A paisagem da Linha de Costa - Perspetiva de Alain Corbin

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MESTRADO EM ESTUDOS REGIONAIS E LOCAIS Paisagem da Linha de Costa, o Mar e os Navios. Uma breve perspetiva histórica e pictórica a propósito da representação do “The Honourable E.I.C.S. Dunira Passing Funchal Bay” José Cândido Fernandes Minas FUNCHAL 2014

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  • MESTRADO EM ESTUDOS REGIONAIS E LOCAIS

    Paisagem da Linha de Costa, o Mar e os Navios.

    Uma breve perspetiva histrica e pictrica a propsito da

    representao do The Honourable E.I.C.S. Dunira

    Passing Funchal Bay

    Jos Cndido Fernandes Minas

    FUNCHAL 2014

  • Paisagem da Linha de Costa, o Mar e os Navios.

    Uma breve perspetiva histrica e pictrica a propsito da

    representao do The Honourable E.I.C.S. Dunira Passing Funchal Bay

    Jos Cndido Fernandes Minas

    Trabalho apresentado Universidade da Madeira para a Unidade Curricular de

    Arte e Cultura Regionais do Curso de Mestrado em Estudos Regionais e Locais.

    Docente: Prof. Doutora Maria Isabel Camara Santa Clara Gomes Pestana

    Funchal, Janeiro de 2014

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    " A viagem da descoberta consiste no em achar novas paisagens, mas em ver com novos olhos."

    Marcel Proust

    A paisagem, na sua significao, transporta-nos para a imagem mental obtida aps um

    golpe de vista onde podemos percecionar uma poro do territrio ou uma extenso de

    terras. Esta viso minimalista define que a paisagem poder no ser uma simples

    palavra mas uma conceptualizao ou, numa outra perspetiva, uma palavra com vrios

    conceitos subjacentes.

    Assim, Ferreira et al, ampliam este conceito e incluem nas paisagens, para alm da

    perceo visual, a interiorizao de cheiros, sons e tudo aquilo que poder constar das

    imagens metais que elaboramos luz das nossas experiencias e dos sentidos, fazendo

    depender a forma de interpretar a paisagem de uma interiorizao subjetiva, capaz de

    orientar as decises e sensaes individuais ou grupais (Ferreira, Alcoforado, Vieira,

    Mora, & Jansen, 2001, pp. 158-159).

    A este propsito, a paisagem, na sua forma de variante da pintura, poder ser o objeto

    principal da obra pictrica ou constituir o fundo enquadrador doutro motivo, esse ento, o

    principal mas umbilicalmente ligado ao enquadramento pretendido pelos autores. Nesta

    perspetiva, a costa e o mar so o fundo por excelncia do ramo pinturesco que aborda a

    figurao de motivos ligados marinhagem ou s atividades balneares, sejam elas de

    lazer, mais recentemente, ou de usufruto dos seus recursos, no perodo que antecede o

    romantismo como a seguir se poder asseverar.

    Nesta contextualizao, reside a temtica do presente papper, circunscrevendo, no

    entanto, o seu mbito temporal entre o perodo anterior ao romantismo (sculo XVIII) e o

    incio do sculo XX, j que, a generalidade dos autores estudados refere este perodo

    como a poca urea da representao paisagista da costa, do mar e motivos conexos.

    A esta poca tambm esto associadas as principais obras que retratam a paisagem

    costeira das ilhas do Arquiplago da Madeira, salvaguardando-se, porm, a singularidade

    da obra de Max Rmmer1 que, recorrendo a esta temtica muito particular, desenvolveu a

    sua atividade no sculo passado.

    1 Max Rmer viveu no Funchal ao longo de 38 anos (1922-1960) e foi o artista estrangeiro que mais pintou a

    paisagem e o quotidiano madeirense, deixando uma vasta obra dispersa em colees particulares e nos

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    Assim sendo, se os acervos bibliogrficos acadmicos so parcos em estudos

    relacionados com o tema em anlise, no factualmente racional ignorar a obra

    Territrio do vazio: a praia e o imaginrio ocidental do historiador francs Alain

    Corbin2 que, atravs da anlise de obras de arte dos sculos XVIII e XIX, procura

    descodificar o imaginrio do mar e das praias. De acordo com Karpinski, dessa obra,

    depreende-se que as pinturas de paisagens esto intimamente ligadas a um imaginrio

    social, no representando, todavia, factos, causas ou consequncias, mas o sentido que a

    sociedade deu ao ambiente ocenico e litoral. As pinturas so meros indcios de como as

    emoes (dos homens) foram mudando ao longo do tempo perante a contemplao da

    beira-mar, e demonstram subjetivamente uma narrativa dos modos, gestos e

    sentimentos que nessas telas podero estar contidos (Karpinski, 2011, p. 31).

    A representao paisagstica do ambiente martimo, que subsiste nas pinturas,

    proporcionam determinadas imagens que a sociedade tinha do mar num perodo concreto

    e permitem aferir e observar o jogo de foras presente na multifacetada sensibilidade

    do artista. Subentendido na tela, observamos como as pessoas viam e queriam representar

    o litoral, sendo essa a base concetual de que Corbin recorre para fundamentar as suas

    teses (Karpinski, 2011, p. 31).

    No livro, a delimitao do seu estudo entre os anos de 1750 e 1840 coincide com o

    perodo de produo das obras mais significativas acerca do litoral madeirense,

    realando-se a produo de um significativo nmero de gravuras, desenhos e aguarelas3

    que estampam os usos e costumes locais, semelhana do que se passava noutras

    paragens, e numa prolongao do gosto romntico que, por essa altura, imperava na

    civilizao europeia. De modo genrico, a maior parte dos autores dessas obras no eram

    autctones, mas sim artistas errantes que aportam ao Funchal por razes de sade ou de

    mera passagem pelo seu porto, que data constitua um importantssimo entreposto de

    apoio logstico nas rotas do Cabo e do Brasil4. (SOUSA, 2011, p. 42).

    museus e edifcios da Regio. In O Funchal na obra de Max Rmer, 1922 - 1960 Vrios Autores, Coordenao de Rui Camacho, Funchal, 2008

    2 Alain Corbin (12 de janeiro de 1936 - ) um historiador francs especialista na histria do sculo XIX. Professor emrito de histria do sculo XIX na Universidade de Paris e membro do Instituto Universitrio de

    Frana.

    um historiador que advoga um histrico de anlises de sensibilidade da perceo do tempo e do espao

    atravs dos sons (i.e. dos sinos das igrejas campesinas), das representaes grficas das costas ou das praias.

    In http://www.compartelibros.com/autor/alain-corbin/1 consultado em 15 de janeiro de 2014. 3 In Desenhos e Gravuras Museu da Quinta das Cruzes, [em linha] disponvel em URL: http://mqc.gov-

    madeira.pt/pt-PT/Coleccoes/desenhosegravuras/ContentDetail.aspx consultado em 15 de janeiro de 2014. 4 De acordo com a tese de lvio Sousa, a Madeira serviu esporadicamente a Carreira das ndias.

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    Voltando viso de Corbin, analisemos a poca clssica em que a viso da praia e da

    costa marcada por uma averso delcia e ao prazer que as atividades litorais e navais

    proporcionam, ignorando o encanto das praias de mar, a emoo do banhista que

    enfrenta as ondas, os prazeres da vilegiatura martima. Nas pinturas desta poca esta

    averso e temor so bem patentes na representao do mar como recipiente dos restos do

    dilvio e at na antiga codificao das cleras ocenicas suscitadas por obras

    representativas do classicismo grego (i.e. Ilada e Odisseia de Homero e Eneida de

    Virglio5) (Corbin, 1989, pp. 44-45).

    Figura 1 - Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni (1475 564) - "O dilvio" 1508/12

    Figura 2 - Joachim Patinir (cerca de 1480-1524) Caronte atravessando o Estige 1515/24

    5 Nestas obras clssicas, as imagens correlacionadas com o mar inspiravam repulsa e medo.

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    Os desenvolvimentos, em Inglaterra, da oceanografia e descobertas cientficas associadas,

    ocorridas entre 1660 e 1675 (e.g. darwinismo), iro desvanecer a repulsa e o temor e, a

    partir de 1623, a pintura comea a representar a costa e as atividades nela desenvolvidas

    atravs de cenas de costumes e esteretipos bem determinados. Aparecem as

    representaes das atividades piscatrias e de recoleo dos frutos do mar associados,

    numa fase posterior, narrao grfica dos rituais de passeio urbano (Karpinski, 2011, p.

    32).

    Figura 4 - Adriaen van de Velde- Praia de Scheveningen- 1658

    Figura 3 - Jan Van Goyen - Praia de Scheveningen- 1646

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    Dos exemplos acima, e neste perodo onde reina o romantismo, observa-se que

    desaparece a representao de temas mitolgicos, e do erotismo subjacente ao banho,

    dando lugar aos passeantes, pescadores e mariscadores, numa aproximao coerente com

    o real em contraponto com o subjetivo mtico.

    Figura 5 - Joseph Mallord William Turner (1775-1851) "Sol Nascente com Pescadores" 1826

    A este propsito vejamos a obra de William Turner que sendo influenciado por outros

    pintores como: Tiziano, Poussin, Le Lorrain ou Rembrandt parece transmutar a viso

    terrfica do dilvio numa viso onrica desse tema. Tal poder-se- contatar numa anlise

    cruzada entre O Inverno6 de Nicols Poussin e O Dilvio de Turner:

    Figura 6 - Nicols Poussin (1594-1665) "O Dilvio" 1660/64

    6 Tambm conhecido como O Dilvio

    Figura 7 - Joseph Mallord William Turner (1775-1851) "O Dilvio" - 1805

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    Por esta altura, o foco das obras pictricas deixa de estar no homem, passando a ser o mar

    o objeto central e em torno do qual a trama narrativa se desenvolve na perspetiva esttica

    e sublime caraterstica do romantismo. Poder-se- dizer que os pintores se sentem

    atrados pela plasticidade do mar, pelo horizonte de uma vastido incomensurvel e pela

    peculiar e intensa luz do oceano e da costa.

    Os dramatismos associados aos naufrgios tornam-se moda e so enquadrados pelos

    pintores da poca por representaes relativamente realsticas da linha de costa,

    salvaguardando-se as inferncias estilsticas relacionadas com a representao impactante

    do tema. Um dos exemplos mais marcantes deste enquadramento -nos dado por Claude

    Vernet que ao longo da sua obra tem abordagens recorrentes ao tema e com opes

    plsticas e representativas semelhantes.

    Figura 8 - Vernet Claude-Joseph (1714-1789) - O naufrgio- 1759 e O naufrgio - 1772

    William Turner tambm aborda o tema e desenvolve obras em que marcadamente o mar

    o protagonista e os homens meros pees, vtimas da sua crueldade e da frieza da violncia

    a ele associada, denotando um sentido de impotncia perante os desgnios da natureza.

    Figura 9 - Joseph Mallord William Turner (1775-1851) "O Naufrgio " - 1817 e O Naufrgio - 1822

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    Segundo Corbin, com o romantismo ocorre o trminus das representaes pictricas

    realistas da costa mas, mesmo que tal no tivesse ocorrido, o aparecimento de uma

    representao fiel ao real iria pr termo necessidade de recorrermos a pinturas para

    percecionarmos a realidade visual das pocas. Referimo-nos ao aparecimento dos registos

    fotogrficos7 que obviamente retratam as paisagens costeiras tal como elas eram, o que

    viria a revolucionar a forma como os historiadores estudam os usos e costumes

    subjacentes ao litoral (Karpinski, 2011, pp. 34-35).

    Figura 10 - Joseph Mallord William Turner (1775-1851) " Pr do Sol no Rio " 1820

    Neste enquadramento concetual, abordemos ento a representao do litoral madeirense

    ao longo das pocas estudadas, e que se caracteriza, primordialmente, pela produo de

    gravuras impressas em alguns livros da poca e reproduzidas proficuamente ao ponto de

    atualmente estarem expostas em locais pblicos e privados ao longo da Ilha.

    Desde j, de ressalvar que a qualidade pictrica, histrica e valor intrnseco das obras

    referidas no , de forma alguma, relevante salvaguardando-se o interesse inerente a

    7 A primeira fotografia reconhecida foi feita em 1826, pelo francs Joseph Nicphore Nipce In Histria da

    fotografia [Em Linha] disponvel em URL: http://www.infoescola.com/artes/fotografia/ consultado em 02 de

    janeiro de 2014.

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    serem importantes fontes historiogrficas, contribuindo sobremaneira para a interpretao

    do passado, modo de vida, economia e cultura dos ilhus, sabendo-se que esta condio

    induz particularidades que, de outra forma, nunca seriam conhecidas.

    Do acervo de arte regional de realar o do Museu da Quinta das Cruzes que, no seu

    ncleo de Desenhos e Gravuras, integra um total de 446 peas de diversos autores, que

    visitaram a ilha durante o sculo XIX: Andrew Picken, Emily Genevive Smith, o

    Reverendo James Bulwer, Frank Dillon, Rudolph Ackermann, R. Westall e W. Westall.

    Neste Museu e datadas de pocas anteriores da produo destes gravuristas, so de

    realar trs obras cujos motivos se relacionam com aspetos paisagsticos do litoral do

    Funchal.

    A primeira obra de Joaquim Leonardo da Rocha (1756-1825), um obscuro pintor que

    no sendo natural da Madeira, por esta passou no incio do sculo XIX e que, no seu

    nico registo paisagstico conhecido, retratou a Fortaleza de Nossa Senhora da Conceio

    (ou da Pontinha).

    Figura 11 - Joaquim Leonardo da Rocha - "Fortaleza de Nossa Senhora da Conceio do Ilhu da Pontinha

    Comparando o quadro com uma fotografia do sculo XIX, podemos constatar alguma

    representao realista. Contudo, a nica obra que se conhece da fortaleza com a

    incluso de duas vigias simtricas na sua fachada oeste, pelo que se depreende que

    possam nunca ter existido ou, em contraponto, estiveram implantadas num perodo muito

    curto de tempo.

  • 12

    Figura 12 - Fotografia de finais do sculo XIX - Ilhu da Pontinha (Funchal)8

    Na contextualizao de Corbin, as outras duas obras so muito mais interessantes.

    Tratam-se de duas pinturas de Toms Jos da Anunciao (1818-1879), uma denominada

    Vista da Baa do Funchal de Santa Catarina e a outra Piquenique, ambas de 1865. De

    acordo com o contedo [em linha] do Museu, nesta ltima surgiria retratada a famlia do

    2. Conde de Carvalhal e em fundo poder-se-ia observar o lado oeste da baa do Funchal,

    com o seu casario bem representado, bem como, os acidentes geogrficos notrios, mas

    com a omisso importante do promontrio do Cabo Giro e do cone vulcnico do Pico da

    Torre.

    Figura 13 - Toms Jos da Anunciao (1818-1879) "O Piquenique" - 1865

    8 Fonte:http://lh4.ggpht.com/-Qp4qOdd9Pnk/TnBp40lQ5AI/AAAAAAAALBM/eyuS1MR-ug0/s1600-h/Funchal.168.jpg

  • 13

    Outra caraterstica anacrnica da obra a quase total ausncia de navios ancorados na

    baa do Funchal, algo que se sabe no corresponder a um padro comum poca, isto

    aps anlise de alguns registos fotogrficos posteriores, nomeadamente o da figura 12.

    Figura 14 - Toms Jos da Anunciao (1818-1879) " Vista da Baa do Funchal de Santa Catarina " - 1865

    .

    Na sua viso do lado oposto da baa, Toms da Anunciao, consegue transmitir um

    quadro aprazvel da paisagem, jogando corretamente com a paleta de cores caractersticas

    dum dia soalheiro latitude da Ilha da Madeira e representa de uma forma mais fiel a

    orografia da cidade e o seu esparso casario. Nesta composio nota-se a ausncia das

    inmeras embarcaes costeiras que flutuavam junto praia do embarcadouro de Santa

    Maria do Calhau, muito embora se possam perscrutar algumas formas estilizadas que se

    assemelham a pequenos batis. A introduo dum veleiro bolina contra os ventos

    dominantes de nordeste mais uma marca do anacronismo do autor em benefcio da

    composio artstica.

    Refira-se que a abordagem de Toms de Anunciao, na senda do romantismo dominante

    poca, muito aproximada dos artistas estrangeiros que aportam ao Funchal, a maioria

    deles em busca da sade que lhes faltava nos pases de origem e que de boa fama se

    constava existir nesta cidade atlntica. De entre estes artistas, e de entre aqueles que tm

    obras no acervo do Museu da Quinta das Cruzes, de realar a figura de Andrew Picken

  • 14

    que foi um daqueles que cedo pereceu tendo vivido uns escassos trinta anos. Na sua

    passagem pela ilha dedicou-se representao dos usos e costumes enquadrando-os na

    paisagem insular, tendo uma especial apetncia para a representao do mar e da linha

    costeira.

    Na sua primeira passagem pela ilha, Picken ilustra um livro (Madeira Illustrated de

    1840) de sua autoria e que contem a descrio da ilha poca, para alm de oito

    litografias compostas a partir de aguarelas produzidas por si. Este livro marcante na

    divulgao da ilha no sculo XIX9 e enquadra-se bem naquilo que Corbin estatui como a

    memria coletiva da vivncia e usufruto do litoral.

    No contexto deste estudo so relevantes algumas ilustraes, principalmente as que

    retratam a paisagem da baa do Funchal em todo o seu esplendor e das quais ainda

    podemos observar reprodues em locais to emblemticos como os Paos do Conselho,

    a Casa Museu Federico de Freitas, o Hotel Reids Palace, entre outros.

    9 In Agenda Cultural da Madeira [Em Linha] disponvel em URL: http://cultura.madeira-

    edu.pt/agendacultural/IdentidadeVisual/tabid/946/ctl/Read/mid/3484/NoticiaId/5850/language/pt-

    PT/Default.aspx consultado em 10 de janeiro de 2014.

    Figura 15 - Capa e ilustrao do livro "Madeira Illustrated" de Andrew Picken - 1840

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    Nessa genealogia das sensibilidades, Corbin, ao utilizar as

    paisagens inscritas nas obras de arte, nos remete a uma histria da

    praia. No do espao em si, mas das relaes sensveis que os

    humanos passaram a ter com este espao e nas transformaes

    ocorridas na formao deste territrio. (Karpinski, 2011, pp. 35-36)

    Este excerto crucial para aquilatarmos da importncia das gravuras do sculo XIX no

    contexto historiogrfico madeirense. Graas a elas podemos perceber, entre outras, as

    peculiaridades do transporte das pipas e barris de vinho pelos navios de cabotagem.

    Repare-se no pormenor da flutuabilidade dos barris, crucial para o embarque e

    desembarque no calhau rolado da praia de Santa Maria.

    Figura 16 - Andrew Picken (1815-1845) - "Funchal By Bay" - 1840

    Podemos tambm ter um vislumbre sobre as atividades que tinham lugar beira-mar,

    como se observa na Figura 17 onde, desde So Lzaro, se aprecia um delicioso quadro

    rural com o vilo a transportar os galinceos, a vila tecendo e os restantes

    personagens passando o tempo em redor dum deles que toca um tradicional e minsculo

    instrumento de cordas.

  • 16

    Figura 17 - Andrew Picken (1815-1845) - "Funchal From Sao Lazaro" - 1840

    E se, outro gravurista, Ackermann, nos transmitia estas vivncias de uma forma brejeira e

    caricata, Picken assume uma representao realista, que sendo de menor valor artstico

    de um enormssimo valor histrico, muito devido sua condio de estrangeiro que faz

    com que seja relativamente imune s inferncias da vida local e insular. Saliente-se, nesta

    gravura, a representao correta da orografia de So Gonalo, do vale entrecortado da

    Ribeira de Joo Gomes e do conjunto arquitetnico da baixa funchalense com especial

    nfase no Pilar de Banger, Palcio de So Loureno, S e Forte de So Tiago.

    Mas se h mais contributos para a historiografia do litoral que tero de ser sublinhados

    pelo seu rigor narrativo, h tambm outros, claramente, descontextualizados ou fruto de

    um trabalho com base em gravuras alheias, conferindo-lhes uma falta de fidelidade

    marcante em relao aos motivos expressos. Temos uma clara viso dessas duas

    realidades nas seguintes obras:

  • 17

    Figura 18 - Frank Dillon - Forte de So Tiago - 1850

    Em cima vemos uma gravura marcadamente realista, com o Forte de So Tiago e a

    orografia da montanha bem representados e um quadro pitoresco de algumas atividades

    de praia como o embarque do vinho, a parelha de bois descansando, as vilas paradas,

    a me com o filho, o pescador e as embarcaes tpicas de proa e popa sobrelevadas

    aparelhadas com velas triangulares adequadas bolina. At no ser demasiado

    especulativo associar a cor do cu recorrente projeo de poeiras do deserto do Sahara e

    que no estio confere tons alaranjados penumbra que cobre a ilha.

    J na figura seguinte constatamos uma realidade diametralmente oposta, enviesada e

    passvel de prejudicar a nossa perceo histrica. Felizmente, que a orografia e alguns

    edifcios significativos sobreviveram ao decorrer do tempo e sua inexorvel eroso.

    Atravs deles podemos inferir que os autores de determinadas obras ou nunca estiveram

    na ilha, ou s o fizeram de passagem fugaz ou, finalmente usaram a obra alheia como

    base para a sua pintura.

    Na gravura de Westall, aprecie-se a obtusa representao dos acidentes geogrficos e a

    errnea arquitetura do Palcio de So Loureno, principalmente na representao da torre

    de seco retangular e ameias, quando na realidade a mesma semicircular.

  • 18

    Figura 19 - W. Westall Palcio de So Loureno, Funchal, Madeira - 1809

    nesta contextualizao que abordamos a obra que deu mote ao subttulo deste breve

    estudo. Trata-se de um quadro intitulado The Honourable East India Company's ship

    Dunira Passing Funchal Bay, Island of Madeira, de 1830 (leo sobre tela) do pintor da

    Escola Inglesa Thomas Butterswort e pertence ao acervo do Museu da Quinta das Cruzes

    para o qual foi adquirido em leilo em 2009 (Arquiplagos, 2011).

    Figura 10 - Thomas Butterswort (1768-1842) The Honourable East India Company's ship Dunira Passing Funchal Bay, Island of Madeira - 1830

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    Apreciemos ento a pintura atravs da viso de Corbin, subalternizando o seu valor

    artstico, reduzido diga-se de passagem e enfatizando o contributo que ela nos poder

    aportar para a histria e para o conhecimento.

    A obra descrita da seguinte maneira:

    Esta pintura tem como tema central, o navio Dunira, pertencente

    Companhia das ndias Orientais Inglesas, em passagem pela baa do

    Funchal, provavelmente a caminho da ndia, em 1830, data que

    coincide com uma das ltimas viagens que realizou com destino ao

    Oriente, entre 1830-1831). Realado por um cu raiado de suaves

    tonalidades de lils e um mar relativamente agitado, o Dunira surge

    na sua grandeza, valorizado pela atmosfera, onde a luminosidade

    habilmente conduzida para o navio. []. Em plano de fundo,

    podemos observar uma vista panormica, com uma perspectiva rara e

    invulgar, que abrange a totalidade da baa do Funchal e sua

    arquitectura. Se por um lado, evidente o rigor topogrfico, a

    preocupao de sinalizao e identificao de alguns edifcios

    emblemticos da cidade, como a Igreja do Monte, o Forte do Ilhu,

    ou o Pilar de Banger, por outro, o autor revela um sentido fantasista

    na representao imprecisa do casario, cuja localizao ajustada

    composio geral do tema. (Arquiplagos, 2011)

    Neste contexto, e pondo de parte o insofismvel relacionado com a origem do navio e a

    sua correta representao10, j que o autor era o pintor oficial da Companhia das ndias

    Orientais Inglesas, tentemos equacionar a sua valia histrica. muito provvel que,

    Thomas Butterswort, nunca tenha estado na Madeira, pois a sua carreira naval decorre

    longe das rotas comerciais que passam pelo arquiplago. Assim sendo, de supor que a

    representao do litoral funchalense tenha sido feita recorrendo a gravuras de outros

    autores, tambm porque, no havendo registo histrico duma estadia prolongada na ilha,

    o pintor numa escala de viagem teria muito pouco tempo para elaborar um estudo

    topogrfico de representao orogrfica to pormenorizado e fiel como o verificado no

    quadro.

    10 Thomas Butterswort teve uma experincia e uma carreira martima desenvolvida na Marinha Britnica, entre

    1795 e 1800, ao servio da fragata H.M.S. Caroline. junto do Mediterrneo e da Costa Atlntica espanhola

    (Arquiplagos, 2011).

  • 20

    Dado que o registo pictrico elaborado aps encomenda do capito do Dunira

    (Arquiplagos, 2011), poder-se- situar o navio no Funchal como mera opo do autor da

    encomenda dado que, como se viu atrs, o Funchal no foi entreposto logstico e

    comercial para os navios da Companhia das ndias Orientais Inglesas (SOUSA, 2011).

    Outra pista que nos poder conduzir produo da obra longe da Madeira, relaciona-se

    com a incorreta representao das pequenas embarcaes de pesca costeira, que eram,

    como j vimos, aparelhadas com proas e popas sobrelevadas e com desenho de casco

    marcadamente diferente daquele representado na tela e que mais parecem meros botes

    tpicos do norte da europa.

    E se a topografia muito bem representada - observe-se a localizao do Cabo Giro, do

    Pico da Torre e da Ponta da Oliveira - no menos verdade que alguns edifcios tambm

    o so (Fortaleza da Pontinha e Igreja do Monte), principalmente em termos da localizao

    geogrfica. Porm, a representao estilizada do casario do Funchal reveladora da falta

    de conhecimento aprofundado do autor acerca da fisionomia da cidade, pois marcos como

    o Pilar de Banger, o Palcio de So Loureno, a S e o Edifcio da Alfandega muito

    dificilmente deixariam de figurar no quadro, se a obra tivesse sido feita com base num

    estudo presencial.

    Finalmente, mesmo compreendendo-se as razes estticas em funo duma representao

    eloquente do navio, que o motivo principal do quadro, torna-se evidente a dicotmica

    expresso do enfunamento das velas das embarcaes em funo de ventos que sopram

    de direes ilgicas com os rumos subentendidos e com os quadrantes dominantes nos

    ventos locais. Digamos, numa linguagem menos marinheira, que no seria possvel s

    embarcaes presentes na tela navegarem seguindo aqueles rumos e de acordo com

    aqueles ventos.

    Eis ento a concluso deste estudo, que no uma anlise a uma obra em concreto (o

    Dunira foi apenas o mote) mas sim perceber-se a viso de Corbin acerca dos

    contributos da pintura para o conhecimento histrico das vivncias, costumes e reaes

    do homem perante o mar e o litoral. Poder-se- mesmo dizer que a arte pode ser

    aproveitada, apreciada e estudada por leigos nesse ramo do saber cientfico/cultural,

    sendo olhada no nas suas concees artsticas mas sim como uma importantssima fonte

    historiogrfica mas que, contudo, carece de uma interpretao muito cuidada e

    especializada.

  • 21

    ndice de Ilustraes/Figuras

    Figura 1 - Michelangelo di Lodovico Buonarroti Simoni (1475 564) - "O dilvio" 1508/12 .............................. 6

    Figura 2 - Joachim Patinir (cerca de 1480-1524) Caronte atravessando o Estige 1515/24 .................................... 6

    Figura 3 - Jan Van Goyen - Praia de Scheveningen- 1646 ....................................................................................... 7

    Figura 4 - Adriaen van de Velde- Praia de Scheveningen- 1658 ............................................................................. 7

    Figura 5 - Joseph Mallord William Turner (1775-1851) "Sol Nascente com Pescadores" 1826 .......................... 8

    Figura 7 - Joseph Mallord William Turner (1775-1851) "O Dilvio" - 1805 ............................................................ 8

    Figura 6 - Nicols Poussin (1594-1665) "O Dilvio" 1660/64 ................................................................................... 8

    Figura 8 - Vernet Claude-Joseph (1714-1789) - O naufrgio- 1759 e O naufrgio - 1772 .............................. 9

    Figura 9 - Joseph Mallord William Turner (1775-1851) "O Naufrgio " - 1817 e O Naufrgio - 1822 .............. 9

    Figura 10 - Joseph Mallord William Turner (1775-1851) " Pr do Sol no Rio " 1820 ........................................ 10

    Figura 11 - Joaquim Leonardo da Rocha - "Fortaleza de Nossa Senhora da Conceio do Ilhu da Pontinha ...... 11

    Figura 12 - Fotografia de finais do sculo XIX - Ilhu da Pontinha (Funchal)......................................................... 12

    Figura 13 - Toms Jos da Anunciao (1818-1879) "O Piquenique" - 1865 ....................................................... 12

    Figura 14 - Toms Jos da Anunciao (1818-1879) " Vista da Baa do Funchal de Santa Catarina " - 1865 ... 13

    Figura 15 - Capa e ilustrao do livro "Madeira Illustrated" de Andrew Picken - 1840 .......................................... 14

    Figura 16 - Andrew Picken (1815-1845) - "Funchal By Bay" - 1840 ...................................................................... 15

    Figura 17 - Andrew Picken (1815-1845) - "Funchal From Sao Lazaro" - 1840 ...................................................... 16

    Figura 18 - Frank Dillon - Forte de So Tiago - 1850 ................................................................................................ 17

    Figura 19 - W. Westall Palcio de So Loureno, Funchal, Madeira - 1809 ......................................................... 18

    Figura 20 - Thomas Butterswort (1768-1842) The Honourable East India Company's ship Dunira Passing Funchal Bay, Island of Madeira - 1830.............................................................................................................................................................. 18

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    Bibliografia

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    http://www.arquipelagos.pt/arquipelagos/newlayout.php?mode=imagebank&details=1

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    Corbin, A. (1989). O Territrio do Vazio - A praia e o imaginrio ocidental. So

    Paulo: Editora Schwarcz Ltda.

    Ferreira, A. d., Alcoforado, M. J., Vieira, G. T., Mora, C., & Jansen, J. (2001).

    Metodologias de anlise e de classificao Das paisagens. O exemplo do projecto

    Estrela. Finisterra, XXXVI, 72, pp. 157-178.

    Karpinski, C. (2011). Paisagem e histria: notas de leitura. Obtido em 15 de janeiro

    de 2014, de Revista Espao Plural - Universidade Estadual do Oeste do Paran - Ano

    XII . N 25 . 2 Semestre: http://e-

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    Madeira e nos Aores: (sculos XV-XVIII) - Tese de Doutoramento. Obtido em 15 de

    janeiro de 2014, de Repositrio da Universidade de Lisboa - Faculdade de Letras:

    http://repositorio.ul.pt/handle/10451/5377

    Vrios. (2012). Museu da Quinta das Cruzes. Obtido em 04 de janeiro de 2014, de

    Sitio da Internet do MQC: http://mqc.gov-madeira.pt/pt-PT/Coleccoes