A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA...

19
457 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido em: 19/03/2009. Autor convidado. A onipresença do medo na influenza de 1918 * Omnipotent fear along 1918 influenza Em memória da professora Dea Ribeiro Fenelon LIANE MARIA BERTUCCI Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas Professora de História da Educação no Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Paraná Rua General Carneiro, 460, 5ºandar, secretaria DTFE 80060-150 – Curitiba – PR - Brasil [email protected] RESUMO O medo é um sentimento de diversas faces que durante a vigên- cia de uma grave epidemia torna-se onipresente, podendo motivar tanto a discriminação e a exclusão, quanto a procura desesperada, e muitas vezes solidária, pela cura da doença. Moléstia que desafiou o saber médico-científi- co, a epidemia de influenza espanhola fez aflorar entre os brasileiros o medo do contato com o outro, a indiferença das pessoas e o temor ancestral dos hospitais. Mas, o medo da gripe de 1918 motivou também a solidariedade, expressa de maneira singular na divulgação de práticas caseiras de cura que, combinadas com esparsas informações médicas e com a fé, traduzi- ram a generosidade de indivíduos que difundiam gratuitamente aquilo que, acreditavam, poderia acabar com a epidemia.

Transcript of A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA...

Page 1: A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido

457

A onipresença do medo na influenza de 1918

VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009

* Artigorecebidoem:19/03/2009.Autorconvidado.

A onipresença do medo na influenza de 1918*

Omnipotent fear along 1918 influenza

Em memória da professora Dea Ribeiro Fenelon

Liane Maria BertucciDoutora em História pela Universidade Estadual de Campinas

Professora de História da Educação no Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Paraná

Rua General Carneiro, 460, 5ºandar, secretaria DTFE 80060-150 – Curitiba – PR - Brasil

[email protected]

RESUMO Omedoéumsentimentodediversasfacesqueduranteavigên-ciadeumagraveepidemiatorna-seonipresente,podendomotivartantoadiscriminaçãoeaexclusão,quantoaprocuradesesperada,emuitasvezessolidária,pelacuradadoença.Moléstiaquedesafiouosabermédico-científi-co,aepidemiadeinfluenzaespanholafezaflorarentreosbrasileirosomedodocontatocomooutro,aindiferençadaspessoaseotemorancestraldoshospitais.Mas,omedodagripede1918motivoutambémasolidariedade,expressademaneirasingularnadivulgaçãodepráticascaseirasdecuraque,combinadascomesparsasinformaçõesmédicasecomafé,traduzi-ramagenerosidadedeindivíduosquedifundiamgratuitamenteaquiloque,acreditavam,poderiaacabarcomaepidemia.

Page 2: A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido

458

Liane Maria Bertucci

Palavras-chave gripeespanhola,históriasocialdacultura,medicinapopular

ABSTRACT Fearisamultiplefacesfeelingthatalongahardepidemicbe-comesomnipresent,aswellasitcanmotivatediscriminationandexclusiontogethertodesperate,andmanytimessolidary,searchfordiseasecure.Adiseasethatchallengedmedical-scientificknowledge,influenzaepidemicbroughtupamongBraziliansfearofpersonalcontact,aswellaspeopleunconcerningandancestral terrorofhospitals.On theotherhand,1918influenzafearmotivatedsolidarity,whichhadbeenexpressedinasingularmannerondomestichealingpracticesthat,jointtogetherfewmedicalinfor-mationandfaith,revealedgenerosityofindividualswhobroadcastforfreethoseinformationthat,theybelieved,couldputanendtotheepidemic.

Key words Spanishflu,socialhistoryofculture,popularmedicine

Introdução

Emmeadosde1918,osjornaisbrasileirospublicaramalgumasnotassobre uma epidemia que grassava na Europa há algumas semanas. Opequenodestaqueconcedidoàdoença,quemuitosjádenominavamgripeespanholaou influenzaespanhola,era,emgrandeparte, resultadodospróprioscomentárioseditadosque,mesmodemaneiranãoconclusiva,afirmavamseramoléstiaapenasmaisumaepidemiadegripe:doençamicrobiana,endêmicaemundial.Enfermidadeque,durantetrêsouquatrodias,causavacoriza,doresnocorpo,tosseeumpoucodefebre,emgeralsemgrandescomplicações.OutrascausasdopoucointeressepelanovaepidemiaeraagrandeatençãoquemereciamasnotíciassobreaguerramundialeacarestiageneralizadadosgênerosalimentíciosemtodooBra-sil,inclusivedevidoàexportaçãoparapaísesbeligerantes.Amudançadeatitudedosbrasileirosemrelaçãoàgripeespanhola,apartirdemeadosdesetembro,foiimpulsionadapordoisacontecimentos:aconfirmaçãodaexistênciadegripadosemortospeladoençaentreosmembrosdaMissãoMédicaBrasileira,quehaviapartidoparaaEuropaefizeraparadaemDacar(Senegal),ondegrassavaamoléstia,eapublicaçãodeinformações,ain-daquepoucodetalhadas,sobreonavioDemeraraque,vindodaEuropa,haviafeitoescalaemRecife,SalvadoreRiodeJaneirocompassageirosenfermos. Alguns teriam desembarcado em terras brasileiras. Pouco apouco,notíciassobreaexistênciadegripadosnascidadesportuáriasdoBrasil foramganhandoaspáginasdos jornaise,entredesmentidoseadeterminaçãofederaldevistoriasanitáriaemnaviosatracadosnopaís,osgripadoscomeçaramasercontados.1

1 BERTUCCI,LianeMaria.Influenza,a medicina enferma.Campinas:Ed.Unicamp,2004,p.90-99.

Page 3: A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido

459

A onipresença do medo na influenza de 1918

VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009

EmSalvador,dia24desetembro,cercade700pessoasestavamcomgripe.Trêsdiasdepois,emRecife(ondeboatosjáfalavamdaexistênciadegripados),eraminternadosemhospitaldacidade,comsuspeitadamoléstia,algunstripulantesdeumnaviobrasileirovindodeDacar.Aonoticiarache-gadadosmarinheiros,ojornalcariocaO Paísapelouparaatranquilidadedapopulação,afirmandonãohaver“motivoparaalarmes”.2DiscussõessobreaenfermidadeseintensificarameváriosforamosqueaventaramahipótesedeseragripequecomeçavaasealastrarpeloBrasildiferentedainfluenzaespanhola,quevitimavaoutraspartesdomundo.Nessecontexto,dia8deoutubro,eramconfirmadosoficialmenteosprimeiroscasosdegripenoRiodeJaneiro.DoisdiasdepoisjornaisdenunciavamapresençadamoléstiaemBeloHorizonte,informaçãosóconfirmadapelasautoridadesmédicaslocaisdepoisdeumasemana.3Empoucosdias, jornaisde todoopaísalertavamsobreapresençadegripadosemdiferentespartesdoterritórionacional.4Diminuiurapidamenteonúmerodaquelesqueacreditavamnadiferençaentreagripelocaleadealém-mar.

Emmeioaoscomentáriossobreadoença,dia10deoutubro,odou-torCarlosSeidl,entãoDiretorGeraldeSaúdePública(órgãodogovernofederal),emcomunicadofeitonaAcademiaBrasileiradeMedicina,noRiodeJaneiro,diziaqueainfluenzaespanholaeraagripecomumnaformaepidêmica; portanto moléstia extremamente contagiosa, inacessível àsaçõesprofiláticasinternacionais,inclusiveoisolamento.Apenasmedidasde profilaxia individual eram recomendadas e teriam alguma eficiência:ingestãodesaisdequinino,comopreventivo,earigorosaanti-sepsiadabocaenariz.�MenosdeumasemanadepoisdocomunicadofeitoporSeidl,declaraçãododoutorArthurNeiva,diretordoServiçoSanitáriodoEstadodeSãoPauloem1918,afirmavaque

nãopodehaverprofilaxiaeficaz,regionaloulocalparaainfluenza,todaeladeveserindividual.Paraevitarainfluenzatodoindivíduodevefugirdasaglomerações,

2 SOUZA,ChristianeMariaC.de.AgripeespanholaemSalvador,1918:cidadedebecosecortiços.História, ciências, saúde – Manguinhos.RiodeJaneiro,v.12,n.1,p.71-99,jan-abr.200�;O País.Apud:BRITO,NaraAzevedode.Ladansarina:agripeespanholaeocotidianonacidadedoRiodeJaneiro. História, ciências, saúde – Manguinhos.RiodeJaneiro,v.IV,n.1,p.11-30,mar-jun.1997.

3 OPaís.Apud:BRITO,NaraAzevedode.La dansarina:agripeespanholaeocotidianonacidadedoRiodeJaneiro,p.19;SILVEIRA,AnnyJackelineT.A influenza espanhola e a cidade planejada.BeloHorizonte:Argumentum,2008,p.143-144.

4 Ascidadesportuáriasforamasprimeirasaregistraremadoençae,entreelas,asdonordesteenortedoBrasiltiveramprimazia.AdoençacastigoutodaaregiãoapartirdachegadadoDemerara,em1�desetembro,noportodoRecife.AproximadamenteummêsdepoisdeonavioaportaremPernambuco,agripeespanholavitimavaaregiãosudesteesul,ecercadeummêsdepoisoCentro-OestedoBrasil.NoestadodoMatoGrosso,compopulaçãodispersaepoucasviasdecomunicaçãoterrestre,ogovernoconseguiuisolaracapitalearegiãonortedoestadoinstalandoumabarreirasanitárianorioParaguai,únicaviadeacessoaosuldopaís.AinfluenzaespanholasóvitimouCampoGrande,rompendooisolamento,emfinsdenovembro–eramdoentesvindosdeCorumbá.Cf.:MEYER,CarlosLuizeTEIXEIRA,JoaquimRebello.A grippe epidêmica no Brazil e especialmente em São Paulo.SãoPaulo:CasaDuprat,1920.

� Sessãode10deoutubrode1918.Boletim da Academia Nacional de Medicina, RiodeJaneiro,Typ.JornaldoCommercio,ano89,p.�91,1918.

Page 4: A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido

460

Liane Maria Bertucci

principalmenteànoite;nãofreqüentarteatros,cinemas;nãofazervisitasetomarcuidadoshigiênicoscomamucosanasofaringeanaque,muitoprovavelmente,éaportadeentradadosgermens[dagripe].�

Palavras que, se pretendiam tranquilizar a população, pouco efeitodevemtercausado,poisaquantidadededoentescresciaapesardemui-tosjáseguiremasrecomendaçõespropostas.Naspáginasdosjornaisosmédicoscomeçaramarepetirqueeraprecisorespeitara“marchanaturaldamoléstia”,7istoé,asseissemanasquecaracterizavamqualquerperíodoepidêmicodegripe,apartirdoprimeirocasodadoençaemumaregião.

Masavirulênciadagripeepidêmicade1918eradescomunal.NoRiodeJaneiro,onúmerodedoentesregistradossaltoude440,dia10deoutubro,paracercade20milquatrodiasdepois.Apelosparaaçõesmédico-gover-namentais imediatasforamentãocombinadoscomfrasesquetentavamconvencerapopulaçãoamanteracalma,poisopânicorondavaeodes-controlepareciaiminente.8ArtigodojornalO País,dodia17deoutubro,diziaqueeranecessáriocombaterduasepidemias,adegripeespanholaeadomedo,concluindoque,apesardaseriedadedasituação,“nãohámotivoparaessaatmosferadeinjustificávelpavor”.9

NacidadedeSãoPaulo,aconfirmaçãooficialdapresençadamoléstiaaconteceudia1�deoutubro.Oprimeirocasodadoençateriasidoregis-tradodoisdiasantes:umestudantevindodoRiodeJaneiroqueestavainternadonoHospitaldeIsolamentodacidade.Nodiaseguinteaoanúncio,ojornalO Combateestampouamanchete:“Ainfluenzaespanhola.AterrívelenfermidadefazasuaapariçãoemSãoPaulo”.E,comonoRiodeJaneiro,entreinformaçõesecomentáriosqueimediatamenteinvadiramaspáginasdosjornais,forampublicadospedidosparaqueospaulistanosmantives-semacalma.TextopublicadonojornalA Capitaldizia: “nãohárazãoparapânico e, ainda que houvesse, tudo aconselharia a resistir-lhe. O terrornadaadiantaenadamodifica,senãoparapior”.OmesmoaconteceuemBeloHorizonte,ondejornaistambémapelaramàtranquilidade,mascomaadvertênciasobreosperigosdacoragemdescuidada.10

DesdeaIdadeMédia,segundoMirkoGrmek,quandoparacristãosemuçulmanosacontecimentosdocorpoeramindissociáveisdesignificadosespirituais,quesentimentoscomoomedoeodesânimopassaramaserpercebidoscomofatoresdedesequilíbrio,depredisposiçãoàdoençaea

� O Estado do S.Paulo,SãoPaulo,n.14.�3�,p.�,1�out.1918.7 A Platéa,SãoPaulo,n.114,p.�,22out.1918.8 OPaís.Apud:BRITO,NaraAzevedode.La dansarina,p.20-21.9 OPaís.Apud:BRITO,NaraAzevedode.La dansarina,p.20.10 O Combate,SãoPaulo,n.1.028,p.1,1�out.1918;A Capital,SãoPaulo,n.132,p.1,19out.1918;SILVEIRA,Anny

JackelineT.A influenza espanhola e a cidade planejada,p.2�1.

Page 5: A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido

461

A onipresença do medo na influenza de 1918

VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009

suapropagação.11Amedicinamedieval,fundamentadanasobrasdeGaleno(c.131-201),foidesenvolvidacombasenateoriados“quatrohumores”,deHipócrates(c.4�0-377a.C)edeseudiscípuloegenroPólibo(ouPolíbio).12Teoriaquefoicombinadacomas“quatrocausas”aristotélicas.13Essatesehumoraldasaúdeedoença,queassociavaequilíbriodoshumores(ouele-mentos)eboaordemespiritual,resultounaIdadeMédiaemumamedicina“psicossomática”,comodenominouGrmek,cujosdesdobramentosatra-vessaramosséculos.Algunsdeseusprincípiosestarãopresentesmesmoentreaquelesque,notadamentedesdeoRenascimento,contestaramatradiçãohipocrática,GalenoeAristóteles.14

Críticodateoriahumoral,neoplatônico,estudiosodaspotencialidadescurativasdemetaisemineraispreparadosquimicamente,Paracelso(1493-1�41)defendeuatesequeohomemreproduzia,emminiatura,omacro-cosmouniversaleproclamouqueparacadadoençahaveriaumremédioespecífico.1�Paraele,ascausasdasmoléstiashumanasseencontrariamemfatoresexternosqueseintroduziriamnocorpodaspessoasatravésdealimentos,bebidase,especialmente,atravésdoar.1�Aoescreversobreapeste,Paracelsoafirmouqueacombinaçãoentrea“semente”daenfer-midade,queestarianoarcorrompido,setransformariaemdoençaaosercombinadacomo“fermentodopavor”presentenosindivíduos.17

Essarelaçãopropagaçãodedoençaemedo,herançamedieval,atua-lizadaduranteoRenascimento,embasoudiversasobrasescritasentreosséculosXIVeXVIIIquetinhamcomotemaasenfermidadesepidêmicas.Informandodiferentesaçõesdecombateàsdoenças,essestextosescri-tospormédicosensinavamquemanteraalegria,permaneceremboaepequenacompanhia,ouvirmúsica,lerououvirleituraagradável,poderiaafastaramoléstiatemida.Enãoapenasosdoutoresreproduziamatese

11 LEGOFF,JacqueseTRUONG,Nicolas.Uma história do corpo na Idade Média.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,200�,p.108.

12 NotextoDa natureza do homem,Póliboescrevequeocorpohumanoéconstituídoporsangue,fleuma,bileamarelaebileescura,esuasaúdedependedoequilíbriodesteshumores.Estes“quatrohumores”correspondiamaosquatroelementos:fogo,terra,areágua(esuasquatroqualidades:quente,frio,secoeúmido;asquaiseramacrescentadasoutrosgruposdeoposição:cruecozido,amargoedoce).Umatradiçãomédicaquelembravaa“boamistura”(ouboasproporções)deAlcmeãodeCróton(c.�00a.C.).Cf.:CAIRUS,Henrique(trad.,intr.,notas).Danaturezadohomem.Corpushippocraticum.História, ciências, saúde – Manguinhos,RiodeJaneiro,v.VI,n.2,p.39�-430,julho-outubrode1999;WATTS,Sheldon.Epidemias y poder.Barcelona:EditorialAndrésBello,2000,p.3�-37.

13 Aoseremrelacionadasàmedicina,as“quatrocausas”aristotélicaspodemserassimresumidas:causaeficiente,oatomédicoouomédico;causamaterial,ocorpo;causainstrumental,qualquerinstrumentooumeioterapêutico;causafinal,orestabelecimentodasaúde.Veja:LEGOFF,JacqueseTRUONG,Nicolas.Uma história do corpo na Idade Média,p.111.

14 Cf.:MOSSÉ,Claude.AsliçõesdeHipócrates.In:LEGOFF,Jacques.(apres.)As doenças têm história. Lisboa:Terramar,s.d.,p.39-��;PORTER,Roy.Das tripas coração.RiodeJaneiro:Record,2004,p.41-�3.

1� Ateseremédioespecíficoparaenfermidadeespecíficacontrariavaamedicinahumoral,quenãoesperavadosremédiospapeldecisivonacura,apenasqueelesajudassemocorpoareencontrarseuequilíbrionatural,porexemplo,atravésdapurgaçãoousuor.Cf.:PORTER,Roy.Das tripas coração,p.127.

1� DEBUS,AllenG.El hombre y la naturaleza em el Renascimiento.MéxicoD.C.:FondodeCulturaEconómica,199�,p.49-73;PORTER,Roy.Das tripas coração,p.12�;ROSSI,Paolo.O nascimento da ciência moderna na Europa.Bauru:Edusc,2001,p.271-278.

17 DELUMEAU,Jean.História do medo no Ocidente.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1990,p.12�.

Page 6: A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido

462

Liane Maria Bertucci

“psicossomática”,magistradosfranceses,noséculoXVII,chegaramaor-denardivertimentospúblicosparadevolveracoragemaosmoradoresdeMetz,assoladapelapeste.18

Quandoaepidemiadegripeespanholatornou-seumatristerealidadepara os brasileiros, apelos para que a população mantivesse a calma,afastasseopânicoouomedoexagerado,atualizaramnoiníciodoséculoXXpreceitosmédicosdeséculosanteriores,preceitosquepodiamatésercondenados pela moderna medicina do novecentos, mas que estavamvivosnamentalidadedoshomensdadécadade1910.

Medo: desespero, indiferença e isolamento

Fazendoaspopulaçõesabandonaremseusvaloresecostumesmaisenraizados,adoençaepidêmicainterrompeatividadesfamiliares,isolaodoente,impõeosilêncioàcidade,oanonimatonamorte,edeterminaaaboliçãodosritoscoletivosdealegriaedetristeza.19Em1918,osbrasi-leiros,denorteasuldopaís,tiveramseucotidianomodificadodevidoàgripeespanhola,eassistiramoslocaispúblicos(comoescolas,parques,teatros,cinemas,etc.)seremfechados;asreuniõesnoturnas,inclusiveasreligiosas,tornarem-seproibidas(adiferençadetemperatura,dentroeforadesseslocaisjáfavoráveisàpropagaçãodadoença,poderiaserfatalparaaspessoaseparaadifusãodamoléstia),eosenterroscomacompanha-mentoapéseremvedados.Visitasforamcondenadasebeijoseabraçosdesaconselhados.Atémesmocumprimentaraspessoascomapertodemãopassouaseratoindesejado.20Muitasforamaslocalidadesque,deolhonasmaiorescidadesdopaísjávitimadaspelaepidemia,determina-rampreventivamenteestasmedidas.NoParaná,nasegundaquinzenadeoutubro,odiretordoServiçoSanitárioproibiuos“enterrosàmão,enquantoentendernecessárioabemdasaúdepública”,eaconselhouosmoradoresdeCuritibaanãosevisitaremeanãofrequentaremlugaresondepudessehaveraglomeração.Justificavamsuasações,aepidemiaquegrassavanoRiodeJaneiroeasdeterminaçõesdosServiçosSanitáriosdacapitalfederaledeSãoPaulo.21Inútil,empoucosdiasoscuritibanosemuitosparanaenses,comoinúmerosoutrosbrasileiros,estavamgripados.

18 DELUMEAU,Jean.História do medo no Ocidente,p.12�-127.19 Cf.:DELUMEAU,Jean.História do medo no Ocidente,p.123-12�.20 BERTUCCI,LianeMaria.Influenza,a medicina enferma,p.10�-113;OPaís.Apud:BRITO,NaraAzevedode.La

dansarina,p.22-24.GOULART,AdrianadaCosta.Revisitandoaespanhola:agripepandêmicade1918noRiodeJaneiro.História, ciências, saúde – Manguinhos,RiodeJaneiro,v.12,n.1,p.132,janeiro-abrilde200�;SILVEIRA,AnnyJackelineT.A influenza espanhola e a cidade planejada, p.l�9,203.Algunsindivíduosatédiziam“não”àsregrasqueeramestabelecidas,paradesesperodosmédicosedeautoridadesgovernamentaisqueashaviamdeterminado faziapoucosdias.Eraumatentativaextremadessaspessoasparamanteremvivasas relaçõessociaisqueeramcolocadasemxeque.Cf.:A Gazeta,SãoPaulo,n.3.828,p.1en.3.830,p.1,17e19out.1918.

21 XAVIER,Valêncio.O mez da grippe e outros livros.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2002,p.1�,18,21.

Page 7: A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido

463

A onipresença do medo na influenza de 1918

VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009

Comoumareaçãoemcadeia,tambémosmortospelagripeespanholaforamcontabilizadosemtodooBrasil:emSalvadorapartirde27desetem-bro,noRiodeJaneiroapartirde13deoutubroe,entrebelo-horizontinos,paulistanoseporto-alegrenses,apartirde21deoutubro.22Avidadascida-desfoiganhandoocompassodaepidemia,comaspessoasmaisemaisisoladas.Muitostentaramfugir,masparaonde?Osqueseevadiramdascidadessaíramapressados,deixandoparatráscasa,empregoe,principal-mente,parenteseamigos.EmCuritiba,coisarara,umafamíliaaindatevetempodepagaranúncioemjornalparatentarconseguirumacozinheiraqueosacompanhasse“paraointerior”,mas,emgeral,apressafoiaregra,oquealgumasvezescausousituaçõesinusitadas:umaluzacesaemcasarepentinamentesilenciosafoimotivoparaespeculaçõesassustadorasentreospaulistanos–estariamtodosmortos?Empoucosdiasasautoridadespoliciais explicaram que a família havia partido, tentando fugir da gripeespanhola,eesquecera-sededesligaralâmpada.Mas,sefugireradifícil,ecadadiamais inútildevidoàsproporçõesdaepidemia,oquemuitasfamíliasfizeramfoisetrancaremsuascasasnatentativadenãocontrairamoléstia.Váriasdelasescalaramapenasumdeseusmembrosparasairàruae,evitandoocontatocommuitaspessoas,fazeromaisrapidamentepossíveloestritamentenecessário,comocomprarcomida.23

Oaumentodonúmerodeenfermosemortosgerouumasensaçãodeimpotênciaquefezomedocrescerimensamente.Anotícia,publicadadia23deoutubropelosjornaisdeSãoPaulo,datentativadesuicídiodeumoperárioaosuporestarcomgripeespanhola,porquetinhadordecabeça,dáumanoçãodopavorqueadoençaestavadespertando.Doisdiasdepois,artigodojornalA Federação,dePortoAlegre,diagnosticavacomocausadeváriossuicídiosocorridosnacidade“opavorcoletivo,oalarmasocial”,motivadopelagripeespanhola.24

Osapelosparaqueapopulaçãomantivesseacalmacontinuaram,masastragédiasqueaconteceramnochamado“delíriodafebre”multiplicaram-se.2�Emmeioaocaosquepareciainevitável,textodojornalCommercio do Paraná,explicitandoatitudeassumidaporváriosperiódicos,declaravaformalmente:“estafolhasempresemantevenumaatitudedecalmasolicitu-deanteosinteressespúblicos,abstendo-sededarnotíciasquepudessemlevaroterrorànossapopulação”.2�Mas,historicamente,essetipodeapelo

22 ABRÃO,JaneteSilveira.Banalização da morte na cidade calada.PortoAlegre:EDIPUCRS,1998,p.9�;BERTUCCI,LianeMaria.Influenza,a medicina enferma,p.110;OPaís.Apud:BRITO,NaraAzevedode.La dansarina,p.2�;SILVEIRA,AnnyJackelineT.A influenza espanhola e a cidade planejada,p.144;SOUZA,ChristianeMariaC.de.AgripeespanholaemSalvador,1918:cidadedebecosecortiços,p.92.

23 O Combate,SãoPaulo,n.1.0��,p.1e3en.1.0��,p.1,4e�dez.1918;BOSI,Ecléa.Memória e sociedade.SãoPaulo:T.A.QueirozEditor,1983,p.22�,248;XAVIER,Valêncio.O mez da grippe e outros livros,p.41.

24 A Gazeta,SãoPaulo,n.3.833,p.4,23out.1918;ABRÃO,JaneteSilveira.Banalização da morte na cidade calada,p.�9.

2� Cf.:BERTUCCI,LianeMaria.Influenza,a medicina enferma,p.120-121.2� CommerciodoParaná.Apud:XAVIER,Valêncio.O mez da grippe e outros livros,p.�1.

Page 8: A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido

464

Liane Maria Bertucci

àcalma,coragemeatéao‘bomhumor’,levou,muitasvezes,aoexcessoealibertinagem,comorelataramTucídides,BoccaccioeDefoe,27paradepoisresultarememprostraçãoeindiferença,efoioqueocorreuem1918.

Homensemulheres,aparentemente,desprovidosdesensibilidadeerespeito,embrutecidospelasproporçõesdaepidemiadegripeespanhola,tornaram-separtedatristerealidadevividapelosbrasileirosduranteavigên-ciadamoléstia.Váriosforamaquelesqueprocuraramtirarproveitofinanceirocomadoença,muitasvezesexplorandovizinhosouconhecidos:emPortoAlegre,atéosvendedoresdelenhamajoraramopreçodeseuproduto;emSãoPaulo,pessoassolicitaramdoaçõesaoscomerciantesdacidade,que,efetivamente,nuncaseriamrepassadasaosnecessitados;tambémentreospaulistanos,algunsindivíduos,quehaviamsecomprometidoaajudarosmédicosnoatendimentoaosgripados,extorquiramdinheirodeenfermoseseusfamiliarescobrando,sorrateiramente,pelosserviçosprestados.Mas,poucasocorrênciastraduziriammelhorodesrespeitoeainsensibilidadequeumaepidemia,deimensasproporções,podeacarretardoqueacenadescritapelojornalO Estado de S.Paulo,de17denovembro:fazendoco-mentáriosirônicos,rindodosolharesdepavorecensuradaspessoas,umenfermeiropermaneciatranquilamentesentadosobrecaixõesdegripadosmortosqueeramconduzidosporumacarroçaaocemitériodaPenha.28

Situaçõesemquepontuavamacusaçõesdeindiferençaelibertinagemtambémforam,poucoapouco,ganhandoaspáginasdosperiódicos.Noiníciodomêsdedezembro,arevista“independente”A Rolha,denunciouoserviçodaCruzVermelhaBrasileiranobairrodoBrás,nacapitalpaulista.Segundoarevista,osmédicos“receitavamdaporta,semverogripado”,esededicavamefetivamenteao“namoroeodeboche”comsuasenfermeiras,banqueteando-se,embriagando-se,noalmoçoenojantar,entregando-se“abolina,aosbeliscões,àsapalpadelas”.29Utilizandopalavraseimagensdeimpacto,otextoexpunhamaisumaspectodarealidadevividapelaspessoasduranteainfluenzaespanhola,umtempoemquemuitosindiví-duosdesdenharamdesuasobrigaçõesedeseussemelhantes,tantoporprostraçãodiantedeumadoençaqueparecia incontrolável,quantopormedodaproximidade,docontato, comooutro,quepoderia veicularaterríveldoença.

27 Cf.:BOCCACCIO,Giovanni.Decamerão.SãoPaulo:AbrilCultural,1971;DEFOE,Daniel.Um diário do ano da peste.PortoAlegre:L&PM,1987;TUCÍDIDES.História da Guerra do Peloponeso.2ª.ed.Brasília:Ed.UnB,1982.

28 ABRÃO,JaneteSilveira.Banalização da morte na cidade calada,p.70-71;A Capital,n.144,p.2,�nov.1918;O Estado de S.Paulo,n.14.��8en.14.�78,p.4-�,17e27nov.1918.

29 A Rolha,n.38,p.13,3dez.1918.Dia28denovembro,aCruzVermelhaBrasileirahaviapublicadocomunicadoàpopulaçãoafirmando:“aoconhecimentodadiretoriadaCruzVermelhaBrasileiratemchegadoanotíciadeabusospraticadosporalgunsdosseusauxiliares,cujosserviçosforamaceitosduranteaepidemia,ouporgenteque,abusandodosdistintivosdessainstituição,procurouilaquearaboafédepessoasmenosavisadas.Todosessescasosforamresolvidoscomadispensadosacusadosoucomqueixaàpolícia”.A Platéa,SãoPaulo,n.149,p.�,28nov.1918.

Page 9: A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido

465

A onipresença do medo na influenza de 1918

VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009

Duranteagripeespanholaessemedodocontato/contágiofoieviden-ciadodevárias formas,e ‘ooutro’ tornou-se ‘o inimigo’,oemissáriodamorte,aquelequedeveriaserevitado.Duranteséculos,algunsgrupos,religiososounão,comojudeuseleprosos,foramapontadosrepetidamentecomoculpadosporcatástrofesepidêmicas,muitasvezespercebidascomocastigodivino,umapuniçãopelospecados,comoinformamGeorgesDubyeJeanDelumeau.30Em1918,estemedoancestralganhounovascarac-terísticas:nãomaisumgrupo,mastodoserampotencialmente‘culpados’pela catástrofe epidêmica, qualquer pessoa poderia ser portadora dadoença.Amedicinabacteriológica,quepopularizava informaçõessobremicro-organismoscausadoresdemoléstiasdesdeofinaldoséculoXIX,31forneceu,indiretamente,argumentoscientíficospoderososparaquediver-saspessoassustentassemopavorquedespertavaocontato/convíviocomseusconterrâneos.Asprescriçõesfeitaspelosserviçosmédico-sanitáriosdediferentespartesdoBrasil,paraquefossemevitadasasaglomeraçõesecontatosmaisíntimos,comobeijoseapertosdemão,bemcomoparaquepráticashigiênicasfossemintensificadas,descambaramentremuitosindivíduosparaomedoexacerbado‘dooutro’.Atéroupasesapatosusa-dos, mesmo que devidamente limpos, causavam medo e repugnância.Umartigopublicadopelaimprensaporto-alegrense,dia4denovembro,denunciavaaperegrinaçãodecomprarealizadapelosdonosdebricabra-queque,carregadosdemercadoria,percorriamváriosbairrosdacidade:“quantosmicróbiosele[ocomprador]vaiespalhandoedeixandonoslaresondebate,naesperançadeganharumasmigalhas?”Otextoclamavaaaçãoimediatadasautoridadessanitárias.32

Esse medo do vizinho, do amigo ou do parente, que potencializouangústias e incertezas durante a influenza espanhola, teve um rival: omedo da hospitalização. Esporádica nos primeiros dias da epidemia, ajustificativamédicaparaa internaçãohospitalargeneralizadaaconteceuquando o número de enfermos atingiu milhares e houve a constataçãodadiminuiçãoprogressivadaquelesque,comsaúde,tinhamosconheci-mentosnecessáriosparatratá-los.Ahospitalizaçãopossibilitaria,segundodiziam,aconcentraçãoemlugaresadequadostantodosgripadosquantodaspessoasquepoderiamatendê-los.Poucas semanas separaramascampanhas para as internações hospitalares que foram realizadas nasmaiorescidadesdoBrasil.A imprensaacompanhouaorganizaçãodoschamados“hospitaisprovisórios”paraos“espanholados”eincentivoua

30 DUBY,Georges.Ano 1000 ano 2000:napistadenossosmedos.SãoPaulo:Ed.Unesp,1998,p.87-89;DELUMEAU,Jean.História do medo no Ocidente,p.140-141.Veja:LEGOFF,JacqueseTRUONG,Nicolas.Uma história do corpo na Idade Média,p.10�-108;WATTS,Sheldon.Epidemias y poder,p.79-81.

31 Entreoutros,veja:BERTUCCI,LianeMaria.Saúde:armarevolucionária. SãoPaulo:1891-192�.Campinas:Publi-caçõesCMU/Unicamp,1997.

32 GazetadoPovo.Apud:ABRÃO,JaneteSilveira.Banalização da morte na cidade calada,p.78.

Page 10: A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido

466

Liane Maria Bertucci

medidamédico-governamental.EmSãoPaulo,dia1ºdenovembro,textodojornalO Estado de S.Pauloexpressavapreocupaçãocoma“velhaear-raigadaprevençãodopovoincultocontrahospitais”.Dia20dedezembro,comentáriopublicadonojornalA Federação,dePortoAlegre,diziaqueaspessoas“dopovo[recusavam-se]comobstinaçãoaaceitarosserviçoshospitalares,porpreconceito”.33Mas,ohospital,comoafirmouLucBol-tanski,“regulamentaoscontatosentreodoenteeseusmédicos,asfamíliaseodoente,aumentaasolidãoeaansiedade”.34Somava-seaistooqueatradição,refeitacotidianamenteentreapessoas,ricasepobres,informavasobreosnosocômios.

Emsuaorigemmedieval,ohospitalcomoconhecemoshoje,era,se-gundoalgunsestudiosos(comoMichelFoucault), tãosomenteumlocalondemorrer,entretanto,paraoutrospesquisadores(comoAnnieSaunier),esteestabelecimentoeraoúnicolocaldecuraesaúdeparadesprotegidos,semteto,parentesoudinheiro.Pessoasquesópoderiamesperarauxíliodacaridadepública.Caridadepúblicaque,naIdadeMédia,setraduzianainstituiçãohospitalar.3�Assim,arraigadonamemóriacomolocaldemorteoulugarprivilegiadodetratamentodosdesamparados,ohospitaldespertavareceiosereservasdemuitaspessoas.Oidealdeassistênciaàpobreza,quenorteouaorganizaçãodasSantasCasasdeMisericórdia,desdesuaorigememPortugal,certamentecontribuiuparaarepulsaaosnosocômiosemterrasbrasileiras:pouquíssimoseramosindivíduosque,debomgrado,aceitavamserinternadosemlocaishistoricamenteorganizadosparaacolheraquelesquenãotinhamnadaeninguém.3�

Mas,apesardomedo,senãofossemhospitalizadas,queoutrapers-pectivarestariaparapessoasqueviamtodasuafamíliaadoecer,indivíduosquetrabalhavamcercade12horaspordiaerecebiamsalárioque,muitasvezes,quandopagavaopãonãopagavaoaluguel?Ahospitalizaçãotinhaumpúblicoprivilegiado,osmaispobresdascidades,muitosdelesoperá-rios;homensemulheresquedevidoàspéssimascondiçõessanitáriasemqueviviam,porfaltadeopção,eporseushábitospoucorecomendáveis,segundoamodernamedicina,foramconsiderados‘ooutro’porexcelência

33 O Estado de S.Paulo,SãoPaulo,n.14.��2,p.3,1ºnov.1918;AFederação.Apud:ABRÃO,JaneteSilveira.Bana-lização da morte na cidade calada,p.12�.

34 BOLTANSKI,Luc.As classes sociais e o corpo. 3ª.ed.RiodeJaneiro:Graal,1989,p.43.Aumentavamaindamaisomedodoshospitais:afaltadenotíciassobreosinternados;notíciasdedoentessupostamenteenviadosparaonecrotérioouparaocemitérioaindacomvida,eboatossobreochádameia-noite:beberagemfatalquehipoteticamenteosmédicosdariamadoentesterminaisparaliberaçãodeleitos.Cf.:BERTUCCI,LianeMaria.Influenza,a medicina enferma,p.128,3�0-3�1.

3� Veja:FOUCAULT,Michel.Onascimentodohospital.In:Microfísica do poder.4ª.ed.RiodeJaneiro:Graal,1984,p.99-111;SAUNIER,Annie.AvidaquotidiananoshospitaisdaIdadeMédia.In:LEGOFF,Jacques(apres.).As doenças têm história.Lisboa:Terramar,s.d.,p.20�-220.

3� CORREIA,FernandodaSilva.Origens e formação das misericórdias portuguesas.Reedição.Lisboa:LivrosHorizonte;MisericórdiadeLisboa,1999;MESGRAVIS,Laima.A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (1�99?-1884).SãoPaulo:ConselhoEstadualdeCultura,197�.

Page 11: A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido

467

A onipresença do medo na influenza de 1918

VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009

duranteainfluenzaespanhola.Mesmoojornalpaulistano“deoposição”O Combateapelouparaainternaçãohospitalardessesindivíduos:

Aquasetotalidadedoscasosfatais[degripeespanhola]sederamnosbairroshabitadospelapopulaçãoproletária,especialmente,oBrás,oBomRetiro,oBexigaeabaixadaquemargeiaasvárzeasdoCarmoedoGlicério.Estefatosignificaoquemuitasvezestemosdito:omaiormalda“espanhola”,jáporsiperigosa,éa faltade tratamentoocasionadapelademoradosmédicosqueassistemosenfermosnecessitadosepeladesorganizaçãodoslarespobres,emquetodoscaemaomesmotempoenãoháquemosacuda.Oremédio,repetimos,estánahospitalizaçãodosenfermosdeformasmaisgravesedosqueseachemsemrecursospelageneralizaçãodamoléstia.37

Entretanto,seem1918omedo,comoemoutrosperíodosepidêmi-cos,explicitoutemoresseculares,comoodoshospitais,eevidenciouadiscriminaçãoeoisolamento,oexcessoeaindiferençadaspessoas,essesentimentoonipresentemostroutambémoutrosaspectos:odasolidarieda-de,marcadapelagenerosidade,eodafé.Aspectosquesetraduziramemdiversasatitudesdehomensemulheresquetinhamcomoobjetivodivulgarmeiosquepoderiam,acreditavameles,acabarcomadoençaepidêmica,salvaratodos.

Medo: solidariedade e fé

Desdeosprimeiroscasosconfirmadosdegripeespanholanopaís,pessoasquenãoatuavamnaáreadasaúdeounosgovernosmunicipais,estaduaisoufederal,ajudaramnocombateàepidemia.38UmasolidariedadediversificadaquecresceuemtodooBrasilcomoaumentodonúmerodeenfermosemortosdevidoàgripeespanhola.Variadosforamosauxíliosprestados: o socorro individual a “espanholados” e seus familiares; oempréstimode locaisparaatendimentoaosgripados;adistribuiçãodecomida aos necessitados; a realização de donativos as entidades queorganizavamsocorroaosdoentes(comoaCruzVermelhaBrasileiraeascúriasmetropolitanas).Gruposcivissemobilizaram:jornaisorganizaramcomissõesdeauxílio;clubesdefutebol,empresas,igrejas,ordensreligio-saseváriasassociaçõeseligas,cederamespaçofísicoparasocorrerasvítimasdainfluenzaespanhola.Muitosajudaramaangariareadistribuirremédiosealimentos.

37 O Combate,n.1.042,p.3,1ºnov.1918.38 ComoexemplodaaçãoestatalduranteaepidemiadegripeespanholaemdiferentespontosdoBrasil,veja:

BERTUCCI,LianeMaria.Influenza,a medicina enferma,p.101-133,288-312;ABRÃO,JaneteSilveira.Banalização da morte na cidade calada,p.9�-11�.Osprofissionaisdaáreadesaúde,ligadosaosgovernosounão,atuaramefetivamenteemtodoopaís.

Page 12: A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido

468

Liane Maria Bertucci

EmSalvador,nosprimeirosdiasdaepidemia,oabadedoMosteirodeSãoBentoofereceuasinstalaçõesdoMosteirinhodeMont Serratparaabri-garosgripados,eaCompagnie Chemins de Fer Federaux de L’Est Brésilienprestousocorromédicoaosseustrabalhadoresacometidospelainfluenzaespanhola.EmPortoAlegre,aMaçonariaRio-Grandense,assimcomoou-trasassociações,ofereceusuasinstalaçõesparatratamentodosgripados,eumacomissãodaFederaçãoOperáriadoRioGrandedoSulpercorreuocomérciolocalsolicitandodoaçõesparaosenfermos,cujonúmerocresciarapidamente.EmSãoPauloeBeloHorizonte,duranteváriassemanas,osjornaisnãoapenasinformaramàpopulaçãosobreasvítimasdaepidemia,asdoaçõesfeitasaosdoentesouoslocaisdeatendimentoaosgripados;váriosperiódicostambémseprontificaramareceberdonativosemsuassedespara repassá-losàquelesquesocorriamosenfermos.Nacapitalpaulista,aComissãodeSocorroEstado-Fanfulla,criadacomestafinalidade,tambémorganizouadistribuiçãodealimentosaosnecessitados.39

Nosúltimosdiasdeoutubro,comamultiplicaçãodevítimasdainfluen-zaespanhola,artigocontundentedo jornalO Estado de S.Paulo tentavamobilizarospaulistanos,notadamenteosmaisabastados,apelandoparaomedoqueadoençadespertava:

Urge,pois,quetodasaspessoasgenerosasseprontifiquemadaroquepu-derem.Note-se,maisumavez,quenãovainistoumsimplesmovimentodefilantropia,mastambémdedefesaprópria.Éinteressedetodososhabitantesdacidadequehajadentrodestaquantomenosmiséria,desocupação,orfan-dadeedoença.40

E,espontâneaouinduzida,asolidariedademarcouotempodagripeespanholanoBrasil, traduzindoumoutroaspectodeumsentimentodeváriasfaces:omedo.Umadasexpressõesdestasolidariedadepodeserdetectadanaintensadivulgaçãode‘fórmulascaseiras’comaexplicitain-tençãode,gratuitamente,ajudaraspessoasacuraradoençaouevitá-la.

DifundidasportodooBrasilem1918,aspráticasdecuradamedici-napopularrevelavamaspectosignificativododinâmicouniversoculturalnacional.Eram fórmulasou receitas tradicionaisqueconcorriamparaamaneiradaspessoasperceberemeserelacionaremcomoprópriocorpo,comomundoe,atémesmo,comamodernaciênciamédica.Criandonovossentimentoseusosparaelementosculturaisherdados,estedinamismo,expresso em permutase recriações, não traduzia ignorância, atraso ouindiferenciaçãodegrupossociais,masassinalavaavitalidadedaprópria

39 SOUZA,ChristianeMariaC.de.AgripeespanholaemSalvador,1918:cidadedebecosecortiços,p.91;ABRÃO,JaneteSilveira.Banalização da morte na cidade calada,p.112-113;BERTUCCI,LianeMaria.Influenza,a medicina enferma,p.123;SILVEIRA,AnnyJackelineT.A influenza espanhola e a cidade planejada,p.180.

40 O Estado de S.Paulo,SãoPaulo,n.14.�47,p.3, 27out.1918.

Page 13: A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido

469

A onipresença do medo na influenza de 1918

VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009

cultura–entendidacomooconjuntodevalores,crençasepráticasdiversasdeumasociedadequeestãoempermanentetransformação.41

Exemplar foiumadasprescriçõesdousodoalhoedacebolaparacombaterainfluenzaespanhola,publicadaporummoradordaPenhanaspáginasdosjornaisdeSãoPaulo.Otradicional‘remédio’familiar,usadocomsucessoporgeraçõescontraagripe,erachancelado,segundoomoradordacapitalpaulista,porinformaçõesobtidasporeleemuma“revistacientí-fica”.Napublicaçãoconsultada,cujotítulonãofoimencionado,umartigoinformavaqueoalhoeacebolacontinhamsulfureto,umasubstânciavolátil,microbicidaecicatrizante,oque,paraopaulistano,garantiriaaaçãodosvegetaisnaprevençãoecuradagripe,espanholaounão.CiênciaepráticacaseiraeramexplicitamentecombinadasnaspalavrasdomoradordeSãoPauloque,generosamente,ensinavaseuremédiocontraaepidemia.42

Utilizados tradicionalmentenasociedadebrasileiraparacombateragripedetodososanos,oalho,acebolae,principalmente,olimãoforamfartamenteusadoserecomendadosporváriaspessoasduranteainfluenzaespanhola.EmCuritiba,osdonosdeváriasfábricasdacidadechegaramadistribuir,diariamente,osucodafrutaemgarrafasaosseusoperários,natentativadebarraraexpansãodaepidemia.Intensatambémfoiutilizaçãodoalhoedacebola.EmSãoPaulo,comerumdentedealhoduranteasrefeições,carregarumpatuádealhoparacheirarconstantemente,oupen-duraralhoemvoltadopescoço,parainalarsuassubstânciasdesodorantes,foramprescriçõesensinadasdeboca-em-boca.Mas,nãosódeindicaçõeslocaissevaliamosadeptosdasfórmulasvegetaismaistradicionais.ArtigospublicadosemPortoAlegre,pelojornalCorreiodoPovo,eemBeloHori-zonte,pelojornalMinasGerais,respectivamentedias�e7denovembro,transcreveramnotíciadeperiódicofrancêssobreoefeitocurativodosucodecebolasorvidopelonarizpelosgripados.43

Nahistóriadahumanidadecomidaetemperosforamconstantementeassociadosàsaúde,suamanutençãoerestauração,comomostraramostrabalhosdeJean-LouisFlandrinedeInnocenzoMazzini.44AssociaçãoquenoOcidenteatravessougeraçõesamparadatantopelamedicinahumoral,poisaquiloqueseingeriapoderiaconcorrerounãoparaoequilíbrio,esaú-de,doorganismo,quantopelosqueafirmavamqueasdoenças,resultados

41 Cf.:CHARTIER,Roger.A história cultural.Lisboa:DIFEL,1990,p.121-139;GINZBURG,Carlo.O queijo e os vermes.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1993;THOMPSON,EdwardP.Costumes em comum.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1998.

42 A Platéa,SãoPaulo,n.11�,p.2,24out.1918;A Capital,SãoPaulo,n.137,p.3,2�out.1918.43 XAVIER,Valêncio.O mez da grippe e outros livros,p.2�;BOSI,Ecléa.Memória e sociedade,p.22�;ABRÃO,Ja-

neteSilveira.Banalização da morte na cidade calada. AhespanholaemPortoAlegre,1918,p.88;SILVEIRA,AnnyJackelineT.A influenza espanhola e a cidade planejada,p.203.

44 FLANDRIN,Jean-Louis.Tempero,cozinhaedietéticanosséculosXIV,XVeXVI.In:FLANDRIN,Jean-LouiseMON-TANARI,Massimo.HistóriadaAlimentação.SãoPaulo:EstaçãoLiberdade,1998,p.478-49�;MAZZINI,Innocenzo.Aalimentaçãoeamedicinanomundoantigo.In:FLANDRIN,Jean-LouiseMONTANARI,Massimo.HistóriadaAlimentação,p.2�4-2��.

Page 14: A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido

470

Liane Maria Bertucci

defatoresexternos,poderiamseintroduzirnocorpopeloqueeraingeridopelohomem,comolembravaParacelso.Eessaproximidadeentreacozi-nhaeoconsultóriomédico,ouolaboratório,mesmoparecendodistantenoséculoXX,aindapodiaserpercebidaduranteoNovecentosnaimpor-tânciadeváriosprodutosque,comseusnomescientíficos,faziampartedaterapêuticamédica.Exemplosignificativoéoácidocítrico,substânciaabundanteno limãoeamplamenteutilizadapelosdoutores.4�Maseramnaspráticaspopularesdecuraquecomida,temperoseoutrosvegetaiscontinuavamtendoutilizaçãoabundanteediversificada.

NoBrasil,duranteaepidemiade influenzaespanhola,adivulgaçãodousodevegetaiscomoremédiosextrapolouasconversascaseiraseastrocas‘entrecomadres’,ganhandograndedifusãopelosjornais.Presentenamemóriadosbrasileiros,partedatradiçãofamiliar,em1918essas‘recei-tas’foramcombinadascomprincípiosmédico-científicosesuapublicaçãoexpressoua solidariedadedemuitaspessoas.4�Emnovembro,o jornalpaulistanoA PlatéapublicoucartadosenhorJoãodeEscobar,moradordoestadodoRiodeJaneiro.Sensibilizadocomasituaçãoaflitiva,especialmen-tedosmaispobres,elecompartilhavaareceitaqueutilizavaparacombaterainfluenzaespanhola.Tudomuitosimples:assarechuparafrutamaduradogravatáetomarchádecarqueja,osresultados,dizia,eramimediatos.Simplicidadetambémfoimarcado‘remédio’que,generosamente,umpadredeCuritibaofereceudecasaemcasa:folhasdeeucalipto,quedeveriamserqueimadasdentrodasresidênciasparalimparoareafastaragripeespanhola.47Desinfetaroar,eliminandoosmicróbiosdadoença,foiumaobsessãonacional,esubstânciasmineraisforamassociadasaosvegetaisnestaempreitada.Queimarenxofre,quepodiaserfacilmenteadquiridonasfarmácias,foifórmuladifundidaentreospaulistanos;entreoscariocas,usarincensooualcatrãoealfazemafoipráticarecomendadaatépordoutor.48

Oconhecimentomédico-científicoquesefirmouapartirdoséculoXVIII,questionadordetesesuniversalistassobreocorpohumano,49foimarcadoemsuasaçõesdecombateàsdoençasepelamanutençãodasaúdepeladisputaentreduascorrentesdepensamento:adosinfeccionistaeados

4� BERTUCCI,LianeMaria.Influenza,a medicina enferma,p.220-223.4� Muitaspessoastambémapelaramparahipotéticaspromessasnatentativavenderdiversosprodutosaosincautos.

Outrosindivíduosganharamdinheiroindustrializandoecomercializando‘fórmulascaseiras’,como,porexemplo,canelaempastilhas.

47 A Platéa,SãoPaulo,n.13�,p.1,12nov.1918;XAVIER,Valêncio.O mez da grippe e outros livros,p.29.48 BOSI,Ecléa.Memória e sociedade,p.248;OPaís.Apud:BRITO,NaraAzevedode.La dansarina,p.21.49 ArevoluçãocientíficadoséculoXVIItransformouapercepçãoocidentalsobreocorpo.Ocorpohumano,até

entãovistocomopartedeumaordem,deumequilíbrio,universal(ocultoe/ousagrado),eraobjetodeestudohámilêniose,mesmonoperíodorenascentista,essesestudoseramfeitoscombaseemsistemasdesemelhanças,analogias e similitudes. Foram as observações científicas do Seiscentos que romperam com esta tese e asanálisespassaramasercalcadasnaprecisão,distinção,transparênciademétodo,certezaouprobabilidades,transformandoapercepçãodocorpohumano,desvinculando-odeumsistemauniversalistaereligioso–nãoporacasoatesedeuma‘forçavital’humana,diferentedaalma,ganhoudestaquenoséculoXVIII.Cf.:CZERESNIA,Dina.Do contágio à transmissão.RiodeJaneiro:Ed.Fiocruz,1997,p.21-32.

Page 15: A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido

471

A onipresença do medo na influenza de 1918

VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009

contagionistas.Calcadas,aomesmotempo,emprincípiosseculareseemumtipodeobservaçãosobreohomeminauguradahaviapoucasdécadas,asduasteses,ancoradasemdiscussõessobreasepidemias,impulsiona-rampráticasnaáreadasaúdeatémeadosdoséculoXIX.Ateoriadainfec-çãooumiasmática,tributáriadaescolahipocrática,afirmavaaimportânciadoestadodoar,esustentavaqueascondiçõessanitáriasruinsdeumaregião,asemanaçõesqueprovocavam(percebidasimediatamentepeloolfato),poderiamarruinaraatmosferalocal,causandoenfermindadeseosurgimentodedoençasepidêmicas.Paraospartidáriosdatesedocontágio(defensoresdaquarenta,umacriaçãomedieval),agentesespecíficoscau-sariamasdoenças;minúsculos“seres”quepoderiampassardoindivíduodoenteparaoutroseocasionarepidemias.Estasduasconcepçõessobreaexistênciaepropagaçãodasdoençasnemsempreforamconflitantesesuaspráticas,comolimpezadoslugareseisolamentodedoentes,formammuitasvezescombinadas.�0Algunseminentespesquisadores,comooinfeccionistaMaxvonPettenkofer(1818-1901),aceitavamapossibilidadedaexistênciaepropagaçãodeagentesespecíficosdedoenças,desdequecombinadoscomoutroselementos,taiscomo,ascondiçõesdoar,dosoloeosfatoressociais.OsestudosdeLouisPasteur,RobertKocheseuscolegasimpul-sionaram,apartirdemeadosdoNovecentos,umareviravoltanadisputaentreasduasteses;mudaramosrumosdaciênciamédicaaoreordenaremoentendimentoquesetinhasobreosminúsculosseresobservadossobomicroscópiodesdeoséculoXVII,demonstrandosuaexistênciaemtodaparte,liquidandoatesedageraçãoespontânea,isolandomicroscópicoscausadoresdeenfermidades.�1Apartirdeentão,diferentespráticasinfec-cionistas foramsubjugadasàsorientaçõesdaquelesquedominavamoconhecimentosobremicro-organismos.Apossibilidadedeproliferaçãodemicróbioscausadoresdeenfermidadesconcorreuparaainsistênciadosbacteriologistasnaimportânciadalimpezadoslugares,nalivrecirculaçãodoaredaágua,umaresignificaçãodepráticasmiasmáticas.

Esseamalgamardetradiçõestambémfoifeitoaolongodosanos,demaneiramuitoparticular,entreoschamadosleigos,oqueficouevidentedurante a gripe espanhola. Eram ideias miasmáticas e bacteriológicasqueestavamnabasedosargumentosusadospormoradoresdobairro

�0 AtémeadosdoséculoXIX,ateoriaquedominouomeiocientíficoocidentalfoiamiasmática,querpeladificuldadedoscontagionistasemdefinirasintervençõesespecíficasquedeveriamserfeitasquandodetectadoo“ser”dadoença,querpelaascensãodoliberalismoqueforneceuargumentopoderosoparaosquepercebiamoisolamento(individualoucoletivo)comoalgodesnecessárionocombateàmuitasenfermidades,umverdadeiroatentadoaliberdadeindividual.Osingleses,senhoresdolivre-comércio,foramfervorososdefensoresdateoriamiasmáticaque,seimpulsionousignificativosinventárioseaçõesmédico-governamentaisnascidadesindustriaismodernas,tambémforneceubasecientíficaparaalutapelafranquiapermanentedosportosdomundo.

�1 Cf.:ACKERKNECHT,ErwinH.Anticontagionismbetween1821and18�7.Bulletin of the History of Medicine,n.22,p.��2-�93,1948;CORBIN,Alain.Saberes e odores.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1987;ROSEN,George.Uma história da saúde pública.SãoPaulo:Ed.Unesp,1994,p.�2-�4e222-2�0;SOLOMON-BAYET,Claire.(org.)Pasteur et la revolution pasteurianner.Paris:Payot,198�.

Page 16: A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido

472

Liane Maria Bertucci

daBarraFunda,emSãoPaulo,quandosolicitaramadesativaçãodeumhospitalparagripados.Elesalegavamqueosenfermeirosquetrabalhavamnoimprovisadonosocômiodespejavamasfezesdosinternosemburacosabertos nos fundos do hospital, o que, segundo as pessoas do lugar,“predispunhaoambiente”apropagaçãoda influenzaespanhola,poisolugarestavasetransformandoemum“antrodemicróbios”.�2EmCuritiba,moradoresdasimediaçõesdaruaSilvaJardimforamaosjornaisdenunciarepedirprovidências:existianaquelaruaumacasaondemulhereslavavamroupasdeumhospitaldegripados.Aspeças lavadaseramperduradasemcercas,aáguadasroupasescorriapelaruaformandopoças,oquepoderiacolocaremriscoasaúdedetodaavizinhança.�3Águaestagnadajácausavaproblemas,imagineseaáguafosseprovenientedalavagemderoupasde“espanholados”!

Eessascombinaçõesfeitaspelaspessoas,queamalgamavamdiversosprincípioscientíficos,misturando-osmuitasvezescompráticaspopularesdecura,eramtambémpermeadaspelareligiosidade,comoficouevidenteduranteaepidemiade1918.

NasmenoresvilasenasmaiorescidadesdoBrasil,osvegetaistidoscomomedicamentososeramvendidosnasruas,mercadosoulojasespe-cializadas,esuautilizaçãoecomercializaçãoeracomumenteassociadaaamuletos,orações,figas,cruzes,etc,quegarantiriamoupotencializariamsuaeficácia.Umaassociaçãoqueexpressavaasdiferentestradiçõesdecuraexistentesnopaís,que,vindasdaEuropa,praticadaspelosindígenasouimportadascomosafricanos,estavamfortementemarcadasporvaloresreligiosos.

Exemplodoqueocorriaemtodooterritórionacional,nacidadedeSãoPaulodadécadade1910eramváriososlocaisquevendiamessesprodu-tos.GrandeslojasnasruasGeneralCarneiro,SantaEfigêniaeConselheiroCrispiniano;pequenoscômodosdoMercadoMunicipal,oubancasentreospedestresquecirculavampeloLargodoArouche.Muitoschás,comoosdeervatostão,paradoençasdofígadoedosrins,eodascincofolhas,quecombatiaagonorréiaedoençasdabexigaedoútero.Paraavitalidade,oGuaranádosíndiosMaués;paraacabarcomatosseeasdoresdopeito,balasde limãobravoedemeldaabelha jataí.Para liquidarouprevenirinúmerasdoençasdocorpoedaalma,defumaçõescompletas,figasdearrudaeguiné,ediversasoraçõesque, impressas,oscrentes tambémpoderiamencontrarnesseslugares.�4

�2 A Platéa,SãoPaulo,n.123,p.�,31out.1918.�3 XAVIER,Valêncio.O mez da grippe e outros livros,p.�0.�4 Cf.:BERTUCCI,LianeMaria.Influenza, a medicina enferma,p.230-231.

Page 17: A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido

473

A onipresença do medo na influenza de 1918

VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009

Emmeioasmuitascombinaçõesdessasdiferentestradições,ocato-licismo,permeadopelascrençaspopulares,criouraízesprofundas,��eaassociaçãoentrefé,saúdeedoençaseexplicitouespecialmentenoapeloàintercessãodossantosparaacabarcomasmoléstias,notadamenteasepidêmicas.

Astábuasvotivasouex-votos,umaherançaportuguesa,eramumadasexpressõespopularesdeagradecimentoaossantos.Presentesemdiversasigrejasbrasileiras,estassingelaspinturassobremadeira,quelembravamumamoléstiaoupedidoeagraçaalcançada, eramocumprimentodeumapromessafeitaaosantodadevoção.��EssapráticaeraresultadodetransformaçõesreligiosasqueremontavamaEuropadoséculoXV,quandosantospoderososforamidentificadosàsdoençasquemaissetemiam.Estessantosprotegeriamdaenfermidadeouconcorreriamparaadoença–umapuniçãodospecadores.�7AterrívelpestebubônicaeraentãoconhecidacomoomaldeSãoSebastiãooudeSãoRoque,crençaqueatravessouosmaresechegouaoNovoMundocomoscolonizadoreslusitanos,ganhandováriossignificadosaoseespalharporumasociedadedemuitasraças.NoBrasil,ondeSãoSebastiãofoiidentificadocomoograndeadvogadocontraascatástrofesepidêmicas,aschamadas“pestes”,�8acrençaemsantosque poderiam interceder por benesses ou pelos castigos possibilitou aassociaçãodealgunsdelescomdivindadesafricanas.Omolu,orixáqueprotegiadavaríolaouespalhavaadoença,foiassociadoaSãoBenedito,santonegromuitopopularentreescravoselibertos.�9

NoiníciodoséculoXX,areligiosidadecontinuavaintermediandoaçõesdosbrasileirosemcasosdedoenças.Duranteoperíododesesperadordagripeespanholaaféfoiolenitivodemuitos,eváriosforamosquerecorre-ramàintervençãodivinaconclamandoseusconterrâneosafazeromesmo.Assim,apesardosapelosparaquefossemevitadasaglomeraçõesedemuitasigrejasfecharemsuasportasoureduziremsuasatividades,acrençanopoderdecura,representadopeladevoção,semanifestoudemaneiracoletivaemtodooBrasil.EmCuritiba,nofinaldeoutubro,antesmesmodeadoençafazervítimasnacidade,missasnacatedraleramcelebradas

�� Cf.:WISSENBACH,MariaCristinaC.Ritos de magia e sobrevivência. Sociabilidadesepráticasmágico-religiosasnoBrasil (1890-1940).SãoPaulo:USP,1997.(Tese,doutoradoemHistória).

�� Cf.:CASTRO,MárciadeMoura.Ex-votos mineiros. Astábuasvotivasnociclodoouro.RiodeJaneiro:ExpressãoeCultura,1994.EramcomunsemtodooBrasil,alémdastábuasvotivas,osobjetosdeceraououtrosmateriaisoferecidosemagradecimentopelagraçaalcançada,comoacuradeumadoença,osalvamentodeumnaufrá-giooudeumincêndio.ParaPhilippeAriès,aocontráriodeCastro,ex-votossãoapenasastábuasvotivas,queaparecemnaEuropaentreofinaldoséculoXVIeiníciodoXVII.Ocostumede,emagradecimento,reproduzirobjetosoupartesdocorpoeramuitoantigo,anterioraeracristã.Cf.:ARIÈS,Philippe.O homem diante da morte.RiodeJaneiro:FranciscoAlves,1989,v.I,p.303.

�7 DELUMEAU,Jean.História do medo no Ocidente,p.71-149;THOMAS,Keith.Religião e declínio da magia.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1991,p.3�-38.

�8 Cf.KRUG,Edmundo.Deuseossantosnasuperstiçãobrasileira.Revista do Instituto Histórico e Geographico de São Paulo.SãoPaulo,v.XXIII(192�),p.1�8,1927.

�9 CHALHOUB,Sidney.Cidade febril.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,199�,p.134-1�1.KARASCHI,Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro,1808-18�0.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,2000,p.370-37�.

Page 18: A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido

474

Liane Maria Bertucci

emlouvoraSãoSebastiãoeSãoRoquerogandoaintervençãodossantosparaqueacapitalparanaensefossepoupadadainfluenzaespanhola.Nomesmoperíodo,noRecife,oraçõeseramoferecidasaSãoSebastião,naigrejadeNossaSenhoradoTerço,pelofimda“terrívelmoléstia”,eemSãoPaulo,acapelinhadoBomJesusdoMonte,noCarandiru,passouaficarabertadiariamenteparaqueos“verdadeiroscrentes”pudessemfazersuasprecesaogloriosoSãoSebastião.NoRiodeJaneiro,acidadedosanto,asoraçõesaopadroeiroeramredobradas,equandoograndemedocomeçouapassar,apesardagripeespanholaaindafazervítimasnacidade,procis-sões foramfeitaspercorrendoasruasda localidadeaindatraumatizadapelacalamidadeepidêmica.�0“Remédioparatodaacidade,aprocissãoéumasúplicadetodaacidade”,lembraJeanDelumeau.�1

Mas não foram apenas os católicos que suplicaram aos céus pelasaúde,pelasalvaçãodetodos.AAssociaçãodosPastoresEvangélicosdeSãoPaulo,reunidadia28deoutubro,tomouaresoluçãoderecomendarcom insistência:“a todososcrentesevangélicos,queelevem, todososdiasaomeio-diaempontoeondequerqueestejam,súplicasemfavordosindivíduosefamíliasdeseuconhecimentoqueseachememafliçãonestacapitaleemtodooBrasil,devidoàsdificuldadesatuais”.�2

Súplica individual,masqueconclamavaatotalidadedos leitoresdojornalemquefoipublicada,fezumcidadãopaulistanotambémnofinaldeoutubro.Aterrorizadopelasproporçõesdaepidemiadeinfluenzaespanhola,omoradordacidadepublicouumtextonojornalA Gazetaquecomeçavacomafrase:“Fatalidade,desídiadoshomens,castigodeDeus?”Depoisdaperguntaobjetivaeperturbadora,edebrevedescriçãodadoençaepi-dêmica,oautordoartigo,semmeiaspalavras,apontavaosculpadospelacalamidade:ospecadores(enestecasocatólicoseprotestantesconcorda-vam).�3Reeditandoculpadosseculares,massemdesconsiderarasaçõesqueestavamsendoempreendidaspormédicos,governoseparticulares,otextoconclamavaoshomensasevoltaremparaDeuserogaremsuaintercessão,paraque“umsolradiantebrilhesemprenosaltosefaça,elesó,opapeldegrandemicrobicidaqueé.Quelaveaterradasimpurezasqueainfestam,quenostragaenvoltoemseusraiosalouradosapurificaçãomesmadavida,semepidemiaseenfermidades”.Conhecimentocientíficoefé,crençastradicionaisemedomilenar,umacombinaçãosingularerafeita,subjugandoosaberdaciênciaaopoderdafé.Oautordotextoconcluía:

�0 XAVIER,Valêncio.O mez da grippe e outros livros,p.31;O Estado de S.Paulo,SãoPaulo,n.14.�3�,p.4en.14.�41,p.4e�,1�e21out.1918;Diario Popular,SãoPaulo,n.11.739,p.4,23out.1918.

�1 DELUMEAU,Jean.História do medo no Ocidente,p.148.�2 O Estado de S.Paulo,SãoPaulo,n.14.�49,p.4,29out.1918.�3 Confirasobreotema:DELUMEAU,Jean.História do medo no Ocidente,p.144-147;THOMAS,Keith.Religião e

declínio da magia,p.82-83.

Page 19: A onipresença do medo na influenza de 1918 · A onipresença do medo na influenza de 1918 VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009 * Artigo recebido

475

A onipresença do medo na influenza de 1918

VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 25, nº 42: p.457-475, jul/dez 2009

Deus,Deus!Paraavossamisericórdiasevoltamoshomens.Quandooperigoameaça,oespíritoomais indiferente,aalmaamais incrédulasedirigeparaavossaforçaeparaovossopoder.Erguem-seasprecesavossaBondade.Invocam-seasvossasbênçãos,pede-seavossaclemência,espera-setudodavossagenerosidade.�4

Eracomoseecoassemnosouvidosdoautordoartigoosversoses-critos,noséculoXII,pelomongeHélinanddeFroidmont:

DizequesabesemquetrilhasVãoosjovensseperder,AssimqueDeuslhesdêsaúde;QueElelhestire.Elesvãorezar!ÉloucamaneiradeapostarNãotemeraDeusanãoserqueEleameace.��

Destaforma,duranteagripeespanholanoiníciodoséculoXX,períodoemqueaciênciabacteriológicaanunciavaterosmeiospara,deformapar-cialmascontínua,desvendareacabarcomosmalesqueafligiamocorpohumano, muitos brasileiros apavorados se prontificaram a compartilharcomseusconterrâneosseuseficientes ‘remédioscaseiros’,easuplicarpelaintercessãodossantosepelamisercórdiadivinapelofimdaepidemia.Estemedo,queimpulsionouasolidariedadeeafé,tantoquantoprovocoudiscriminação,excessoeindiferença,expressounoNovecentosopavormultifacetado que, invariavelmente, acomete os homens frente ao “maldesconhecido”�� representadopelascatástrofesepidêmicase, também,atualizouabuscaancestraldoserhumanopelaexplicaçãodefinitivaparaaexistênciadasenfermidadesqueoafligem,respostaquenuncafoi,ouserá,oferecidapornenhumsabermédico,equesóafé,apossibilidadedocastigoedoperdãodivino,podeproporcionaraosquecreem.

�4 A Gazeta,SãoPaulo,n.3.840,p.2,31out.1918.�� FROIDMONT,Hélinandde. Os versos da morte.SãoPaulo:Ateliê,199�,p.19.�� Veja:DUBY,Georges.Ano 1000 ano 2000:napistadenossosmedos,p.80.