", defendia a tese da

    contraprodutividade do desenvolvimento (ROBERT; PAQUOT, 2010). Apesar de sua extensa

    trajetria (a partir de 1980, Illich adentra um perodo de reflexes sobre o poder e a funo

    simblica de instrumentos conceituais e sobre a relao entre oralidade e escrita), a fama de

    Illich pelo mundo fez-se, segundo Robert e Borremans (2006) por seus escritos panfletrios,

    que hoje so referncia para o decrescimento.

    Tais escritos abordam diversos temas como educao, sade e energia, todas

    atravessadas por um mesmo processo: a contraprodutividade e o monoplio radical. Nas

    sociedades industrializadas (capitalistas e socialistas), os meios se converteram em fins,

    gerando o fenmeno da contraprodutividade, defendia Illich. A contraprodutividade designa o

    modo como o desenvolvimento e o progresso carregam em si sua destruio; tanto biofsica,

    quanto social e tambm poltica (contraprodutividade das ferramentas, instituies e da

    sociedade industrial). Illich verificava isso nos transportes, na educao e na sade trs

    temas importantes para a anlise j que, segundo o autor, so os elementos do

    desenvolvimento e da modernidade por excelncia.

    Segundo o comentrio de Boaventura de Sousa Santos (1975) sobre o panfleto

    Energia e Equidade, Illich buscava provar a lei hegeliana da transformao da quantidade

    em qualidade. Veja-se o caso do consumo de energia: ultrapassando-se determinado limite, h

    um "efeito corruptor do poder mecnico" (ILLICH, 1975, p. 27), qual seja a transformao

    desse poder mecnico em necessidade, e a necessidade converte-se em um monoplio:

    Tal monoplio institui-se quando a sociedade se adapta aos fins daqueles que consomem o total maior de quanta de energia, e enraza-se irreversivelmente quando comea a impor a todos a obrigao de consumir o quantum mnimo sem o qual a mquina no pode funcionar.

    ILLICH, 1975, p. 60.

    Quando tudo reorganizado em torno dos meios de transporte motorizados, no resta

    31

  • espao para outra forma de transitar (por exemplo, as bicicletas), e as pessoas veem-se

    obrigadas a se transportarem por meio de um produto industrial. Isso significa que o produto

    industrial converte-se em necessidade a necessidade de locomoo transforma-se em

    necessidade de ter um carro como se a indstria e o processo tcnico passassem a deter um

    monoplio radical sobre as necessidades. A esse processo de inverses Illich d o nome de

    coisificao e afirma inspirar-se em Marx e Freud: "por coisificao quero significar a

    consolidao da percepo das necessidades reais numa procura de produtos manufaturados

    de massa. Ou seja, a transferncia da sede para a necessidade de uma Coca-Cola" (ILLICH,

    1973c, p. 210). A "rendio da conscincia social s solues pr-acondicionadas" se d na

    medida em que organizaes burocrticas conseguem dominar a imaginao dos

    consumidores sobretudo pela propaganda.

    O monoplio cria, ento, duas alienaes: a primeira diz respeito ao alheamento das

    necessidades, que passam a ser produzidas externamente, pelo processo tcnico e industrial; a

    segunda vem do fato de que s mercadorias produzidas pela indstria serem capazes de

    satisfazerem essas necessidades forjadas. Da a expresso monoplio radical para designar o

    duplo controle da indstria e das instituies sobre a vida humana (criando falsas

    necessidades e sendo as nicas a disporem de meios para satisfaz-las).

    Com relao indstria do transporte, Illich argumenta que houve uma configurao

    do espao em funo do transporte motorizado, provocando a extino das relaes humanas

    e do comrcio local, bem como ocasionando uma dependncia do carro para qualquer

    deslocamento. "Ao ultrapassar certo limite de velocidade, os veculos motorizados criam

    distncias que s eles conseguem reduzir" (ILLICH, 1975, p. 48), e quem no dispe de

    veculos motorizados, no consegue se locomover. O carro tambm reduz a liberdade de

    trnsito no sentido que reduz as possibilidades de destino quem est a p pode mudar sua

    rota, parar onde quiser, enquanto quem est de carro no pode faz-lo e tem que seguir rotas

    desenhadas especificamente para automveis.

    Alm da geografia, o transporte motorizado tambm altera o tempo social quando o

    aumento do raio de circulao acompanhado por um maior dispndio de tempo com o

    trnsito. Somando todo o esforo de uma pessoa para dirigir (tempo de trabalho para comprar

    o carro e pagar as contas mais o tempo dirigindo), uma hora seria equivalente ao trajeto de

    apenas seis quilmetros. Em pases onde no h carros, uma pessoa tambm passa uma hora

    32

  • para se deslocar por seis quilmetros, com a diferena de que gastam apenas 3% da sua vida

    se movimentando, contra os 25% gastos em pases "motorizados", calculava Illich (2006c). A

    transformao da quantidade em qualidade sobre a qual falava Boaventura de Sousa Santos,

    diz respeito, assim, a uma nova forma social na qual a tecnologia se sobrepe s relaes da

    humanidade entre si e com a natureza. O desenvolvimento da indstria, afirma Illich, se d em

    detrimento da plena participao das pessoas, da autonomia dos indivduos e dos grupos de

    base.

    O mesmo se passa com a medicina: assim como o transporte motorizado implica

    imobilidade e escravizao da maioria das pessoas ao carro, a medicina prolonga o tempo da

    doena e cria novas normas a cada nova doena descoberta. A esse fenmeno da produo de

    doenas, sofrimento e morte pela prpria medicina Illich d o nome de iatrognise. Soma-se a

    isso o encarecimento dos servios mdicos, cujo efeito a criao de uma populao

    submissa e dependente, que ao mesmo tempo que no consegue mais recorrer a seus prprios

    meios para a cura, no tem acesso aos servios mdicos (ILLICH, 2006a). Antes, a cultura

    oferecia mitos, tabus e padres ticos para tratar a vida, a doena e as relaes sociais. Com a

    legitimao da medicina, a dor, a doena e a morte so tratadas por vias institucionais, de

    modo que quem no se submeter a esses mecanismos no consegue mais lidar com a dor e

    com a morte. Como destaca Illich, a promessa do progresso conduz recusa da condio

    humana e averso arte de sofrer (ILLICH, 1999 s. p.).

    A educao outra dimenso na qual o monoplio radical e a contrapodutividade se

    verificam, quando o aprendizado se reduz escolarizao. O direito a aprender s se realiza

    pela escola (ILLICH, 2006d) e, mais do que isso, s por seu intermdio podem ser formadas

    as elites dirigentes e profissionais que orientam a sociedade. Em pases pobres, a

    escolarizao ainda mais difundida, na medida em que somente pela escola que se obtm

    um diploma, o qual necessrio para a insero na sociedade de consumidores disciplinados

    da tecnocracia (ILLICH, 1973d)11.

    Nos pases latino-americanos investiu-se em educao com vistas a "tirar a maioria

    no-rural da sua marginalidade nos bairros de lata e numa agricultura de subsistncia e lev-la

    para o tipo da fbrica, de mercado e de vida cvica correspondentes tecnologia moderna"

    11 Embora as aproximaes com Bourdieu e seus trabalhos sobre a escolarizao na Frana sejam muitas, Illich no faz referncias a este e no consta, nos comentrios consultados, qualquer sinal de que tenha existido alguma relao entre ambos.

    33

  • (ILLICH, 1973e, p. 140). Mas concretamente a educao no gerou os frutos prometidos. Ao

    contrrio, a escola produziu frustrao porque aparece como garantia de integrao social,

    mas no a realiza porque, na medida em que marginaliza aqueles que no a seguem, produz

    uma classe de pobres impotentes, ao lado de uma elite escolarizada (ILLICH, 2006d). A

    escolarizao, que nasceu para incorporar as pessoas ao Estado industrial e que serviu para

    derrubar o feudalismo, tornou-se um "dolo opressor" que s protege aqueles que j foram

    educados, produzindo desigualdades.

    Essa realidade no exclusiva de pases pobres, assevera Illich. Nos EUA a educao

    tambm aquilo que designa quais pessoas so qualificadas ou no. A diferena maior :

    enquanto em pases ricos h escola para todos, em pases pobres, no h. Mas nestes, a escola

    aparece como o nico meio de acender riqueza, de modo que representa um fardo (ILLICH,

    1973e, p. 155). Era o caso de Porto Rico, que investira 30% de seu oramento governamental

    em educao, mas apenas pequena parcela chegava ao mundo universitrio. Nas palavras de

    Illich, Porto Rico foi escolarizado, mas no instrudo.

    Illich no explica, entretanto, as razes da pobreza e no deixa explcito se a

    escolarizao, a medicalizao e o carro so produto de uma desigualdade a priori ou se as

    instituies operam de forma contraditria produzindo desigualdades entre aqueles que a

    consomem e aqueles no o fazem. Na maior parte dos textos, a impresso que se tem que as

    desigualdades esto dadas de antemo, j que, ao menos nos pases pobres, o acesso s

    instituies pressupe a posse de dinheiro e muitas so as pessoas que no conseguem fazer

    parte delas. Essa questo no respondida porque Illich est mais preocupado com a

    oposio que se situa primeiro entre os homens e a estrutura tcnica da ferramenta e, logo,

    como consequncia, entre o homem e as profisses cujo interesse consiste em manter a

    estrutura tcnica do que com a oposio entre uma classe de homens explorados e outra

    classe proprietria das ferramentas (ILLICH, 2006a, p. 468).

    Ao tentar contornar a questo das classes, Illich oscila entre duas explicaes. Ora o

    sistema que cria as desigualdades, ora ele se impe a uma realidade j cindida. Os diplomas

    criam uma diferenciao social, mas essa diferenciao s se d a partir de uma diferena

    anterior: os que tiveram e os que no tiveram acesso ao ensino formal, conseguiram diplomas

    e tiveram acesso a bons empregos. Com os carros, passa-se uma ambiguidade semelhante.

    Illich afirma que o automvel nasceu como produto de luxo, o que quer dizer que existem

    34

  • ricos e pobres antes que o trnsito se transforme em espao exclusivo de veculos

    motorizados. E uma vez que isso ocorre, os transportes criam uma desigualdade social entre

    os que tm e os que no tm carro, mas Illich no incorpora essa questo em seus trabalhos.

    Andr Gorz e a autogesto

    Gorz era um revolucionrio anti-autoritarista e anti-stalinista e um crtico das

    estratgias do movimento de trabalhadores via partido. Antes de comear a se dedicar

    ecologia, nos anos 1970, Gorz estava preocupado com a configurao do capitalismo

    contemporneo (GORZ, 1968a, 1968b). A primeira fase do pensamento de Gorz, quando ele

    se define como marxista, pouco mencionada atualmente como referncia ao decrescimento.

    So seus trabalhos que dialogam com a ecologia poltica que se tornaram importantes. Assim

    como os demais autores, essa importncia decorre menos da problematizao da questo

    ecolgica propriamente dita e mais da maneira como Gorz correlaciona a explicao social

    com a crtica por oposio tradio marxista ento existente.

    Os trabalhos de Gorz dessa poca so muito prximos s constataes de Illich e

    tambm de Ellul e Charbonneau no que se refere ao diagnstico de uma nova forma social

    desenvolvida com o ps-guerra, bem como submisso das necessidades e criatividade

    humana tcnica. Gorz entrara em contato com os trabalhos do grupo de Illich no fim da

    dcada de 1960 e lera os manuscritos de Nemesis Mdica em 1974. Sua impresso, na poca,

    foi de que Illich revigorava as teorias de Ellul:

    A expanso das indstrias transforma a sociedade em uma gigantesca mquina que, em vez de libertar os humanos, restringe seu espao de autonomia e determina como e quais objetivos eles devem perseguir. Ns nos tornamos os serviais dessa megamquina. A produo nao no est mais ao nosso servio; ns que estamos a servio da produo. E em razo da profissionalizao simultnea dos servios de todos os tipos, tornamo-nos incapazes de cuidar de ns mesmos, de autodeterminar as nossas necessidades e satisfaz-las por nossa conta: dependemos, para tudo, de 'profisses incapacitantes'.

    GORZ, 2008, p. 54.

    Ao mesmo tempo, ele distancia-se desses autores ao articular a submisso

    reconfigurao da classe trabalhadora e produo de capital. Em suma, Gorz procedia de

    maneira similar, mas usava um vocabulrio marxista, numa tentativa de reabilit-lo ao invs

    de super-lo.

    35

  • Como dizia Charbonneau, a competio entre EUA e URSS criou um novo critrio de

    comparao entre os pases: instituiu um novo sistema de produo e consumo voltado para o

    bem estar e para o crescimento. Foi a primeira vez, de acordo com Gorz, que se travou uma

    ligao imediata entre crescimento econmico e consumo final, substituindo a

    industrializao macia como sinnimo de crescimento econmico. Para que o sistema

    continue em funcionamento, necessrio que as pessoas necessitem comprar e usar dos

    servios oferecidos pelo sistema, donde a manipulao das necessidades e desejos.

    Ao mesmo tempo em que o novo capitalismo tem os olhos voltados para os desejos

    das massas, estas no poderiam ser deixadas por sua prpria conta, afinal era preciso que se

    consumisse cada vez mais para que o crescimento continuasse. Foi assim que a publicidade

    assumiu papel central no sistema, cabendo a ela criar desejos e necessidades entre as massas

    de consumidores. Tudo se passa, entretanto, como se a economia se desenvolvesse para

    satisfazer as necessidades humanas, mas a realidade, segundo Gorz, que as necessidades so

    forjadas para produzir lucro (GORZ, 1991).

    Era comum que a padronizao dos comportamentos e aspiraes dos indivduos fosse

    vista com bons olhos naquele momento, como um processo de aburguesamento do

    proletariado. Evidentemente, Gorz opunha-se a essa viso otimista e defendia que a

    homogeneizao produzia uma dominao generalizada, sendo que tanto proletrios como

    colarinhos-brancos padeciam de alienaes similares, medida que as necessidades mais

    ntimas se sujeitam determinao do capital.

    O neocapitalismo (termo que Gorz utilizara em sua fase marxista) caracteriza-se

    tambm por uma reconfigurao da organizao do trabalho, ou melhor, da diviso do

    trabalho. As empresas passaram a obedecer critrios impessoais e objetivos de funcionamento,

    que requeriam especializao tanto das camadas dirigentes quanto das massas e a produo

    deixou de estar sujeita a determinaes pessoais ou de classe. No lugar do empresrio

    individual apareceram grupos de tcnicos especializados em planejamento e organizao

    racional que tentavam suprimir qualquer imprevisto, improvisao e qualquer interveno

    pessoal. Quanto ao proletariado, este foi quantitativamente reduzido e qualitativamente

    transformado em mo de obra qualificada. A isso Gorz d o nome de heteronomia (GORZ,

    1978): as pessoas se transformaram em engrenagens de um mecanismo que no mais lhes diz

    respeito.

    36

  • A composio das classes sofreu, com isso, uma grande transformao: alm de todos

    terem se tornado peas do mesmo sistema, a explorao agora despersonalizada, no sentido

    de que no h um grupo que personifique o papel de explorador. Charbonneau diagnosticava

    tambm a "despersonalizao" de todo o sistema e dava pistas de que isso alterava a

    composio das classes. Enquanto a reconfigurao significava para Charbonneau a

    possibilidade de no mais se falar de classe, Gorz no abandona de imediato o vocabulrio

    marxista, mas acaba articulando-o questo que lhe parece mais central e importante, qual

    seja, a autonomia.

    Quando Gorz comeou a se engajar com questes ecolgicas12, conferia especial

    ateno questo da heteronomia provocada pela submisso das necessidades e desejos

    tcnica. Os trabalhadores, que haviam sido substitudos por mo de obra qualificada so, na

    viso de Gorz, substitudos por mquinas. Tais mquinas custam caro e seu valor repassado

    para a mercadoria. Na concorrncia, cada capitalista busca rentabilizar suas mquinas o mais

    rpido possvel, investindo em mquinas mais eficazes, mais caras e que necessitam de menos

    trabalhadores para aumentar a produtividade. Assim, a composio orgnica do capital muda

    (diminui o capital investido em salrios e aumenta o investido em mquinas) promovendo

    uma queda tendencial da taxa de lucro. Se o lucro cai, torna-se mais difcil investir em novas

    mquinas mais caras, pois h menos din