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A Ordem Política e Econômica Mundial no Início do Século XXI: Questões da Agenda Internacional e suas Implicações para o Brasil 151 A Ordem Política e Econômica Mundial no Início do Século XXI: Questões da Agenda Internacional e suas Implicações para o Brasil PAULO ROBERTO DE ALMEIDA* Resumo Este ensaio tem por objetivo apresentar e discutir alguns dos problemas considera- dos mais importantes das relações internacionais contemporâneas da agenda mundial, ao início do século XXI, e discutir suas implicações para o Brasil, enquanto ator ou espectador de alguns dos processos ou eventos enfocados. Abstract This essay has as its purpose present and discuss some problems considered more important for the contemporary international relations of world agenda in the begin- ning of the 21st century. The consequences for Brazil both as an actor and as an obser- ver of the processes and events taken into account are debated. DE Este ensaio tem por objetivo apresentar e discutir alguns dos problemas relevantes da agenda mundial, ao início do século XXI, e discutir suas implicações para o Brasil. Trata-se de uma exposição descritiva, que não se pretende abrangente, sistemática ou completa, mas que cubra, ainda assim, os problemas considerados mais importan- tes das relações internacionais contemporâneas, introduzindo, para cada um deles, sua interação ou impacto para o Brasil, enquanto ator ou espectador de alguns dos processos ou eventos enfocados. Pode ser considerada uma “digressão livre”, pelo fato de que não pretende fundamentar a análise dos tópicos tratados em remissões exaustivas, baseadas em fontes documentais relativas aos casos selecionados ou em referências bibliográficas completas; mas a lista de leituras indicativas, apresentada ao final, oferece, ainda assim, um guia de informação complementar para a maior parte dos problemas abordados no texto. O ensaio recolhe algumas décadas de atento estudo das questões internacionais e a experiência adquirida no trato profissional de vários dos assuntos nele abordados. O texto foi organizado em três seções, apresentadas a seguir. Cada uma delas foi de- dicada a um conjunto de questões com relevância internacional, nos planos político e econômico, para as quais são mencionadas as implicações ou o seu significado para o Brasil. A terceira seção aborda com maior grau de detalhe o impacto da presente

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A Ordem Política e Econômica Mundial no Início do Século XXI: Questões da Agenda Internacional e suas Implicações para o Brasil

PAULO ROBERTO DE ALMEIDA*

Resumo

Este ensaio tem por objetivo apresentar e discutir alguns dos problemas considera-dos mais importantes das relações internacionais contemporâneas da agenda mundial, ao início do século XXI, e discutir suas implicações para o Brasil, enquanto ator ou espectador de alguns dos processos ou eventos enfocados.

Abstract

This essay has as its purpose present and discuss some problems considered more important for the contemporary international relations of world agenda in the begin-ning of the 21st century. The consequences for Brazil both as an actor and as an obser-ver of the processes and events taken into account are debated.

Este ensaio tem por objetivo apresentar e discutir alguns dos problemas relevantes da agenda mundial, ao início do século XXI, e discutir suas implicações para o Brasil. Trata-se de uma exposição descritiva, que não se pretende abrangente, sistemática ou completa, mas que cubra, ainda assim, os problemas considerados mais importan-tes das relações internacionais contemporâneas, introduzindo, para cada um deles, sua interação ou impacto para o Brasil, enquanto ator ou espectador de alguns dos processos ou eventos enfocados. Pode ser considerada uma “digressão livre”, pelo fato de que não pretende fundamentar a análise dos tópicos tratados em remissões exaustivas, baseadas em fontes documentais relativas aos casos selecionados ou em referências bibliográficas completas; mas a lista de leituras indicativas, apresentada ao final, oferece, ainda assim, um guia de informação complementar para a maior parte dos problemas abordados no texto.

O ensaio recolhe algumas décadas de atento estudo das questões internacionais e a experiência adquirida no trato profissional de vários dos assuntos nele abordados. O texto foi organizado em três seções, apresentadas a seguir. Cada uma delas foi de-dicada a um conjunto de questões com relevância internacional, nos planos político e econômico, para as quais são mencionadas as implicações ou o seu significado para o Brasil. A terceira seção aborda com maior grau de detalhe o impacto da presente

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ordem política e econômica mundial para o país. Este texto analítico-descritivo está assim estruturado:

1) A ordem política mundial: novos problemas, velhas soluções? 1.1. Segurança estratégica 1.2. Relações entre as grandes potências 1.3. Conflitos regionais 1.4. Cooperação política e militar nos hot-spots;2) A ordem econômica mundial: velhos problemas, novas soluções? 2.1. Regulação cooperativa das relações econômicas internacionais 2.2. Assimetrias de desenvolvimento 2.3. Cooperação multilateral e Objetivos do Milênio3) A ordem política e econômica mundial e o Brasil 3.1. Crescimento econômico 3.2. Investimentos 3.3. Acesso a mercados 3.4. Integração regional 3.5. Recursos energéticos 3.6. Segurança e estabilidade

1) A ordem política mundial: novos problemas, velhas soluções?

A primeira observação que compete fazer a respeito desta seção, tem a ver com o contraste oferecido em relação à seção seguinte, no sentido da inversão de caráter entre o velho e o novo. No caso da ordem política, acredito que o mundo enfrenta novos problemas, e eles não se situam apenas em supostas “ameaças globais”, como os problemas do meio ambiente ou da ameaça do terrorismo fundamentalista. A curta visão histórica das gerações presentes tende a crer que o “aquecimento global” tem sido produzido pela Revolução industrial ou pelas atividades “civilizatórias” de modo geral, esquecendo que, em escala geológica, o planeta Terra já enfrentou ciclos de aquecimento e de resfriamento globais que impactaram profundamente – em alguns casos fatalmente – o destino de sociedades humanas inteiras (ver Jared Diamond, Armas, Germes e Aço e Colapso). Da mesma forma, independentemente do fato de que os atuais fundamentalistas islâmicos matam, atualmente, um “pouco mais” de gente do que os anarquistas de um século atrás – que tendiam a se concentrar em lideranças políticas –, a violência indiscriminada como arma política está conosco há muito tempo, sendo que as guerras globais do século XX foram insuperáveis em sua obra homicida (Niall Ferguson: The War of the World).

Os problemas são novos no sentido em que, depois dessas matanças indescritíveis do século XX, tão bem descritas por Ferguson, o mundo parece encaminhar-se para um período de “relativa paz” no que se refere aos grandes sistemas imperiais. Minha

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leitura do problema da paz e da guerra – certamente situada na tradição aroniana (Raymond Aron: Paz e Guerra entre as nações), mas dela divergindo quanto à na-tureza dos conflitos contemporâneos, que me parecem retroceder em relação ao panorama de guerras totais, de estilo clausewitziano, que ele contemplava – pode ser resumida da seguinte forma. As grandes nações guerreiras deixaram o cenário de pequenas guerras de posição, muitas vezes travadas com o recurso eventual a tropas mercenárias, típicas dos séculos XV e XVI, para as guerras de conquista e ocupação, conduzidas pelos Estados-nacionais em formação dos séculos XVII e XVIII. Importantes inovações táticas e estratégicas foram introduzidas pelo estilo napoleônico de conduzir os combates, envolvendo a mobilização de forças nacio-nais em larga escala, o que dominou o cenário mundial na era dos grandes impérios nacionais (basicamente o século XIX, até a Primeira Guerra Mundial). O século XX conheceu, sob a forma das guerras globais (em duplo sentido), uma inacreditável explosão de violência, que não mais poupou instalações ou populações de espécie alguma, até o advento da arma atômica, que sinalizou um limite para o exercício dessa violência. É minha crença – talvez subjetiva e otimista, mas ainda assim fun-damentada numa certa percepção objetiva dos “custos” da guerra para os atuais “impérios” – que as superpotências não mais voltarão a se enfrentar diretamente, em grandes guerras totais, mas procurarão se acomodar mutuamente com o recurso às negociações ou, quando for necessário, às guerras localizadas e aos conflitos militares por procuração – proxy wars – que não mais envolverão a escalada final, isto é, a destruição completa do inimigo (pois isso poderia significar a sua própria destruição, quando não uma hecatombe em escala planetária).

Por outro lado, o desaparecimento do socialismo, que significava um messianismo em bases universalistas, retira um dos mais poderosos indutores a um conflito global no plano militar, pois, como disse Francis Fukuyama (“The End of History?”) – e nisso estou em acordo com ele –, não existe mais uma alternativa credível aos sis-temas de mercado e ao capitalismo, ainda que as democracias demorarão um pouco mais para atingir a universalidade. Ou seja, os “impérios” porventura existentes – americano, europeu, chinês, russo, indiano – se encontrarão na interdependência do capitalismo global, ainda que possam ter suas divergências econômicas, políticas e militares, e mesmo conflitos localizados, mas todos eles equacionáveis diplomatica-mente em bases de mútua conveniência.

Os problemas são, portanto, “novos”, pois o recurso à guerra total já não é mais possível na era nuclear, com a crescente interpenetração dos “impérios” regionais. Isto não quer dizer que o direito internacional – e suas manifestações institucionais, como a ONU e outras agências intergovernamentais – venha a prevalecer sobre a von-tade dos Estados-nacionais e, sobretudo, acima desses impérios: a ameaça do uso da força deve permanecer como a ultima ratio da política internacional durante um bom tempo ainda, enquanto, pelo menos, a lógica westfaliana continuar a prevalecer (e isto pode durar mais um século e meio, aproximadamente). As soluções são, portanto, “velhas”, por isso mesmo: a lógica imperial e o uso da força continuarão conosco pelo

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futuro previsível, e esta me parece a base da segurança e da estabilidade do mundo que conhecemos, que não corre nenhum risco de tornar-se “kantiano” antes de três ou quatro gerações, pelo menos. A soberania continuará com os Estados-nacionais pelo futuro previsível; menos na Europa, que está construindo sua própria soberania co-munitária (mas este será um processo longo, pois os europeus não parecem acreditar muito na força bruta, sendo, neste caso, suplantados pelos chineses e indianos, que com russos e americanos continuarão a dominar o panorama da segurança estratégica nas próximas décadas).

Quanto à ordem econômica, que me parece apresentar os mesmos “velhos” pro-blemas de sempre – desigualdades de acesso e de riqueza entre as nações, diferenciais de renda e de prosperidade, com convergências e divergências operando em ritmo muito lento para eliminar os ainda imensos bolsões de miséria abjeta –, algumas no-vas soluções parecem estar em curso; elas se situam justamente na interdependência crescente dos sistemas econômicos nacionais. Neste caso, o sistema “westfaliano” já saltou pelos ares e o nacionalismo econômico parece uma coisa tão antiquada quanto o machado de bronze e a roca de fiar. A internacionalização crescente das atividades produtivas e de circulação de bens tangíveis e intangíveis me parece constituir a base de uma sociedade global que existirá antes na prática do que no direito, este ainda dominado pelos nacionalismos de base política que são duros de morrer. Aprofundarei estes temas na seção pertinente.

Feita esta introdução de caráter geral, vejamos agora os problemas da agenda po-lítica mundial.

1.1. Segurança estratégicaNa equação estratégica contemporânea, a detenção de artefatos nucleares continua

a ser o elemento dominante, em ultima ratio, do jogo do poder. Existem, obviamente, outros vetores de poder, em especial o tecnológico e o econômico, este constituin-do, em última instância – segundo o modelo analítico marxista, que neste particular conserva plena validade –, o elemento crucial de afirmação de supremacia, de modo continuado. Não se compreende, aliás, o desenvolvimento e a posse de artefatos nu-cleares senão ao cabo de certo grau de avanço científico e tecnológico, que costuma estar ligado ao nível de desenvolvimento econômico do país.

Certamente que países economicamente poderosos estão em condições de assegu-rar um modo de vida satisfatório aos seus cidadãos, podendo influenciar decisivamen-te a agenda política e econômica mundial e contribuir, no mundo contemporâneo, para o desenvolvimento econômico e social de outros povos e países. Isso é plenamente verdade. Mas, se formos decidir, em determinados momentos, sobre a paz e a guerra, e definir quem, no momento decisivo, é capaz de impor sua vontade – ou de impedir que outros imponham a sua própria vontade –, então, a posse de armas nucleares torna-se o diferencial absoluto de poder, independentemente do poder econômico relativo de cada um dos contendores.

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Como regular, então, as relações internacionais, ou melhor, as relações de poder, nesse contexto da “arma de última instância”? O mundo dispõe de um acordo que não é mundial, mas tão somente internacional, que regula parcialmente o problema, que é o TNP, o tratado de não-proliferação nuclear (Washington-Moscou-Londres, 1968). Esse tratado não é certamente universal e, sobretudo, não é multilateral, uma vez que apenas três países o negociaram e depois o “ofereceram” à comunidade internacional. Ele foi posteriormente “estendido” ao resto do mundo, na ausência – talvez na opo-sição – dos dois outros únicos países nucleares à época, que eram a França e a China (que a ele só aderiram no início dos anos 1990). Essa extensão se fez sob os olhos por vezes invejosos, outras vezes preocupados, de outros países, alguns deles interessados em desenvolver seus próprios artefatos nucleares, alguns outros temerosos de que a proliferação indevida dessas terríveis armas pudesse conduzir ao holocausto nuclear.

De fato, vários outros países tentaram – alguns continuam tentando – desenvolver a tecnologia nuclear, para fins de dissuasão ou para simples manifestação primária de poder. Entre esses países se encontravam, na América Latina, o Brasil e a Argentina, sob a escusa, pouco credível, de sua utilização para fins exclusivamente pacíficos, ou civis. Vez por outra, algum “estrategista”, aqui mesmo no Brasil, levanta a hipótese do desenvolvimento de um artefato nuclear, mesmo na presença do obstáculo constitu-cional, com a justificativa de que as condições externas poderiam exigi-lo para fins de “defesa”. Por certo, vários países estariam em condições de desenvolver rapidamente um artefato nuclear, se a decisão política assim o determinasse; entre eles poderiam figurar: Alemanha, Japão, Canadá, Suécia, Espanha, Itália e outros atores menores. Brasil, Argentina, Egito e alguns outros demorariam mais tempo, em função de lacu-nas tecnológicas ou de insuficiência do “combustível” nuclear.

A questão nuclear, no seu sentido amplo, estratégico, apresenta três aspectos que não estão necessariamente conectados entre si de modo estrutural, mas que foram conceitualmente reunidos pelo próprio instrumento que “regula” a questão no plano internacional: (a) a não-proliferação, que é obviamente o aspecto principal subjacente às intenções dos proponentes do TNP; (b) a cooperação nuclear para fins civis, ou pacíficos, que representa uma promessa e uma garantia das potências nuclearmente armadas em direção de todas as outras; (c) o desarmamento, que é uma hipótese fan-tasiosa inventada pelos proponentes do TNP para atrair – enganar seria o termo mais exato – os demais países a esse instrumento discriminatório e desigual. Em relação a esta terceira dimensão da questão nuclear, se poderia repetir o velho argumento tantas vezes utilizado em outras circunstâncias: em relação ao desarmamento, nós – ou seja, as potências nuclearmente armadas –, fingimos que vamos desarmar, um dia, e todos os demais fingem que acreditam nessa hipocrisia. De fato, parece difícil reverter a si-tuação ao status quo ante: uma vez que o “gênio” nuclear saiu da sua lâmpada militar, é praticamente impossível fazê-lo retornar à sua “inexistência” anterior.

Para todos os efeitos práticos, o que vale, para as potências do TNP é a garantia de não-proliferação, com alguma cooperação na dimensão da cooperação – sob o olhar vigilante da AIEA – e a total desconsideração da dimensão desarmamento. Para todos

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os “nucleares”, portanto, essa questão apresenta dois aspectos: o da projeção da força e o da dissuasão. O primeiro aspecto, depois de Hiroshima e Nagasaki, não mais voltou ao cenário internacional (a despeito de alguns “ensaios”, como em Cuba, em 1962). A arma nuclear não mais voltou a ser usada como arma de terreno para abreviar o final de uma guerra, ainda que ela tenha sido cogitada em alguns cenários ou teatros possíveis de operação (como a sugestão do general MacArthur, em face da ofensiva chinesa durante a guerra da Coréia, e talvez algum outro general “maluco” por ocasião da guerra do Vietnã). Mesmo no caso de Cuba, quando os dois grandes contendores da fase pré-TNP parecem ter chegado “to the brink”, não estavam reunidas todas as condições para que o jogo de pôquer, naquelas circunstâncias, chegasse a uma “solu-ção final”, ao estilo do filme Dr. Strangelove.

A arma nuclear é usada, portanto, para fins essencialmente dissuasórios, e é como tal que Israel a concebe, em face de uma coalizão agressiva de Estados árabes que gostariam de varrê-lo do mapa. Existem, certamente, militares, que concebem alguma utilização tática da arma nuclear; mas os estadistas responsáveis e planejadores sen-satos dos países nuclearmente “capazes” – e não apenas daqueles nuclearmente arma-dos – assim imaginam sua equação nuclear nacional. De fato, repassando a lista dos nucleares, veremos que eles sempre tiveram em mente algum perigo estratégico, para o qual se buscou a solução de última instância.

Com a possível exceção da França – que estava exercendo uma opção de “orgulho nacional”, depois de tantas humilhações sofridas desde o século XIX – e, possivel-mente, da África do Sul – que se sentia acuada por todos os demais países africanos no momento do apartheid –, todos os demais países tinham algum contendor em mente no desenvolvimento do seu programa nuclear. A China se armou contra os EUA e contra a própria URSS; a Índia o fez contra a China, menos do que contra o Paquistão; o Paquistão contra a Índia, with a little help from China; Israel contra os países árabes, e eles eram muitos; a Coréia do Norte contra os EUA (e possivelmente o Irã, também, mais do que contra o Iraque). As aventuras nucleares de Saddam Hussein (ditador do Iraque até sua derrubada pelos EUA em março de 2003) e as do coronel Kadhafy, da Líbia (estas, finalizadas depois de duras sanções contra o país), entram nesta equação a título de bizarrice, embora o ditador do Iraque tivesse o “inimigo” iraniano no seu planejamento militar. De todos esses países, o único que desarmou voluntariamente foi a África do Sul; mas ela o fez no momento da transição para o regime de maioria negra, e esse elemento pode ter entrado no cálculo estratégico da liderança branca que assim decidiu no início dos anos 1990. Quanto à Coréia do Norte, a supor que ela desarme, efetivamente, tal fato pode ser atribuído à dupla pressão da China e dos EUA, nessa ordem.

Parece haver uma teoria das relações internacionais contemporâneas – mas não testada na prática – que afirma que os Estados que se tornam nuclearmente armados passam a se comportar de modo mais responsável e condizente com suas novas res-ponsabilidades no plano internacional. Este foi certamente o caso da China, de Israel, da Índia, embora haja desconfianças em relação ao que possam algum dia fazer o

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Paquistão, a Coréia do Norte e, eventualmente, o Irã. Mesmo com relação à China, se questiona se seu papel foi responsável, uma vez que ela pode ter sido decisiva na capacitação nuclear do Paquistão, que por sua vez foi, em parte, negligente com o seu programa: um físico desse país está na origem de uma das mais importantes redes de disseminação de tecnologia e materiais nucleares, num contexto de “proliferação” por empreendimento individual, um pouco como faziam os piratas de antigamente, que também podiam servir de corsários para seus Estados respectivos. Alguns cenários podem ser preocupantes, nessa hipótese de uma proliferação não controlada pelos atores responsáveis, o que poderia ser o caso do Paquistão, da Coréia do Norte e do Irã, precisamente.

Mesmo quando um país nuclearmente “capaz” não parece ameaçar a paz mundial, cenários de conflito são sempre imprevisíveis, pois as fontes podem emergir não da situação objetiva de um país determinado, em seu contexto geopolítico próprio, mas como resultado da paixão dos homens, falíveis por definição. Imaginemos, por um instante, uma ocupação das Malvinas por tropas argentinas respaldadas por um arte-fato nuclear que teria sido previamente desenvolvido pela ditadura militar. A história poderia ter sido bastante diferente.

O TNP vem se “universalizando” nos últimos anos, em que pese sua notória falta de legitimidade intrínseca. Por outro lado, mais países estão se tornando nuclearmente capazes, quando não nuclearmente armados. A Índia já criou uma situação nova e vem sendo aceita como uma potência nuclear de fato, ainda que não o venha a ser de di-reito. O grande responsável por essa transformação foi, a rigor, a potência garantidora, por excelência, do TNP e aquela teoricamente mais engajada na não-proliferação: os EUA. A dissuasão e o cálculo estratégico estão aqui bem presentes. As boas relações entre Índia e EUA, nesse terreno, têm a ver com a China, embora equivocadamente considerada como a fonte possível de desafios estratégicos para os EUA. O acordo nuclear entre EUA e Índia vale estritamente para fins civis, e não tem o poder de qualificá-la para o clube formal das potências nucleares, o que de toda forma exigiria reforma do TNP, algo praticamente impossível de ocorrer nessas bases.

O TNP precisa, sim, de reformas, mas elas teriam de ser bem mais radicais do que poderiam admitir os cinco privilegiados da atualidade. Nem eles poderiam admitir o seu desarmamento, o que obviamente não ocorrerá, nem eles vão querer estimular em demasia o desenvolvimento nuclear – ainda que para fins eminentemente pacíficos – dos demais países. Assim, parecem existir poucas chances de progresso institucional na questão nuclear, com base nos instrumentos atualmente disponíveis, em primeiro lugar o TNP. Haverá, portanto, muita hipocrisia e muito more of the same nesta agenda.

Não se concebe, com efeito, as potências nuclearmente armadas favorecendo o ingresso de países “candidatos” no clube nuclear. Eles precisariam “forçar a porta” e garantir o seu ingresso, mas sempre serão passageiros incômodos, por não disporem do bilhete desde a partida. Em outros termos, não haverá nenhum levantamento de restrições à transferência de tecnologia. Mas os próprios países que aspiram ingressar no grande jogo estratégico terão de buscar sua equiparação progressiva – embora rudi-

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mentar – com os cinco grandes, com base em sua própria capacitação. Esta dependerá em grande medida do aprendizado próprio – ou seja, ciência e indústria, com base em tecnologia endógena ou copiada –, da política dirigida ao comércio de materiais sensíveis, alguma cooperação bilateral e um pouco de espionagem.

Quanto ao problema da reforma da Carta das Nações Unidas e a ampliação do seu Conselho de Segurança, esse processo não tem a ver, diretamente, com a posse de al-gum artefato nuclear. O Japão – potencialmente capaz de desenvolver a arma, mas que prefere, por enquanto, viver castrado nessa dimensão – e a Índia são, teoricamente, os dois únicos países que estariam na lista dos EUA para ingresso no CSNU, mas não por algum cálculo de natureza estratégica que envolva a posse de armas nucleares. De toda forma, o alegado desejo dos países membros e dos candidatos em promover uma “democratização” das estruturas de poder internacional não passa de uma hipótese pouco credível para quem acompanha a realidade das relações internacionais. Os cin-co permanentes atuais não desejam a reforma e não pretendem diluir o seu poder com novos candidatos. O status quo lhes convém e assim será mantido até que novos dados da realidade alterem substancialmente a equação estratégica do cenário internacional contemporâneo. Uma coisa é certa: o “gênio” nuclear continuará fora da garrafa.

E o Brasil, como se situa ele, neste cenário de unilateralismo arrogante, de arranjos oligárquicos e de pressões sobre os países “desviantes”? Ele mesmo poderia ser in-cluído nessa categoria, ao persistir sua recusa do Protocolo adicional ao TNP, mesmo depois de aceitar relutantemente esse instrumento discriminatório em 1996. É certo que, na origem, isto é, nos anos 1950, o Brasil mantinha concepções otimistas – talvez ingênuas – sobre a utilização do poder nuclear, tanto sob a forma de energia, como em aplicações médicas e mesmo em obras de engenharia civil. Depois ele alimentou o sonho de aceder à tecnologia de processamento e de sua eventual utilização militar, ao empreender, entre outros programas, a cooperação nuclear com a Alemanha (que, junto com o Brasil, foi objeto de intensas pressões dos EUA). Sua capacitação interna foi prejudicada por insuficiência de recursos e de vontade política, independentemente do eventual sucesso tecnológico do acordo com a Alemanha, que não foi conduzida a termo. Foi, provavelmente, melhor assim, pois o espectro de uma corrida nuclear com a Argentina foi afastado e ambos os países terminaram não apenas acedendo ao TNP, como também desenvolveram um programa exemplar de cooperação em salvaguardas nucleares que pode servir de modelo para outras situações do gênero (talvez no sul da Ásia, com o impasse indo-paquistanês ainda pendente).

Continuam pendentes, portanto, o problema da recusa brasileira ao Protocolo adi-cional ao TNP – que parece ter a ver com uma hipotética “tecnologia original” utili-zada na fábrica de processamento de Resende – e a questão da postura em relação à “doutrina nuclear” de Bush, que envolve o controle das atividades civis, em todos os seus aspectos (comerciais, tecnológicos, produtivos). Tendo em vista o nacionalismo e o soberanismo brasileiros, não haverá progresso sensível no futuro imediato, mas essa questão não é crucial no plano da segurança estratégica para a ordem política mundial:

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afinal de contas, o Brasil não é um elemento desestabilizador da ordem internacional e o mundo pode facilmente conviver com esse tipo de nacionalismo “nuclear”.

Existem outros vetores de segurança estratégica no cenário mundial e eles têm a ver com os esquemas regionais (ou geopolíticos) de defesa e de aliança militar: o único esquema que sobreviveu à Guerra Fria e que continuou a se expandir glorio-samente foi a OTAN, que teve um notável sucesso em suas novas roupagens “ca-maleônicas” de “pau para toda obra”, ao incorporar em seu programa temas como direitos humanos e defesa do meio ambiente (incrível, mas verdadeiro). A OTAN não é mais “atlântica”, mas mundial, pois que suas tropas estão no Afeganistão, como poderiam estar em outros cenários, sempre e quando o comando americano assim o decida. A Eurásia continua a ser, como nos tempos de Mackinder, o elemento-chave do equilíbrio estratégico mundial, mas os europeus continuam numa encruzilhada de vocações: eles não sabem se retomam suas antigas tradições imperiais – afogadas desde os antigos desvarios nazistas e ameaças do hoje inexistente inimigo soviético, parcialmente revivido no novo czarismo russo – ou se continuam atados ao guarda-chuva nuclear da OTAN (de fato americano). Sua proverbial incapacidade de engajar recursos consideráveis em tecnologia bélica promete continuar reduzindo-os a nada mais do que assistentes militares do império americano, o que muito os desgosta (mas eles não fazem muita coisa para mudar a situação).

No plano global, de toda forma, essas indecisões européias são irrelevantes para o equilíbrio estratégico internacional: a dissuasão continua a funcionar e o mundo é mais seguro do que jamais o foi no decorrer do século XX. No plano regional, os cenários de conflito potencial continuam situados em zonas periféricas e empobreci-das da Ásia, da África e do Oriente Médio, pois não se imagina que as regiões dinâ-micas e os países mais engajados na globalização (e, ipso facto, de alto crescimento econômico) venham a se deixar envolver em uma escalada de enfrentamentos que possam precipitar algum conflito de grandes proporções.

A América Latina continua a ser uma região isenta de grandes enfrentamentos e o TIAR (1947) continuará a exibir sua inoperância relativa (o que não representa um problema para o Brasil, talvez, antes, uma solução). Depois dos “anos clássicos” de alinhamento ideológico, mas fora do cenário de enfrentamentos, durante a Guerra Fria, o que menos interessa ao Brasil é ter a América Latina como o teatro de uma cor-rida armamentista (que poderia ser protagonizada por novos candidatos a caudilho). Os novos desafios se situam inteiramente na evolução democrática do continente e na sua integração física, base indispensável para o desenvolvimento da integração econômica. O único desafio “militar” na região parece ser o anacrônico problema da narcoguerrilha, que na verdade se confunde com o crime organizado e está, portanto, mais próximo de um problema policial do que da segurança estratégica no conceito tradicional do termo. A paz relativa na América do Sul, ou seja, a ausência de focos declarados de tensão inter- ou intra-estatais (a despeito mesmo da afirmação indige-nista em alguns países e, portanto, potencialmente um fator de fragmentação nacio-nal), deve contribuir para o baixo nível de dispêndio militar na região. Mas a recusa

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das Forças Armadas em assumir o novo papel de “caçadores de traficantes” – que lhes pretendem atribuir os EUA – pode continuar a ajudar a preservar os focos de instabi-lidade localizada da narcoguerrilha, que ameaça extravasar para o sistema político e “invadir” as cidades (se já não o fez).

Um pouco de “futurologia” na questão estratégica global permitiria antecipar uma mudança, já em curso, nos cenários: dos velhos enfrentamentos entre Estados aos conflitos assimétricos típicos da contemporaneidade, ou seja, conflitos geralmente regionais, de baixa intensidade e localizados, tipicamente envolvendo lutas civis (ét-nicas, religiosas) e um ou outro enfrentamento territorial. O que pode já estar em curso, também, é o novo intervencionismo militar com base em pressões da opinião pública nos centros imperiais democráticos (pois não se imagina os “impérios” não democráticos atendendo a apelos de ONGs humanitárias): a questão que se coloca é a de saber se esse tipo de limitação ao “direito de massacrar o seu próprio povo” – tal como exercido por alguns “ditadores de opereta” (eles ainda existem) – representa o começo do fim da soberania estatal. A outra questão que se coloca, e que representa um problema para o Brasil, é a de saber se ele, ou pelo menos o seu establishment militar e diplomático, está preparado para esse tipo de missão. Provavelmente não, pois isso exigiria, mais do que a simples capacitação técnica – em armas e táticas de combate –, uma verdadeira revolução conceitual, difícil para um país que tem em Rui Barbosa o seu paradigma de comportamento soberanista.

1.2. Relações entre as grandes potênciasAs relações entre as grandes potências – ou, como querem alguns, as guerras entre

os impérios – sempre estiveram no centro da política mundial, por qualquer prisma que se examine a agenda internacional. No plano estrito dos equilíbrios estratégicos, esta é uma verdade quase absoluta, embora a natureza desse relacionamento – e suas possíveis conseqüências no plano militar – tenha evoluído ao longo do tempo. Os antigos sistemas imperiais estavam baseados: na conquista militar, na extração de recursos e a conseqüente escravização ou submissão de povos submetidos ao poder incontrastável de sistemas políticos unificados, dotados de meios militares relativa-mente mais avançados ou de técnicas de dominação mais condizentes com a vontade de poder de seus dirigentes.

Foi assim que “povos bárbaros” conquistaram sistemas imperiais aparentemente fortes e até mesmo seculares: esse destino alcançou o Egito, a Assíria, a Pérsia, o império criado por Alexandre, a China e Roma clássica. Por outro lado, a ineficiência econômica, o atraso tecnológico e erros políticos levaram à decadência os impérios ibéricos que dividiram o mundo entre os séculos XVI e XVIII; paralelamente, desapa-reciam de cena os impérios árabe, mogul e, em nossa época, o otomano, antecedendo a fragmentação da comunidade multinacional dos Habsburgos e o irresistível declínio dos britânicos, dentre uma longa lista de sucessões hegemônicas ao longo dos tempos (que inclui, por exemplo, os holandeses, embora estes não tenham decaído absoluta-

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mente, mas, sim, souberam unir-se aos ingleses na preservação de uma prosperidade alimentada pelo comércio).

Os modernos sistemas “imperiais” baseiam-se bem menos na dominação direta ou na extração forçada de recursos – e, obviamente, não mais na escravização ou coloni-zação direta de populações mais “atrasadas” – e mais na organização da produção, no controle dos circuitos de distribuição e na “extração” de ganhos quase-monopolistas derivados dos fluxos de capitais financeiros, de tecnologia proprietária e de rendas diversas obtidas a partir, justamente, de sua posição dominante ou hegemônica. O re-cente debate sobre a natureza do “império” americano – que Niall Ferguson pretende ser um império de fato, mas envergonhado de sê-lo e, por isso mesmo, um pouco desastrado – obscurece um pouco a questão de saber se vivemos, inevitavelmente, sempre sob a égide de sistemas imperiais, ou se tudo se desenvolve num continuum que se caracteriza, simplesmente, pela sucessão de hegemonias políticas, alimentadas por fatores temporários – embora alguns possam durar séculos – de preeminência eco-nômica ou tecnológica. O livro de Ferguson sobre o “império” americano (Colossus) é mais um alinhamento de argumentos em favor de uma tese do que propriamente uma prova irrefutável da natureza imperial do sistema americano atual, dominante e hegemônico como ele pode ser.

Da mesma forma, a natureza precisa do “império soviético” – ele, sim, em grande medida derivado das ambições territoriais dos Romanoff ao longo dos séculos XVIII e XIX, depois alimentado por Stalin com base nas vitórias militares da segunda guerra mundial e na sua paranóia de uma nova invasão alemã, ou ocidental – carece, ainda, de uma definição e de estudos similares aos efetuados pelos historiadores e cientistas políticos ocidentais para os “impérios” ibéricos, da Europa central, otomano, britâ-nico e americano. Os velhos sistemas imperiais europeus não resistiram ao impacto de suas próprias idéias – liberdade, direitos humanos, autonomia nacional – bem como à criação do sistema político multilateral do pós-guerra: autodeterminação e a soberania estatal são dois princípios fundadores das Nações Unidas, tanto quanto a resolução pacífica dos conflitos, a defesa dos direitos humanos e a cooperação em prol do de-senvolvimento.

Por maior que seja, atualmente, o predomínio da força do direito sobre o direito da força, as grandes potências não renunciam, obviamente, à projeção de poder militar, cada vez que seus interesses maiores sejam ameaçados. O cenário contemporâneo mudou muito desde o declínio dos velhos impérios, a partir da primeira guerra mun-dial, com a emergência simultânea das duas grandes potências do pós-guerra. De 1945 até o final da Guerra Fria, o mundo viveu em bipolaridade estrita; mas de 1947 a 1972, a tensão situou-se em níveis elevados, começando pelo conflito em torno de Berlim, a guerra da Coréia (1950-53) e o problema de Cuba (1962), que levou a uma “quase-confrontação” nuclear entre as duas superpotências. Durante os anos 1950, após a conquista da paridade nuclear (1949) e termo-nuclear (1954) pela União Soviética, as relações estratégicas entre as duas potências inimigas foram enfeixadas sob a doutrina MAD, Mutually Assured Destruction, o que significa que, em caso de escalada, a

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confrontação poderia levar à aniquilação total dos dois contendores. Nesse período, o alinhamento do Brasil aos EUA e ao “Ocidente” de modo geral, foi indefectível, mesmo se no final dessa fase (1961-64) o crescimento do movimento neutralista e não-alinhado tenha contribuído para criar no país propostas de uma diplomacia alter-nativa, materializada na chamada Política Externa Independente.

Desde a crise dos mísseis russos em Cuba (1962), mais concretamente a partir da presidência Nixon (1969-1974), ensaios de coexistência pacífica foram feitos, le-vando à distensão nuclear e à negociação de diferentes acordos de controle de ar-mas entre os EUA e a URSS, com o aprofundamento do processo nos anos 1980 e a conclusão de alguns tratados de redução de mísseis balísticos. O Brasil, ao longo do período, bateu-se pela chamada agenda dos três “d” que, nos anos 1960, equivaliam à descolonização, desarmamento e desenvolvimento, tendo sido o primeiro “d” subs-tituído, nos anos 1990, pelos direitos humanos. O Brasil esperava que, com o ocaso do socialismo e o surgimento de uma nova ordem mundial, nos anos 1990, da nova distensão criada entre as grandes potências emergiriam os chamados “dividendos da paz” para o desenvolvimento; mas não foi exatamente o que ocorreu. A ordem política mundial, depois do desaparecimento da URSS, passou a ser caracterizada pela assim designada “unipolaridade imperial”, com o domínio dos EUA sobre os problemas mundiais desde 1992 e durante a maior parte da década, enquanto a Rússia atravessa uma das maiores crises de sua história. A lacuna política criada nas relações entre as grandes potências persistiu até que novos desafiantes surgissem no jogo imperial, na figura da China.

Persiste, em todo caso, um equilíbrio instável entre os objetivos econômicos e os políticos da nova ordem; os primeiros orientados para a interdependência econômica, nos quadros da globalização; os segundos sempre marcados pela rivalidade implícita entre os interesses nacionais das grandes potências. Para o Brasil, os desafios agora colocados são os da sua adequação à nova ordem da globalização, que são todos de-rivados de reformas internas nos aspectos fiscais e no sistema educacional. No que se refere à construção de cenários externos para a atuação de uma potência média como o Brasil, não existem, propriamente, novos desafios para o país, senão aqueles deriva-dos de uma diplomacia presidencial especialmente ativa, feita de novas orientações e novos parceiros, todos eles situados na direção do Sul e da América do Sul. Não há, contudo, obstáculos estruturais à ascensão do Brasil na ordem econômica mundial, uma vez que o sistema globalizado se apresenta como essencialmente aberto a novos participantes, o que não é exatamente o caso da ordem política, cujos requisitos de in-gresso dependem de capacitação específica no plano estratégico e militar, o que ainda parece distante de ser atingido pelo Brasil.

1.3. Conflitos regionaisO que há de novo no atual cenário da ordem política internacional é que a antiga

confrontação global deixa de ser dominante, subsistindo focos de conflito poten-cial; bem mais em âmbito local ou regional do que em escala continental, ou entre

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alianças militares (de resto, quase nenhuma conserva importância, sendo que a mais relevante, a OTAN, transcende agora seu antigo âmbito geográfico de atuação). A organização mais recente no plano da estabilidade e da segurança estratégica, a OSCE, derivada da antiga Conferência sobre segurança e cooperação na Europa, do tempo da Guerra Fria, tem hoje uma agenda de trabalho bem mais voltada para construção democrática do que para dissuasão de conflitos militares, embora o as-pecto de confidence building continue relevante, em vista do novo endurecimento político-militar registrado na Rússia. De fato, a Rússia pós-Ieltsin (ou seja, de Putin) vem dando sinais crescentes de retomada de suas antigas pretensões a “redistribui-dora de cartas” na Europa sul-oriental e na Ásia central, numa tendência à crescente afirmação de sua preeminência militar, que ela vê, em essência, como um projeto anti-hegemônico aos EUA.

Já no período anterior ao final do comunismo, os conflitos inter-estatais tam-bém eram predominantemente regionais, e não globais; mas mesmo esses conflitos regionais, agora mais freqüentes, perdem o vetor ideológico da época da Guerra Fria, para adquirir contornos de guerras civis ou de conflitos de natureza étnica. Na verdade, os principais focos de tensão continuam inter-estatais: Israel-países ára-bes, conflito indo-paquistanês em torno da Cachemira, as duas Coréias. Mas são os conflitos internos aos Estados que provocam atualmente o maior número de mortos, de deslocamento de populações e de violações de toda ordem aos direitos huma-nos: a África, obviamente, continua a oferecer vários exemplos do gênero, mas em regiões da Ásia Pacífico, na Ásia do sul e central são constantes, igualmente, as erupções de violência com grandes perdas humanas. Na América Latina, a despeito de uma ou outra questão de fronteiras ainda não resolvida – Guiana-Venezuela, Chile-Peru-Bolívia e outras menores –, a única situação militar que ainda cobra um preço em termos de vidas humanas é a anacrônica “guerra civil” da Colômbia, que já descambou, na verdade, para o crime organizado em torno das drogas e a indús-tria de seqüestros.

Para o Brasil a diminuição dos focos de tensão e o desaparecimento do ma-niqueísmo da Guerra Fria são pontos positivos e bem-vindos, na medida em que alinhamentos daquela época se tornam anacrônicos. Um ponto preocupante, para países ciosos de seus direitos soberanos sobre os recursos naturais com impacto global, como é o caso da Amazônia brasileira, é o desenvolvimento de um novo tipo de intervencionismo de feição humanitária, mas também ecoló-gica, que tem suscitado preocupações – e também alguma paranóia – em setores nacionalistas temerosos de que o princípio possa vir a ser algum dia aplicado no sentido da “internacionalização” dos recursos da biodiversidade amazônica. Não parece credível, contudo, que esse novo intervencionismo venha se esten-der para as vertentes política ou militar, com implicações para a soberania do Brasil, que de resto possui, como observado várias vezes, poucos “excedentes de poder”, isto é, capacidade de ação e meios militares compatíveis com suas dimensões e importância regional.

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1.4. Cooperação política e militar nos hot-spots;Um dos temas mais debatidos, logo no início dos anos 1990, em torno da ordem

política internacional que teria emergido com o fim da Guerra Fria, foi o de saber se o colapso dos países socialistas representava algo como o “fim da História”. O “introdutor” do conceito foi um cientista social americano que durante certo tempo trabalhou para o Departamento de Estado, mas que já vinha observando os desenvol-vimentos políticos na União Soviética desde o início dos anos 1980, pelo menos. A esquerda marxista, ou o que restou dela, fez pesadas críticas a essa “tese”, de vaga ins-piração hegeliana, sem ter aparentemente registrado que o artigo original – publicado em meados de 1989 na revista The National Interest – comportava um significativo “?” em seu título, e que as menções à URSS não previam, em absoluto, seu desapare-cimento ou mesmo a derrocada completa do socialismo de tipo autoritário. As críticas foram, em sua maior parte, superficiais, e se contentaram em “desmentir” Fukuyama por meio do “contra-argumento” banal de que a história não poderia, obviamente, ter terminado, aduzindo esses críticos, então, inumeráveis “exemplos” sobre a “crise” do capitalismo e da própria globalização.

O fato é que Fukuyama, em nenhum momento, pretendia “decretar” o fim da História como tal. O que ele fez, apenas, foi consolidar seu entendimento conceitual de que, depois da adesão de Gorbatchev a valores democráticos universais e a prin-cípios da economia de mercado, e depois da conversão dos comunistas chineses em aprendizes de capitalistas, não havia mais sentido considerar que pudesse haver, no sentido teórico ou mesmo prático, alternativas credíveis às democracias liberais de mercado (haveria, em suas palavras, “total exhaustion of viable systematic alternati-ves to Western liberalism”). Seu argumento “filosófico” não foi, até agora, desmentido no plano da racionalidade instrumental. Isso não impede, obviamente, que continuem existir ditaduras, autocracias ou outras formas de regimes autoritários, assim como sistemas econômicos nacionais que se distanciam consideravelmente dos mecanismos de mercado. Isso tampouco elimina o fato de que os mercados mundiais funcionam, em grande medida, de modo relativamente uniforme (ou seja, segundo a velha lei da oferta e da procura, a despeito mesmo de alguns cartéis que se empenham em mani-pular os preços de algumas commodities).

A maior relevância da “tese” de Fukuyama, porém, seria, teoricamente, no plano dos conflitos globais, que segundo seu argumento tenderiam a perder sua roupagem ideológica, abrindo caminho a uma cooperação cada vez maior entre as grandes po-tências e os países responsáveis no plano da política mundial pela manutenção da paz, da segurança, isolando ditadores e outros “vilões” do status quo. Não foi obviamente o que ocorreu – nem mesmo depois da implosão da URSS – e os processos sob exame do Conselho de Segurança continuaram a ter uma tramitação tão complicada quanto antes, ainda que o “cálculo” quanto ao “enfraquecimento” do “império opositor” não mais se aplique no caso das duas grandes superpotências. Em outros termos, se acre-ditava que, com o “fim da história”, conflitos como os do Oriente Médio ou de outros

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pontos quentes do planeta poderiam conhecer uma negociação “abreviada” ou, até mesmo, ter uma “solução” à vista em questão de meses, senão de semanas.

Na verdade, a tese sobre o fim da história não requer que todos os países se conver-tam em democracias liberais, com o que, supostamente, nenhum conflito mais seria possível entre eles; apenas que não exista mais, no plano das sociedades, pretensões à existência de formas de organização política e social superiores à democracia liberal. Mas como adverte o próprio Fukuyama, o nacionalismo e a religião são forças bem mais consistentes – e, portanto, difíceis de serem “diluídas” no cadinho comum das sociedades – do que o foram, em suas épocas, o fascismo e o comunismo, que atuaram bem mais na superfície das coisas, algo como a superestrutura das sociedades, em ter-mos marxistas. Por isso mesmo é tão difícil conseguir a eliminação dos conflitos entre sociedades ou a cooperação entre algumas delas para diminuir, ou mesmo suprimir, alguns dos conflitos mais deletérios em termos de violações dos direitos humanos e de perda de vidas.

Uma cooperação política e militar entre as principais potências nos hot-spots do mundo implicaria, antes mesmo de algum entendimento sobre a forma de resolver um conflito em especial, uma visão comum quanto aos seus interesses nacionais, o que não parece fácil conseguir no horizonte previsível. Não foi assim no decorrer do século XX, ainda que os sessenta anos depois da conclusão da Segunda Guerra Mundial não mais assistiram às terríveis mortandades de sua primeira metade (ver Niall Ferguson, The War of the World), quase tanto quanto o período de paz relativa que dominou o cenário europeu desde o fim das guerras napoleônicas até a Primeira Guerra Mundial. Algumas interpretações pretensamente marxistas sobre os dois conflitos mundiais do século XX colocam suas raízes em supostas “contradições interimperialistas” entre as principais potências européias, que teriam subido aos extremos pela disputa por mer-cados coloniais e o acesso a matérias-primas. Na verdade, os conflitos entre Estados, antes de se tornarem globais, são sempre regionais como demonstrado, justamente, pelos conflitos europeus do terrível século XX (ver Arno Mayer, The Persistence of the Old Régime).

Tampouco tem sido assim no pós-comunismo. Os conflitos continuam regionais, ou mesmo nacionais, e não há concordância entre as grandes potências para diminuir ou eliminar seu caráter destruidor. A convergência de “opiniões”, não sendo possível no plano regional, seria ao menos presumível no âmbito do sistema de segurança mundial, ou seja, nas competências e atribuições do órgão encarregado, por excelên-cia, da paz internacional? Tal possibilidade passa, eventualmente, pela reforma da Carta da ONU e uma hipotética ampliação de seu Conselho de Segurança, o que tem se revelado uma missão impossível.

A despeito de declarações favoráveis à reforma por parte dos atuais membros permanentes do CSNU, provavelmente hipócritas, o fato é que nenhum deles está verdadeiramente interessado na reforma e na ampliação do número desses membros permanentes. Em primeiro lugar, porque qualquer expansão do órgão significaria a di-luição do seu próprio poder; em segundo lugar porque as potências não se entendem,

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justamente, sobre o equilíbrio regional da nova composição, tanto no plano de seus in-teresses nacionais, quanto no âmbito da representação política das próprias potências regionais. Várias delas têm enormes problemas com o ingresso de um ou outro dos candidatos regionais, sejam eles amigos ou “inimigos”, assim como os candidatos po-dem ter vizinhos recalcitrantes em relação à sua admissão. A China, por exemplo, não considera que o Japão tenha feito o seu dever de casa no que se refere ao reconheci-mento dos crimes de guerra (e contra a humanidade) cometidos desde as primeiras in-vasões da Manchúria e depois da própria China nos anos 1930. França e Grã-Bretanha têm resistências em ver admitido mais um europeu, no caso a Alemanha, uma vez que a pressão para uma representação da UE, em lugar desses países, individualmente, se tornaria irresistível. A Índia tem contra si o Paquistão, assim como o Brasil não conta com a boa-vontade – para dizer o mínimo – da Argentina para sua candidatura. Os africanos, por sua vez, não se entendem sobre quais seriam os possíveis dois candi-datos do continente, que para a União Africana deveriam ser três, todos dispondo do direito de veto. Nem os EUA, nem a Rússia, a despeito das tergiversações habituais, apreciariam, na verdade, qualquer ampliação do CSNU, embora os EUA afirmem apoiar o Japão e mais uma candidatura – possivelmente a Índia, ambos potencial-mente para diluir o poder da China – num processo de ampliação limitado.

Em outros termos, o imbróglio não parece perto de uma solução viável e aceitável para todos, e o mais provável é que simplesmente não ocorra nenhuma reforma da Carta – pelo menos para a ampliação do seu Conselho de Segurança – e que o impasse sobre o número exato de “mais iguais” permaneça não resolvido pelo futuro pre-visível. Isto não impede, obviamente, cooperação no CSNU – entre os permanentes e os rotativos – para o encaminhamento de diversas questões atinentes à paz e à esta-bilidade mundial. Grandes potências tendem ao conservadorismo, uma vez que elas assumem a liderança de alguns processos e não pretendem colocar em risco situações consolidadas em suas próprias regiões. Também parece haver entre elas a consciência – e nisso vai toda a diferença com os impérios do passado e com os candidatos a novos hegemons ainda no século XX – de que não existem ganhos garantidos no enfrenta-mento direto com as outras potências.

Mas a cooperação entre as grandes potências para a solução de conflitos regionais nem sempre é garantida, tampouco, tudo dependendo de como elas mesmas percebem seus interesses vitais no problema em questão: o oportunismo é de rigor e diversos fatores entram na equação complexa que traça cada uma para si mesma na conside-ração de uma questão específica vis-à-vis as estratégias que podem ser mobilizadas para defender os seus interesses. Alguns problemas regionais são percebidos como ameaça para todos, daí as possibilidades de cooperação entre eles; outros problemas os colocam em posições opostas, daí os impasses prováveis; outros problemas sequer os atingem, diretamente, daí a indiferença relativa com que esses problemas se arras-tam sem solução aparente durante longos anos, com o “desengajamento ativo” – se a expressão é aceitável – das grandes potências, salvo forte movimento de pressão da opinião pública para fazê-las mover-se.

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Alguns exemplos, nessas diversas categorias, podem ilustrar as possibilidades de cooperação, ou não, entre as grandes potências no tratamento de conflitos regionais. A primeira guerra do Golfo, em janeiro de 1991, por exemplo, apresentou-se quase como uma “cruzada” de liberação do pequeno Kuwait, invadido pelo vilão Saddam Hussein em agosto do ano anterior. Foi possível ter o acordo de todas as potências do CSNU para a aprovação de uma resolução que demandava a retirada sem condições do Iraque do país invadido, sob pena dessa retirada ter de ser efetuada por todos os meios adequados, isto é, pela força, se necessário. Curioso que a coalizão de “willing nations” que participou da operação não o fez sob comando de uma força onusiana de “imposição de paz”, mas sim sob o comando exclusivo das forças militares dos EUA, que estabeleceram sua própria estratégia e linhas de atuação para essa “expulsão” do vilão do território de um membro da ONU. Na verdade, esse é o padrão das forças de “imposição” de paz – em oposição às operações de peace keeping, apenas, na quais o comando onusiano é possível – que ficam sob o controle da potência interessada, que obviamente não abdica do comando militar (a guerra da Coréia é o exemplo típico dessa situação, que confirma a quase impossibilidade de a ONU vir a dispor de forças armadas próprias).

Já o quadro de massacres interétnicos ocorridos em Ruanda pouco tempo depois, com milhares de mortos antes de qualquer intervenção humanitária, bem como as guerras civis e a situação deplorável dos direitos humanos em diversos países afri-canos, arrasados em conflitos que se arrastam durante meses e anos, ilustra perfeita-mente a “negligência irresponsável” – se o termo também se aplica – da comunidade internacional no caso de problemas que não afetam nenhum dos interesses vitais das grandes potências. A ação multilateral para pacificar o país dos tutsis e hutus demorou enormemente, assim como outras guerras civis se prolongam na quase indiferença de grandes e médias potências. A ONU não pode ser considerada responsável por essas lamentáveis situações, pois não dispõe de autonomia sequer para decidir qualquer tipo de intervenção e, ainda que dispusesse, não teria condições efetivas – ou seja, tropas próprias – para fazê-lo.

A mesma impotência involuntária da ONU revelou-se nos diversos conflitos dos Bálcãs, ao longo dos anos 1990, desde as primeiras separações traumáticas – Eslovênia e Croácia – até o caso ainda não resolvido do Kossovo, passando, obviamente, pela terrível fragmentação da Bósnia-Herzegovina, onde foram perpetrados os piores mas-sacres vistos na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, geralmente da população islâmica pelos sérvios. A ONU e os próprios europeus da UE se revelaram incapazes de pacificar os contendores ou de evitar as piores violações humanitárias, que ocorre-ram no caso da capital da Bósnia, Sarajevo, e de alguns outros enclaves de composi-ção mista, nos quais os sérvios passaram à ofensiva. Nos Bálcãs, a Europa se revelou uma anã militar; não fosse pelo forte clamor da opinião pública, não teria havido envolvimento da OTAN, sob a forte liderança militar americana, para terminar com a terrível situação da população civil. A mesma situação se colocou no Kossovo, em-bora por razões e circunstâncias diferentes. Mais uma vez as exações sérvias perma-

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neceram impunes pelos europeus e pela ONU até que o poderio aéreo americano, sob a bandeira da OTAN, conseguiu pacificar a província rebelde, criando uma situação de autonomia de fato em relação à República iugoslava da Sérvia e do Montenegro. Esta última república, por fim, também se declarou autônoma, em janeiro de 2006, confirmando a vocação histórica daquela região e fechando um ciclo que trouxe os Bálcãs de volta ao sentido original de província fragmentada entre impérios.

A segunda guerra do Golfo, envolvendo novamente o Iraque, trouxe um ele-mento novo no que se refere ao papel da ONU. Chamado a endossar uma decisão que já estava tomada pela cúpula conservadora americana – o presidente Bush e seus neocons –, o CSNU, depois de longos debates de procedimento e de substância, recusou-se a se curvar às exigências dos EUA no sentido de obter uma autorização para o uso da força contra o regime de Saddam Hussein, sob o pretexto – que depois se revelou falso – de que ele estaria desenvolvendo armas de destruição em massa, que poderiam, segundo alegou a administração americana, ser colocadas à disposi-ção de grupos terroristas. A invasão do Iraque, já decidida desde o dia seguinte aos ataques terroristas contra alvos nos EUA, em 11 de setembro de 2001, deu-se de qualquer forma em março de 2003, e o governo e o exército iraquianos foram efeti-vamente aniquilados em questão de dias pelo ataque maciço do maior poder militar existente no mundo contemporâneo.

Pode-se considerar o episódio como um “fracasso” da ONU no sentido de evitar ou prevenir o uso da força fora das situações previstas no direito internacional, ou seja, a própria Carta da ONU e as decisões do CSNU (que são, obviamente, emi-nentemente políticas e não necessariamente a expressão do direito internacional, pelo menos não no sentido estrito da palavra). De fato, a ONU não tem esse poder de evitar o recurso à força por parte de Estados que se colocam à margem do direito internacional, pelo menos não num caso como este, envolvendo uma grande potên-cia. Mas, pode-se também interpretar o evento como uma confirmação da vontade da comunidade internacional no sentido de não se dobrar à vontade dos poderosos em quaisquer circunstâncias. Pouco mais adiante, incapaz de administrar a situação caótica que ele mesmo criou no país ao desmantelar todas as estruturas de Estado existentes no Iraque, o governo americano foi obrigado a novamente fazer apelo à ONU, para tentar criar uma aparência de normalidade no país, sem que a pacifi-cação tenha tido êxito e sem que os grupos terroristas fossem intimidados em sua vertigem assassina (ao contrário). A lição a ser tirada de todo esse doloroso processo é, ao mesmo tempo, de uma constatação de relativa impotência da ONU e de seus órgãos nas tarefas de prevenção de conflitos e de manutenção da paz e da segurança, conjugada, no plano conceitual pelo menos, ao reconhecimento de sua legitimidade para a tomada de decisões em todas as questões que envolvem o uso da força nas relações internacionais.

Quanto ao Brasil, quais seriam as implicações desses episódios no que se refere aos seus interesses nacionais, bem como à expressão desses interesses no plano regional e no contexto internacional? Candidato a ingressar no CSNU desde a for-

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matação original da estrutura das Nações Unidas, sem ter logrado tal ambição à época da discussão da Carta, em 1945 (de forma algo similar à candidatura frustrada ao Conselho da Liga das Nações, em 1926), o Brasil sempre teve uma participação ativa nas deliberações do Conselho, tendo sido um dos países que mais vezes figu-rou naquele órgão na condição de membro temporário, não se eximindo, em várias oportunidades, de participar, com forças de interposição ou com observadores mi-litares, de operações de manutenção da paz. Nunca houve, por razões de ordem política e constitucional, decisão em favor da participação do Brasil em operações de imposição da paz (peace making). Mas não está excluída tal evolução conceitual se a opinião interna no país se manifesta claramente em favor da assunção de um maior protagonismo mundial para o Brasil.

A candidatura ao CSNU ganhou novo alento depois da redemocratização do país em 1985, mais concretamente quando o presidente Sarney, em pronunciamento feito na Assembléia Geral em 1989, postulou essa pretensão, então apresentada como o desejo de o país assumir maiores responsabilidades com a cooperação e a manuten-ção da paz no âmbito internacional, sem que tal postulação significasse a exigência de concessão do direito de veto no CSNU. O Brasil se apresentava, então, como uma espécie de candidato “natural” a essa elevação de status no plano mundial, em função de seu papel positivo no contexto regional e internacional, como aderente estrito às regras do direito internacional e seu respeito às normas da convivência pacífica, do respeito à soberania e aos princípios da não interferência nos assuntos internos e da solução pacífica de controvérsias políticas entre os Estados. Tendo em vista objeções previsíveis, já manifestadas no passado, entre alguns vizinhos, a essa pretensão, o Brasil não colocava sua candidatura como uma expressão da vontade “regional”, mas seria inevitável que a questão da representação em nível regional fosse colocada durante os debates em torno da reforma da Carta. Mesmo tendo feito intensa campanha em favor de sua candidatura, na nova administração surgida em 2003, o Brasil não viu ainda contemplada sua aspiração. Quando ela o seria? Difícil dizer, em vista do quadro complicado não apenas em torno das representações re-gionais, mas igualmente em função de visões divergentes entre os cinco membros permanentes – talvez, convergentes, todos eles, em uma única consideração: a do desinteresse completo pela ampliação do CSNU a novos membros permanentes –, o que torna essa questão uma das incógnitas mais evidentes de toda a agenda inter-nacional da atualidade.

Concluindo esta seção sobre a ordem política mundial, a questão que se coloca é a de saber se poderia ser confirmado o diagnóstico feito ao início, de que se trata de novos problemas e de velhas soluções. Provavelmente sim, no sentido em que o mundo já não parece mais enfrentar o terrível espectro de um holocausto militar global, que seria desta vez “definitivo”, a partir dos novos instrumentos de morte e de destruição maciços trazidos pelos artefatos nucleares e termonucleares, “refu-giando-se” agora em conflitos de mais baixa intensidade, mas continua a ser regido pelo direito dos mais fortes e pela imposição da vontade das grandes potências sobre

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a maioria, numa reprodução das velhas vocações imperiais do passado. A situação atual não é, obviamente, similar à sucessão de impérios e de hegemonias como no passado, uma vez que o mundo caminhou para a gradual afirmação da força do di-reito sobre o direito da força e, mesmo que a ONU não seja, ainda, o “Parlamento da Humanidade” – como pretenderia Paul Kennedy –, ela, sem dúvida, está mais próxima de atingir o objetivo de aumentar o grau de cooperação voluntária entre os Estados membros da comunidade internacional do que jamais esteve, em qualquer época, a Liga das Nações ou esquemas similares de equilíbrio de poderes. A paz e a concórdia universal ainda não estão plenamente asseguradas, mas a guerra e o uso ilegítimo da força tendem a se tornar cada vez mais raros no cenário contem-porâneo. Esta é, talvez, mais a manifestação de uma aspiração do que a expressão concreta da situação real nas relações internacionais contemporâneas; mas há fortes razões para acreditar que as bases para tal desejo estejam efetivamente se consoli-dando no cenário mundial.

Seria esta uma situação “definitiva” ou incontornável? Difícil dizer, uma vez que nos assuntos humanos o imponderável sempre está presente. Mas existem fortes chances de que, pelo menos entre os dirigentes atuais (e supostamente entre os futu-ros, também) das grandes potências, a racionalidade instrumental tenda a se impor sobre os velhos impulsos guerreiros que levaram seus antecessores a se enfrentar nos campos de batalha. Finalmente, das cinco grandes potências que existiam um século atrás – Reino Unido, França, Alemanha imperial, Rússia e Áustria-Hungria –, duas já deixaram de existir em seu formato original (Alemanha imperial, liderada pela Prússia, e a Áustria-Hungria); uma (Rússia) ascendeu, decaiu e viu seu impé-rio ser reduzido consideravelmente, e as duas primeiras (Reino Unido e França) deixaram, efetivamente, de contar entre as mais fortes do globo, amputadas que foram de seus vastos domínios coloniais e de sua vocação imperial, para assumirem papéis mais modestos no atual cenário estratégico. As duas potências então “peri-féricas” – Rússia e EUA – ascenderam no domínio global durante cerca de duas gerações a partir do final da Segunda Guerra Mundial, ao cabo da qual elas, de certo modo, “partilharam” o mundo (tendo Ialta representado uma espécie de tratado de Tordesilhas da modernidade).

O fato dominante em nossa época é que os EUA “reinam” quase “incontes-táveis” no cenário estratégico contemporâneo, mas a China vem emergindo paula-tinamente em seu encalce. Pretende ela forçar a porta do clube dos “mais iguais”? De certa forma, ela já faz parte desse conselho de poderosos, mesmo ainda man-tida formalmente à margem do G-8. Duvidoso que a China, mesmo militarmente mais forte, se lance em uma corrida para a “conquista” de poder político e de hegemonia estratégica sobre seus competidores atuais, como o fizeram dirigentes imperiais de um passado não muito distante. A razão não está tanto em que a na-tureza humana mudou sensivelmente nas últimas décadas (ou séculos), mas em que a nova ordem econômica, caracterizada pela interdependência efetiva entre

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as nações, impõe limites às vocações imperiais. É o que caberia examinar a partir de agora.

2) A ordem econômica mundial: velhos problemas, novas soluções?

Em que sentido, a ordem econômica é caracterizada por velhos problemas e novas soluções? Os velhos problemas são, indiscutivelmente: os da miséria e da prosperi-dade; o da manutenção do crescimento econômico com estabilidade (isto é, sem infla-ção e com o máximo de pleno emprego possível); o da repartição social das riquezas assim criadas; o do acesso às matérias-primas e aos recursos essenciais aos processos produtivos, entre os quais as fontes de energia e de água são estratégicos; os da aber-tura de mercados aos bens e serviços em condições de livre concorrência; enfim, o da manutenção da dinâmica econômica com transparência nas regras do jogo, de maneira a oferecer oportunidades mais ou menos iguais para todos os agentes econômicos.

Sobre esses “velhos” problemas, que já ocupavam os “pais” da economia política antes mesmo da formulação dessa disciplina, nos quadros do Iluminismo escocês, alguns novos problemas vieram se agregar às preocupações dos estadistas contempo-râneos: o da transformação estrutural dos sistemas produtivos (inovação tecnológica) com garantia de preservação da riqueza proprietária; o acesso a fontes de informação em condições igualitárias; os efeitos ambientais nefastos das atividades produtivas humanas; a escassez crescente de fontes de energia não renovável e da própria água; a pressão humana sobre os recursos da biodiversidade e os desequilíbrios constante-mente criados pela dinâmica econômica em condições de assimetria de informação (fluxos de capitais não controlados, crises de oferta ou de demanda de determinados insumos), para não se referir ao crescimento do crime transnacional estimulado pela própria globalização capitalista.

E quais seriam as “novas” soluções que são mencionadas no título da seção? São de duas ordens: uma geográfica, a outra institucional. A primeira é mais geopolítica, do que propriamente geográfica, mas vale aqui o contraste com a história. Não é ver-dade, obviamente, que a história tenha terminado; tal compreensão restrita do proces-so histórico jamais passou pela mente do formulador original desta “tese”, Fukuyama. O que ele considerou, como já se mencionou, seria a inexistência prática de alterna-tivas viáveis aos sistemas democráticos de mercado, o que nos parece ser uma “tese” basicamente correta, nas condições atuais da economia e da política internacional. Ocorre que, se o processo histórico continua a sua dinâmica de poderes ascensionais e outros em declínio, com conflitos residuais ou remanescentes entre muitos deles, a geografia, por seu lado, parece ter alcançado seus limites propriamente “geográficos”. Vejamos isto com maior grau de detalhe.

No início do século XX, as cartas da África e de certas partes da Ásia (para nada dizer do imenso espaço amazônico) mostravam imensos espaços em branco, as cha-madas terras incógnitas (rios, seus afluentes e mesmo cadeias inteiras de montanhas). Tudo isso foi sendo incorporado aos domínios imperiais e objeto de cartografias mais

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ou menos confiáveis, com a ajuda de aventureiros, exploradores, missionários e sol-dados. Mapeada a superfície da Terra, o mundo permaneceu, entretanto, dividido e fragmentado, tanto pela existência de projetos “imperiais” rivais – como podem clas-sificados o mundo capitalista e seu contestador socialista – como pela própria irrele-vância de certas áreas para fins de “exploração” capitalista, ou para sua “conquista” pelo sistema socialista. Aliás, o próprio socialismo era “irrelevante” – salvo em pou-cas matérias primas – em termos de mercados de bens, serviços, capitais, tecnologia, enfim, em produtos inovadores e desejados pelos consumidores. Como diria Marx, as relações socialistas de produção tinham se tornado anacrônicas e prejudiciais ao desenvolvimento das forças produtivas; tinham de ser abolidas, pois representavam grilhões para o desenvolvimento econômico. Foram abolidas e, com isso, a globali-zação retomou a marcha triunfal que tinha começado com Marco Pólo e Colombo, vários séculos antes.

O que assistimos, portanto, na década final do século XX, foi um verdadeiro “fim da geografia”, com o desaparecimento do socialismo – para todos os efeitos práticos, a China não mais pode ser contada com um representante da espécie – e a unifica-ção do mundo conhecido em torno de regimes mais ou menos abertos ao sistema de mercados capitalistas: com exceção daqueles poucos países auto-excluídos das trocas mundiais – como podem ser Cuba, Coréia do Norte e alguns poucos territórios africanos –, já não mais existem “terras incógnitas” para fins dos mercados capitalis-tas. Trata-se, portanto, de uma “solução geográfica” (ou geopolítica) ao problema do acesso desimpedido às fontes de matérias primas e recursos naturais: com exceção de alguns poucos setores ainda oligopolizados ou cartelizados – como é o da produção de petróleo, por exemplo – a maior parte das commodities (inclusive algumas industriais, como são os circuitos integrados) tem os seus preços fixados nos mercados de futuros, pelo livre jogo das leis da oferta e da procura. Um problema, portanto, que conduziu alguns impérios do passado às guerras de conquista e a conflitos por garantia de aces-so a insumos e mercados, já está praticamente resolvido com a unificação capitalista do mundo (ainda incompleta, por certo, mas cada vez mais “global”).

A nova solução “institucional” aos velhos problemas da ordem econômica está, justamente, na existência de organismos intergovernamentais que regulam a coope-ração entre Estados de uma forma como nunca foi possível em épocas anteriores à unificação capitalista do mundo. Não pretendo aprofundar-me na exposição sobre a emergência e o desenvolvimento do multilateralismo econômico, já tratado em al-guns dos meus livros (ver Paulo Roberto de Almeida, O Brasil e o multilateralismo econômico). Bastaria dizer que esse movimento também foi irregular e submetido às injunções políticas do cenário mundial nos últimos 150 anos. Surgidas desde meados do século XIX, para responder aos desafios da ampliação dos mercados (patentes ou padronização de produtos) e da conexão transfronteiriça de meios de transportes e de comunicações (ferrovias e fios telegráficos), as “uniões” ou “associações internacio-nais” logo se desenvolveram a partir dos núcleos originais europeus, para alcançar virtualmente todo o “mundo civilizado” (e regiões então inóspitas também). A coope-

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ração intergovernamental – algumas vezes puramente privada – implicava, de certo modo, a uniformização dos meios de pagamento (como o franco-ouro, por exemplo) ou o estabelecimento de um padrão comum para as compensações internacionais (daí a aceitação rápida do padrão-ouro no final do século XIX).

Após uma breve interrupção por ocasião da Primeira Guerra Mundial e sua reto-mada pela Liga das Nações, no entre-guerras, o movimento “cooperativo” mundial ganhou impulso com a ONU e a criação de suas muitas agências especializadas no pós-Segunda Guerra. Especial preeminência para o tema que agora nos ocupa tive-ram as chamadas instituições de Bretton Woods – o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial –, que deveriam ter sido complementadas, logo em seguida, por uma entidade especialmente dedicada ao intercâmbio comercial, a Organização Internacional do Comércio, efetivamente criada na conferência de Havana de 1947-48, mas que não logrou entrar em vigor por falta de ratificações dos Estados membros. O GATT, acordo geral sobre tarifas, cumprindo algumas das funções concebidas para a OIC, permaneceu provisoriamente em vigor durante 50 anos, até finalmente ser in-corporado à OMC, criada ao final da Rodada Uruguai (1986-1993) do GATT.

Este é, portanto, o quadro jurídico através do qual se desenvolvem as relações econômicas internacionais, objeto da digressão que segue abaixo. É importante re-gistrar, desde logo, que nem todos os países membros da ONU foram membros ou afiliados às suas muitas agências reguladoras, sobretudo as de caráter econômico e financeiro, uma vez que a maior parte dos países socialistas – estes, durante algumas décadas, estavam representados por dezenas de países, cobrindo boa parte da super-fície geográfica do globo e quase 2/3 da população mundial – se manteve a margem dos mercados capitalistas de bens, serviços e capitais, que por sua vez representavam o grosso dos intercâmbios mundiais. Com o fim do socialismo, e dos exageros nacio-nalistas em outros países protecionistas (geralmente em desenvolvimento), o quadro de membros de órgãos como o FMI tende por vezes a superar o próprio número de países membros da ONU.

2.1. Regulação cooperativa das relações econômicas internacionaisO “mundo” de Bretton Woods – isto é, o do gerenciamento das taxas de câmbio

pelo FMI e da adoção de um padrão de câmbio ouro-dólar, fixado como obrigação do governo dos EUA em 1944 – funcionou, se tanto, durante cerca de dez anos, em sua forma clássica, isto é, depois da conversibilidade das moedas européias, no final dos anos 1950 até o final dos anos 1960, quando a inflação americana, o déficit comercial dos EUA e o excesso de dólares circulando nos mercados internacionais foram responsáveis, conjuntamente, pela decisão do governo daquele país de sus-pender unilateralmente esse regime. Entre 1971 – quando o governo Nixon anuncia que não mais converteria dólares em ouro, como estipulado na convenção original – e 1973, quando o FMI finalmente emenda seu instrumento constitutivo para dele não mais constar a supervisão sobre a taxa de câmbio das moedas nacionais, o mundo de Bretton Woods viveu o que poderia ser chamado de end of illusions, isto

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é, a crença – economicamente irracional – de que as economias poderiam conviver indefinidamente com taxas cambiais mais ou menos estáveis e a promessa de um padrão fixo para o ouro.

A conseqüência, simplesmente, foi a flutuação generalizada das moedas, a queda imediata do valor do dólar nos mercados internacionais – e, portanto, do valor de to-das as commodities cotadas nessa moeda, entre elas o petróleo – e o recrudescimento da inflação (combinada ao crescimento do desemprego, que gerou a keynesianamente impossível stagflation). O aumento brutal dos preços do petróleo em 1973 e o choque de oferta que seguiu imediatamente após, foram os impactos mais visíveis do “fim” de Bretton Woods. A repercussão mais importante, porém, foi o estabelecimento de um novo regime cambial, no quadro de um “não-sistema” financeiro internacional, cujos resultados, no médio e longo prazo, seriam a suspensão dos controles sobre os movimentos de capitais e o aumento da volatilidade financeira nos mercados interna-cionais. Datam dessa época as propostas de uma taxa sobre os movimentos de capitais puramente especulativos, algo inaplicável, na prática, pois suporia uma coordenação de políticas macroeconômicas e uma convergência de interesses fundamentais das economias nacionais que nem mesmo o G-7, depois de trinta anos de experiências, é capaz atualmente de assegurar.

Essa “regulação cooperativa” das relações econômicas internacionais é, portan-to, sempre tentativa e sujeita às “chuvas e trovoadas” do sistema financeiro interna-cional. No plano do comércio internacional, a forte expansão dos intercâmbios nos primeiros trinta anos do pós-guerra não impediu o recrudescimento de sentimentos protecionistas nos países desenvolvidos, à medida que mais e mais países em desen-volvimento ascendiam na escala do desenvolvimento industrial, passando a oferecer produtos manufaturados a preços competitivos nos mercados desenvolvidos. Esse neoprotecionismo gerou, como era previsível, novos desafios ao sistema multilate-ral de comércio, até então regido exclusivamente pelo GATT e por arranjos ad hoc que tendiam a segmentar e a proteger determinados mercados segundo critérios claramente mercantilistas (têxteis e confecções, produtos siderúrgicos, mercados agrícolas em geral).

Depois de várias rodadas de negociações comerciais preferencialmente voltadas para tarifas e acesso a mercados, o regime multilateral de comércio embarcou no mais ambicioso ciclo de negociações, a Rodada Uruguai (1986-1993), da qual resultou a então criada OMC, no quadro de um sistema mais previsível e também mais amplo do que o GATT, inclusive por incluir arranjos específicos para serviços (GATS), para propriedade intelectual (TRIPs), para investimentos (TRIMs) e um acordo sobre agri-cultura, basicamente insatisfatório do ponto de vista dos países em desenvolvimento e dos países exportadores agrícolas não subvencionistas (como Brasil, Argentina e vários outros). Por outro lado, a dificuldade de se lograr acordos multilaterais abran-gentes, com o elevado número de participantes do sistema de comércio – que passou de duas dezenas, em 1947, a mais de 150, atualmente, sendo o mais recente a Ucrânia, depois de 14 anos de negociações –, levou vários membros a traçar estratégias “mini-

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lateralistas”, que contornam as regras multilaterais existentes e redundam no elevado número de exceções ao princípio básico da “nação-mais-favorecida”, sob a forma dos acordos regionais. Os perdedores são todos os excluídos desses instrumentos de libe-ralização do comércio em escala restrita, em geral países em desenvolvimento com volume reduzido de comércio. Da mesma forma, não há dúvida sobre a questão de saber quem perde mais, com os impasses da atual rodada Doha da OMC.

Do ponto de vista do Brasil, pode-se dizer que ele é um “usuário” modesto das or-ganizações econômicas internacionais, sobre as quais seu poder normativo é pequeno, muito embora se tenha beneficiado, de modo satisfatório, com as regras relativamente abertas que presidiram – de certa forma ainda presidem – às relações econômicas in-ternacionais no último meio século. A participação do Brasil nas trocas internacionais sempre foi modesta, tendo ele se beneficiado como free-rider de alguns dos meca-nismos existentes, tanto no plano do comércio – acesso aos mercados desenvolvi-dos, sem necessariamente conceder abertura equivalente – como no financeiro, tendo absorvido a poupança externa, mas mantido estrito controle de capitais, para fins de equilíbrio do balanço de pagamentos. A abertura econômica e a liberalização comer-cial conduzidas nos anos 1990 – parcialmente revertidas desde então – fizeram mais pela modernização de seu sistema produtivo do que décadas anteriores de projetos desenvolvimentistas; mas o país ainda hesita entre as estratégias regionais e multila-terais de inserção econômica internacional, pois cada uma tem custos diferenciados e oportunidades específicas, em função das políticas que as acompanham. O Brasil é ofensivo em agricultura e defensivo em bens e serviços, como corresponde às suas vantagens comparativas aparentes; mas hesita ainda quanto à abertura de seu sistema produtivo nacional, pois mantém a idéia de que, na era da globalização, deveria conti-nuar a lutar por “políticas de desenvolvimento nacional”, segundo os cânones de um passado julgado positivo no plano industrial.

No período recente, o Brasil aumentou seu grau de envolvimento na regulação cooperativa das relações econômicas internacionais, assumindo um maior poder sobre os mecanismos decisórios, mesmo se a sua participação nos fluxos de comércio conti-nua modesta (com maior interface de absorção no que se refere aos investimentos diretos estrangeiros, em função da dimensão do seu mercado interno e do esquema de integração no Mercosul). Essa responsabilidade acrescida – através do G-20, nas ne-gociações comerciais da OMC, por exemplo – ou a pretensão de vir a ser o centro fo-cal de um espaço econômico integrado na América do Sul, significam novos desafios para sua elite diplomática, na medida em que a noção restrita de interesse nacional – isto é, projetos puramente nacionais de desenvolvimento – tem de ser compatibilizada com essas novas missões assumidas no plano regional ou mundial (o que significa maior dispêndio externo ou maior abertura de sua economia).

2.2. Assimetrias de desenvolvimentoA ordem econômica internacional é certamente caracterizada pelas chamadas as-

simetrias de desenvolvimento entre os países que a compõem, processo resultante

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da “grande divergência” ocorrida nos últimos dois ou três séculos entre economias de alta e de baixa produtividade. Atualmente, quando as teorias da “exploração” ou as teses sobre o “intercâmbio desigual” já estão completamente desacreditadas – por sua inconsistência teórica ou total contradição com a própria realidade histórica –, o que se requer é que os países em desenvolvimento se insiram nessa nova ordem econômica internacional do capitalismo globalizado sem qualquer camisa de força ideológica, como as do passado, que os faziam tratar as multinacionais como ameaça à soberania estatal, impondo-lhes, em conseqüência, controles e restrições que não mais se justificam nestes tempos de “fim da história” e de globalização como oportu-nidade, não como risco.

Não obstante os notáveis progressos registrados nas últimas duas décadas, em termos de avanços na interdependência econômica mundial, não seria supérfluo re-cordar que continua inexistente qualquer regulação multilateral dos investimentos estrangeiros, o que constitui, sem dúvida, uma das mais notórias falhas do sistema econômico multilateral. Os países recorrem aos famosos acordos bilaterais de pro-teção e de promoção dos investimentos estrangeiros (APPIs) ou dispõem, entre eles, de regras de adesão voluntária que liberalizam amplamente esses fluxos, de acordo com a cláusula do tratamento nacional (como nos códigos existentes na OCDE). O Brasil, que sempre disse sim aos capitais estrangeiros – mas não aos capitalistas, propriamente –, assinou mais de uma dúzia desses instrumentos bilaterais, mas não colocou nenhum em vigor, por temor de que eles diminuíssem sua capacidade de regular políticas públicas num sentido “desenvolvimentista”, sempre privilegiado. Assim, a despeito das novas configurações da economia mundial, com o surgimento de emergentes dinâmicos – como os BRICs, entre os quais o próprio Brasil é co-locado – a diplomacia econômica do país continua a ostentar pouca disposição em prol de maior liberalização no âmbito da OMC, sobretudo naqueles setores nos quais supõe ser sua baixa capacidade competidora (serviços, ramos industriais de ponta, investimentos e propriedade intelectual).

A razão das hesitações do Brasil (e de outros países em desenvolvimento) em face de maiores propostas de abertura é o temor que esta possa resultar no aprofundamento dessas assimetrias; sobretudo porque a agenda da “graduação”, tal como colocada pelos países ricos, vem condicionada à contrapartida de que os emergentes devem pagar um preço pela redução do protecionismo agrícola e a maior abertura dos mer-cados avançados, com a redução de suas próprias barreiras ao comércio de produtos industriais, aos serviços e aos investimentos. Para muitos países em desenvolvimento, as assimetrias são típicas distorções derivadas dos mercados livres, que só podem ser corrigidas por “adequadas políticas públicas”, de tipo setorial (geralmente industrial, mas também apoiadas em uma política comercial de tipo protecionista). O Brasil teve relativo sucesso em suas políticas “substitutivas”, que mobilizaram, justamente, esse tipo de instrumento; mas a partir de certa etapa do seu processo de desenvolvimento, as mesmas políticas que tinham sido responsáveis pela ascensão de sua capacitação industrial, levaram, em combinação com choques externos e com graves descontroles

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no plano fiscal, à estagnação do seu crescimento econômico: o protecionismo exa-cerbado gerou distorções no perfil distributivo da população e várias debilidades na competitividade externa da indústria brasileira.

Não deveria haver, a rigor, nenhuma razão para insistir em políticas de claros efei-tos distorcivos no plano industrial e em seu impacto social; mas persiste uma adesão política a velhas práticas do passado, como, no âmbito multilateral, a defesa acirrada da manutenção, para o país, do tratamento preferencial para países em desenvolvi-mento, de nítida feição oportunista. As chamadas assimetrias estruturais poderiam ser vistas, nessa perspectiva, mais como uma oportunidade para uma maior inserção desses países no sistema internacional, do que como um impedimento a essa inte-gração, na medida em que elas são, de certo modo, “vantagens comparativas” que podem ser mobilizadas em seu favor num mundo caracterizado pela alta mobilidade de fatores de produção, em todos os níveis e direções. Os fenômenos de “out-sour-cing” e de “off-shoring” representam dois aspectos, justamente, desses processos de intensa deslocalização da produção que estão beneficiando intensamente países como China e Índia, que decidiram se inserir de modo mais ativo nas correntes dinâmicas da globalização capitalista.

2.3. Cooperação multilateral e Objetivos do MilênioA ordem internacional compreende, também, projetos e programas de cooperação

econômica multilateral que todos eles visam reduzir os imensos gaps de desenvolvi-mento que ainda caracterizam o mundo. Existem dúvidas fundadas, explicitadas ainda nos anos 1950 por economistas como Peter Bauer, sobre se a ajuda externa promove, de fato, o desenvolvimento; ou se ela, ao contrário, diminui as chances de um país pobre alcançar seu próprio estilo de crescimento e de inserção econômica internacio-nal, com base em estímulos de mercado, geralmente baseados no comércio, mais do que com base em (ou em substituição a) programas de ajuda externa. O Brasil, por exemplo, tornou-se uma potência industrial graças às iniciativas de seus empreende-dores nativos, aos aportes voluntários de investimentos estrangeiros e ao papel indutor do Estado; os dois primeiros basicamente guiados pelos retornos de mercado, tendo a cooperação bilateral com países avançados se dado essencialmente no capítulo da formação de recursos humanos.

Não se quer, com isto, dizer que a crença na cooperação internacional seja uma ilusão completa – uma vez que a cooperação técnica pode representar uma contri-buição extremamente benéfica, justamente, para os países menos capacitados; mas o fato é que o processo de desenvolvimento precisa ter bases genuinamente endógenas, do contrário ele não seria capaz de gerar efeitos indutores extensivos para o resto da economia e para a sociedade como um todo. Uma demonstração prática do caráter meramente subsidiário – e alguns críticos diriam até nefasto – da ajuda oficial ao de-senvolvimento seria o fato de que, após várias “décadas do desenvolvimento” oficial-mente patrocinadas pela ONU, ademais dos imensos aportes financeiros transferidos para países africanos ao longo dessas décadas, muito poucos países em desenvolvi-

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mento conseguiram efetivamente alçar-se de sua antiga condição “subdesenvolvida” para manter um processo sustentado de crescimento econômico e de transformação estrutural, com distribuição social desses benefícios do crescimento. Aqueles que o fizeram – muito poucos, na verdade –, em absoluto deveram seu desenvolvimento à cooperação externa.

Qualquer que seja o julgamento intelectual – e prático – que se possa ter sobre os modestos resultados (se algum) da ajuda ao desenvolvimento, o fato é que a comunidade internacional firmou, em 2000, um compromisso formal com as “Metas do Milênio”, um conjunto de oito grupos de objetivos a serem alcançados até 2015, no sentido da redução da pobreza, das desigualdades sociais e de gênero, de acesso a meios básicos de vida e de saúde e educação. Não é seguro que as metas do milênio sejam alcançadas pela maioria dos países a que elas se destinam. O problema maior não está exatamente na falta de fi-nanciamento para se atingir essas metas, embora este possa ser também um problema no provimento de medicamentos básicos e serviços essenciais em países que carecem das mais elementares estruturas de Estado. A questão é justamente esta: vários dos países-alvo das metas entraram numa linha de desestruturação dos serviços públicos essenciais que os qualificam para figurar na categoria dos “Estados falidos”, num momento em que vários dos países doadores podem estar passando por uma situação de retração que já foi identificada como donors fatigue. Em outros termos, a questão da crise da ajuda oficial pode não ser mais uma simples questão de dinheiro – embora isto também possa estar em causa – ou de recursos materiais vindos de fora; mas de uma avaliação realista quanto às carências de governança nos próprios países objeto da ajuda. Muito deles, em especial os africanos, estão praticamente vivendo de assistência pública internacional, quando não ocorre desses recursos serem em parte desviados por elites pouco comprometidas com a causa do desenvolvimento nacional.

A diplomacia brasileira recente engajou-se, no mais alto nível, aliás – isto é, com o envolvimento do próprio presidente –, num ambicioso programa mundial de redução da fome e da pobreza extrema, com modestos resultados na prática. Na verdade, não existe propriamente carência de programas oficiais de combate à fome, assim como os meios de financiamento não são, exatamente, o obstáculo principal a tal programa. O problema está, justamente, em fazer more of the same, ou seja, tentar tornar factível a mobilização multilateral em favor dos países mais pobres segundo linhas mais do que tradicionais de ação, que supõem, de um lado, a coleta de fundos e, de outro, seu direcionamento para os “necessitados”. Diversos economistas – entre eles William Easterly, que trabalhou mui-tos anos para o Banco Mundial, na África – já reduziram as expectativas em relação a esse tipo de ação que tende a recriar as mesmas estruturas de dependência desses países da ajuda internacional. O único caminho correto, como já tinha identificado Peter Bauer bastante tempo antes, seria a mudança estrutural dessas economias e sua integração plena nos circuitos do comércio internacional, para o que os países desenvolvidos, em primeiro lugar as ex-potências coloniais européias, deveriam imperativamente abrir seus mercados e eliminar os aspectos mais nefastos da política agrícola comum: os subsídios à produção interna e as subvenções às exportações.

A Ordem Política e Econômica Mundial no Início do Século XXI: Questões da Agenda Internacional e suas Implicações para o Brasil

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3) A ordem política e econômica mundial e o Brasil

Está na hora de repassar os grandes temas da agenda internacional em relação às suas implicações para o Brasil, com destaque para os temas econômicos, que compõem o essencial da agenda do nosso relacionamento externo. O Brasil não tem – parece óbvio, mas cabe repetir – grandes demandas por segurança que de-rivem de ameaças externas, ainda que os próprios militares possam “descobrir” toda uma série de ameaças potenciais que poderiam fragilizar nosso país, caso surjam “imprevistos” na Amazônia – sempre ameaçada de “internacionalização”, não se sabe bem por parte de quem, mas se supõe que seja supostamente do grande império do norte –, nas plataformas de petróleo off shore, aparentemente ameaça-das por terroristas aquáticos, por parte de guerrilheiros vizinhos convertidos em narcotraficantes; enfim, não faltariam perigos rondando o Brasil, para os quais soluções “tecnologicamente sofisticadas” sempre serão necessárias. À falta de ameaças credíveis, percebidas ou não, resta o papel acessório que o país poderia desempenhar nos esquemas de segurança internacional sob a égide da ONU, até aqui de peace keeping, mas eventualmente também de peace making (para o quê uma evolução conceitual, e constitucional, seria desejável).

As grandes questões da interface externa do Brasil são, antes de tudo, questões de economia; e antes de economia interna do que propriamente internacional, como um simples argumento pode demonstrar. O ambiente econômico interna-cional, mesmo sem a continuidade da atual fase de bonança – com o crescimento sustentado de vários países emergentes, que tendem senão a substituir, pelo menos compensar várias das antigas locomotivas do crescimento mundial, como os EUA, o Japão ou a Alemanha – ofereceu e continua a oferecer oportunidades excelentes a um país capitalista como o Brasil (que nunca foi socialista como a China, tendo, portanto, instituições de mercado plenamente funcionais, e nem tão nacionalista e estatizante quanto a Índia). O Brasil é um país notoriamente carente de inves-timentos, algo que a economia internacional tem de sobra para economias que se abrem a parceiros estrangeiros. Tampouco existe falta de liquidez nos mercados financeiros internacionais, onde a captação e os preços se dão em função dos ris-cos percebidos pelos provedores, riscos oferecidos por determinadas economias, algo, portanto, que depende basicamente delas mesmas. Enfim, todas as variáveis que se possam conceber no plano econômico internacional parecem favoráveis ao Brasil, cabendo ao próprio país fazer o seu “dever de casa” em termos de prepara-ção para o crescimento e o desenvolvimento sustentado.

Em uma expressão: todas as questões de economia política internacional do Brasil são, antes de tudo, problemas de política econômica nacional e é com essa compreensão que deve ser avaliada a discussão que vem oferecida nesta seção final deste ensaio. Não obstante, algumas outras questões da agenda internacional que interessam ao Brasil de perto serão examinadas, independentemente de seu caráter ou interface internacional.

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3.1. Crescimento econômicoO problema básico do Brasil, como para a maioria dos paises emergentes, é o do

crescimento econômico, capaz de sustentar um processo de transformação produtiva, com vistas a ganhos de produtividade que, por sua vez, contribuirão para a competiti-vidade dos nossos produtos nos mercados internacionais, produzindo, assim, riquezas e empregos internos. O mundo está ajudando de maneira excepcional nessa tarefa: pela primeira vez em 30 anos, é registrado o mais forte crescimento na economia mundial, com taxas nos países emergentes jamais igualadas por quaisquer outras eco-nomias, salvo em curtos períodos sem continuidade ou consistência. Infelizmente, o Brasil e a América Latina crescem muito pouco, abaixo da média mundial e três vezes menos que os emergentes mais dinâmicos. Esta modéstia no ritmo de crescimento se dá a despeito dos mais altos preços nas commodities exportadas pela região – que é, como se sabe, abundante em recursos naturais – e da grande demanda externa por esses produtos (o que confirma, mais uma vez, que pode haver alguma “maldição” na dependência de recursos naturais).

O baixo crescimento do Brasil e da América Latina também se dá a despeito da maior disponibilidade de capitais de risco e da menor vulnerabilidade financeira ex-terna (pelo menos aparentemente): estaria a região, de fato, imune a novas crises? Por um lado, as reservas internacionais desses países nunca foram tão altas – para algo serviram as crises financeiras dos anos 1990 – e, por outro, as taxas de juros e spreads cobrados nos empréstimos e lançamentos de bônus internacionais desses países também se situam em patamares historicamente baixos, não necessariamente devido à nova onda de “confiança irracional” dos mercados financeiros nesses países, mas porque há, de fato, abundância de liquidez nesses mercados.

O que, então, explicaria as baixas taxas de crescimento do Brasil e de grande parte dos vizinhos? (Alguns dos países que estão crescendo, a exemplo da Argentina e da Venezuela, o fazem em razão da recuperação e da saída de crises incorridas no período recente, ou devido à demanda elevada puxada por gastos estatais, no caso das receitas de petróleo.) Basicamente, em virtude do baixo nível dos investimentos externos, resultado de uma “despoupança estatal” visível no caso brasileiro – com uma carga fiscal igual à de países desenvolvidos, para uma renda per capita seis vezes menor – e de desequilíbrios fiscais que lançam dúvidas aos olhos dos investidores privados, sobre as perspectivas futuras de crescimento, tendo em vista as trajetórias da dívida interna e dos juros reais. Ou seja, a despeito de que a estabilidade macroeconômica, duramente conquistada no passado recente, permitiu criar essa sensação de good fun-damentals, as percepções de risco ainda estão presentes, o que limita o volume total de investimentos na economia.

Cabe descartar aqui os fatores tradicionalmente invocados para justificar as baixas taxas de crescimento na economia brasileira, que seriam a ameaça de estrangulamento externo em função dos desequilíbrios cambiais e da famosa volatilidade dos capitais especulativos. Capitais financeiros são, por definição voláteis, e não há nada que se possa fazer quanto a isso, seja uma grande economia desenvolvida, seja uma pequena

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economia em desenvolvimento. Esses capitais se movimentam continuamente, de que são prova os movimentos cambiais contínuos entre as principais moedas de reserva internacionais. Por outro lado, o câmbio nunca esteve tão valorizado no Brasil – uma taxa muito superior àquela registrada nos tempos da banda cambial administrada (1995-1998), que a oposição atualmente no poder caracterizava como sendo “popu-lismo cambial” – e, no entanto, não cessam de crescer, ano a ano, as exportações brasileiras. Quanto à volatilidade, uma coisa precisa ser clarificada: ela é, na ver-dade, inerente à natureza dos capitais “especulativos”, mas só produz efeitos nefastos quando a política econômica é, por sua vez, volátil, o que soe acontecer de maneira muito freqüente nos países latino-americanos, sobretudo em razão de desequilíbrios orçamentários, que se traduzem em crises fiscais.

Caracterizada, portanto, a natureza inteiramente interna dos problemas brasileiros de crescimento e de “volatilidade”, caberia examinar quais seriam, dentre os fatores internos e externos de crescimento dos BRICs – entre os quais o Brasil está incluído, malgré lui, isto é, a despeito de ser o atrasado do pelotão –, as causas do desempenho modesto de sua economia. Dentre os fatores endógenos de crescimento sempre podem ser encontrados: o adequado provimento de insumos básicos, dos quais o Brasil pare-ce adequadamente bem provido; energia barata e abundante; mão-de-obra suficiente, barata e adequada, isto é, adestrada; infra-estrutura de transportes e comunicações à altura das necessidades dos agentes privados; mercado de capitais funcional, líquido e a custos razoáveis; judiciário expedito ou instrumentos ágeis de solução de disputas (o que pode significar arbitragem privada), o que representa baixos custos de transação; regras do jogo estáveis, transparentes e com o mínimo de intrusão possível por parte dos “rentistas” sempre existentes no setor público, em seus vários níveis. Com relação a esses fatores, sabemos que o Brasil padece terrivelmente de deficiências notórias em vários deles, a começar pela tributação excessiva e pela intervenção exacerbada do Estado na vida dos agentes econômicos privados (e não só pelo lado fiscal, mas burocrático também).

Essas deficiências pelo lado regulatório, tributário, burocrático, pelas carências de infra-estrutura e de mão-de-obra competente e competitiva – seja pelo lado dos salários, seja pelo lado da produtividade – e por vários outros fatores, que estão, na maior parte, ligados às responsabilidades governamentais, explicam, provavel-mente, a longa e lenta marcha do Brasil para o investment-grade na classificação de risco das agências mundiais de rating. Essa classificação será sem dúvida atingida, em prazo intermediário, inclusive porque o Brasil é uma grande economia em escala mundial e vem consolidando as bases de sua estabilidade macroeconômica (com algum dever de casa a ser feito no lado fiscal). Não obstante esse lado positivo cabe registrar que, no contexto das novas configurações da economia mundial, com a ascensão fulgurante da China em quase todos os grandes mercados de importância – produtivo e manufatureiro, por certo; como demandante de commodities e outras matérias-primas, sobretudo energéticas; financeiro e tecnológico de modo crescente; sem esquecer o lado militar e político –, seguida de perto pela Índia e alguns outros

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parceiros (tanto ricos, como em desenvolvimento), o Brasil aparece como um small player no cenário econômico e estratégico internacional, em vista de sua modesta capacidade de influenciar decisivamente qualquer processo ou evento dotado de im-pacto mundial. Isso não diminui suas chances de vir a integrar um possível G-13, caso este seja formado em algum momento nos próximos anos. Mas a pergunta que se coloca seria: deseja o Brasil realmente vir a integrar tal clube restrito, em vista das mudanças inevitáveis que isso implicaria para sua atual condição de país em desenvolvimento?

Trata-se de uma questão relevante, que não será respondida nos quadros deste en-saio, mas que permanece como um dos elementos-chave na conformação presente e futura da diplomacia econômica brasileira e de sua estratégia de inserção internacional.

3.2. InvestimentosOs investimentos estrangeiros diretos sempre foram parte integrante do cenário

econômico brasileiro, assumindo um papel decisivo em seu processo de industria-lização. De resto, trata-se de fator preponderante em qualquer economia aberta que pretenda obter ganhos tecnológicos em prazos relativamente curtos, ocorrendo uma contrapartida na balança de serviços pelo fato das remessas das “rendas do capital”, a título de dividendos, lucros, royalties, pagamentos técnicos de natureza diversa e outras transferências. Seus efeitos, mesmo com algum peso no balanço de pagamen-tos, são eminentemente positivos, em face da incorporação de know-how e dos gan-hos de produtividade que ele permite. O Brasil sempre foi um beneficiário, bastando consultar a lista da Forbes das 500 maiores empresas mundiais, para constatar que mais de quatro quintos desse número já se encontram instaladom no Brasil, nos dife-rentes ramos da economia, direta ou indiretamente. Podem causar estranheza, assim, as reações que o capital estrangeiro desperta ainda no país.

Não existe, como se sabe, uma regulação multilateral atinente aos investimentos estrangeiros diretos, assim como não existe um único instrumento mundial discipli-nando as relações entre investidores privados e Estados receptores desses investimen-tos diretos. A Carta de Havana (1948), não ratificada, previa algumas poucas regras a esse respeito, que nunca foram colocadas em vigor, oportunamente implementadas de modo bilateral e parcialmente nos acordos de promoção e proteção de investimen-tos negociados entre os exportadores e os importadores de capitais (os países ricos possuindo, quanto a eles, regras inscritas no código de liberalização de investimentos da OCDE, que segue, tanto quanto possível, os princípios de NMF e de tratamento nacional). As lacunas legais e as carências regulatórias são, assim, supridas de ma-neira ad hoc por instrumentos diversos, geralmente seguindo um modelo padrão re-lativamente uniforme, que sustentou, desde os anos 1950, a proliferação de acordos bilaterais conhecidos como APPIs. Não obstante ter assinado mais de uma dúzia, sem ter ratificado nenhum – em virtude de forte oposição nacionalista interna –, o Brasil possui uma legislação abrangente, que confere relativa estabilidade e abertura ao ca-pital estrangeiro, estando ela em vigor desde meados dos anos 1960. Os registros e as

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autorizações de movimentação são conferidos de modo praticamente automático pelo Banco Central, e não parecem existir reclamações no plano puramente instrumental.

Subsistem, contudo, algumas restrições ao investimento estrangeiro na economia brasileira, assim como permanece certa insegurança jurídica quanto a eventuais dis-putas que possam ocorrer entre o investidor estrangeiro e parceiros nacionais ou entre aquele e o Estado brasileiro. Na segunda metade dos anos 1990, o Brasil participou do exercício do MAI – Multilateral Agreement on Investments – na OCDE, frustrado em sua conclusão em virtude de desentendimentos entre os próprios países partici-pantes – notadamente os EUA e a França – e não em função das manifestações dos antiglobalizadores, como equivocadamente se considera em certos meios. Permanece, assim, uma situação de impasse quanto ao tema investimentos na agenda multilateral, uma vez que são poucos e insuficientes os dispositivos existentes no âmbito da OMC (acordo de TRIMs). O Brasil participa ativamente (ma non troppo) das discussões, mas não pretende avançar muito no terreno negociador, uma vez que tem restrições aparentemente “filosóficas” a essa regulação, já que pretende preservar os famosos policy spaces internamente.

3.3. Acesso a mercadosAcesso a mercados é o grande tema da diplomacia econômica brasileira, que

considera que as promessas da Rodada Uruguai permaneceram sem implementação prática, em especial no setor agrícola. Tendo concedido sua aprovação a novas regras em novos campos (serviços, propriedade intelectual, investimentos), e sentindo-se frustrado pela não-reciprocidade efetiva, o Brasil apreciaria dispor de maior abertura nos mercados desenvolvidos para seus produtos competitivos. Ele mantém, notoria-mente, uma atitude mais ofensiva do que defensiva em aceso a mercados, em especial na agricultura, tendo liderado o movimento que resultou na formação do chamado G-20 na reunião de Cancún da Rodada Doha (2003). Depois disso, e não apenas por sua insistência numa agenda do desenvolvimento, ocorreram diversos impasses reais e de procedimento em reuniões nas quais o Brasil sempre foi um protagonista de primeiro plano, junto com a Índia, os EUA e UE: em Hong-Kong, em Potsdam e em Genebra, não havendo, até o início de 2008, certeza quanto às possibilidades de conclusão da Rodada nos próximos meses.

As implicações para o Brasil são de ordem não apenas comercial, uma vez que a diplomacia econômica do país considera que, em função do grau de abertura que ele será obrigado a conceder nas áreas de forte demanda ofensiva dos desenvolvidos, dependerá o sucesso, ou, até, a manutenção de seu projeto de desenvolvimento indus-trial, considerado em bases essencialmente nacionais. Não se conhecem avaliações independentes quanto aos custos da liberalização, embora os industriais sejam sempre alarmistas quanto aos limites da abertura que eles estão dispostos a conceder. O setor de serviços, tradicionalmente protegido da concorrência externa, tampouco se mobi-liza ativamente para o sucesso das negociações, ao passo que o agronegócio, expor-

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tador competitivo, parece ser o único a demandar abertura ampliada dos mercados, nos dois sentidos.

O Brasil vem insistindo na estratégia multilateralista e já recusou acordos par-ciais de acesso a mercados – como os compromissos em matéria de liberalização de produtos eletrônicos, firmados no âmbito do Information Technology Agreement, adotado em Cingapura, em 1996 – que o confrontem diretamente a países mais com-petitivos no plano industrial. Tampouco foi possível concluir acordos limitados de acesso a mercados com países desenvolvidos, a exemplo do projeto hemisférico da Alca – recusada formalmente por “inconveniente”, no seu modelo americano – e do acordo interregional entre o Mercosul e a UE, não só por motivo de dificuldades de compatibilização das demandas ofensivas em matéria agrícola e defensiva na área industrial, mas também porque os parceiros desenvolvidos pretendem um pouco mais do que o simples acesso a mercados, adentrando em áreas regulatórias ou sistêmicas que encontram oposição na atual diplomacia brasileira.

3.4. Integração regionalTrata-se, provavelmente, da prioridade estratégica mais relevante da diplomacia bra-

sileira, desde o início dos anos 1990, ou talvez até antes, desde as primeiras tentativas de formação de um mercado comum bilateral com a Argentina, na segunda metade dos anos 1980. Essa integração das duas grandes economias da América do Sul é vista como a base indispensável para a conformação de um grande espaço econômico integrado em todo o continente, havendo, em conseqüência, um enorme investimento diplomático do Brasil na consecução dessa idéia. Essa prioridade não impede, obviamente, a existência de disputas comerciais entre os dois países, com cláusulas de salvaguarda aplicadas de modo aparentemente abusivo pela Argentina contra produtos brasileiros.

Todo o processo do Mercosul – constituído pelo Tratado de Assunção, de março de 1991, sob a forma de uma união aduaneira em implementação progressiva – vem sendo apresentado como parte de um esforço de “regionalismo aberto”, ou seja, dis-posto a incorporar os vizinhos progressivamente. Mas o fato é que as tentativas de ampliação do bloco acabam resultando na criação de novas e crescentes exceções na-cionais tanto à zona de livre-comércio (ZLC) como à união aduaneira (UA). De fato, a primeira funciona com algumas exceções setoriais, notadamente no setor de açúcar (fortemente protegido na Argentina) e na indústria automotiva, onde vigora um acor-do de compensação baseado em quotas que vem sendo prolongado com alterações desde o início. Diversos acordos de liberalização comercial foram concretizados entre o Mercosul e os vizinhos andinos da CAN, com cláusulas de exceção, dispositivos de origem ou regras de acesso limitado que muitas vezes se exercem no plano bilateral dos países envolvidos.

Os novos candidatos ao ingresso pleno no Mercosul – sendo que até o momento três países são associados à sua ZLC: Chile e Bolívia, desde 1996, Peru, desde 2003 – sempre reivindicam exceções especiais à ZLC e flexibilidade na aplicação da Tarifa Externa Comum (TEC) da UA. A Bolívia, por exemplo, gostaria de ingressar ple-

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namente no Mercosul sem ter de adotar a TEC, ao passo que a Venezuela, admitida politicamente em 2006 na esdrúxula condição de “membro pleno em processo de adesão”, apresenta notórias dificuldades para aceitar o conjunto de regras já adotas pelo Mercosul, como, provavelmente, para incorporar a TEC de modo pleno. Não se prevê, no futuro imediato, progressos sensíveis no capítulo comercial, mas os países vêm expandindo uma agenda não comercial que envolve, crescentemente, grande nú-mero de atores sociais, nas áreas cultural, educacional, trabalhista e outras.

Conferindo alta prioridade à integração da América do Sul, a diplomacia brasileira se lançou em iniciativas ambiciosas, como a constituição de uma Comunidade Sul-Americana de Nações, efetivamente criada em dezembro de 2004, mas substituída, em abril de 2007, pela União de Nações Sul-Americanas, com um tratado constitutivo previsto para ser assinado em junho de 2008 e um secretariado a ser instalado em Quito. Trata-se da recuperação parcial, mas com maior significado político, do projeto lançado em setembro de 2000, a convite do presidente Fernando Henrique Cardoso, no sentido de ser constituída a Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana (IIRSA), com vistas a favorecer a vinculação física e grandes obras de infra-estrutura entre os países da região.

Independentemente do maior ou menor êxito de todos esses projetos, o fato é que os países da região estão quase todos unidos informalmente por uma rede de acordos comerciais de liberalização econômica que tem no seu centro os EUA, o promotor original da idéia da Alca, recusada por Argentina, Brasil e Venezuela. Os EUA, numa estratégia ofensiva de conquista de mercados, que os levou do antigo multilateralismo ao minilateralismo de fato, a pretexto de oferecer acesso ao seu enorme mercado a países que dispõem de pequena base industrial ou até agrícola, acabam patrocinando ampla discriminação contra os países mais competitivos da região, que são justa-mente os do Mercosul. As implicações para o Brasil são importantes, uma vez que a estratégia dos EUA pode levar o Mercosul a uma maior introversão do que seria recomendável, bem como ao aumento dos conflitos bilaterais como regra de “convi-vência”. Não se trata, obviamente, de cenário desejado pelo Brasil ou pelo Mercosul, que são, assim, obrigados a empreender uma disputa para o estabelecimento de redes de acordos paralelos.

Com esse tipo de comportamento, os dois mais importantes países do hemisfé-rio, EUA e Brasil, acabam contribuindo, voluntariamente ou não, para o reforço de uma das piores deformações do sistema multilateral de comércio na atualidade: o chamado spaghetti bowl – ou seja, um emaranhado de acordos comerciais não neces-sariamente compatíveis entre si, mas convivendo no mesmo “prato” – de que fala o economista indiano da Columbia University, Jagdish Bhagwati. O cenário previsível é o do aumento dos conflitos e um stress inevitável no sistema de solução de disputas da OMC, onde diversos casos têm sido concluídos, sem que os resultados finais ten-ham sido acatados pela parte perdedora, geralmente poderosa (como no exemplo do algodão, desrespeitado solenemente pelos EUA, contra interesses legítimos do Brasil e de muitos outros países exportadores do produto).

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3.5. Recursos energéticosA economia mundial já sofreu com os “velhos” e volta a conviver com novos

choques do petróleo: as diferenças entre uns e outros podem estar na natureza do elemento provocador, um choque de oferta, nos anos 1970, um choque de demanda, atualmente. Mas os impactos para os importadores líqüidos são sempre prejudiciais, refletindo pressões inflacionárias sobre todos os preços vinculados a essa mercadoria estratégica e conduzindo a novas transferências líqüidas de renda de consumidores para produtores. O Brasil dispõe de recursos energéticos diversificados, mas sua de-pendência do petróleo, como combustível e insumo industrial, continua significativa, agora diminuída em função do aumento da oferta nacional. Subsistem, contudo, fra-gilidades, em razão da estrutura industrial do refino (ainda fortemente baseada em petróleo importado).

A alegada auto-suficiência, na verdade, não é um ganho permanente, mas um pro-cesso que deve ser perseguido constantemente, com base nos investimentos de risco em exploração – agora compartilhados com o capital estrangeiro – e na diversifica-ção dos usos industriais, como princípio: tipos e fontes de combustíveis fósseis vêm sendo ampliados em bases nacionais e até mesmo regionais, não sem riscos de inves-timentos, como os casos da Bolívia e do Equador demonstram de maneira eloqüente. De toda forma, novas alternativas vêm sendo buscadas, não apenas para contemplar nossa própria matriz energética – com base no consagrado etanol de cana-de-açúcar e em novas fontes de biocombustível de origens diversas – como também na coope-ração com parceiros em realidades geopolíticas relativamente inéditas do novo mapa petrolífero mundial (Ásia central e do sul, costas da África, etc.).

A equação energética brasileira dificilmente conseguirá assegurar a autonomia completa em combustíveis fósseis: a busca constante de fontes internas, de petróleo ou de gás, terá de ser necessariamente complementada em fontes regionais, e aqui a geopolítica é bastante complicada pela emergência de forças nacionalistas que colo-cam em risco os investimentos já realizados ou planejados da grande estatal brasileira do setor (Petrobras). O cenário para o Brasil passa a ser o de apostar na boa convivên-cia com vizinhos por vezes difíceis (como a Bolívia), ao mesmo tempo em que conti-nua a sua busca por fontes próprias de fósseis ou por soluções tecnológicas eficientes em renováveis. Neste último terreno, tendo em vista sua dotação favorável de fatores, o Brasil tem todas as condições de aparecer no mundo como um major player (apenas não se sabe se “politicamente correto”, em vista dos problemas continuados de devas-tação ambiental nas fronteiras agrícolas e pecuárias da Amazônia).

3.6. Segurança e estabilidadeFinalmente, no que se refere aos cenários geopolíticos de possíveis conflitos – e,

talvez, de novas hecatombes humanas, em vista da proliferação nuclear e do terro-rismo fundamentalista –, existem dúvidas sobre se o Brasil será chamado a desem-penhar um papel de relevo na segurança internacional, embora ele conserve bastante importância no plano regional. A América do Sul parece ser uma região relativamente

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imune aos riscos mais evidentes de envolvimento em conflitos de grandes proporções; mas ela não pode ser considerada ao abrigo de seus efeitos indiretos, sobretudo quan-do esses riscos assumem novas formas, para as quais não existem fatores credíveis de dissuasão.

O terrorismo de cunho fundamentalista islâmico, que parece ser a fonte mais pro-vável das novas ameaças às potências ocidentais, não deve fazer da América do Sul uma base de operações, embora não se possa descartar tanto o proselitismo religioso, como a mobilização de recursos de tipos diversos entre as comunidades de uma mes-ma afinidade religiosa ou étnica. Os riscos de grandes ataques terroristas, no plano mundial, continuarão a ser combatidos – sobretudo sob comando dos EUA – pela conjunção de operações de inteligência com a repressão pura e simples, o que promete muitas vítimas no futuro de médio prazo. A diplomacia brasileira atual tem afirmado sua preferência por atuar sobre causas das ameaças terroristas, o que pode revelar uma incompreensão quanto à natureza do fenômeno e as possibilidades de “dissuasão preventiva”, pelo menos no curto prazo. Não deverá ocorrer evolução significativa no tratamento dessa questão antes de novos desenvolvimentos, talvez dramáticos, do fenômeno terrorista.

No que se refere à não-proliferação nuclear e aos regimes restritos para o controle de tecnologias sensíveis, existem novos desafios, igualmente, que tampouco serão resolvidos com base na pressão pura e simples ou na chantagem econômica, como parece ser o método habitual das grandes potências. Ao não oferecerem promessas credíveis de desarmamento efetivo e de não recurso aos artefatos de que dispõem em caso de conflitos graves, elas deixam aberta a porta para alguns proliferadores estatais. Em todo caso, existem atores nesse processo, nem todos estatais, que são imunes a quaisquer tipos de “persuasão” antinuclear: ditadores megalomaníacos e terroristas profissionais estarão sempre dispostos a enveredar pelo caminho atômico, ainda que de uma “bomba suja”. As possibilidades que se abrem em alguns países – o Paquistão, desestabilizado pela anarquia política interna, aparece como um dos “ventres sensíveis” da proliferação descontrolada, mas a própria Rússia e países da Ásia central podem entrar no jogo involuntariamente – são por demais preocupantes e fazem com que essa questão se mantenha no topo da agenda das grandes potências no futuro previsível.

O papel do Brasil nesse tipo de questão é propriamente marginal, a não ser como membro temporário do CSNU ou permanente da Conferência do Desarmamento, se é que questões desse tipo podem ter tratamento eficaz nesses foros de discussão políti-ca. Outras instâncias podem ser acionadas para o encaminhamento sigiloso de alguns casos; a participação do Brasil em discussões ou medidas práticas dependerá de quão confiável ele pode aparecer aos olhos dessas grandes potências para seu envolvimento nesses casos.

Também permanecerá na agenda internacional, durante muitos anos à frente, e na pauta diplomática brasileira, a questão da reforma do CSNU: quem entraria, exatamente, e quais seriam as bases de alguns acertos regionais, inevitáveis, realis-

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ticamente falando? O Brasil aparece como um eterno candidato, com os sucessos e frustrações de uma luta de longo curso, na qual pequenos compromissos táticos são o preço a pagar por alguma grande vitória estratégica mais à frente. Durante algum tempo, se considerou que sua participação em missões de paz da ONU, a exemplo da Minustah, no Haiti, poderia representar uma espécie de bilhete de ingresso no CSNU, o que não é obviamente o caso. No jogo das grandes potências, boa vontade política e disposição para a cooperação desinteressada não parecem ser, necessariamente, re-quisitos qualificadores. Apenas a manifestação de poder, em bases próprias, qualifica para o exercício de responsabilidades mundiais, como parece pensar a Índia. Abre-se, aqui, uma possível fonte de desentendimentos políticos – com conseqüências práticas – entre soldados e diplomatas, os primeiros, presumivelmente, considerando que a detenção de artefatos nucleares confere respeitabilidade e, portanto, “aceitabilidade” de candidatos ao clube dos grandes, os segundos procurando pautar-se pela letra dos tratados e das obrigações internacionais.

De toda forma, a questão parece ter sido definitivamente resolvida pelo pacto constitucional, que submete todas as atividades nucleares à sua utilização pacífica, o que veda, em princípio, seu desvio para outras finalidades. Não se vê, de toda forma, em quê a posse de um artefato nuclear poderia adiantar a causa do Brasil no plano internacional. Suas causas básicas são as do desenvolvimento econômico, da coope-ração técnica, da luta pelos direitos humanos e, presumivelmente, da democratização do sistema mundial de poder. A segurança internacional exige um pouco mais do que isso, pois depende, também, de meios adequados para o exercício da força e de von-tade política e capacidade de decisão para querer e poder utilizá-la, em circunstâncias determinadas, supostamente sempre de acordo com as regras do direito internacional e do respeito às instituições que conferem legitimidade ao seu uso. Em qualquer hi-pótese, o Brasil precisaria dispor de condições adequadas e efetivas para entrar nesse “jogo de grandes”: os requisitos indispensáveis para isso, sem que a ferramenta nu-clear entre necessariamente em linha de conta, seriam soldados e capacidade econô-mica. O Brasil precisaria se preparar para isso, consciente de que esses requisitos são construídos inteiramente dentro de sua própria casa.

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