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A necessidade de uma bandeira política de massas

ENTRE OS DIAS 10 a 14 de feve-reiro o Movimento dos Trabalha-dores Rurais Sem Terra (MST) ce-lebra seus 30 anos de fundação, por ocasião do VI Congresso, que realiza em Brasília. O momento é propício para uma refl exão em perspectiva sobre dois temas co-nexos – questão agrária e refor-ma agrária, ambos relacionados à estrutura de propriedade, posse e uso da terra.

O próprio surgimento do MST no fi nal do regime militar (1984) e primórdios da construção do Es-tado democrático (1988) é sinal do retorno da questão agrária, de-clarada ainda no início do ano de 1960, sistematicamente nega-da pela ditadura militar median-te apelo explícito às armas, por um lado, e ao projeto econômico de “modernização conservadora” da agricultura, por outro.

A questão agrária, politicamen-te concebida, contém uma propos-ta de mudança da estrutura agrá-ria, construindo um novo regime de direitos agrários que a Cons-tituição de 1988 adota: 1) princí-pio da função social e ambiental legitimando o direito de proprie-dade e toda a política agrária (Art l84-186); 2) designação do estatu-to das terras indígenas (Art. 231); 3) normas de preservação ambien-tal e de designação das terras de reserva fl orestal (art. 225). Além dessas designações, remanesce um imenso patrimônio de terras pú-blicas devolutas, relativamente descontroladas, correspondente a mais de um terço do território na-cional (Cf. IBGE – Censo Agrope-cuário de 2006).

Decorridos 25 anos da promul-gação da Constituição de 1988 e 30 anos da fundação do MST, o cerne do regime fundiário da Constituição de l988, qual seja a mudança da estrutura agrária, que é também o principal fundamento da reforma agrária, continua sis-tematicamente negado, agora não mais pelo regime militar, mas pe-las forças políticas hegemônicas que construíram nos anos 2000 a

nova “modernização conservado-ra”, autodenominada de economia do agronegócio.

É bem verdade que sob a égi-de da Constituição de 1988, e ain-da sob pressão constante do movi-mento social, particularmente do MST, houve uma ação importante de distribuição de terras no nível do governo federal – o Programa de Assentamento de Trabalhado-res Rurais, formalmente respon-sável pelo assentamento de cerca de um milhão de famílias em áre-as para este fi m destinadas, oriun-das em sua grande maioria de ter-ras devolutas públicas. Isto evi-dentemente é uma realidade im-portante, a ser aprofundada, mas que não toca ainda ao cerne da re-forma agrária – uma mudança de toda a estrutura agrária nacio-nal (direitos de propriedade, pos-

se e uso da terra), coadjuvada pe-la ação de redistribuição fundiária, incidente sobre a propriedade fun-diária que descumpre a função so-cial e ambiental.

A questão agrária em aberto no século 21 é bem mais complexa que aquela que o MST enfrentou nos seus primórdios. Àquela épo-ca, o sistema agrário dominante em crise econômica e política (fi m do regime militar) resistia às mu-danças ao velho estilo (do apelo às armas privadas ou estatais). Ho-je, sob a égide do pacto de poder dominante, o processo sistemáti-co de negação à mudança da estru-tura agrária, segundo o princípio do próprio regime fundiário cons-titucional, conta com estratégia concertada, por dentro e por fora do Estado, com vistas a completa ‘mercadorização’ das terras.

Atualmente, são armas ideoló-gicas das mídias e da cultura do agronegócio, apoiadas por for-te aparato econômico das cadeias agroindustriais voltadas à ‘re-primarização’ do comércio exte-rior, as grandes inimigas da refor-ma agrária. Ademais, com contro-le sistemático do Congresso (ban-cada ruralista), do executivo fede-ral há quatro governos sucessivos e sob o silêncio obsequioso do Ju-diciário, ou da sua extremamen-te lenta manifestação, persegue-se um processo gradual de desmon-te do regime fundiário constitucio-nal, retroagindo-se à lei de terras de l850.

Diante deste quadro complexo, os desafi os à reforma agrária são evidentemente outros, que não há espaço aqui para comentar. Mas obviamente não eliminam, ao con-trário, exacerbam a necessidade de mudança da estrutura agrária, ora submetida à invulgar cobiça do ca-pital e do dinheiro mundiais, à re-velia da função social e ambiental da propriedade da terra.

Guilherme Costa Delgado é doutor em economia pela

Unicamp e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.

Guilherme C. Delgado

Os 30 anos do MST e a luta pela reforma agrária hoje

crônica Luiz Ricardo Leitão

A TRÁGICA MORTE do cinegrafista da Band, Santiago Andrade, atingi-do por um rojão na cabeça enquanto registrava uma manifestação no Rio de Janeiro, suscita uma justa on-da de solidariedade em todo o Bra-sil. Ao mesmo tempo, a tragédia nos possibilita qualifi car o debate sobre as tarefas políticas e as formas de lu-ta adequadas para as forças popula-res nesse momento histórico.

As manifestações de junho, além de possibilitar a elevação da dis-posição para a luta na sociedade, também abriram espaço para a le-gitimação da luta popular. Esse pa-trimônio está em risco. Isto porque ações desastradas e sem o mínimo de preparo têm marcado as mani-festações pós-junho de 2013. A ba-nalização da ação direta e o recur-so à violência muito mais como um fetiche “radicaloide” do que como

necessidade real da luta política es-tá abrindo espaço para estreitar as margens para o livre exercício do direito de manifestação.

A imprensa conservadora apro-veita para explorar erros primários como a queima do fusquinha de um trabalhador durante uma ma-nifestação ou a trágica morte do ci-negrafi sta da Band para descons-truir no imaginário popular esta importante herança das manifes-tações de junho, ou seja, a legiti-midade das lutas sociais. Pequenos grupos sem programa e bandeira política, com suas ações suposta-mente radicais, têm atraído a sim-patia de jovens que participaram das manifestações de junho.

Todo povo tem o direito de usar o recurso da violência para a defe-sa de sua soberania nacional. Nas sociedades democráticas de mas-

sas o recurso à violência por par-te das forças populares deve ocor-rer em última instância e como uma reação às agressões dos inimi-gos do povo. Cair em provocações das forças de repressão e cultivar a banalização da violência nas mani-festações afasta a classe trabalha-dora dos atos de rua. A direita se aproveita das ações violentas e de-sastradas de pequenos grupos para pedir mais repressão.

Aliás, a ação dos Black Bloc’s no Brasil é um fenômeno típico de uma sociedade que está em tran-sição para a retomada das lutas de massas. Há uma crise na esquer-da brasileira. E o sintoma disso é que grande parte da juventude ain-da não tem referência organizativa. No momento em que ocorrer a con-vergência da jovem classe trabalha-dora e da juventude com o progra-

de 13 a 19 de fevereiro de 20142editorial

Tributo a Eduardo Coutinho

O desafi o fundamental reside na necessidade de um programa e de uma bandeira política de massas que seja polo aglutinador na sociedade

Coutinho era fi lho de Bruzundanga – e, por isso, só a nossa gente bronzeada poderá apreciar o seu valor. Axé, Eduardo! Que todas as entidades de “Santo Forte” (1999) estejam contigo!

Atualmente, são armas ideológicas das mídias e da cultura do agronegócio, apoiadas por forte aparato econômico das cadeias agroindustriais voltadas à ‘reprimarização’ do comércio exterior, as grandes inimigas da reforma agrária

opinião

Cesse tudo o que a Musa antiga canta, / Que outro valor mais alto se alevanta.

(Luís de Camões, “Os Lusíadas”, canto I)

DEIXEMOS DE LADO, por ora, os eventos insólitos de nos-sa tragicômica Bruzundanga. Eu sei que não faltam mo-tes para o cronista, quer sejam as últimas revelações do ca-so Alstom em São Paulo ou do mensalão tucano em Minas, quer sejam os novos escândalos do playboy Cabral no Rio, que logrou dar um calote duplo no seu ‘amigo de fé’ Eike Batista e no supertenista Novak Djokovic.

Haveria, também, muito a refl etir após o lamentável inci-dente com o cinegrafi sta da Band na Central do Brasil, du-rante o ato contra o reajuste das tarifas de ônibus no Rio, um prato feito para que os “guardiões da ordem” saíssem das tumbas e adejassem o seu udenismo pós-moderno aos microfones. Aliás, por falar em passado, o que dizer do re-quentado discurso ufanista sobre a Copa?

Contudo, hoje é dia de render nossa homenagem ao notá-vel – e já saudoso – cineasta Eduardo Coutinho, cuja mor-te trágica e inesperada nos privou da festiva despedida a que ele fazia jus. Seu papel no cinema nacional era ímpar – e os pares souberam reconhecê-lo com rara lucidez. “Não há ninguém no Brasil que possa ocupar o lugar de Coutinho”, declarou, pesaroso, Fernando Meirelles; “Foi o maior docu-mentarista brasileiro”, subscreveu Cacá Diegues; e mestre Nelson Pereira dos Santos sacramentou: “Coutinho era uma unanimidade no Brasil. Talvez seja o nosso maior cineasta.”

Minha geração conheceu-o por meio da obra-prima “Ca-bra Marcado para Morrer” (1985). O tom metalinguístico do documentário é uma alegoria única dos anos de chumbo e da resistência popular à ditadura. Iniciado antes do golpe de 1964, o fi lme pretendia ser uma narrativa da vida de João Pedro Teixeira, líder rural paraibano assassinado em 1962, e um registro sobre a luta das Ligas Camponesas nordesti-nas. A repressão, porém, interrompeu as fi lmagens e pren-deu boa parte da equipe, de sorte que só duas décadas de-pois, graças à persistência de Coutinho, foi possível retomar o projeto.

A reviravolta histórica inspira, então, um novo roteiro pa-ra o diretor, que já não se detém apenas sobre a morte de Teixeira – ele sai à procura dos antigos camaradas e, em es-pecial, de Elisabeth, a viúva, que, para preservar a si e aos seus, afastara-se dos dois fi lhos e vivia clandestina desde a eclosão do golpe. O cineasta a reencontra sob uma nova identidade e promove sua reinserção na cena pública, anis-tiando-a literalmente do exílio penoso a que fora submeti-da – e rematando com o cinzel da fi cção o silêncio que a di-tadura impusera nos 18 anos que separam as duas pontas do real.

A maturidade chegara e, a partir daí, com a simplicida-de dos grandes mestres, ele nos brinda com novos e criati-vos fi lmes. Maiakovski dizia que “sem forma revolucioná-ria não há arte revolucionária” – e Coutinho aprimora a ca-da ano sua técnica para tornar cada vez mais natural a arte de entrevistar para desvelar mundos ignotos, como se vê em “Edifício Master” (2002) e “Jogo de Cena” (2007).

Se fosse natural da Califórnia, e não de São Paulo, a Aca-demia já lhe teria dedicado um Oscar especial. Mas Couti-nho era fi lho de Bruzundanga – e, por isso, só a nossa gente bronzeada poderá apreciar o seu valor. Axé, Eduardo! Que todas as entidades de “Santo Forte” (1999) estejam contigo!

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor associado da UERJ. Doutor em Estudos Literários pela Universidade de La Habana,

é autor de Noel Rosa – Poeta da Vila, Cronista do Brasil e de Lima Barreto – o rebelde imprescindível.

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Eduardo Sales de Lima, Marcelo Netto • Repórter: Marcio Zonta• Correspondentes nacionais: Maíra Gomes(Belo Horizonte – MG), Pedro Carrano (Curitiba – PR), Pedro Rafael Ferreira (Brasília – DF), Vivian Virissimo (Rio de Janeiro – RJ) • Correspondentes internacionais:

Achille Lollo (Roma – Itália), Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jardim (Caracas – Venezuela) • Fotógrafos: Carlos Ruggi (Curitiba – PR), Douglas Mansur (São Paulo – SP),Flávio Cannalonga (inmemoriam), João R. Ripper (Rio de Janeiro – RJ), João Zinclar (in memoriam), Joka Madruga (Curitiba – PR), Leonardo Melgarejo (Porto Alegre – RS), Maurício Scerni (Rio de Janeiro – RJ) • Ilustradores: Latuff,Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana • Revisão: Viviane Araujo • Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira •Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – Campos Elíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 4301-9590 – São Paulo/SP –[email protected] • Gráfi ca: S.A. O Estado de S. Paulo • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Aurelio Fernandes, Bernadete Monteiro, Beto Almeida, Dora Martins,Frederico Santana Rick, Igor Fuser, José Antônio Moroni, Luiz Dallacosta, Marcelo Goulart, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Neuri Rosseto, Paulo Roberto Fier, René Vicente dosSantos, Ricardo Gebrim, Rosane Bertotti, Sergio Luiz Monteiro, Ulisses Kaniak, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131–0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

ma histórico das forças populares, tendo como síntese uma bandei-ra política de massas, certamente o fenômeno Black Bloc perderá espa-ço na sociedade.

O desafi o fundamental reside na necessidade de um programa e de uma bandeira política de massas que seja polo aglutinador na socie-dade. As forças populares precisam urgentemente atravessar esse rubi-cão. Caso contrário, perderemos o tempo político e uma onda conser-vadora poderá varrer nosso país.

O momento é propício para avan-çarmos no desafi o da bandeira po-lítica. O MST passa pelo seu VI Congresso Nacional e se revigo-ra para seguir em luta. A bandei-ra política da constituinte para re-formar o sistema político tem um enorme potencial diante da crise por que passa sociedade brasileira.

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de 13 a 19 de fevereiro de 2014

redações. Doce ilusão de classe! Doce voracidade de po-der! Taí no que deu. Mas o que você sequer suspeita é que esse mesmo companheiro (...), traído e abandona-do por seus poderosos hoje ex-aliados, há poucos me-ses reuniu um grupo de tontos, e os convenceu de que o grande problema é o fato da esquerda (leia: ele e os ali reunidos) não ter um jornal, uma imprensa (!!!).Volta-ram então suas baterias contra um dos poucos semaná-rios em funcionamento (e que originalmente se propu-nha construir uma unidade mínima da esquerda), no sentido de destruí-lo, e reabri-lo em seguida, sob “nova direção”. Certamente, a questão das fi nanças para to-car o projeto não será problema – deve ter dito o novo mecenas com palavras tipo “Eu banco”, “Eu compro”. O mais grave é que acabaram por ter o apoio de um bando de oportunistas e, pelo que soube, já providenciaram o desmanche. Ou seja, meu Amigo, (...) fará do tal jornal, o mesmo que fez do PT – o que dispensa qualquer co-mentário. “(...)

“Mas, paro por aqui.Acabo de ouvir na TV o nosso ex-presidente Luiz Iná-

cio Lula da Silva afi rmar que ‘quem quiser fazer políti-ca, que entre num partido e saia candidato’.

“E, como estamos em ano eleitoral (e está em disputa nada menos que a Presidência), vou arregaçar as man-gas para eleger os candidatos do partido, para que eles possam continuar a fazer política por nós”.

Miserere nobisUM AMIGO COM QUEM costumo conversar via inter-net, enviou-me trechos de mensagens que escreveu à sua esposa, que se encontra viajando. Num dos trechos, ele afi rma:

“Quando você voltar desses 40 dias fora do Brasil, en-contrará uma situação bem pior do que a que deixou. Houve uma degradação acelerada da política, das pos-turas, dos ânimos. A grande mídia perdeu qualquer li-mite dos que ainda lhes restavam. Por parte da esquer-da... bem, com a destruição por decisão de alguns dos principais responsáveis pelo PT, fundamentalmen-te nossos companheiros (...), na primeira metade dos anos 1980, dos meios de comunicação que haviam fei-to a resistência contra a ditadura, e a política delibera-damente levada a cabo por esses mesmos dirigentes de não construir uma imprensa popular de massa, a defe-sa contra os atuais ataques da mídia é quase zero”.

Em minha resposta, comentando esse trecho do seu mail, escrevi:

“Quanto à degradação acelerada a que você se refe-re, concordo plenamente, e a tendência é que se apro-funde. (...) Já no que diz respeito à política de comuni-cação do PT, a questão é mais grave: nosso camarada (...), além do que você cita, argumentava que não havia necessidade do partido gastar dinheiro com Comuni-cação. Bastava que tivéssemos (entenda: que ele e sua curriola tivessem) alguns contatos de ‘confi ança’ nas

instantâneo

Alipio Freire

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NÃO SE SABE AO CERTO se Shakespeare é autor de Eduardo III, peça que fi gura entre seus textos apócri-fos. Os críticos, ao menos, estão de acordo que teria ele contribuído para os dois primeiros atos. A peça abor-da um tema perene: governantes governam governos e, no entanto, quase nunca sabem se governar.

O que fazem os políticos corruptos, todos sabemos. Apenas mudam os tempos e diferem os costumes. Eles abusam da imunidade e da impunidade, praticam o mais descarado nepotismo, usam os serviços públicos como se fossem direitos privados. Compram uma no-vilha para entrar na maracutaia e vendem a boiada pa-ra não sair dela.

O rei Eduardo III (1312-1377) criou a Ordem da Jar-reteira, a mais antiga e importante comenda britânica, concedida aos que se destacam pela lealdade à coroa. Jarreteira é uma liga azul de prender meias de mulher. O criador da Ordem de tão curioso nome casou-se aos 14 anos com a belga Phillippa, que lhe deu 13 fi lhos. Mais tarde, apaixonou-se por Joan, condessa de Salis-bury, que lhe deu as costas e insistiu em manter-se fi el a seu segundo marido, malgrado o assédio real.

Durante um banquete em Calais, em comemoração à posse inglesa da cidade francesa, o rei tirou a con-dessa para dançar, sob os olhares perplexos da rainha Phillippa e da corte. Súbito, uma das meias de Joan se desatou e desceu ao pé. O rei, sem o menor constrangi-mento, apanhou a liga azul e a amarrou debaixo de seu joelho esquerdo. Frente ao murmúrio provocado por tão ousado gesto, Eduardo III pronunciou a frase que se tornaria o lema da Ordem da Jarreteira: Honi soit quit mal y pense (Maldito seja quem pensar mal).

Vivesse em nossa época, Shakespeare teria à sua dis-posição vasto material, menos nobre, é verdade, des-coroado, pois não convém comparar Eduardo III com senadores que viajam às nossas custas para cuidar da vaidade capilar e nomeiam corruptos notórios como assessores.

Feita de barro e sopro, a natureza humana é sempre a mesma. Sendo o sopro de natureza divina, invisível e volátil, como todos os dons que dependem de nossa li-berdade de acolhê-los e cultivá-los, fi ca o barro como o atoleiro no qual metemos as mãos, os pés e a alma. Amolecido pelo dinheiro da corrupção, torna-se ainda mais maleável. O corrompido não passa de argila fres-ca em mãos do corruptor.

Na peça, ao advertir a fi lha acerca da corrupção no poder, um nobre se expressa em estilo que traz a mar-ca registrada de Shakespeare: “(...) o veneno mostra-se pior numa taça de ouro; a noite escura parece mais escura ao clarão do relâmpago; os lírios que apodre-cem fedem muito mais que ervas daninhas.”

Nós, brasileiros, já não vivemos numa monarquia, malgrado a pose majestática de alguns de nossos po-líticos. E nossa República cheira a republiqueta. Em matéria de corrupção distamos, e muito, da taça de ouro, do clarão do relâmpago e dos lírios. Restam-nos as ervas daninhas: compra de parlamentares, uso privado do que é público, cartões corporativos jamais transparentes ao contribuinte.

Darcy Ribeiro gabava-se, em suas palestras, do di-reito de plagiar a si mesmo. Todos que falam em pú-blico sabem como é impossível ser original a cada vez que se abre a boca. A prova mais contundente de que Shakespeare enfi ou sua colher de pau na cozinha de Eduardo III reside no fato de ele repetir literalmente, em seu Soneto 94, a frase “os lírios que apodrecem fe-dem muito mais que ervas daninhas” (Lilies that fester smell far worse than weeds).

Aliás, em matéria de plágio nossa senatorial mara-cutaia não fi ca atrás, noves fora o talento. De voo em voo, a viagem soa a vadiagem. E dinheiro vivo na bo-ca do caixa, mais ignóbil que uma taça de ouro, ou en-tregue pelo lobista na porta de casa, sem um ramo de lírio.

A vida extrapola a fi cção. Mas quando a repulsa pa-ralisa a plateia, a impunidade campeia. De cima do palco eles se abrigam na escuridão, protegidos pelo manto da imunidade, posando de vítimas ao relampe-jar dos holofotes da mídia. Enquanto aqui no andar de baixo somos envenenados pelo cheiro da podridão.

Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais, au-tor de Calendário do Poder (Rocco), entre outros livros.

Frei Betto

Shakespeare e a corrupção

A vida extrapola a fi cção. Mas quando a repulsa paralisa a plateia, a impunidade campeia

nas. Aqui, os defensores do Estado mínimo estão sofren-do importante derrota com a parceria Brasil e Cuba. É ur-gente que esta cooperação bilateral se estenda aos cam-pos da educação

É indispensável divulgar o heroísmo destes médicos. Recentemente, estiveram junto aos afetados pelas en-chentes no Espírito Santo e Minas Gerais, ombro a om-bro. É essencial, politicamente, que as forças populares divulguem as conquistas da Revolução Cubana e também defendam as parcerias entre Brasil e Cuba, como na cons-trução do Porto de Mariel. Esse porto dinamiza as for-ças produtivas da Revolução Cubana, e, junto com o Mais Médicos, injeta recursos na agredida economia ilhéu, per-mitindo que as ações de cooperação de Cuba com outros povos, nas áreas de saúde, educação ou esportes, sejam ampliadas, consolidando uma integração que está em construção. Esse é o desespero do DEM, que defende a bandeira de Menos Médicos para o povo! E vê que o Che já não mais precisa segurar uma lanterna para iluminar uma cirurgia.

Médicos e a Revolução CubanaA OPERAÇÃO ORGANIZADA pela oligarquia do DEM corrompendo a doutora cubana Ramona Rodriguez, que desertou do Mais Médicos para servir a corporação médi-ca empresarial e a direita brasileira, é um fato completa-mente previsível dentro da luta de classes. Apenas com-prova o acerto do governo Dilma em promover o “Mais Médicos”. Também permite que as forças populares di-fundam junto à sociedade brasileira uma maior infor-mação sobre o signifi cado da Revolução Cubana e de sua imensa solidariedade internacionalista.

As primeiras brigadas médicas cubanas foram enviadas à África e lá estiveram sob comando de Che Guevara. Lu-tavam contra o colonialismo europeu. Há episódios em que africanos eram operados numa maca de bambu, ao ar livre, com o Che segurando uma lanterna para que cirur-giões cubanos pudessem salvar vidas. Muitos fi cavam me-ses, anos, sem uma notícia de casa. A comida era escas-sa, chupavam ossos de animais, compartilhando-os com os africanos. O Apartheid e o colonialismo sofreram gran-de derrota onde estiveram os médicos e as tropas cuba-

Beto Almeida

Escravidão urbana passa a rural pela primeira vez no Brasil

O número de trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão em ativida-des urbanas superou a quantidade de casos ocorridos no campo pela primeira vez desde que dados sobre libertações começaram a ser compilados. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que sistematizou informações que vão de 2003 a 2013, 53% das pessoas libertadas no ano passado trabalhavam nas cidades. Em 2012, esse percentual foi de 29%. A construção civil foi a maior responsável por isso, sendo o setor da economia brasileira com mais casos de resgates em 2013: foram 866 libertados, ou 40% do total. Em segundo lugar, fi cou a pecuária, com 264 (12%). A construção civil já havia liderado em 2012, mas com uma porcentagem bem menor: 23%. A pecuária, no entanto, encabeça o “ranking” se conta-bilizados os casos desde 2003, com 27% das

ocorrências, seguida pela cana, com 25%. Chama a atenção o fato de que 24% do total das libertações tenham ocorrido no estado de São Paulo.

Movimentos sociais fazem plenária de campanha por democratização

No dia 7 de fevereiro, organizações de nove Estados participaram da sua primeira Plenária Nacional de 2014 da “Campanha para Expressar a Liberdade – Uma Nova Lei para um Novo Tempo”. O evento ocor-reu na sede do Sindicato dos Jornalistas, na capital paulista. O objetivo é avaliar o andamento das ações da campanha em 2013 e defi nir os rumos da luta este ano. A secretária nacional de Comunicação da CUT e coordenadora do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), Rosane Bertotti, afi rma: “Durante todo o ano de 2013, a sociedade se orga-nizou para divulgar e coletar assinaturas

do projeto da Lei da Mídia Democrática e levar o debate às ruas. Agora, vamos reivindicar que a democratização da co-municação faça parte das plataformas das campanhas eleitorais”.

Terceirizados protestam contra morte na Usiminas

Os trabalhadores de empreiteiras da Usiminas, em Cubatão (Baixada Santista), protestaram, no dia 7 de fevereiro, contra a morte do soldador Paulo Dias de Moura, de 58 anos. Ele morreu dia 29 de janeiro, após cair de uma plataforma de 30 metros de altura. O presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Construção Civil, Mon-tagem de Manutenção Industrial (Sintra-comos), Macaé Marcos Braz de Oliveira, já denunciou a insegurança ao Ministério Público do Trabalho (MPT) e pretende le-var o caso à Organização Internacional do Trabalho (OIT).

fatos em focoda Redação

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brasilde 13 a 19 de fevereiro de 20146

Fátima Mello

A ERA LULA-AMORIM deixou um rico legado para o Brasil. Em menos de uma década, o país se distanciou de sua posi-ção subalterna e passou a jogar na pri-meira divisão do sistema internacional. O cenário era favorável: a valorização das commodities impulsionava o cresci-mento e permitia alguma distribuição da renda; os EUA direcionavam suas priori-dades para a agenda da guerra, enquan-to na América Latina um novo ciclo polí-tico se abria, com a eleição de governos que recusavam os mandamentos do cha-mado Consenso de Washington, reinan-tes nos anos de 1990.

Os emergentes apresentavam taxas surpreendentes de crescimento e passa-vam a atuar de forma coordenada em fó-runs econômicos, despontando também como potenciais atores políticos. Lula e Amorim souberam surfar nessa onda. Apostaram no fortalecimento da articu-lação regional, nas coalizões Sul-Sul, dis-putaram protagonismo com as potências tradicionais em instâncias multilaterais, na cooperação internacional e até mes-mo em agendas de ‘gente grande’, como no Oriente Médio.

Já o governo Dilma enfrenta um cená-rio espinhoso. A crise iniciada em 2008 ditou o novo rumo da inserção externa do país. A retração nos países centrais reduziu a demanda e encerrou o tempo das ‘vacas gordas’. Os emergentes desa-celeraram seu ritmo de crescimento.

Na Europa, a voracidade do sistema fi -nanceiro debilitou conquistas democrá-ticas e do Estado de bem-estar. O multi-lateralismo passou a ser ainda mais des-prezado e os acordos bilaterais e birre-gionais voltaram com força ao centro da agenda de comércio e investimentos. Te-ses do receituário privatizante dos anos de 1990 que levaram países a bancarro-ta voltaram ao debate com ares de sal-vadores.

Hoje, Europa e EUA negociam um me-ga acordo de livre comércio que inclui as áreas de bens, serviços, investimen-tos e harmonização de regras. Se apro-vado, redefi nirá um novo protagonismo das potências tradicionais na ordem glo-bal. A esperança é que os trabalhadores dos países envolvidos sejam capazes de resistir a mais este rebaixamento de seus direitos e ao ataque aos direitos dos que serão impactados pelas transnacionais norte-americanas e europeias. Ao mes-mo tempo, os EUA também desenham um novo e importante componente da geopolítica por meio da Parceria Trans-Pacífi ca.

Frente a esta onda, Dilma optou pe-lo recuo da bem sucedida política ‘ati-va e altiva’ construída por Lula e Amo-rim. Tem dado sinais de que para ela não

é hora de fazer política nem de seguir dis-putando a vaga de titular na primeira di-visão. Seria hora de se defender, acenan-do ao rentismo e às grandes potências que o Brasil não quer voar alto nem fazer nada que os ameace.

À Carta aos Brasileiros II, anunciada em Davos, se seguiu uma participação de baixo perfi l na CELAC, onde reafi rmou o compromisso com a integração regio-nal, porém sem expressar uma vontade política comprometida com uma agen-da mais estratégica e à altura da impor-tância da Cúpula em Havana. Nada que cutuque os EUA, nada que coloque for-ça política pra valer na articulação com os vizinhos.

O Brasil voltou a apostar nas negocia-ções entre Mercosul e União Europeia, que desde 2004 estavam paralisadas pe-la avaliação de que o livre acesso de gran-des corporações europeias ao espaço do Mercosul seria devastador para o projeto de desenvolvimento do bloco. Dilma de-legou ao setor empresarial um amplo po-der nas decisões sobre importantes áre-as da política externa, como é o caso da crescente cooperação brasileira. Uma ex-ceção a esta postura defensiva e favorá-vel às teses privatizantes foi seu discur-so na Assembleia Geral da ONU, em se-tembro de 2013, onde reagiu à altura da agressão ao escândalo da espionagem da NSA, ao que se seguiu importante inicia-tiva de apresentação, junto com a Alema-nha, de proposta de governança demo-crática da internet e de direito a priva-

cidade. Recuou, porém, frente ao pedido de asilo a Snowden.

Esta postura coloca em risco o legado da era Lula-Amorim. Frente ao cenário adverso há que se investir em caminhos. A saída é pela política, e não pela admi-nistração da crise em patamar defensivo. No plano das relações Sul-Sul, ainda há um longo percurso até que coalizões co-mo os BRICS possam se consolidar - seus membros guardam ampla heterogenei-dade de sistemas políticos, volume e per-fi l de suas economias, relação com seus entornos regionais, o que torna comple-xa e demorada a construção de um nível sufi ciente de coesão que permita ao blo-co tornar-se uma força contra-hegemô-nica de fato. Sem a China e a Rússia, co-alizões como o IBAS (Índia, Brasil, Áfri-ca do Sul) são mais homogêneas, porém sem a força econômica sufi ciente para te-rem peso na ordem global.

Por isso o investimento prioritário do Brasil deve ser na região e no sistema multilateral. No plano regional, é preciso apoiar o fortalecimento dos vizinhos e in-vestir nisso. Nosso destino está inexora-velmente ligado ao deles. Há que se jogar

força na ação coletiva regional, na coor-denação e harmonização de políticas, na integração entre cadeias produtivas e na integração social, política, cultural e co-mercial. Mercosul, Unasul, CELAC e de-mais arranjos institucionais precisam ser turbinados e valorizados.

No plano global, o caminho deve ser o do reforço ao multilateralismo. Se o Brasil aposta nas regras da OMC – ape-sar de serem injustas e pró-transnacio-nais –, não deveria investir no avanço das negociações para um acordo de li-vre comércio entre Mercosul e União Eu-ropeia, que mina ainda mais a relevância da OMC. No tema crucial da espionagem e do direito à privacidade, conceder asilo a Snowden será um passo decisivo para consolidar a liderança global do país nu-ma agenda que se tornou prioritária pa-ra a comunidade internacional. O ideal é que o Brasil esteja ancorado no apoio do sistema multilateral, de países chave, e em especial da América do Sul – o que poderia inclusive tomar a forma da con-cessão de asilo coletivo.

Uma excelente notícia – esta sim, um avanço louvável da era Dilma – é a atual disposição do Ministério das Relações Exteriores de acolher as pressões da so-ciedade pela criação de mecanismos ins-titucionais de transparência e diálogo com a sociedade. Desde 2003 existia a demanda pela criação de um Conselho Nacional de Política Externa, que agora começa a ser efetivado graças ao traba-lho do Grupo de Refl exão sobre Relações Internacionais (GR-RI) - integrado por pesquisadores, militantes sociais e par-tidários - que organizaram uma impor-tante conferência em julho de 2013 e fez convergir esforços para tornar a criação do Conselho uma realidade e uma con-quista histórica.

A política externa é o espelho das op-ções, confl itos e projetos nacionais de de-senvolvimento. Oxalá a opção brasileira – aquela que saiu vitoriosa das urnas que elegeram Dilma há quatro anos – seja a de promover desenvolvimento com jus-tiça social e ambiental, democracia subs-tantiva e direitos humanos. No mundo de hoje, esta opção requer ir à luta na po-lítica internacional.

Fátima Mello é da FASE – Solidariedade e Educação. Integra a Rede Brasileira Pela Integração dos Povos (Rebrip) e o Grupo de Refl exão sobre Relações Internacionais (GR-RI).

Hora de pisar no acelerador da política externa ativa e altivaOPINIÃO O investimento prioritário do Brasil deve ser na região e no sistema multilateral

A esperança é que os trabalhadores dos países envolvidos sejam capazes de resistir a mais este rebaixamento de seus direitos e ao ataque aos direitos dos que serão impactados pelas transnacionais norte-americanas e europeias

No plano regional, é preciso apoiar o fortalecimento dos vizinhos e investir nisso. Nosso destino está inexoravelmente ligado ao deles

Conferência Nacional sobre Política Externa realizada em julho de 2013 na Universidade Federal do Grande ABC

Lula e Celso Amorim em viagem à África, em 2007

Ricardo Stuckert/PR

Assessoria CNTSS/CUT

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brasil 7de 13 a 19 de fevereiro de 2014

Jessica Mota, Luiza Bodenmüller e

Natalia Viana

NÃO FAZ MUITO tempo que a palavra de ordem “Não vai ter Co-pa” surgiu nas manifestações que denunciam os impactos sobre a população e questionam o legado da Copa do Mundo de 2014. Com outras faixas, como “Copa pra Quem?”, há três anos as orga-nizações populares das 12 cidades-sede vêm denunciando as re-moções de comunidades, questionando a construção de obras con-trárias ao interesse público e reivindicando o direito da popula-ção de trabalhar em áreas sujeitas às exigências da Fifa. Protestos, abaixo-assinados e ações judiciais foram instrumentos capazes de trazer a vitória da população organizada em alguns desses casos – e essas conquistas talvez sejam o principal legado que a Copa dei-xará para o Brasil. Recuperamos cinco dessas histórias.

Legado pra quem?ATINGIDOS PELA COPA Cinco histórias de vitórias populares contra violações aos direitos à cidade, à moradia, ao trabalho, à cultura e ao esporte durante os preparativos da Copa

Em Natal, o projeto foi revisto após pressão popular e evitou despejos. “O que eu aprendi? Aprendi que temos direitos”, re-sume a professora de geografi a Eloísa Varela, que morava – e ainda mora – ao longo da Avenida Capitão-Mor Gouveia, no bairro de São Domingo, zona oeste de Natal.

Em agosto de 2011, ela recebeu uma notifi cação da prefeitura avisando que seria removida da casa onde vive há 21 anos.“De início a pessoa se aperreia com a história que vai perder a casa, tem toda a questão do lugar, de se reconhecer nele e perder os laços estabelecidos ali”, lembra.

Cerca de 250 famílias residentes ao longo da avenida, que li-ga o aeroporto ao estádio Arena das Dunas, receberam o mesmo papel com a sentença que abateu Eloísa. “Tinha gente que vivia lá há 40 anos”, ela diz.

Eloísa começou a participar dos encontros do Comitê Popular da Copa, que reuniam moradores, arquitetos, urbanistas, advo-gados. Juntos, viram a luz no fi m do túnel: “Estudando o proje-to, começamos a ver que a obra em si estava irregular: não aten-dia aos parâmetros do plano diretor, não houve audiência pú-blica, não havia a licença ambiental… A gestão simplesmente decidiu que ia ser esse o projeto e avisou o povo’’

Para entrar na Justiça contra o projeto, formalizaram a cria-ção da Associação Potiguar dos Atingidos pela Copa (APAC). Mas o mandado de segurança impetrado para impedir o início das obras foi negado pelo juiz da 2ª Vara da Fazenda Pública de Natal em março de 2012. Resolveram tentar outro caminho. “No começo a gente só estava pensando em ações legais. Até que um morador propôs: por que não montamos um projeto alternati-vo…?”, lembra Eloísa.

O projeto ofi cial previa, como principal mudança naquele tre-cho, o alargamento da avenida – o que provocaria as remoções – para acelerar a ligação entre o aeroporto e o estádio Arena das Dunas, já conectado ao parque hoteleiro na via costeira. Depois de estudar o tráfego da região, o grupo chegou a um modelo em que vias paralelas à avenida também seriam utilizadas para o deslocamento, sem necessidade de alargá-la.

O projeto foi entregue para representantes da prefeitura em uma audiência pública em maio de 2012 e, em agosto, a Secre-taria de Planejamento Municipal de Obras Públicas passou a discutir alternativas. Mas, com a prefeita Micarla Araújo de Sousa (PV) em fi m de mandato, parecia difícil o projeto sair do papel. Os moradores passaram a pressionar os candidatos em campanha, ávidos por apoio e generosos nas promessas, e con-seguiram arrancar de dois deles o compromisso de, se eleitos, rever o projeto.

Ao tomar posse, o novo prefeito Carlos Eduardo Alves (PDT) revogou os decretos de desapropriação e chamou o comitê pa-ra uma reunião. Pediu que a proposta fosse reapresentada for-malmente.

No dia 5 de abril de 2013, cerca de cem baianas paramentadas to-maram a entrada do Estádio Fon-te Nova, em Salvador, durante a cerimônia de inauguração da are-na, com a presença da presidenta Dilma Rousseff, do governador da Bahia, Jaques Wagner, e do pre-feito da capital baiana, ACM Ne-to. “Levamos tabuleiro, distribuí-mos acarajé de graça, 200 camisas do Vitória e do Bahia, e outras fa-lando ‘A Fifa não quer acarajé na Copa’”, conta Rita Santos, presi-dente da Associação das Baianas de Acarajé.

O protesto bem humorado foi motivado pelas normas da FIFA para a venda de alimentos nos es-tádios durante os jogos da Copa do Mundo que, na prática, impediam que as baianas vendessem o quitu-te tradicional, considerado patri-mônio imaterial do Brasil. Além dos tabuleiros, as baianas traziam um abaixo-assinado com mais de 17 mil nomes. Foi a cartada fi nal

Pouco depois, a sorte virou. “Foino dia 25 de Julho – não esque-ço – que a gente recebeu a respos-ta do Ronaldo Pedron, assessor doGovernador, de que poderia vol-tar a um espaço provisório, e de-pois da Copa ganhar um espaçoefetivo [no Mineirinho]”, lembraThereza. Os feirantes retornaramno fi m de 2013, e hoje ocupam o primeiro andar do estádio. “Esta-mos gostando bastante. A feira fi -ca mais compacta, mais fl uida, é mais fácil para as pessoas verema feira toda”. Agora, eles brigampara que esse acordo seja assina-do com a nova empresa concessio-nária do estádio. “Já avisamos quesó vamos sair [para a Copa] quan-do tivermos em mãos o contratoassinado”. Não há ainda data pa-ra a nova licitação.

Em Fortaleza, 22 comunidades se uniram contra o VLT (Veícu-lo Leve Sobre Trilhos) e ainda resistem. Em meados de 2010, os moradores da comunidade Caminho das Flores, no bairro de Pa-rangaba, foram visitados pelos técnicos contratados pelo gover-no estadual para fazer o cadastro das 45 famílias residentes na única rua da comunidade. O motivo? A 18 metros dali, passaria o primeiro trecho do VLT, que ligaria o oeste de Fortaleza ao Porto de Mucuripe a um custo estimado de R$ 265,5 milhões, banca-dos pela Caixa Econômica Federal e o governo estadual.

A notícia veio tão abrupta quanto desencontrada; os moradores não ouviram falar mais da obra até o fi nal de 2012, lembra Thia-go de Souza, morador e integrante do Comitê Popular da Copa de Fortaleza: “Foi aí que o governo fez uma reunião com a gente para explicar o que seria feito”.

A faixa de 7 metros, que teria de ser cedida para o novo VLT, signifi cava que boa parte das casas seria “comida” pelas desapro-priações. “No meu caso, por exemplo, meu terreno tem 135 me-tros. Eles queriam desapropriar 35”. Foi aí que a comunidade re-solveu se organizar e se juntar a outras 21 comunidades que pas-savam por uma situação semelhante. “As 22 comunidades exis-tem há mais de 50, 60 anos. E o governo num passe de mágica quer acabar com elas”, resume Thiago. “A gente foi atrás quan-do a coisa esquentou para a gente”, lembra ele, apontando por exemplo que o projeto do VLT não havia sido apresentado aos moradores.

Junto com as outras comunidades, eles entraram em contato com o Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Po-pular Frei Tito de Alencar, que contatou a Defensoria Pública. “A gente só conseguiu ver o projeto mesmo depois que a Defenso-ria entrou com uma ação civil pública exigindo que fossem res-peitados os nossos direitos”. Houve três audiências na qual a De-fensoria mediou as negociações com o governo estadual. O resul-tado, no caso da Caminho das Flores, é que o terreno a ser desa-propriado foi bastante reduzido, e os moradores conseguiram re-construir suas casas no próprio terreno, com maior recuo. “Na comunidade Lauro Vieira Chaves iam ser 200 famílias removi-das e conseguimos reduzir para 50. Na Alcir Barbosa também, iam ser mais de 200 e conseguimos abaixar para 50 famílias re-movidas”, comemora Thiago. O Comitê segue em negociação, e pretende reverter mais remoções forçadas na área do VLT.

No dia 29 de julho de 2013, o go-vernador Sérgio Cabral anunciou pelo Twitter: “Tenho ouvido mui-tas manifestações em defesa da permanência do Parque Aquáti-co no complexo do Maracanã. Co-aracy [Nunes, presidente da Con-federação Brasileira de Desportos Aquáticos] me disse que o gover-no com isso estaria atendendo à natação brasileira. Diante disso, o Júlio de Lamare [nome do par-que] está mantido”.

Os tweets marcavam uma recua-da e tanto do governo Cabral, am-plamente comemorada pelos que protestavam contra a destruição do complexo: além do parque aquáti-co, a sede do ex-Museu do Índio, ocupada por representantes de vá-rias nações indígenas, o estádio de atletismo Célio Barros e a Es-cola Municipal Friedenreich, esta-vam igualmente condenados à de-molição.

ne trabalham em todos os jogos. ADona Norma trabalha lá há maisde 50 anos”, explica Rita. “Foi porcausa dessas três que eu comeceia brigar”.

O abaixo-assinado foi entreguea um assessor do gabinete da pre-sidência da República durante ainauguração, quando as baianasforam convidadas de última horaa entrar no estádio. Pouco depois,Rita foi chamada pelo secretárioEspecial para Assuntos da Copa: aFIFA tinha autorizado as baianasa trabalharem na Arena na Copadas Confederações.

Apesar de a vitória ter alcan-çado notoriedade internacional– afi nal, foi uma das poucas ve-zes em que trabalhadores conse-guiram mudar uma determinaçãodireta da FIFA – Graziela lamen-ta que a entidade jamais tenha de-clarado publicamente ter muda-do sua posição. “Eles não queriamdar a vitória como fruto de pres-são popular”, diz Graziela.

Os feirantes da tradicional Feira de Artesanato do Mineirinho, o es-tádio Jornalista Felipe Drumond, em Belo Horizonte, também tive-ram que lutar muito – foram seis meses de protesto – para obter um desfecho favorável de sua causa.

Entre 2011 e abril de 2013, a fei-ra que acontecia todas as quintas-feiras e domingos, dentro do está-dio, foi fechada para dar lugar às estruturas temporárias da Copa das Confederações. Rumores de que es-se fechamento seria permanente ameaçavam 400 expositores e cer-ca de 4 mil empregos indiretos ge-rados por esse comércio.

A solução foi ir às ruas – ou me-lhor, ao estádio. “A AEFEM conti-nuou indo ao Mineirinho todas as quintas e domingos, no horário da feira, pedindo a nossa volta”, lem-

Embora Sérgio Cabral tives-se anunciado que não iria demo-lir o prédio do Museu do Índio jáem janeiro, o governo insistiu emretirar os indígenas dali, para daroutra fi nalidade a ele. Por isso, em22 de março de 2013, policiais mi-litares invadiram a Aldeia Mara-canã usando bombas de gás lacri-mogêneo contra índios e ativistaspara desocupar o espaço. A tru-culência dos policiais foi denun-ciada na Organização das NaçõesUnidas (ONU) pela ONG Justi-ça Global. Segundo Carlos Tuka-no, um dos representantes indí-genas, o prédio está agora em re-formas e será transformado emum “Museu Vivo da Cultura Indí-gena”, a ser concluído em agostode 2015. Mas eles pretendem vol-tar a expor seu artesanato no locala partir de abril e ali permanecerdurante a Copa do Mundo. (Agên-cia Pública)

Salvador: baianas usam internet no lobby contra a FIFA

Natal: projeto de tráfego alternativo poupa a comunidade

de uma campanha de ‘advocacy’, um lobby do movimento popular, que envolveu contatos com políti-cos e uma estratégia de apoio da população que atraiu a atenção – e a simpatia – da imprensa nacional e internacional.

A carioca Rita Santos, mãe do goleiro Felipe, do Flamengo, gos-ta de contar a história que termi-nou com a vitória das baianas. Foi um jornalista que a preveniu de que as regras da FIFA para a ven-da de produtos nos estádios e em seu entorno exigiam uma licita-ção, de burocracia inalcançável para essas trabalhadoras autôno-mas. A resposta da FIFA: todas as lanchonetes poderiam vender acarajé desde que vencessem as licitações.

“A gente disse que não, que a gente não queria ser emprega-das da empresa, queria trabalhar por conta própria, como sempre trabalhamos”, diz Rita. “A Do-na Norma, a Solange, a Meireja-

Belo Horizonte: a persistência dos feirantes do Mineirinho

bra. “A gente tinha umas 100 pes-soas a cada dia com faixas, carta-zes, panfl etos. A gente vendia bala no sinal, conversava com o pesso-al, contava o que estava acontecen-do”. A convite do Comitê Popular dos Atingidos Pela Copa (COAPC), os feirantes ampliaram sua presen-ça nas ruas, durante as primeiras manifestações massivas na cidade, que recebia a Copa das Confedera-ções em junho.

Foi quando o governo do Esta-do procurou o Comitê Popular dos Atingidos Pela Copa (COAPC) e a AEFEM para conversar. “Fomos chamados para uma reunião com o governador sobre segurança nas manifestações. Foi aí que consegui-mos marcar outra reunião para fa-lar das demandas da população, en-tre elas a da feira do Mineirinho”.

Rio de Janeiro: o Maraca é nosso, o Maraca é deles

A suspensão das demolições vi-nha sendo reivindicada pelo Comi-tê Popular da Copa no Rio de Ja-neiro – um dos mais ativos do Bra-sil – desde 2012, mas os tweets do governo vieram em um momento em que o Rio estava sob a intensa agitação das manifestações que co-meçaram em junho e se prolonga-ram por meses.

A revolta contra a descaracteri-zação do Maracanã pelas obras da Copa era uma das bandeiras que unia os cariocas bem antes dos pro-testos de junho, como explica Gus-tavo Mehl, membro do Comitê Po-pular e apaixonado pelo Maraca. “O Maracanã resumia o que estava acontecendo na cidade: o processo de privatização, autoritarismo, fal-ta de interlocução com a sociedade civil, remoções, expulsão dos po-bres, elitização dos espaços. Mas a partir de 2012, o Maracanã vira um símbolo de luta”.

Fortaleza: 22 comunidades em luta

Vladimir Platonow/ABr

Policiais do Batalhão de Choque retiram manifestantes do prédio do antigo Museu do Índio, ao lado do Maracanã

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brasilde 13 a 19 de fevereiro de 20148

Pedro Rafael Ferreira de Brasília (DF)

UMA HISTÓRIA que não cabe num livro. A não ser que es-se livro seja tão grande quanto os sujeitos que sabem escre-ver sua própria história. E das páginas gigantes de um livro, abertas diante de 15 mil pessoas, saltaram lembranças de uma trajetória singular de luta política e social no Brasil.

Assim, começou ofi cialmente, na manhã de segunda-feira, 10 de fevereiro, o VI Congresso Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O evento se encerra na sexta-feira, 14 de fevereiro.

A mística de abertura, sempre um momento muito aguar-dado pela carga de energia que libera, emocionou as milha-res de pessoas que lotaram o ginásio Nilson Nelson, em Bra-sília (DF).

Homens, mulheres, jovens e crianças, oriundos de 23 esta-dos e do Distrito Federal, e mais de 200 convidados interna-cionais assistiram ao povo virar as páginas de um processo de rara importância histórica.

Organizada pela coordenação estadual do MST do Paraná, um berço histórico do movimento, a mística envolveu mais de 1,5 mil participantes e foi dividida em cinco atos. Cada ato era anunciado pela página de um enorme livro, de aproxima-damente quatro metros de altura, cujas páginas só eram vira-das por meio do esforço coletivo.

Da repressão militar à organização no campoA história é contada a partir da década 1980, quando o go-

verno militar, nos seus estertores, ainda tenta infl igir o povo. Operários e trabalhadores urbanos, indígenas e camponeses sem-terra, no campo e na cidade eclodem em novas organi-zações. O Estado repressor, com seus militares, do outro la-do, tenta se impor. O povo é mais forte, expulsa as forças ar-madas do poder.

A população do campo volta a se organizar. Nasce o MST, em 1984. Corpos pintados, agora os sujeitos da história es-crevem, eles próprios, o seu destino. Sob o lema: “ocupar, re-sistir e produzir”, os trabalhadores sem-terra passam a rom-per, literalmente, por meio das ocupações de terra, a cerca do latifúndio. A luta pela reforma agrária é retomada com muita força na agenda política do país.

O MST inaugura uma forma de organização de caráter po-pular, baseada em quatro pilares fundamentais: direção co-letiva, unidade, vínculo com a base e estudo e trabalho. Essa confi guração torna o movimento uma referência de luta polí-tica. Destemidos, mas temidos pelas forças dominantes.

Luta e resistênciaAs ocupações de terra, gesto político e ação transformado-

ra. O poder econômico não podia tolerar e a resistência físi-ca irrompe por todo o país. Rajadas de metralhadora atingem corações, mas o povo junto sempre de pé: “nossos nervos são de gelo, mas nossos corações vomitam fogo.

Os companheiros que morreram no sangue seguem eternos na lembrança”. Como esquecer os massacres de Carajás, Co-rumbiara e Felisburgo, ou a luta de companheiros e compa-nheiras como Roseli Nunes, Dorcelina Folador, Fusquinha, Keno, Cícero, Egídio Bruneto e muitos outros e outras...

SolidariedadeA presença de mais de 200 convidados internacionais é

um indicativo do apoio, prestígio e, principalmente, soli-dariedade que o MST desperta em várias partes do mun-do, mas também entre outras organizações populares do país. Bandeiras dos países latinoamericanos, africanos, eu-ropeus, os povos camponeses articulados em torno da Via Campesina.

O MST reafi rma sua luta e vocação internacionalistas co-mo página fundamental de sua história. “A solidariedade é o cimento da construção do nosso movimento, estabeleci-da com outros povos do Brasil e do mundo. Precisamos de-la para enfrentar o capital transnacional do agronegócio e lutar por outro modelo de agricultura”, afi rmou na sauda-ção do congresso Diego Moreira, membro da direção nacio-nal do movimento.

Na verdade, o encontro, que vai até sexta-feira (14/02), co-meçou mesmo há pelo menos dois anos, com discussões e re-fl exões que conduziram o principal movimento de massas do país a orientar suas forças em favor da reforma agrária popu-lar, tema do último ato da mística. Que esta reforma agrária popular devolva ao povo os bens mais preciosos do planeta, que não pertencem aos indivíduos: a água, o ar, a terra sadia, as sementes, as fl orestas. Democratizar o acesso à terra, mas transformar o modelo econômico que destrói a terra.

É dessa forma que o MST se olha e renova e amplia os com-promissos com a defesa da soberania alimentar, a produção de alimentos saudáveis, a agroecologia, a preservação da na-tureza, o direito dos povos indígenas e quilombolas. Igualda-de entre homens e mulheres, liberdade para a juventude.

Mística de abertura resgata a história de 30 anos do MST ORGANIZAÇÃO Começou ofi cialmente, na manhã de segunda-feira, 10 de fevereiro, o VI Congresso Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O evento se encerra na sexta-feira, 14 de fevereiro

A história é contada a partir da década de 1980, quando o governo militar, nos seus estertores, ainda tenta infl igir o povo. Operários e trabalhadores urbanos, indígenas e camponeses sem-terra, no campo e na cidade eclodem em novas organizações

A população do campo volta a se organizar. Nasce o MST, em 1984. Corpos pintados, agora os sujeitos da história escrevem, eles próprios, o seu destino

Leonardo Melgarejo

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de 13 a 19 de fevereiro de 2014 9cultura

Eduardo Campos Lima de São Paulo (SP)

A COMPANHIA Antropofágica reali-za, nos dias 15 e 16 de fevereiro, a II Fei-ra Paulista de Opinião ou I Feira Antro-pofágica de Opinião, no Tendal da La-pa, em São Paulo. Vinte grupos premia-dos do teatro paulista se reunirão com músicos, coletivos audiovisuais e cartu-nistas para responderem todos, com su-as obras, a mesma questão: o que pensa você do Brasil hoje?

O evento será uma reedição, preparada mais de 40 anos depois, da Primeira Fei-ra Paulista de Opinião, organizada em 1968 pelo Teatro de Arena de São Pau-lo e dirigida pelo teatrólogo Augusto Bo-al. A Primeira Feira foi um marco na re-sistência à ditadura militar, congregando alguns dos principais dramaturgos, com-positores e artistas plásticos do período em uma mesma frente política. Vetera-nos do evento, como Cecília Thumim Bo-al, Sérgio Ricardo, Umberto Magnani e Mário Masetti, integrarão a nova edição.

“As intervenções artísticas partirão de questionamentos políticos e estéticos im-bricados na I Feira, mas em diálogo com aspectos contemporâneos. A ideia é pro-porcionar uma tensão que pode reve-lar contradições e apontar os novos ca-minhos que devem ser enfrentados no campo da política e da estética”, apresen-ta Thiago Vasconcelos, diretor da Antro-pofágica.

Da mesma forma que a Primeira Feira propôs uma refl exão sobre a arte de es-querda, ocasionando a discussão dos di-ferentes projetos estéticos e políticos en-tão existentes e a necessidade de unifi ca-ção na luta contra a ditadura, a Feira An-tropofágica busca compreender a quan-tas anda a arte engajada dos dias atuais. “É necessário refl etirmos sobre os cami-nhos e impasses da arte de esquerda que se produz hoje, no atual cenário brasilei-ro”, aponta Vasconcelos.

Primeira FeiraEm 1967, com a percepção de que o te-

atro fi cava cada vez mais isolado após o golpe militar, o dramaturgo Lauro Cé-sar Muniz teve a ideia de fazer uma en-cenação, com contribuições de diferen-tes dramaturgos, sobre a conjuntura po-lítica. “Propus a José Celso Martinez Cor-rêa [diretor do Teatro Ofi cina] fazer uma montagem chamada Os sete pecados ca-pitalistas. Ele topou e fi zemos uma reu-nião com os dramaturgos que estavam em mais evidência na época”, narra.

Os dois reuniram-se, no fi m do ano, com Plínio Marcos, Bráulio Pedroso, Jor-ge Andrade, Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal – que imediatamente com-preendeu o acerto político da propos-ta, comprometendo-se a assumir a tare-fa com o Teatro de Arena de São Paulo. “Era um desafi o à censura reunir os prin-cipais autores paulistas e Boal captou a força da ideia”, lembra Muniz.

O projeto inicial foi superado, dan-do lugar a uma articulação de amplitu-de maior. Do encontro, saiu o plano de integrar também compositores – Cae-tano Veloso, Gilberto Gil, Sérgio Ricardo, Ary Toledo e Edu Lobo – e artistas plás-ticos, como Nelson Leirner. “A coisa to-mou volume em pouco tempo e aí Boal defi niu: “Isso é uma feira’”. Em dezem-bro de 1967, os dramaturgos começaram a entregar a Boal as pequenas peças rapi-damente criadas, defi nindo-se a base da encenação.

Lauro César Muniz escreveu uma pe-ça chamada O Líder, sobre o caso verí-dico de um pescador de Ubatuba que, por ser a única pessoa alfabetizada de sua região, havia sido encarregado de liderar uma associação de trabalhado-res, no período anterior ao golpe – de-pois do qual acabou preso por “sub-versão”; Bráulio Pedroso fez O Senhor Doutor, que exibia um burguês em de-gradação, produzindo pus a cena intei-ra; Plínio Marcos escreveu Verde que te Quero Verde, em que dois gorilas cen-suram uma peça; Jorge Andrade redigiu A Receita, sobre a falta de acesso à saú-de no campo; Gianfrancesco Guarnieri produziu Animália, um panorama po-lítico do momento, com crítica ao po-der dos meios de comunicação de mas-

sa; e Augusto Boal, que fechava a mon-tagem, escreveu A Lua Muito Pequena e A Caminhada Perigosa, a partir de tre-chos do diário boliviano de Che Gueva-ra. Os músicos enviaram suas canções e as peças foram ensaiadas durante algum tempo, sendo a estreia agendada para o fi m do primeiro semestre de 1968, no teatro Ruth Escobar.

No elenco, estavam os atores Antô-nio Fagundes, Aracy Balabanian, Mar-tha Overbeck, Cecília Thumim Boal, Ed-son Soler, Ana Mauri, Luiz Carlos Aru-tin, Myriam Muniz, Paco Sanchez, Re-nato Consorte, Rolando Boldrin, Zanoni Ferrite, Luiz Serra e Umberto Magnani.

ResistênciaApesar de congregar alguns dos maio-

res artistas em atividade na década de 1960, a Primeira Feira Paulista de Opi-nião não conseguiu evitar a censura. Das 80 páginas do texto enviado aos censo-res, foram liberadas apenas 15. “Não fa-zia sentido encená-lo com cortes. Deci-dimos fazer o texto na íntegra, apesar da censura”, explica Muniz.

Conforme lembra Augusto Boal em sua autobiografi a, o veto ao texto pro-vocou o “movimento artístico de solida-riedade mais belo que já existiu”. “Ar-tistas de São Paulo decretaram greve geral nos teatros da cidade e foram se juntar a nós. (…) Cacilda Becker, no pal-co, com a artística multidão atrás, em nome da dignidade dos artistas brasi-leiros, assumiu a responsabilidade pela Desobediência Civil que estávamos pro-clamando. A Feira seria representada sem alvará, desrespeitando a Censura, que não seria mais reconhecida por ne-nhum artista daquele dia em diante. A classe teatral aboliu a Censura!!!”, con-ta o teatrólogo.

A polícia, é claro, não permitiu a estreia e o elenco foi ao teatro Maria Della Costa, onde a atriz Fernanda Montenegro inter-rompeu sua peça para que fosse apresen-tado um trecho da Feira e lido um ma-nifesto. O mesmo foi feito no Teatro de

Alumínio, em Santo André, onde atuava o Grupo Teatro da Cidade, dirigido por Heleny Guariba. O cerco da repressão e de grupos de direita aumentava ao re-dor dos artistas – que estavam pratican-do algo defi nido por Boal como “guerri-lha teatral”. “Arrumamos um advogado que conhecia um juiz simpático ao pro-jeto. Conseguimos uma liminar que libe-rou totalmente o texto”, conta Muniz. O juiz, algum tempo depois, teve de partir para o exílio, pois integrava uma organi-zação de resistência.

A Primeira Feira Paulista de Opinião enfi m pôde estrear na sala Gil Vicente – ao mesmo tempo em que, na sala de ci-ma, no mesmo teatro Ruth Escobar, era apresentada Roda Viva, de Chico Buar-que. As ameaças de grupos da direita, co-mo o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), começavam a se concretizar. “O Zé Lica, que fazia a iluminação, foi pego na porta do teatro. Bateram nele e o de-volveram somente depois de três dias”, recorda Umberto Magnani.

Com a ajuda de estudantes – que na época lotavam o Teatro de Arena, acom-panhando de perto a luta dos artistas en-gajados – foi elaborado um esquema de segurança. “Havia estudantes na plateia, que, a qualquer sinal dos dois que fi ca-vam de pé, de costas para o palco, já sa-biam como reagir”, detalha Muniz. Ain-da assim, não foi possível evitar ataques.

“Colocavam ampolas de gás lacrimogê-neo nos corredores, para que os espec-tadores pisassem, ao sair do teatro”, re-lata Magnani.

Infi ltrados no público regular, os mili-cianos de direita lograram um forte ata-que ao elenco de Roda Viva. “Eu coorde-nava a equipe de segurança. No dia em que eu folguei, eles invadiram”, lembra o ator do Arena Sylvio Zilber.

A Feira fi cou em cartaz por alguns me-ses, passando por cidades do interior de São Paulo, como Piracicaba, e se encer-rando com uma temporada no Rio de Ja-neiro – onde uma granada desativada foi lançada no palco. Arte e política cami-nhavam lado a lado, poucos meses antes do AI-5. “Depois dos espetáculos, havia debates infl amados até de madrugada”, lembra Rolando Boldrin.

PolíticaPouco após a Primeira Feira, houve

a tentativa, capitaneada por Ruth Esco-bar, de organizar uma versão brasileira. Alguns autores da Feira Paulista escre-veram textos novamente – como Lauro César Muniz, que fez uma comédia so-bre a fi gura do senador biônico –, mas o evento não chegou a acontecer. Em Nova York, Boal conseguiu realizar uma Fei-ra Latinoamericana de Opinião, que te-ve apenas algumas apresentações. “Hélio Oiticica era um jovem artista e morava lá, na época, sendo o responsável pela ce-nografi a da Feira”, recorda Cecília Boal.

Em texto intitulado O Que Pensa Vo-cê da Arte de Esquerda?, Augusto Boal mapeou as principais tendências dos di-ferentes setores da esquerda cultural no fi m da década de 1960. Havia diferen-ças importantes entre as perspectivas do Arena e do Ofi cina, por exemplo. Mas as divergências, naquele momento, não po-diam ser mais importantes que a arti-culação política contra a ditadura. “Bo-al podia até não achar todas as peças bo-as – sei que ele não gostava de algumas –, mas era estrategicamente fundamental contar com todos os autores. Ele era um guerrilheiro naquele momento”, analisa Lauro César Muniz.

Essa é a história que pretendem contar a Cia. Antropofágica e os outros coleti-vos participantes, alguns deles veteranos do teatro militante em São Paulo, como o Teatro União e Olho Vivo e o Engenho Teatral. Ao mesmo tempo, partem do aprendizado sobre os artistas militantes dos anos 1960 para, uma vez mais, pen-sarem sobre o Brasil e os caminhos para a transformação social – caminhos que a arte pode continuar ajudando a mostrar.

A programação completa pode ser aces-sada no site www.antropofagica.com. (Instituto Augusto Boal).

ServiçoII Feira Paulista de Opinião ou I Feira Antropofágica de Opinião15/02 | Sábado | 14h às 22h

16/02 | Domingo | 14h às 22h

Gratuito | Livre

Espaço Cultural Tendal da LapaAcesso pela Rua Constança, 72 – Lapa (Travessa da Rua Guaicurus)

Tel.: 11 38710373

Coletivos artísticos reeditam Feira Paulista de OpiniãoARTES Vinte grupos teatrais, além de músicos, cartunistas e coletivos audiovisuais, se reúnem com veteranos da resistência à ditadura militar para pensar sobre o Brasil de hoje

“As intervenções artísticas partirão de questionamentos políticos e estéticos imbricados na I Feira, mas em diálogo com aspectos contemporâneos. A ideia é proporcionar uma tensão que pode revelar contradições e apontar os novos caminhos que devem ser enfrentados no campo da política e da estética”

Divulgação

A experiência de artistas militantes dos anos 1960 como subsídio para pensar os caminhos para a transformação social

Evento busca reeditar, mais de 40 anos depois, a Primeira Feira Paulista de Opinião, organizada em 1968

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culturade 13 a 19 de fevereiro de 201410

Cecília Luedemannde São Paulo (SP)

EM 13 DE FEVEREIRO, a Editora Ex-pressão Popular e a Escola Nacional Florestan Fernandes lançam dois no-vos títulos da série Realidade Brasilei-ra: Maria Aragão e a organização popu-lar e Ruy Mauro Marini e a dialética da dependência, em Brasília, durante o VI Congresso do MST.

Voltados para a juventude, os docu-mentários e livros trazem contribuições de brasileiros e brasileiras que viveram e pensaram as contradições do Brasil profundo: como o Brasil pode resolver o problema das desigualdades sociais? De que forma as trabalhadoras e os tra-balhadores brasileiros conquistarão os direitos fundamentais?

Essas são algumas das questões que foram discutidas por Ruy Mauro Mari-ni e Maria Aragão ao longo de suas vi-das e são retomadas nessa coleção vol-tada para a juventude, que tem como objetivo principal contribuir para uma iniciação às principais teses de inter-pretação da realidade brasileira elabo-radas por intelectuais e lutadores so-ciais do século 20.

Médica contra as mazelas Maria José de Camargo Aragão nasceu

em Engenho Central, no Pindaré-Mirim, uma das principais áreas de confl itos de terras do Maranhão, em 10 de fevereiro de 1910, numa família de sete fi lhos.

Faleceu no dia 21 de julho de 1991, em São Luís, lutando até o fi m da vida para exercer a medicina junto ao povo e para superar as enormes desigualdades so-ciais do Brasil.

Maria Aragão, rebelde desde a juven-tude, procurou manter esse espírito por toda sua vida: “Meu interesse pela mili-tância surgiu um pouco pelo meu tem-peramento – desde jovem eu sempre briguei contra as injustiças, não impor-tava em que nível elas se davam, nunca me conformei com qualquer tipo de in-justiça – e um pouco pelas circunstân-cias de vida, que me levaram por este caminho. Quando estudante, várias ve-zes me rebelei contra situações que con-siderava injustas.”

Maria Aragão é considerada, atual-mente, a maior fi gura pública do Mara-nhão no século XX, tendo sido homena-geada com a construção de um memo-rial com seu nome projetado por Oscar Niemayer, em São Luís, pelo então pre-feito Jackson Lago. Por sua história de vida e de luta, destaca-se como uma re-ferência para a compreensão das raízes dos problemas brasileiros.

Além de médica, foi dirigente do PCB e diretora do jornal Tribuna do Povo. Com a vida marcada pela luta contra a fome, desde a infância, Maria nunca se entregou, lutou contra a exploração de trabalhadores na cidade e no campo e pelos direitos das mulheres, dos negros e dos oprimidos de forma geral.

Em sua trajetória de 81 anos, ela se sobressai como mulher negra, brasi-leira, que ousou organizar os proletá-rios em movimentos, sindicatos e par-tidos a fi m de desafi ar o poder da elite local, fortemente armada com pistolei-ros de aluguel e benefi ciada pelo siste-ma jurídico.

Um mergulho no Brasil profundo

REALIDADE BRASILEIRA Série voltada à juventude ganha dois novos títulos: Maria Aragão e a organização popular e Ruy Mauro Marini e a dialética da dependência

Sua ousadia maior foi lutar contra o jogo político em que o trabalhador era “carta fora do baralho”. Pagou por is-so um preço alto: cinco prisões, uma em plena democracia e quatro durante a ditadura. Corajosa, ainda hoje é lem-brada como exemplo contra a tirania e a tortura no Maranhão.

Como médica, Maria Aragão lutou pelo direito de todos à vida; como co-munista, identifi cou o capitalismo co-mo a causa de tantas doenças e mor-tes entre os trabalhadores e a necessi-dade de derrubá-lo para construir ou-tro sistema, em favor da vida. Por isso, apresentava-se como comunista mes-mo quando os padres reacionários e a elite maranhense, sem nenhum outro argumento racional, gritavam que era uma “besta-fera”.

Maria faz parte da geração de líderes comunistas brasileiros que, como Gre-gório Bezerra, eram de famílias prole-tárias e se dedicaram a criar novas for-mas de organização nos países de ca-pitalismo dependente, em regiões on-de predominavam as relações de super-exploração. Sua obra maior é a organi-zação da classe trabalhadora brasileira, em especial no Maranhão, para a cons-trução do socialismo.

Como militante da frente prática, as refl exões de Maria Aragão podem ser encontradas em artigos de jornais, de-poimentos gravados e pelo testemunho de seus “fi lhos” – modo carinhoso a que se referia aos jovens da corrente pres-tista – entre outros, com quem partici-pava da luta política.

Teoria marxista da dependênciaNascido em 2 de maio 1932, na cida-

de de Barbacena, Minas Gerais, numa família de dez fi lhos, Ruy Mauro Mari-ni foi um dos representantes da teoria marxista da dependência, ao lado de Vâ-nia Bambirra e Theotonio dos Santos.

Dirigente da Organização Revolucio-nária Marxista Política Operária (ORM-Polop) no Brasil e do Movimento de Es-querda Revolucionária (MIR) no Chi-le, Marini pertenceu à “nova esquer-da” que surgiu das lutas de libertação nacional e dos processos revolucioná-rios na América Latina, que culmina-ram, em 1959, com a Revolução Cuba-na. Com o golpe civil-militar de 1964 no Brasil, Ruy Mauro foi preso e tortu-

rado, obrigado a se exilar durante qua-se 20 anos.

Representante da sociologia críti-ca latino-americanista, marxista, Ruy Mauro faz parte da geração dedicada a explicar a causa da dependência e da desigualdade social em nosso país e na América Latina, e de propor os meios para a sua superação.

Seus estudos sobre o capitalismo re-sultaram na reinterpretação de nossa história, profundamente atrelada à in-tegração na dinâmica do capitalismo in-ternacional.

Ruy Mauro demonstra que a entra-da forçada da América Latina ao capi-talismo mundial é a origem da enor-me desigualdade social: “Desenvolven-do sua economia mercantil, em função do mercado mundial, a América Latina é levada a reproduzir em seu seio as re-lações de produção que se encontravam na origem da formação desse mercado e determinavam seu caráter e sua ex-pansão. Mas esse processo estava mar-cado por uma profunda contradição: é chamada para contribuir com a acumu-lação baseada na super-exploração do trabalhador. É nessa contradição que se radica a essência da dependência la-tino-americana.”

Até o fi m de sua vida, defendeu a re-volução socialista como alternativa ao capitalismo, mesmo após a derroca-da dos países socialistas do Leste eu-ropeu. Depois de enfrentar um câncer

nos pulmões, Ruy Mauro faleceu noRio de Janeiro, em 5 de julho de 1997,aos 65 anos.

Sua principal obra, Dialética da de-pendência, que completou 40 anos em2013, tem sido retomada por uma novageração de pesquisadores e militantesbrasileiros e latino-americanos. Certa-mente, seus estudos teóricos continu-am atuais, pois auxiliam a recuperar aconcepção de revolução como transfor-mação social necessária e possível paraa superação do capitalismo dependentee de todas as suas monstruosas conse-quências para a classe trabalhadora.

As raízes da realidade brasileira A série Realidade Brasileira – Gran-

des Pensadores é resultado de umainiciativa da Escola Nacional Flores-tan Fernandes (ENFF). A primeira fa-se da série, que contou com seis títu-los – Caio Prado Júnior, Celso Furta-do, Darcy Ribeiro, Florestan Fernan-des, Madre Cristina e Paulo Freire – foifruto de uma parceria com a FundaçãoDarcy Ribeiro e a TVE PR e contou como apoio do Ministério da Cultura.

Nesta segunda fase, a parceria da EN-FF se dá com a Editora Expressão Po-pular e o patrocínio da Caixa Econômi-ca Federal, já contando com brasileirosdestacados não apenas no campo teó-rico, mas também nos campos social epolítico, como é o caso de Maria Aragãoe Ruy Mauro Marini.

Documentários estão disponíveis nosite e no Facebook da Editora Expres-são Popular: www.editora.expressaopopular.com e www.facebook.com/ed.expressaopopular.

SERVIÇO:Lançamento de Maria Aragão e a organização popular e Ruy Mauro Marini e a dialética da dependência (documentário acompanhado de livro).

Data: 13 de fevereiro

Horário: 20h

Local: Barraca do Cinema da Terra, área externa do Ginásio de Esportes Nilson Nelson, Setor SRPN, ASA NORTE- Brasília.

Mais informações: www.editora.expressao popular.comwww.facebook.com/ed.expressaopopular

Em sua trajetória de 81 anos, Maria Aragão se sobressai como mulher negra que ousou organizar os proletários em movimentos, sindicatos e partidos a fi m de desafi ar o poder da elite local, fortemente armada com pistoleiros de aluguel e benefi ciada pelo sistema jurídico

Representante da sociologia crítica latino-americanista, marxista, Ruy Mauro faz parte da geração dedicada a explicar a causa da dependência e da desigualdade social em nosso país e na América Latina, e de propor os meios para a sua superação

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ção

Reprodução da capa dos livros “Maria Aragão e a organização popular” e “Ruy Mauro Marini e a dialética da dependência”,

novos títulos da série Realidade Brasileira

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cultura de 13 a 19 de fevereiro de 2014 11

Horizontais: 1.Verbo utilizado para quando se escreve algo numa rede social na internet — A senado-

ra Kátia Abreu o representa no Congresso. 2.Apetite sexual dos animais, especialmente das fêmeas, em

determinadas épocas do ano — Forma mais comum de atender o telefone. 3.Interjeição de nojo — As

empresas Siemens a Alstom estão sendo acusadas desta prática. 4.Como fi cou conhecida a gravação

antecipada de um programa em vídeo para a televisão — Comunidade, que à época da escravidão,

servia de refúgio para negros que conseguiam escapar. 5.Raiva — Forma popular de chamar cocaína

— Ministério Público Federal. 6.Rede de supermercados que oferece preços populares — Diz o ditado

que o ano só começa depois dele — Movimento social que luta pela terra que completa 30 anos este

ano. 7.Pena. 8.Estado brasileiro (sigla) que tem seu nome oriundo da língua tupi que signifi ca “bico

de tucano” — Agência de espionagem dos EUA — Nome da primeira criança nascida na ocupação da

fazenda Annoni, que se transformou num marco do MST, e que hoje é médico formado em Cuba. 9.Ár-

vore que também é sobrenome — Saudação informal no Brasil. 10.Um Ministério também é chamado

assim. 11.Unir — Anel que simboliza comprometimento.

Verticais: 1.Conjunto de instituições ou de medidas de proteção e assistência aos cidadãos em caso

de doença, desemprego, aposentadoria. 2.No Sul do país, o advérbio “muito” é comumente trocado

por ele. 3.Joaquim Barbosa é seu atual presidente — Comunidade fundada em 1935 que busca au-

xiliar no controle da dependência ao álcool — O goleiro fi ca nela durante o jogo. 5.Quem não crê na

existência de um Deus — Vaga reservada em um processo seletivo para tentar minimizar injustiças

históricas. 6.Comissão Interna de Prevenção de Acidentes — Companheira de Luís Carlos Prestes que

foi mandada para a Alemanha de Hitler por Getúlio Vargas. 7.Sensação produzida por temperatura

elevada. 8.Interjeição de dor — Na única realizada no país, em 1950, o Brasil perdeu para o Uruguai.

9.O verbo “ir” em inglês — (?) Couto, mais renomado escritor moçambicano. 10.Caminho. 11.Alimen-

te-se! — Como se diz “garoto” no Sul do país. 12.Liga de basquete dos Estados Unidos — Projeto de lei.

13.Programa de Integração Social. 14.Em inglês, diz-se “cat” — Ferramenta para cavar. 15.Grito que o

torcedor dá quando uma goleada está sendo aplicada em um jogo de futebol — “Genebra 2” é o nome

dado a uma conferência que a ONU patrocinou para tentar resolver a guerra civil que este país vive no

momento. 16.Quando um aluno copia o que outro escreveu durante uma prova. 17.Décima letra do

alfabeto. 18. Estado de uma nação em que a preponderância de alguma família dispõe do governo.

Horizontais: 1.Postar — Agronegócio. 2.Cio — Alô. 3.Eca — Cartel. 4.VT — Quilombo. 5.Ira — Pó — MPF. 6.Dia — Carnaval — MST. 7.Dó. 8.TO — CIA — Tiarajú. 9.Carvalho — Oi. 10.Pasta. 11.Atar — Aliança.Verticais: 1.Previdência. 2.Tri. 3.STF — AA — Área. 5.Ateu — Cota. 6.CIPA — Olga. 7.Calor. 8.Ai — Copa. 9.Go — Mia. 10.Via. 11.Coma — Pia. 12.NBA — PL. 13.PIS. 14.Gato — Pá. 15.Olé — Síria. 16.Cola. 17.Jota. 18.Oligarquia.

PALAVRAS CRUZADAS

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Daniele Silveira de São Paulo (SP)

CONHECIDO COMO O CARTUNISTA mais combativo na época da ditadura mili-tar, Henrique de Souza Filho, o Henfi l, te-ria completado 70 anos no dia 5 de feverei-ro. Pai de personagens emblemáticos como a Graúna, Cumprido e Baixim, Zeferino e Ubaldo, sua obra permanece contemporâ-nea mesmo 26 anos após sua morte.

Nascido em Minas Gerais, Henfi l colabo-rou com a luta contra a ditadura brasileira. Teve suas tirinhas publicadas no Pasquim, histórico jornal de esquerda da época, e seus personagens sempre tiveram algum teor po-lítico. Graúna era uma nordestina que criti-cava os políticos e a seca do nordeste. Ubal-do, o Paranoico, representava o medo de vi-ver num regime autoritário, que se potencia-lizou depois da assinatura do AI5.

Henfi l morreu em 1988, após contrair o ví-rus da AIDS. Assim como seus outros dois irmãos, o sociólogo Herbert de Souza (1935-1997) e o violonista Francisco Mário (1948-1988), ele era hemofílico. Betinho, citado na música O bêbado e a equilibrista como “ir-mão do Henfi l”, também lutou diretamente pela abertura política do país e virou símbo-lo dos direitos humanos.

Como homenagem a sua obra, Ivan Con-senza de Sousa, único fi lho do cartunis-ta, fundou em 2009 o Instituto Henfi l. Em 2013, o instituto publicou 12 números da re-vista Fradim, lançadas por ele entre as dé-cadas de 1970 e 1980, e pretende publicar o restante até o fi m deste mês. (Radioagência Brasil de Fato)

Os 70 anos de Henfi lHOMENAGEM Mesmo após 26 anos de sua morte, as críticas de sua obra continuam contemporâneas. Henfi l colaborou com a luta contra a ditadura militar. Teve suas tirinhas publicadas no Pasquim, histórico jornal de esquerda da época

Nascido em Minas Gerais, Henfi l colaborou com a luta contra a ditadura brasileira. Teve suas tirinhas publicadas no Pasquim, histórico jornal de esquerda da época, e seus personagens sempre tiveram algum teor político

Betinho, citado na música O bêbado e a equilibrista como “irmão do Henfi l”, também lutou diretamente pela abertura política do país e virou símbolo dos direitos humanos

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internacionalde 13 a 19 de fevereiro de 201412

Nicolas Tamasauskasde Paris (França)

EM MEIO À CRISE na zona do euro e a questionamentos crescentes quanto à agenda de governos e do modelo econô-mico na Europa, experiências na Améri-ca Latina têm sido referência na constru-ção de alternativas ao desemprego em massa e à luta pela autodeterminação dos trabalhadores no velho continente.

É o que se verifi cou em encontro pró-ximo a Marselha, no sul da França, nos dias 31 de janeiro e 1º de fevereiro. A ci-dade de Gémenos recebeu a primeira edição do “Encontro Regional para Eu-ropa e Mediterrâneo – A Economia dos Trabalhadores”. Foi organizado nas ins-talações da Fralib, fábrica de produção de chás que teve as atividades interrom-pidas pela transnacional Unilever com a transferência da produção para a Polô-nia, visando menores custos trabalhis-tas. A fábrica está hoje sob o controle dos trabalhadores e a marca é objeto de disputa judicial.

Exemplos de empresas autogeridas pe-los operários na Argentina, no Brasil e no México, as pesquisas e a conquista de es-paços nas universidades para o tema na América Latina, e as análises sobre os ca-minhos desse tipo de construção coleti-va prenderam a atenção dos europeus. O encontro foi organizado pelos coope-rados da Fralib, em conjunto com o Pro-grama Facultad Abierta da Universidade de Buenos Aires, a Associação Autoges-tão, da França, a Rede Workers Control, o projeto Offi cine Zero (Itália), o Institu-to de Ciências Econômicas e Autogestão – Espanha (ICEA) e a Associação de So-lidariedade com a América do Sul - Fran-ça (Aspas). Reuniu mais de 200 pessoas, entre trabalhadores, militantes da auto-gestão e pesquisadores de universidades. Resultou na troca de experiências e for-mas de mobilização, e no consenso so-bre a necessidade de aprofundamento de intercâmbio e da solidariedade entre os países. Também, forçosamente, moti-vou uma comparação entre os momentos distintos vividos pela Europa e pela Amé-rica Latina.

“A América Latina teve uma década progressista, com avanços em maior e menor intensidade nos países, mas de-veremos verifi car uma reação da direi-ta, e as conquistas alcançadas nos últi-mos anos terão de ser defendidas, co-mo as práticas e os debates de autoges-tão”, afi rmou Andrés Ruggeri, do progra-ma Facultad Abierta (Argentina), um dos principais organizadores do evento. “Na Europa temos um panorama muito difí-cil, uma crise que tende a se aprofundar, uma situação em que as forças conserva-doras aproveitam para impor suas refor-mas neoliberais”, completou, enfatizando a importância do fortalecimento dos mo-vimentos de resistência e de autogestão.

“O capitalismo tem uma grande capa-cidade de se remodelar, e por isso os tra-balhadores têm de se adaptar, buscar maneiras de enfrentar as situações que se colocam”, disse Célia Pacheco Reyez, professora de sociologia da Universidade Autonôma Metropolitana da Cidade do México, que estuda o trabalho precário.

Gerard Cazorla, operador de máqui-nas há 33 anos na Fralib, que condu-ziu parte dos estrangeiros em uma visi-ta pela fábrica, ressaltou que o contato com os casos argentinos, por exemplo, reforça a crença no sucesso da recupe-ração francesa.

Apesar da “inversão histórica de posi-ção” entre América Latina e Europa, pe-los importantes movimentos sociais e pelas experiências de resistência e cons-trução de alternativas, seguem notórias as diferenças nos sistemas de proteção social e de acesso aos direitos dos traba-lhadores nos países dos dois continen-tes. Mesmo sem conseguir produzir, em decorrência das disputas judiciais em torno da fábrica, os operários da Fralib foram remunerados, por determinação da Justiça, pela Unilever, durante par-te da ocupação, iniciada em 2011, e por mais alguns meses receberão o seguro-desemprego. Ao longo de décadas, o

sistema de remuneração na França, no entanto, vem retrocedendo. “Quando entrei na Fralib, um operador de má-quinas recebia o equivalente a um sa-lário mínimo acrescido em 40%, hoje a média é de 3% a mais sobre salário mí-nimo”, informou o operário.

Grécia“Seria importante criar uma rede in-

ternacional mais estável, permitindo um empreendimento apoiar ao outro poli-ticamente, criar uma voz comum inter-nacional e até mesmo com apoio mate-rial ou econômico”, afi rmou o grego The-odoros Karyotis, representante da asso-ciação de iniciativas solidárias, um em-preendimento de trabalhadores em Tes-salônica, que participou do encontro na França ao lado de dois operários, atuan-do também como intérprete.

Composta por 70 trabalhadores quan-do da sua falência, a Vio apresenta uma situação análoga à Fralib, mas em menor escala. Após um ano sem receber seus direitos trabalhistas e sem poder aces-sar o sistema de auxílio-desemprego no país, decidiram pela ocupação da fábri-ca. A empresa produzia materiais para construção civil. Hoje não possui capital para seguir essa linha produtiva e tam-pouco mercado. “A crise na Grécia faz a construção civil estar completamente pa-rada”, disse Karyotis.

Com isso, comercializa hoje produtos de limpeza com insumos naturais, que não oferecem danos ambientais. No dia 12 de fevereiro, a Vio completa um ano sob controle operário, e se ampara na venda informal dos seus produtos, uma cooperativa de vinte pessoas apoiada em associações de solidariedade “de dezenas de cidades gregas”. Além disso, a coope-rativa tem a fi gura do “membro solidá-rio”, integrante da comunidade que, ao adquirir produtos, tem o direito de par-ticipar da tomada de decisões do empre-endimento. “É uma forma a mais que o empreendimento tem de buscar o apoio da comunidade,” acrescentou Karyotis.

Um dos países mais afetados pela crise, a Grécia, vê o surgimento de diversas ex-periências desse tipo, segundo Karyotis. “Têm surgido muitas cooperativas pro-dutivas e de consumo. Também redes de intercâmbio e estruturas solidárias, co-mo centros de atendimento médico gra-tuito”, afi rmou.

Os gregos propuseram nos debates do encontro a criação de um fundo inter-nacional de apoio aos empreendimen-tos, com recursos das próprias empre-sas recuperadas e cooperativas, inicia-tiva que recebeu o apoio de outros tra-balhadores e militantes, como o francês Benoit Borrits, da Associação Autoges-tão da França.

Conquista argentinaA Argentina traz diversos exemplos de

autogestão. Florescentes na profunda crise que o país viveu na virada dos anos 1990 para os 2000, fábricas recuperadas por trabalhadores se consolidaram, fun-cionam a pleno vapor e estão amparadas não só em uma histórica mobilização de operários, mas também no apoio e envol-vimento das comunidades onde as fábri-cas estão inseridas e em mecanismos le-gais que permitem que as fábricas fali-das passem ao controle dos antigos fun-cionários.

É o caso da cooperativa Têxtil Pigue, localizada em uma cidade de 15 mil ha-bitantes, a 600 quilômetros de Buenos Aires. Na semana passada, a coopera-tiva obteve a titulação, outorgando aos trabalhadores a propriedade dos meios de produção. A iniciativa argentina foi representada na França por Francisco Martinez. “Esse encontro e esse cenário nos lembram muito momentos do início de nossa luta”, disse. A cooperativa reúne hoje 140 trabalhadores cooperados.

BrasilOs brasileiros Vanessa Moreira Sigo-

lo, pesquisadora do tema vinculada ao Núcleo de Economia Solidária da Uni-versidade de São Paulo (Nesol) e Fla-vio Chedid, do Núcleo de Solidariedade Técnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Soltec), mostraram os re-sultados de levantamento nacional con-cluído no ano passado.

O Brasil possui 67 empresas recupera-das por trabalhadores em funcionamen-to, atuantes em diferentes segmentos, como metalurgia, mineração, indústria têxtil e outros. O estudo “Empresas recu-peradas por trabalhadores no Brasil” foi conduzido por pesquisadores de dez uni-versidades públicas brasileiras, consoli-dado a partir de pesquisas de campo, en-trevistas com trabalhadores e análise dos resultados.

“A pesquisa buscou trazer a público as experiências de milhares de traba-lhadores, que a partir da luta contra o desemprego, criaram formas coletivas e autogeridas de produção e trabalho”, disse Vanessa.

“As experiências de autogestão são parte da história de resistência contra a exploração do trabalho e hoje retomam sua atualidade em face das crises sociais, econômicas e ecológicas do capitalismo contemporâneo, sendo centrais para a renovação do socialismo e das lutas so-ciais”, completou.

Faculdade em riscoSe a Argentina é vanguarda na auto-

gestão e possui mais de 300 empreendi-mentos em funcionamento, a discussão e os projetos de atuação no meio acadêmi-co podem estar em risco.

Programa de extensão surgido na Fa-culdade de Filosofi a e Letras da Univer-sidade de Buenos Aires em 2002 e gran-de articulador do evento, a exemplo tam-bém de encontro análogo que aconteceu no Brasil ano passado em João Pessoa (PB), o Facultad Abierta sofre a ameaça de fechamento pela instituição. Uma lis-ta de apoio ao centro de pesquisa foi as-sinada pelos participantes do encon-tro na França. “Nós enfrentamos ques-tionamentos dentro da faculdade, uma ameaça de fechamento, mas indepen-dente do que aconteça, a luta vai conti-

nuar”, disse Andrés Ruggeri.Dario Azzelini, sociólogo alemão de

origem italiana, apresentou no seminário a página na internet sobre experiências e debates sobre controle operário. Segun-do o militante, o site workerscontrol.net está aberto a contribuições de artigos e relatos em português, espanhol, inglês e alemão. “A proposta é ser um arquivo virtual para discussões de experiências do presente e também daquelas que já aconteceram”, disse.

Ideia malucaO projeto Offi cine Zero, com sede em

Milão, na Itália, é outra experiência a aproximar os trabalhadores e o “lado de fora da fábrica”. Ocupada desde o come-ço de 2012, a ofi cina de reforma de va-gões ferroviários está sendo transforma-da em polo de apoio a trabalhadores em situação precária, manifestações cultu-rais como teatro, artes plásticas e músi-ca. No evento, foi exibido o documentá-rio “Pazza Idea” (ideia maluca, em italia-no), relatando a ação de jovens integran-tes de coletivo cultural situado próximo à fábrica.

O encontro debateu ainda novos movi-mentos de resistência à crise do capitalis-mo, usando como mote os protestos em diferentes países. Carlos Schmidt, pro-fessor do Núcleo de Economia Alternati-va da Universidade Federal do Rio Gran-de do Sul, destacou as manifestações sur-gidas no Brasil em decorrência da orga-nização da Copa do Mundo, “corrupção jamais vista no país, que provoca grande sensibilização popular”.

FralibMarca centenária (criada em 1892), o

chá Elephante foi comprado pela Unile-ver em 1972, sendo produzido em Mar-selha e em Le Havre, no norte da França. Em 1997, a transnacional fechou a uni-dade de Le Havre e, após a pressão dos trabalhadores, transferiu parte dos fun-cionários (54 famílias) para a planta si-tuada no extremo sul do país, como a fa-mília de Olivier Leberquier, delegado da CGT (central sindical francesa).

A decisão de fechar também a fábrica do sul em 2010 desencadeou duas ocu-pações, intercaladas por disputas judi-ciais, e a presença de seguranças priva-dos contratados pela Unilever, instru-mento previsto na legislação da Fran-ça. A empresa pretende centralizar sualinha de chás na marca Lipton. A pri-meira ocupação aconteceu em agosto de2011 e durou quatro meses. Em maio doano seguinte fi zeram mais uma ocupa-ção até setembro. Finalmente, a fábrica foi vendida pela Unilever para o gover-no local de Marselha, que a repassou aostrabalhadores.

Hoje, o chá tem uma pequena produ-ção para distribuição militante e como forma de sensibilizar apoio para a luta dos trabalhadores da Fralib. Essa produ-ção está sendo feita sem os aditivos quí-micos que eram utilizados pela Unilever para aromatizar anteriormente. O pro-duto tem sido comercializado de manei-ra informal, com apoio de associações, partidos políticos e sindicatos.

Trabalhadores da Fralib e sindicatostêm organizado regularmente campa-nhas de boicote aos produtos da Uni-lever, e em especial aos chás da mar-ca Lipton.

Experiências latino-americanas servem de modelo para EuropaAUTOGESTÃO Encontro no sul da França reuniu operários, militantes e pesquisadores da autogestão e das fábricas recuperadas pelos trabalhadores

“Seria importante criar uma rede internacional mais estável, permitindo um empreendimento apoiar ao outro politicamente”

“A proposta é ser um arquivo virtual para discussões de experiências do presente e também daquelas que já aconteceram”

oarmag.org

Encontro aconteceu nas instalações da Fralib, fábrica de chá ocupada em Marselha, no sul da França

Page 13: A necessidade de uma bandeira política de massas · Achille Lollo (Roma – Itália), Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jar dim (Caracas – Venezuela) † Fotógrafos:

Novos ventos na América Centralamérica latina de 13 a 19 de fevereiro de 2014 13

Agustín Lewit

HOJE JÁ NÃO é mais preciso argu-mentar exaustivamente sobre a ideia de que, nos últimos anos, o cenário políti-co na América do Sul virou alguns graus em direção à esquerda. Ainda que es-se deslocamento não compreenda to-dos os países, visto que também surgi-ram na região governos conservadores – e, inclusive naqueles onde isso acon-teceu, não faltem questionamentos so-bre isso –, o certo é que, a esta altura, soa como um dado real que um certo es-pírito progressista se espalhou pelo sub-continente.

Mas o fenômeno parece ter transcen-dido as fronteiras do Cone Sul. De fato, algo similar também ocorreu na Améri-ca Central onde, na contramão do ce-nário das últimas décadas, marcado por uma hegemonia neoliberal fecha-da e uma ingerência estadunidense as-fi xiante, vários países do istmo conti-nental viram surgir experiências políti-cas progressistas. Sejam versões atuali-zadas de forças insurgentes do passado, ou surgindo enquanto projetos políticos novos, colocaram a América Central em sintonia com o ritmo político regional. Exemplo do primeiro caso é a Nicará-gua, onde a Frente de Libertação Nacio-nal conseguiu voltar ao poder em 2006, depois de quase duas décadas de gover-nos conservadores.

No segundo caso aparece Hon-duras, onde o Libre (Livre, em portu-guês)– partido de Manuel Zelaya e de sua mulher, Xiomara Castro – não con-seguiu derrotar o conservador PLN nas últimas eleições. Porém, com um pro-grama de forte conteúdo social, chegou a se constituir como a segunda força na-cional, rompendo mais de um século de bipartidarismo conservador.

Estes exemplos se reforçam com o que aconteceu recentemente em El Salvador e na Costa Rica, dois países que realiza-ram eleições presidenciais – no fecha-mento desta edição, os primeiros resul-tados ofi ciais já eram conhecidos – e em que ambos os casos a esquerda mostra-va um desempenho excelente.

No caso de El Salvador, a que parecia como provável vitória de Sánchez Ce-rén signifi caria, a priori, um aprofun-damento do rumo iniciado cinco anos atrás, quando a Frente Farabundo Mar-tí de Libertação Nacional (FMLN) levou Mauricio Funes à presidência. Diferen-temente dele, Cerén é um quadro que vem das entranhas do FMLN e que re-presenta algo como “a esquerda da es-querda”. Com promessas que vão desde “uma virada em direção ao Sul”, aproxi-mando a nação salvadorenha da Améri-ca do Sul, até avanços concretos na re-distribuição da renda – em um país com altíssimos índices de pobreza e de mar-ginalização–, Cerén escutou com aten-ção o cansaço de muitos seguidores “fa-rabundistas” diante dos titubeios de Fu-nes e os pedidos de aprofundar o cami-nho aberto há cinco anos.

Pelo lado da Costa Rica, apesar de a vi-tória não ser tão clara para o partido de esquerda Frente Amplio (Frente Ampla), o fato de quase todas as pesquisas prévias mostrarem seu candidato, José María Villalta, muito perto do candidato gover-nista, já signifi cou alguma coisa – princi-palmente se considerarmos que a Frente Ampla começou a campanha em quarto lugar e que a esquerda sempre ocupou um lugar bastante relegado. Por isso, as chances concretas de vitória de Villalta e

seu surpreendente desempenho nas últi-mas eleições já são uma verdadeira novi-dade para o cenário político do país.

As eleições na Costa Rica e em El Sal-vador não fi zeram outra coisa se nãorespaldar um cenário regional em ple-na mutação, onde todas as alternativas eleitorais de esquerda têm se materia-lizado e ganhado, pouco a pouco, nasdistintas conjunturas nacionais, nutri-das tanto por movimentos sociais vigo-rosos, como pelo esgotamento da forma de gestão política da direita.

O desafi o seguinte é, sem dúvidas, en-contrar a maneira como essas experiên-cias alcancem uma integração virtuosa que as oxigene para avançar em suas du-ras realidades e proponham alternativas à subordinação econômica aos Estados Unidos. O Sistema de Integração Centro-americana (SICA) parece ser um bom es-paço para tal fi m, assim como o Mercado Comum Centro-americano. Com igual relevância aparecem os possíveis laços com novos blocos regionais, em especial o da ALBA, pela proximidade territorial com a Venezuela, motor do bloco.

Numerosos golpes de Estado, fraudes eleitorais consumadas e uma ingerência estadunidense preocupante signifi caram uma história complicada para as esquer-das centro-americanas. E esses perigos estão longe de desaparecer. Mas tam-bém é certo que o ar de “um novo tempo” proveniente do Sul que alterou o cenário político continental colaborou com a re-vigorização dessas forças, que, por sua vez, souberam interpretar o desconten-tamento popular, o esgotamento de mo-delos econômicos centrados no livre co-mércio e na crise de representatividade que afeta muitos partidos tradicionais.

Nesse ressurgimento de alternativas concretas diante do liberalismo econô-mico e do conservadorismo político, vão atadas as esperanças de uma vida melhor de milhões de centro-americanos. Oxalá essas esperanças comecem a se concreti-zar. (Página 12)

Leandra Felipede Brasília (DF)

Os empresários e comerciantes vene-zuelanos devem cumprir, a partir do dia 10 de fevereiro, a Lei Orgânica de Preços Justos, que estabelece lucro máximo de até 30%. Termina neste dia o prazo dado pelo governo para adaptação à medida. Criada para combater a especulação fi -nanceira, a lei prevê multa, expropriação de empresas e até prisão para os comer-ciantes que desobedecerem a norma.

Decretada pelo presidente Nicolás Ma-duro, a lei entrou em vigor no dia 23 de janeiro. Segundo Maduro, com a norma

o governo terá “mais uma ferramenta pa-ra combater a especulação” e o que cha-ma de “guerra econômica”. O governo alega que a medida é necessária porque há produtos vendidos no país com preço até 2.000% acima do valor real.

Depois que a medida foi decretada, o governo fez uma série de palestras em to-do o país para explicar os seus objetivos. “A partir de segunda-feira [10], a lei se-rá aplicada a quem encontrarmos espe-culando. Ninguém terá desculpas por-que já faz três semanas que estamos ex-plicando, desde a publicação”, disse Ma-duro em discurso no último dia 7.

A pena de prisão varia de dois a qua-tro anos, de acordo com a gravidade do crime cometido. Também está prevista a ocupação, pelo governo, por um período de 180 dias, dos estabelecimentos que violarem a lei.

Desde o ano passado, o governo vene-zuelano tem lançado medidas para com-bater a crise econômica, a escassez de alimentos e a especulação monetária. A infl ação acumulada do ano passado ul-trapassou o patamar dos 50% e o dólar no mercado paralelo chega a ser comer-cializado a mais de 50 bolívares. (Agên-cia Brasil)

Rafael Duque de Madrid (Espanha)

Os ministros de assuntos exteriores dos 28 Estados-membros da União Eu-ropeia anunciaram, no dia 10 de feve-reiro, que pretendem dar início a nego-ciações para um tratado político, social e econômico com Cuba. A decisão ofi -cial foi adotada durante a reunião dos chefes da diplomacia europeia em Bru-xelas, mas, segundo diversos jornais europeus, já estava acertada desde a se-mana passada.

Na prática, o acordo termina com a Política Comum Europeia em relação à ilha caribenha, aprovada em 1996 e que restringia qualquer negociação com o governo cubano a avanços no campo dos direitos humanos dentro da ilha. Esta política foi promovida pelo então presidente da Espanha, José María Az-nar, e duramente criticada por diversos setores da sociedade espanhola.

Cuba é o único país da América Latina que não possui nenhum tipo de acordo ofi cial com o bloco europeu. Entretan-to, apesar da existência da política co-mum, muitos países têm tratados eco-nômicos com a ilha caribenha. A pró-pria UE mantém desde 2010 uma linha de ajuda humanitária que já disponibi-lizou mais de 20 milhões de euros pa-ra o auxílio de programas de segurança alimentar no país latino-americano.

Com a decisão desta segunda, os fun-cionários da Comissão Europeia, órgão executivo da UE, irão iniciar o diálogo com o governo cubano. Porém, paí-ses como Alemanha e República Tche-

ca exigem que as conversas também se-jam vinculadas ao avanço no processode abertura econômica pelo qual passao país latino.

Em nota divulgada ao fi m da reunião,a Alta Representante para AssuntosExteriores da UE, Catherine Ashton,afi rmou que espera “que Cuba acei-te esta oferta e que possamos traba-lhar em breve rumo a uma relação maisforte. Esta não é uma mudança políti-ca em relação ao passado. Assim comonós queremos apoiar a reforma e mo-dernização em Cuba, temos consisten-temente levantado preocupações de di-reitos humanos que continuam a ser ocerne desta relação”.

Apoio regionalO apoio do restante dos países da Amé-

rica Latina foi um dos fatores que leva-ram a UE a modifi car ofi cialmente a po-lítica em relação a Cuba. Além das diver-sas manifestações pedindo o fi m da polí-tica comum em cúpulas internacionais, a criação e a institucionalização da CELAC (Comunidade de Estados Latino-Ameri-canos e Caribenhos) como principal ór-gão interlocutor da região com o blo-co europeu deixou em evidência a fal-ta de coerência da posição comum, uma vez que a ilha caribenha não só pertence à comunidade como atualmente ocupa a presidência de turno da mesma, o que obriga a UE a dialogar diretamente com representantes cubanos. (Opera Mundi)

UE aprova retomada de diálogo com CubaApesar de acordos bilaterais com países europeus, bloco tinha as relações ofi ciais com a ilha congeladas desde 1996

Venezuela vai punir empresáriosque descumprirem lei de preçosDesde o ano passado, o governo venezuelano tem lançado medidas para combater a crise econômica, a escassez de alimentos e a especulação monetária

ANÁLISE Ao contrário do que ocorreu nas últimas décadas, vários países da América Central viram surgir experiências políticas progressistas

Algo similar também ocorreu na América Central, onde, na contramão do cenário das últimas décadas, vários países do istmo continental viram surgir experiências políticas progressistas

O fato de quase todas as pesquisas prévias mostrarem seu candidato, José María Villalta, muito perto do candidato governista, já signifi cou alguma coisa

Numerosos golpes de Estado, fraudes eleitorais consumadas e

uma ingerência estadunidense preocupante signifi caram uma

história complicada para as esquerdas centro-americanas

Fiscalização em açougue de Caracas: lucro máximo de até 30%

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AVN

“A decisão ofi cial foi adotada durante a reunião dos chefes da diplomacia europeia em Bruxelas, mas, segundo diversos jornais europeus, já estava acertada desde a semana passada”

Page 14: A necessidade de uma bandeira política de massas · Achille Lollo (Roma – Itália), Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jar dim (Caracas – Venezuela) † Fotógrafos:

internacionalde 13 a 19 de fevereiro de 201414

Marina Terrade São Paulo (SP)

NO MUNDO, 129 milhões de mulheres não sentem prazer durante a relação se-xual, sofrem com intensas dores e têm di-fi culdades para manterem os órgãos ge-nitais limpos. Um número que impres-siona e que, caso as tendências atuais persistam, pode aumentar em 86 milhões até 2030, segundo alerta da Organização das Nações Unidas (ONU) no dia 6 de fe-vereiro, Dia Internacional de Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina.

A circuncisão feminina, que consiste na amputação do clitóris – em alguns ca-sos, dos lábios vaginais também – é uma prática secular que continua acontecen-do em muitas comunidades, principal-mente no Norte da África e no Orien-te Médio, e tem como objetivo condicio-nar a liberdade sexual das mulheres até ao casamento.

“Não há nenhuma razão religiosa, de saúde ou de desenvolvimento para mu-tilar ou cortar qualquer menina ou mu-lher”, afi rmou o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, em comunicado. “Embora alguns argumentem que é uma ‘tradição’, devemos lembrar que a escra-vidão, as mortes por honra e outras prá-ticas desumanas foram defendidas com o mesmo argumento”, lembrou.

Na maioria dos lugares onde é pratica-da, a mutilação genital feminina é con-siderada fundamental na preparação da mulher para a vida adulta e o casamen-to. Em países como a Somália, Guiné-Bissau, Djibuti e Egito, mais de 90% das meninas são circuncisadas. Nessas cul-turas, altamente machistas e patriarcais e onde a virgindade e a fi delidade matri-monial são valorizadas, a pressão é in-tensa para controlar o comportamen-to sexual feminino. Muitas meninas es-cutam que a retirada do clitóris e dos lá-bios vaginais é para deixá-las mais “lim-pas” e “bonitas”.

Em algumas localidades os traumas começam na preparação do procedimen-to, quando muitas meninas e até bebês com menos de 12 meses, como sublinha a ONU, têm as pernas e os braços amar-rados. Depois, o uso de giletes e outros objetos cortantes sem a correta higieni-zação ou anestesia, quando não levam à morte, provocam infecções que podem perdurar por toda a vida.

Os casos de infi bulação também tra-zem riscos durante o parto: segundo um estudo da Organização Mundial da Saú-de (OMS), a mortalidade de bebês é 55% maior em mulheres que sofreram pro-cedimentos para redução do orifício va-ginal. Em alguns casos, o que resta dos lábios vaginais é costurado, provocan-do dores e infeccções urinárias. Somen-te o marido pode “desamarrar” a costura, quando deseje ter relações sexuais.

Felizmente, de acordo com as Nações Unidas, há sinais positivos de progresso para acabar com a prática. “As meninas entendem instintivamente os perigos de serem mutiladas, e muitas mães, que vi-ram ou experimentaram o trauma, que-rem proteger suas fi lhas de passar pe-lo mesmo”, disse o secretário-geral da

ONU, que citou o caso de um pai no Su-dão que se recusou a deixar as fi lhas se-rem mutiladas e, com isso, acabou crian-do uma campanha de conscientização mundial – “Saleema”. Além disso, recen-temente, Uganda, Quênia e Guiné-Bis-sau adotaram leis para terminar com aprática. Na Etiópia, os responsáveis fo-ram presos, julgados e penalizados com ampla cobertura da imprensa. “Nos-so desafi o atual é dar verdadeiro signi-fi cado a este dia, usando-o para ganhar apoio público, criar mecanismos práti-cos e legais e ajudar todas as mulheres emeninas afetadas ou em risco de mutila-ção genital”, disse Ban ki-Moon.

FilmeFlor do deserto, uma produção estadu-

nidense, narra a história verídica de Wa-ris Dirie, garota somali que, aos 13 anos, foge de sua tribo rumo à Londres para escapar de um casamento arranjado com um homem de 60 anos.

Na Inglaterra, ela descobre que é dife-rente quando revela à amiga Marylin que foi circuncisada aos três anos de idade, seguindo costume de seu povo. Embora sofra dores e tenha difi culdades até mes-mo para urinar, ela acha tudo muito nor-mal. Porém, a amiga lhe diz que as mu-lheres inglesas e em muitas outras partes do mundo não sofrem o que ela sofreu.

Enquanto trabalhava em uma lancho-nete, ela é descoberta por um fotógrafo e vira uma modelo de sucesso. Dirie de-pois se transformou em uma defenso-ra da luta pela erradicação da prática da mutilação genital feminina e atualmente é embaixadora da ONU, além de dirigir uma ONG com seu nome. “O mundo sa-be que essas mutilações são erradas, mas até agora não se fez muita coisa. Não en-tendo por que o mundo fi ca só olhando”, disse Dirie quando o fi lme foi lançado no Festival de Veneza. E advertiu: “Em al-gum lugar do mundo uma menina está sendo mutilada agora. Amanhã, o mes-mo destino espera outra menina”.

Federico Mastrogiovannida Cidade do México (México)

Em um vídeo que está circulando pela web, ativistas, intelectuais e mexicanos comuns pedem a libertação de Yakiri Ru-bí Rubio Aupart, uma jovem de 20 anos, presa desde dezembro acusada pelo as-sassinato de seu estuprador. No vídeo, todos os participantes, durante três mi-nutos e meio, declaram o lema da cam-panha: “eu teria feito o mesmo.”

O que eles dizem é que também teriam matado Miguel Ángel Ramírez Anaya, homem que teria estuprado Yakiri em 9 de dezembro de 2013, em um hotel na Ci-dade do México. De acordo com a famí-lia da jovem, às 8 da noite daquele dia, dois homens em uma moto se aproxima-ram dela, a ameaçaram com uma faca e a levaram para o Hotel Alcazar, no Distri-to Federal.

Lá, o agressor fi cou sozinho com a jo-vem, enquanto o irmão foi para casa. Du-rante o estupro, Yakiri se defendeu e pe-gou a faca com a qual Miguel Ángel a ti-nha ameaçado antes, a enfi ou em seu pescoço e fugiu. O homem conseguiu sair do hotel e falar com o irmão, antes de morrer após perder muito sangue. Yakiri foi denunciar o estupro na delegacia, po-rém, foi imediatamente detida por homi-cídio qualifi cado.

Ela continua presa, apesar de a advo-gada ter apresentado provas que justifi -cariam a legítima defesa. Sua detenção é ilegal, uma vez que o código penal do Distrito Federal estabelece legítima defe-

sa quando a vítima “repele um agressão real, atual ou iminente e sem razão”. Isso quer dizer que, pela lei, essa pessoa não pode ser condenada e sua conduta não é reprovável.

Ao se comprovar a legítima defesa, ao não ser considerado um delito o crime contra seu agressor, Yakiri teria de ser imediatamente libertada, mas a Procu-radoria Geral de Justiça do Distrito Fe-deral (PGJDF) ainda não acredita no es-tupro, declarando, por meio do procu-rador, que ainda estão coletando provas e fazendo diligências. O mais impressio-nante é que a própria Procuradoria en-trou com uma ação penal contra ele por não ser a autoridade que deve ser con-vencida disso, e sim o juiz responsável pelo processo.

Enquanto isso, na Cidade do Méxido e nas redes sociais, artistas, cidadãos e grupos de defesa de direitos humanos se mobilizaram a favor da libertação da jovem, entre os quais Nuestras Hijas de Regreso a Casa (Nossas Filhas de Volta pra Casa, ONG de mães cujas fi lhas desa-

pareceram ou foram mortas), Pan y Ro-sas, organização que luta contra o femi-nicídio, e a jornalista Lydia Cacho.

As principais acusações feitas contra o sistema judiciário são as de que Yaki-ri foi detida ilegalmente e fi cou incomu-nicável na agência 50 do Ministério Pú-blico. Pretendia denunciar o estupro, quando uma autoridade lhe imputou a responsabilidade de ter cometido homi-cídio sem levar em conta o direito que ela tinha de se defender legitimamen-te para garantir sua integridade física e sua vida, qualifi cando a versão dos fatos de falsa, a priori.

A sensibilização foi grande também depois das declarações públicas do pro-curador, que a chamou de mentirosa quando disse que não existiu o estupro e a culpou por ter entrado voluntaria-mente no hotel. A raiva da família de Yakiri e dos grupos de cidadãos explo-diu quando fi cou evidente que o aparato de investigação, inclusive publicamente, se ativou não para esclarecer o delito do estupro, mas para colocar, a qualquer

custo, a responsabilidade penal sobre a vítima, pelo crime de homicídio.

MachismoNão é a primeira vez que o México es-

tá no centro de polêmicas e reinvindica-ções de gênero, uma vez que o machis-mo prevalece em todos os âmbitos dasociedade, na forma de perseguição se-xual, violência de gênero, discrimina-ção e até nos casos de feminicídio. Deacordo com a advogada Araceli Olivos, da área de defesa do Centro de DireitosHumanos Miguel Agustín Pro Juárez,“nesse país, as mulheres enfrentam obs-táculos constantes para denunciar a vio-lência de gênero, tanto no âmbito priva-do como no público”.

Segundo ela, em um primeiro mo-mento, frente à autoridade de investiga-ção – o Ministério Público –, o primei-ro obstáculo a ser derrubado é conse-guir abrir uma investigação, “pois mui-tas vezes culpam as próprias sobrevi-ventes agredidas, minimizam a violên-cia (por exemplo, catalogando-a comoum problema familiar), ou se esforçam para encontrar explicações que termi-nem revertendo a responsabilidade so-bre a própria mulher”, afi rmou.

Ainda segundo ela, “isso, no melhor dos casos, desanima a vítima, que desiste de sua tentativa de encontrar justiça, ver-dade e reparação”. Entretanto, como no caso de Yakiri, ela lembra, “no pior dos casos a autoridade acusadora encontra motivos sufi cientes para reverter formal-mente a responsabilidade, presumindo que a vítima é culpada por uma conduta que não é delitiva”.

Um segundo obstáculo são os juízes, “também incapazes de julgar com pers-pectiva de gênero, que dão pleno valor à versão do Ministério Público”. Para Ara-celi, “se, por um lado, como no caso de Yakiri, a mulher é acusada de ter se de-fendido, presumem a culpabilidade e não a inocência dela, do outro, se trata-se do julgamento de um crime cometido con-tra uma mulher, o qualifi cam como de-lito de menor impacto, por exemplo, em vez de tentativa de homicídio, lesões cor-porais.” (Opera Mundi)

86 milhões de mulheres devem sofrer mutilação genital até 2030LIBERDADE SEXUAL Ao todo, segundo as Nações Unidas, 129 milhões sofrem com as consequências da retirada do clitóris e lábios vaginais

“Eu teria feito o mesmo”Campanha pede libertação de mexicana presa por matar seu estuprador. Yakiri Rubí, de 20 anos, matou o agressor a facadas na Cidade do México

A circuncisão feminina, que consiste na amputação do clitóris – em

alguns casos, dos lábios vaginais também – é uma prática secular

“O mundo sabe que essas mutilações são erradas, mas até agora não se fez muita coisa. Não entendo por que o mundo fi ca só olhando”

Manifestação na Cidade do México pela libertação de Yakiri Rubí

Reprodução de cartaz de campanha contra a mutilação genital feminina

Reprodução

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internacional de 13 a 19 de fevereiro de 2014 15

Felipe Amorim, de São Paulo (SP)

OS ESTADOS UNIDOS passaram a ado-tar o sistema de vigilância eletrônica da Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA), exposto pelo informante Edward Snowden, como o principal método de espionagem para a identifi cação dos al-vos dos ataques letais com drones. A re-velação foi feita pelos jornalistas Glenn Greenwald e Jeremy Scahill, no lança-mento da plataforma de jornalismo in-vestigativo chamada The Intercept, na segunda-feira, 10 de fevereiro.

É a primeira vez em que há uma liga-ção clara entre o abrangente sistema de espionagem digital vazado por Snowden — que inclui, entre outros pontos, a co-leta de metadados de chamadas telefô-nicas, controle do tráfego e do conteúdo de grande parte da internet e o acesso a informações armazenadas pelos gigan-tes da web — e o método de assassina-tos extrajudiciais praticado pelos EUA por meio de bombardeios com drones ou operações militares da elite dos marines estadunidenses, a exemplo da que matou Osama bin Laden em maio de 2011. Sa-bia-se que a NSA cooperava com outras agências de inteligência dos EUA, mas não de qual jeito.

Segundo a reportagem, o Departamen-to de Defesa dos EUA está dando menos importância à coleta de informações por meio dos agentes secretos estaduniden-ses espalhados pelo mundo. Agora, o banco de informações digitais da NSA — que contém metadados obtidos a partir do sistema de vigilância dos telefones ce-lulares — é vasculhado por uma comple-xa ferramenta que fornece as coordena-das para o ataque.

Os jornalistas argumentam que o mé-todo é controverso: ele se baseia apenas

na localização do telefone que o alvo su-postamente está usando. Como dispensa a confi rmação física de um espião local, o sistema não é confi ável e pode causar a morte de civis inocentes que acabam não sendo identifi cados.

A fonte da reportagem é, além de do-cumentos do próprio Snowden, um ex-militar e operador de drones da Joint Special Operations Command (JSOC, Comando de Articulação para Opera-ções Especiais, tradução livre), grupo de elite das forças armadas dos EUA, que também já trabalhou com a NSA. Ele diz que a mudança do método para a identi-fi cação dos alvos dos ataques “com cer-teza” resultou em mais mortes de pesso-as inocentes.

Para ele, o problema é que muitos dos alvos dos ataques já entenderam como a NSA trabalha e que depende da geoloca-lização para identifi car as coordenadas. Cientes da tática, muitos usam dezenas de chips nos celulares para confundir o sistema de espionagem. Outros, sem sa-

de São Paulo (SP)

Para investigações de ofi ciais da in-teligência norte-americana, o ex-ana-lista da Agência de Segurança Nacional (NSA), Edward Snowden, utilizou fer-ramentas de baixo custo e amplamen-te disponíveis para acessar um acervo de cerca de dois milhões de documen-tos confi denciais do país, de acordo com o New York Times.

Segundo o jornal, a investigação apre-sentou resultados impressionantes, ten-do em vista que a atuação de Snowden foi pouco sofi sticada e deveria de ter si-do fácil detectá-la. Além disso, a missão da NSA incluía a proteção dos sistemas informáticos militares e de inteligência mais importantes dos EUA contra possí-veis ataques cibernéticos, principalmen-te contra as elaboradas operações oriun-das da China e da Rússia.

Snowden teria utilizado “web craw-ler”, um programa de rastreamento on-line que busca, indexa e duplica o con-teúdo da web. “Não achamos que isto te-nha sido trabalho de um indivíduo sen-tado em uma máquina e baixando este material em sequência”, afi rmou um ofi -cial da inteligência ao NYT, acrescentan-do que o processo estava “bastante auto-matizado”.

Em entrevistas, os funcionários da NSA se recusaram a revelar que tipo de “web crawler” Snowden teria usado ou

se ele mesmo teria desenvolvido alguns dos softwares. O que as autoridades não conseguem explicar é como a presença de tal software em um sistema de alto nível de segurança não era um óbvio si-nal de atividade não autorizada.

O ex-analista – que atualmente es-tá exilado em Moscou – tinha amplo acesso aos documentos da NSA, pois trabalhava como contratista tecnológi-co da agência no Havaí, ajudando a or-ganizar seus sistemas informáticos em um centro focado na China e na Coreia do Norte.

Durante os três anos em que Snow-den acumulou documentos confi den-ciais, ele teria estabelecido diferen-tes parâmetros para as buscas, incluin-do quais temas procuraria e quão fun-do ele pesquisaria os links para os docu-mentos e outros dados nas redes inter-nas da NSA.

Snowden teria acessado por volta de1,7 milhões de arquivos. Entre os mate-riais, estavam as “wikis”, bancos de da-dos em que analistas, operadores e ou-tros compartilhavam informações. Con-tudo, as autoridades da agência insis-tem que se o ex-analista tivesse traba-lhado na sede central da instituição -próxima à capital norte-americana - te-ria sido mais fácil detectá-lo, pois está equipada com sistemas de monitoraçãoque detectam quando alguém acessa ou baixa grandes volumes de documentos.

“Alguns lugares têm de ser os últimosa ser atualizados”, lamentou uma auto-ridade da agência, justifi cando que, nocaso de Snowden, seu posto no Havaínão era prioridade para ser renovadocom medidas de segurança mais mo-dernas. No entanto, os investigado-res ainda não chegaram a um consen-so se Snowden operava no arquipéla-go por casualidade ou se ele tinha umaestratégia.

Apesar disso, autoridades da agên-cia acreditam que o ex-analista já haviaaprendido desde o início de seu traba-lho que, embora a organização elaboras-se uma enorme barreira eletrônica con-tra invasores externos, ela tinha uma proteção muito rudimentar para com-bater seus próprios empregados. (Ope-ra Mundi)

EUA usam vigilância digital da NSApara ordenar ataques com dronesIMPERIALISMO Pela primeira vez é provada ligação entre esquema de ciberespionagem e assassinatos extrajudiciais

O que as autoridades não conseguem explicar é como a presença de tal

software em um sistema de alto nível de segurança não era um óbvio sinal de

atividade não autorizada

Snowden utilizou ferramentasde baixo custo para acessar redes de agênciaSegundo NYT, ex-analista da agência de inteligência atuou de forma pouco sofi sticada e facilmente detectável

ber que estão sendo vigiados, empres-tam o aparelho para parentes ou ami-gos, resultando em mortes inocentes.Alguns líderes talibãs, por exemplo, fre-quentemente distribuíam chips telefô-nicos aleatoriamente para desviar o focoda inteligência norte-americana: “Elesiam a reuniões, pegavam todos os car-tões SIM, colocavam numa sacola e mis-turavam. A cada vez, cada um dos inte-grantes saía do local com um chip dife-rente”, relata a fonte.

Muitas vezes, ataques com dronese operações especiais são autorizadassem que se saiba quem está por trás dotelefone localizado. “É como se estivés-semos mirando em um celular. Nós não vamos atrás de pessoas. Vamos atrásdos seus aparelhos na esperança de que a pessoa na outra ponta do míssil seja o‘bad guy’”, comenta.

The InterceptGlenn Greenwald é o jornalista que no-

ticiou pela primeira vez, por meio do jor-nal inglês The Guardian, o esquema de vigilância eletrônica praticado pela NSA. Todos os documentos sobre os quais re-portou foram vazados pelo ex-analista da agência Edward Snowden.

O jornalista independente Jeremy Scahill fi cou conhecido por reportar so-bre política externa estadunidense no jornal The Nation e no programa Demo-cracy Now!. Tem dois livros publicados. O primeiro, Blackwater: a ascensão do exército mercenário mais poderoso do mundo, lançado em 2008, obteve grande repercussão após denunciar aspectos do fenômeno de privatização das forças ar-madas norte-americanas, no qual solda-dos profi ssionais, mercenários, são ter-ceirizados pelos EUA para desempenhar diversas funções.

Seu mais recente lançamento, Dirty Wars: the World Is a Battlefi eld, trans-formado em um premiado documentá-rio de mesmo nome, continua a análise da política de defesa da administração Obama, centrando foco no uso dos bom-bardeios em terras estrangeiras por meio de drones, aviões não-tripulados. (Ope-ra Mundi)

Sabia-se que a NSA cooperava com outras agências de inteligência dos EUA, mas não de qual jeito

“Eles iam a reuniões, pegavam todos os cartões SIM, colocavam numa sacola e misturavam. A cada vez, cada um dos integrantes saía do local com um chip diferente”

Glenn Greenwald é o jornalista que noticiou pela primeira vez, por meio do jornal inglês The Guardian, o esquema de vigilância eletrônica praticado pela NSA

Quartel General da Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA), em Fort Meade, Maryland

Os jornalistas Glenn Greenwald e Jeremy Scahill

Agência não consegue explicar fragilidade do sistema

Governo EUA

Governo EUA

Reprodução

Page 16: A necessidade de uma bandeira política de massas · Achille Lollo (Roma – Itália), Baby Siqueira Abrão (Oriente Médio), Claudia Jar dim (Caracas – Venezuela) † Fotógrafos:

internacional de 13 a 19 de fevereiro de 201416

Achille Lollo de Roma (Itália)

A AGÊNCIA OFICIAL italiana (Ansa) resumiu em apenas 18 linhas uma re-volta popular que mobilizou cerca de 300 mil manifestantes enfurecidos pela falta de trabalho e por não ter dinheiro para comprar alimentos essenciais, co-mo pão e leite. Uma revolta que se ini-ciou, no último dia 5, no antigo centro industrial de Tuzla, no norte do país, onde os operários de cinco grandes in-dústrias (móveis, sabão, sabão em pó, estruturas para escritórios e metalur-gia) foram demitidos sumariamente em virtude desses grupos industriais terem declarado bancarrota, depois de uma falaciosa privatização, cujos únicos be-nefi ciários foram os novos oligarcas do “protetorado” bósnio.

De fato, em 14 de dezembro de 1995, após a conclusão da guerra entre as três etnias (croatas, bósnios e sérvio-bós-nios), as privatizações foram impostas pelos Estados Unidos e subscritas no Acordo de Dayton, com o objetivo de criar uma formidável economia de mer-cado na recém- criada Federação Bós-nia-Erzegovina, para premiar os bós-nios e croatas, respectivamente, 43,7% e 17,3% da população.

É necessário lembrar que para obter uma paz duradoura o presidente Clin-ton determinou que os bósnios e os cro-atas ocupassem os territórios que ha-viam sido “libertados” durante a guer-ra, enquanto os sérvios-bósnios (31,8%) deviam permanecer apenas no territó-rio da República Srpska, que eles ha-viam proclamado em 1992. Por isso, to-das as formas de governo deviam ser tripartite e cada etnia ter sua específi ca autonomia política e territorial.

O Parlamento da União Europeia le-gitimou o travesso Acordo de Dayton, cuja assinatura fi nal foi dada em Pa-ris. Por isso os banqueiros da Alema-nha e da França receberam do Banco Central Europeu a autorização para fi -nanciar todos os programas de priva-tização propostos pela nova classe di-rigente croata-bósnia e bósnia, mes-mo sabendo que, assim, estavam entre-gando a “Federacija Bosne i Hercegovi-ne (FBiH)” ao nepotismo dos novos oli-garcas, cujo único objetivo era o rápi-do enriquecimento. Um processo que fi cou sem controle, sobretudo quando o governo da Alemanha garantiu a co-bertura fi nanceira da emissão da nova moeda que, como aconteceu na Croá-cia, se chamou “marco-bósnio” com va-lor paritário ao marco da Alemanha e, portanto, da União Europeia.

Revolta no protetorado

A Otan mantém na Federacija (FBiH) 70 mil soldados para garantir a paz e controlar severamente os sérvios-bós-nios, confi nados nos territórios da Srp-ska e praticamente mantidos à beira do fl uxo de capitais que a União Europeia depositou em Sarajevo, nos caixas do governo da Federação Bósnia-Herze-govina.

Na Federacija (FBiH), todas as fases das privatizações, bem como as ativi-dades econômicas e administrativas do governo central e das prefeituras, são monitoradas por funcionários da UE e por inúmeras ONGs, cujos dirigentes são suntuosamente pagos com contra-tos assinados com os ministérios da Co-operação de França, Alemanha, Bélgica, Itália e Suécia.

Praticamente, à Federacija (FBiH) foram dadas as melhores oportunida-

des para se tornar um modelo de “Esta-do com economia liberal”, com o objeti-vo de se esquecer de todas as manipula-ções que a Otan, os EUA e os países da União Europeia fi zeram para transfor-mar a Bósnia no trampolim do projeto de fragmentação da Federação Socialis-ta Iugoslava. Pois, é imperativo lembrar que sem a dramática guerra na Bósnia, o presidente Clinton e seus aliados euro-peus não podiam legitimar “a guerra hu-manitária contra a Iugoslávia para sal-var a minoria muçulmana no Kossovo”.

Na realidade, depois da guerra todas as promessas de progresso e os projetos de desenvolvimento foram sabiamen-te utilizados para criar na Bósnia-Her-zegovina uma sociedade viciada e víti-ma do nepotismo bósnio-muçulmano e croata-bósnio que entregou o país aos “oligarcas”. Uma elite voraz e oportu-nista que ao longo dos últimos 20 anos provocou um desastre do ponto de vis-ta político e, sobretudo, econômico e fi -nanceiro.

De fato, os oligarcas e seus proteto-res europeus e estadunidenses conse-guiram “in extremis” impedir que a Fe-deracija (FBiH) declarasse bancarrota, em 2013, quando explodiu a “beboluci-ja” (protesto em favor dos direitos dos recém-nascidos), juntamente às reivin-dicações dos estudantes à causa do cor-te das bolsas de estudo.

Um movimento de protesto de extre-ma importância que mostrou aos habi-tantes da Federacija (FBiH) que a clas-se política havia praticamente levado o “protetorado europeu” à beira da falên-cia. Por isso, a única forma para acabar com o embasamento dos oligarcas pas-sava pelo abandono dos condicionalis-mos do nacionalismo e do racismo étni-

co, para fi nalmente reencontrar a soli-dariedade dos trabalhadores, dos estu-dantes e do povo em geral.

Foi então em Tuzla – onde o desempre-go havia atingido 44,5% – que os protes-tos dos operários desempregados, no dia 6, se transformaram em revolta popular com os manifestantes que atacaram e in-cendiaram o prédio da prefeitura.

Logo, em Banja Luka, capital da Re-pública sérvio-bósnia Srpska, jovens e trabalhadores organizaram manifesta-ções pacífi cas para se solidarizar com os trabalhadores de Tuzla e lançar a pala-vra de ordem: “Revolução contra os oli-garcas, revolução contra a corrupção, revolução para ter trabalho, pão e di-reitos”.

Palavras que inviabilizaram os ape-los à calma proferidos pelas múmias do poder, Bakir Izetbegoviv, oligarca bósnio-muçulmano, “dono” da presi-dência tripartite, e Valentin Inkzo, Al-to Representante da Comunidade In-ternacional para a transição. Assim e sem nenhuma organização, mas recor-rendo apenas à rede, as palavras de or-dem que haviam sido lançadas em Tu-zla e Banja Luka se espalharam pe-lo pais acendendo a revolta em Mos-tar, Kakanj, Br´cko, Sanski Most, Pri-jedor, Gra´canica, Biha´c, Zavidovi´ci e em outras 33 pequenas cidades, para depois atingir em cheio a capital Sara-jevo, onde os confrontos com a polícia foram extremamente duros, tanto que entre os 200 feridos hospitalizados, 144 são policiais.

Na capital Sarajevo, onde os manifes-tantes exigiam a demissão do primeiro ministro Nermin Niksic, a revolta durou praticamente três dias e parou somen-te no domingo quando os manifestan-tes conseguiram romper o cerco da polí-cia e atear fogo no palácio do governo e no prédio residencial do presidente bós-nio-muçulmano, Bakir Izetbegoviv, que, infelizmente se alastrou até o Arquivo Central, destruindo a ala reservada aos documentos e mapas históricos da épo-ca do Império Austro-húngaro.

Yankee Go Home?

Se em Tuzla, Banja Luka e Mostar a palavra de ordem era “Revolução”, em Sarajevo os manifestantes não se cansa-vam de gritar a histórica frase “Yanke-es Go Home”. O motivo disso tudo tem a ver com a política dos EUA de não que-rer deixar a Bósnia-Herzegovina intei-ramente nas mãos da União Europeia.

De fato, as “excelências” da Casa Branca encarregadas de salvaguardar o poder e a infl uência do Império nos Bál-cãs, desde a assinatura dos Acordos de Dayton, denunciam a perigosa penetra-ção da Alemanha nessa região, em fun-ção de suas ligações culturais, étnicas e sobretudo fi nanceiras e econômicas. Por isso, os EUA exigiram que o Alto Comis-sário da Comunidade Internacional pa-ra a transição na Bósnia fosse Valentim Inkzo, um funcionário austríaco noto-riamente ligado aos EUA e monitora-do por um vice, Frederick Moore, esta-dunidense apoiado incondicionalmente pelo representante da Grã-Bretanha no comando local da Forças de Implemen-tação da Paz da Otan.

O ódio dos manifestantes para com os EUA, os soldados da Otan e, sobretudo, a repulsa ao Alto Representante Valen-tim Inkzo deve-se, antes de tudo, a ges-

tão falimentar que os EUA planejaramnesse “protetorado”, conseguindo des-truir a economia e alcançando o recordeeuropeu no desemprego com uma taxaque chega a 33,2%, dos quais 66% é for-mado por jovens.

As falsas privatizações, as consequen-tes falências e a destruição da agricultu-ra praticamente acabaram com a econo-mia do país, privilegiando poucos se-tores da sociedade que vivem em fun-ção dos “custos da ocupação militar” ou administrando o fl uxo das impor-tações. Para a maioria dos trabalhado-res – há quase 12 meses sem salários esem seguro desemprego –, não há alter-nativas a não ser passar fome ou tentar a sorte com a emigração. A desarticula-ção da economia é tão elevada e tão ab-surda que, por exemplo, um abacaxi im-portado da Costa Rica – mas pago com ofi nanciamento dos fundos da União Eu-ropeia – custa menos do que uma vulgarmaçã produzida no interior da Bósnia.

Mas a revolta estava no ar. De fato,em dezembro os representantes doscinco países da União Europeia que de-veriam monitorar a transição da Bós-nia, nomeadamente França, Alemanha,Bélgica, Suécia e Itália, assinaram umdocumento chamado “No Paper” criti-cando duramente o Alto representan-te, Valentim Inkzo, e seu vice, o estadu-nidense Frederick Moore, pelo fato deterem provocado a falência econômicado país e por impedir ou atrasar aindamais a adesão da Bósnia-Herzegovina àUnião Europeia.

Uma adesão que não pode acontecercom o país cheio de dívidas e uma eco-nomia praticamente inexistente e a umpasso da bancarrota. Apesar disso tu-do, na Casa Branca ninguém está pre-ocupado com o futuro da Bósnia-Her-zegovina, visto que até quando a criseeconômica e social alimenta a instabi-lidade nesse “protetorado”, os soldadosda Otan são obrigados a permanecer.Um pormenor que inviabiliza o proces-so de adesão à União Europeia e é issoque aos EUA interessa mais. Algo quefaz lembrar o que disse a embaixadorados EUA na Conferência de Genebra 2:“Dane-se a União Europeia..”.

Achille Lollo é jornalista italiano, correspon-dente do Brasil de Fato na Itália, editor do

programa TV “Quadrante Informativo”.

Na Bósnia, povo se insurge contra pobreza, desemprego e corrupçãoPROTESTOS Desta vez, a “grande” mídia europeia não conseguiu censurar a revolta popular que assombrou as principais cidades da Federação Bósnia-Herzegovina; enfi m, uma revolta que faz cair a máscara que a Otan, a União Europeia e, sobretudo, os Estados Unidos tinham colocado nesse “protetorado”

Todas as fases das privatizações são monitoradas por funcionários da UE e por inúmeras ONGs, cujos dirigentes são suntuosamente pagos com contratos assinados com os ministérios da Cooperação de França, Alemanha, Bélgica, Itália e Suécia

Manifestantes lançaram a palavra de ordem: “Revolução contra os oligarcas, revolução contra a corrupção, revolução para ter trabalho, pão e direitos”. Na capital Sarajevo, os confrontos com a polícia foram extremamente duros, tanto que entre os 200 feridos hospitalizados 144 são policiais

Fotos: Reprodução

Policiais protegem prédio de manifestantes em Tuzla, no norte da Bósnia-Herzegovina

População local observa resultado dos enfrentamentos nas ruas da cidade